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Transtornos de humor e de ansiedade comórbidos em vítimas de violência com transtorno do estresse pós-traumático

Resumos

OBJETIVO: Buscar estudos que avaliem a comorbidade entre transtorno de estresse pós-traumático e transtornos do humor, bem como entre transtorno de estresse pós-traumático e outros transtornos de ansiedade. MÉTODO: Revisamos a base de dados do Medline em busca de estudos publicados em inglês até abril de 2009, com as seguintes palavras-chave: "transtorno de estresse pós-traumático", "TEPT", "transtorno de humor", "transtorno depressivo maior", "depressão maior", "transtorno bipolar", "distimia", "transtorno de ansiedade", "transtorno de ansiedade generalizada", agorafobia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "transtorno de pânico", "fobia social" e "comorbidade". RESULTADOS: Depressão maior é uma das condições comórbidas mais frequentes em indivíduos com transtorno de estresse pós-traumático, mas eles também apresentam transtorno bipolar e outros transtornos ansiosos. Essas comorbidades impõem um prejuízo clínico adicional e comprometem a qualidade de vida desses indivíduos. Comportamento suicida em pacientes com transtorno de estresse pós-traumático, com ou sem depressão maior comórbida, é também uma questão relevante, e sintomas depressivos mediam a gravidade da dor em sujeitos com transtorno de estresse pós-traumático e dor crônica. CONCLUSÃO: Os estudos disponíveis sugerem que pacientes com transtorno de estresse pós-traumático têm um risco maior de desenvolver transtornos afetivos e, por outro lado, transtornos afetivos pré-existentes aumentam a propensão ao transtorno de estresse pós-traumático após eventos traumáticos. Além disso, vulnerabilidades genéticas em comum podem ajudar a explicar esse padrão de comorbidades. No entanto, diante dos poucos estudos encontrados, mais trabalhos são necessários para avaliar adequadamente essas comorbidades e suas implicações clínicas e terapêuticas.

Comorbidade; Transtorno de estresse pós-traumático; Transtornos de ansiedade; Transtornos do humor; Violência


OBJECTIVE: To review studies that have evaluated the comorbidity between posttraumatic stress disorder and mood disorders, as well as between posttraumatic stress disorder and other anxiety disorders. METHOD: We searched Medline for studies, published in English through April, 2009, using the following keywords: "posttraumatic stress disorder", "PTSD", "mood disorder", "major depressive disorder", "major depression", "bipolar disorder", "dysthymia", "anxiety disorder", "generalized anxiety disorder", "agoraphobia", "obsessive-compulsive disorder", "panic disorder", "social phobia", and "comorbidity". RESULTS: Major depression is one of the most frequent comorbid conditions in posttraumatic stress disorder individuals, but individuals with posttraumatic stress disorder are also more likely to present with bipolar disorder, other anxiety disorders and suicidal behaviors. These comorbid conditions are associated with greater clinical severity, functional impairment, and impaired quality of life in already compromised individuals with posttraumatic stress disorder. Depression symptoms also mediate the association between posttraumatic stress disorder and severity of pain among patients with chronic pain. CONCLUSION: Available studies suggest that individuals with posttraumatic stress disorder are at increased risk of developing affective disorders compared with trauma-exposed individuals who do not develop posttraumatic stress disorder. Conversely, pre-existing affective disorders increase a person's vulnerability to the posttraumatic stress disorder--inducing effects of traumatic events. Also, common genetic vulnerabilities can help to explain these comorbidity patterns. However, because the studies addressing this issue are few in number, heterogeneous and based on a limited sample, more studies are needed in order to adequately evaluate these comorbidities, as well as their clinical and therapeutic implications.

Comorbidity; Stress disorders, post-traumatic; Anxiety disorders; Mood disorders; Violence


ARTIGOS

Transtornos de humor e de ansiedade comórbidos em vítimas de violência com transtorno do estresse pós-traumático

Lucas C. QuarantiniI,* * Estes autores contribuíram de forma igual a este artigo. ; Liana R. NettoI,* * Estes autores contribuíram de forma igual a este artigo. ; Monica Andrade-NascimentoI,III,* * Estes autores contribuíram de forma igual a este artigo. ; Amanda Galvão-de AlmeidaI,IV; Aline S. SampaioV; Angela Miranda-ScippaI; Rodrigo A. BressanIV; Karestan C. KoenenII,VI

IHospital-Escola, Serviço Psiquiátrico, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador (BA), Brasil

IIHarvard School of Public Health, Department of Society, Human Development, and Health, Boston (MA), EUA

IIIDepartamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana (BA), Brasil

IVDepartamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo (UNiFESP), São Paulo (SP), Brasil

VUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

VIHarvard School of Public Health, Department of Epidemiology, Boston (MA), EUA

Correspondência Correspondência: Lucas Quarantini Hospital das Clínicas Serviço de Psiquiatria Rua Augusto Viana, SN 40110-909 Salvador, BA, Brasil E-mail: lcq@ufba.br

RESUMO

OBJETIVO: Buscar estudos que avaliem a comorbidade entre transtorno de estresse pós-traumático e transtornos do humor, bem como entre transtorno de estresse pós-traumático e outros transtornos de ansiedade.

MÉTODO: Revisamos a base de dados do Medline em busca de estudos publicados em inglês até abril de 2009, com as seguintes palavras-chave: "transtorno de estresse pós-traumático", "TEPT", "transtorno de humor", "transtorno depressivo maior", "depressão maior", "transtorno bipolar", "distimia", "transtorno de ansiedade", "transtorno de ansiedade generalizada", agorafobia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "transtorno de pânico", "fobia social" e "comorbidade".

RESULTADOS: Depressão maior é uma das condições comórbidas mais frequentes em indivíduos com transtorno de estresse pós-traumático, mas eles também apresentam transtorno bipolar e outros transtornos ansiosos. Essas comorbidades impõem um prejuízo clínico adicional e comprometem a qualidade de vida desses indivíduos. Comportamento suicida em pacientes com transtorno de estresse pós-traumático, com ou sem depressão maior comórbida, é também uma questão relevante, e sintomas depressivos mediam a gravidade da dor em sujeitos com transtorno de estresse pós-traumático e dor crônica.

CONCLUSÃO: Os estudos disponíveis sugerem que pacientes com transtorno de estresse pós-traumático têm um risco maior de desenvolver transtornos afetivos e, por outro lado, transtornos afetivos pré-existentes aumentam a propensão ao transtorno de estresse pós-traumático após eventos traumáticos. Além disso, vulnerabilidades genéticas em comum podem ajudar a explicar esse padrão de comorbidades. No entanto, diante dos poucos estudos encontrados, mais trabalhos são necessários para avaliar adequadamente essas comorbidades e suas implicações clínicas e terapêuticas.

Descritores: Comorbidade; Transtorno de estresse pós-traumático; Transtornos de ansiedade; Transtornos do humor; Violência

Introdução

As vítimas de violência na comunidade geralmente desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), uma condição frequentemente crônica, associada à grave morbidade e incapacitação psicossocial. A descrição do TEPT no DSM-III e nas edições subsequentes do DSM (American Psychiatric Association 1980, 1987, 1994) define uma síndrome que se desenvolve em resposta a uma classe específica de estressores, que é um evento catastrófico, ou a eventos traumáticos que se distinguem das situações estressantes normais da vida, como perda de um emprego ou desavença conjugal. Por outro lado, quaisquer estressores psicológicos, tanto os que preenchem como os que não preenchem os requisitos para a definição de causadores de TEPT, poderiam precipitar depressão maior. Além disso, ao contrário do TEPT, uma depressão maior pode ocorrer independentemente de estressores e não necessita de um evento etiológico como um fator essencial para o diagnóstico1.

Dados da National Comorbidity Survey in the United States of America2 demonstraram que o TEPT está associado ao desemprego ou prejuízo educacional e que comumente é comórbido com outros transtornos psiquiátricos, apontando que 88,3% dos homens e 79,0% das mulheres com TEPT também preenchem os critérios para pelo menos um diagnóstico psiquiátrico adicional. Por exemplo, depressões maiores comórbidas foram relatadas em 30% a 50% das pessoas diagnosticadas com TEPT2-4.

O TEPT é uma consequência psicopatológica comum da violência, mas não é a única; Dutra et al. relataram que abuso na infância e trauma interpessoal crônico foram frequentemente associados ao risco de se desenvolver um amplo espectro de transtornos psiquiátricos, incluindo transtornos de humor, dissociativos, de adição, alimentares e de personalidade5. De acordo com Brady, é particularmente provável que o TEPT se sobreponha a transtornos de humor, outros transtornos de ansiedade, somatização, abuso de substâncias e transtornos dissociativos, concluindo que se deve sempre pesquisar a comorbidade psiquiátrica em indivíduos com TEPT6.

Um estudo longitudinal que examinou o histórico de desenvolvimento de saúde mental de adultos com TEPT observou que quase todos os que haviam sido diagnosticados com TEPT também haviam sido diagnosticados previamente com outro transtorno mental. A maioria desses indivíduos com TEPT havia recebido outro diagnóstico de transtorno mental quando tinha 15 anos e esses índices de comorbidade durante a vida eram mais altos do que os que foram observados para outros transtornos mentais comuns7. Além dos fatores de risco ambientais em comum, as influências genéticas no TEPT se sobrepõem às de outros transtornos psiquiátricos8. Os limitados dados disponíveis sugerem que a maioria dos genes que afetam o risco de TEPT estão também associados a outros transtornos psiquiátricos.

É sabido que transtornos psiquiátricos sobrepostos podem estar associados à incapacitação social e ocupacional adicionais. De fato, Olfson et al. realizaram um estudo transversal para avaliar a incapacitação associada a vários transtornos mentais graves em pacientes ambulatoriais e demonstraram que, comparados a pacientes que tinham um único transtorno mental, indivíduos com transtornos psiquiátricos associados relataram incapacitação significativamente maior no funcionamento social e ocupacional9. Ainda é controverso se o TEPT tem um efeito único na incapacitação e na qualidade de vida após ajustar-se para outros transtornos mentais comuns. No entanto, Sareen et al., estudando o impacto do TEPT na comorbidade, incapacitação e tendência ao suicídio em uma grande amostra da população geral, concluíram que o TEPT não somente esteve associado a comorbidade com condições mentais e físicas de saúde, mas também se relacionou à incapacitação e à tendência ao suicídio mais altas, mesmo quando a influência das comorbidades estava controlada10.

Este artigo tem como objetivo realizar uma revisão dos estudos que avaliaram a comorbidade entre TEPT e transtornos de humor (transtorno depressivo maior - TDM - e transtorno bipolar), assim como entre TEPT e transtornos de ansiedade.

Método

Realizamos um estudo de pesquisa bibliográfica dos artigos que investigaram a comorbidade de transtorno de humor e de ansiedade em vítimas de violência com TEPT, publicados em inglês até Abril de 2009 (excluindo fobias específicas). Os artigos foram pesquisados nas bases de dados do Medline com as seguintes palavras-chave: "transtorno de estresse pós-traumático", "TEPT", "transtorno de humor", "transtorno depressivo maior", "depressão maior", "transtorno bipolar", "distimia", "transtorno de ansiedade", "transtorno de ansiedade generalizada", agorafobia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "transtorno de pânico", "fobia social" e "comorbidade". Os estudos relevantes nas referências dos artigos também foram obtidos.

Resultados

Para examinar a comorbidade entre TEPT e depressão, e entre TEPT e transtornos de ansiedade em vítimas de violência, resumimos a literatura (26 artigos).

1. Comorbidade de TEPT com transtornos de humor

1) Transtorno depressivo maior (TDM)

Ainda que alguns estressores possam precipitar o TDM, este transtorno afetivo ocorre na ausência de estressores e, ao contrário do TEPT, não exige um evento etiológico como um fator essencial1. A depressão é uma das condições comórbidas mais comuns associadas ao TEPT e está tipicamente presente em 30-50% dos casos de TEPT. Indivíduos com TEPT e depressão comórbida têm geralmente desfechos piores após o tratamento do que indivíduos sem TEPT2,11-17.

Salcioglu et al. alcançaram uma separação razoavelmente clara entre os sintomas de TEPT e de depressão, exceto no que se refere aos sintomas compartilhados por ambos os transtornos (perda de interesse, problemas de memória e de concentração, irritabilidade e distúrbios do sono)18. A composição dos grupos de sintomas das referidas patologias foram muito similares às observadas em estudos prévios19-21 . Os autores agruparam os sintomas de reexperiência, esquiva cognitiva e comportamental e hipervigilância como sintomas tipicamente encontrados no TEPT, ao passo que insensibilidade e sintomas depressivos foram agrupados em um fator separado, junto com insensibilidade emocional, despersonalização, falta de perspectiva de futuro, dificuldades de dormir, irritabilidade, e dificuldade de memória e de concentração. Esses sintomas lembram muito os da depressão, e baseados em estudos com outras populações que sofreram traumas22-24, Salcioglu et al. sugeriram que os sintomas de insensibilidade não devem ser classificados com os sintomas de esquiva no DSM-V18.

Reações duradouras de luto (Luto Complicado - LC) constituem um transtorno controverso e multidimensional e que foi conceituado como uma combinação mais imbricada entre depressão e TEPT25,26, especialmente quando o luto é subsequente a uma morte violenta, tal como nos casos de homicídio ou ataque terrorista. Na edição atual do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (2000), reações relacionadas ao luto são diagnosticadas como depressão, TEPT ou outro transtorno de ansiedade27.

Em contraste frontal com esta visão, há um movimento crescente entre alguns pesquisadores e teóricos do luto para elevar o LC a uma entidade diagnóstica separada e única28,29, argumentando que tanto os tratamentos para depressão como os para TEPT não são eficazes para casos de reações graves e duradouras de luto30, e que, em geral, os sintomas de LC e TEPT apresentaram reações opostas de ritmo cardíaco e de resposta de reatividade autonômica31: o TEPT aumentou a resposta autonômica a sinais que serviam como recordações do evento traumático, ao passo que as reações de luto intenso estavam associadas à reatividade autonômica reduzida a sinais da perda32.

Estudos em animais demonstraram que os filhotes separados de suas mães apresentaram um pico inicial na excitação seguido por um padrão prolongado similar de inibição cardiovascular33,34. O mesmo tipo de padrão autonômico parece caracterizar as respostas de separação em humanos35,36. O pareamento desta resposta aos sintomas de LC pode sugerir que a ausência de responsividade cardiovascular poderia ser uma consequência de angústia de separação aguda e preocupação com a perda32,37. Em vez de ser uma reação contrária, a falta de responsividade cardiovascular poderia ser compreendida como um efeito de um estresse autonômico crônico e cumulativo38.

Em um experimento com ratos da Noruega, Richter observou que a primeira resposta ao estresse foi um aumento na frequência cardíaca, seguida pela diminuição da frequência cardíaca e morte devida à descarga vagal, quando a situação de estresse era contínua39.

Não houve acordo na literatura revisada com relação à melhor explicação para a associação entre TEPT e TDM. Estudos prospectivos deram suporte a várias explicações alternativas: 1) o TDM pré-existente aumenta a propensão das pessoas aos eventos traumáticos que induzem TEPT40,41; 2) o TEPT aumenta o risco do primeiro episódio de TDM2,40; 3) o TDM aumenta o risco de exposição a eventos traumáticos40, assim como de exposição a eventos estressantes da vida normal42; 4) TEPT e TDM compartilham vulnerabilidades genéticas ou ambientais.

Com relação às vulnerabilidades ambientais compartilhadas, os eventos traumáticos que conduzem ao TEPT poderiam também amplificar o risco de depressão maior4. Além dos eventos traumáticos, outros fatores foram associados ao risco aumentado tanto de TEPT como de TDM. Por exemplo, a agressão psicológica foi significativamente relacionada aos sintomas depressivos14,43-45. O TEPT foi altamente prevalente em mulheres expostas à violência conjugal (VC). Esta condição está associada à disfunção originada em problemas para sustentar-se e dificuldade para sair de casa. Astin et al. relataram índices de prevalência de TEPT de até 58% em mulheres espancadas46. Johnson et al. realizaram um estudo transversal com uma amostra de 177 mulheres espancadas, albergadas em um refúgio, para investigar a contribuição da gravidade da VC e da gravidade do TEPT na morbidade psiquiátrica dessas mulheres (i.e., comorbidade e gravidade psiquiátrica) e dano social. Seus resultados foram consistentes com outros estudos, e a gravidade da VC foi relacionada a vários índices de incapacitação, assim como à gravidade do TEPT. No entanto, ao controlar para a gravidade da VC, a gravidade do TEPT esteve significativamente relacionada a um grau mais alto de morbidade psiquiátrica e níveis mais altos de disfunção social. A gravidade do TEPT também mediou significativamente a relação entre a gravidade da VC e a gravidade dos transtornos psiquiátricos, assim como a perda de recursos47.

Esse achado não é surpreendente, dado o provável efeito da agressão psicológica na percepção do indivíduo sobre si mesmo, particularmente nas crenças com relação a autoestima, competência e valor. Uma ameaça intensa ou uma linguagem que provoque o medo pode criar vergonha intensa e imobilizadora, com um esquema consequente que prejudica o uso de redes sociais e de suporte para melhorar a dor psicológica. Nixon et al. corroboram a crença de que as cognições e os esquemas podem desempenhar uma função importante para se compreender por que a depressão que se desenvolve no contexto de TEPT é mais crítica do que um estilo cognitivo negativo geral, já que está diretamente relacionada ao trauma14. Dunmore et al. sugerem que a depressão precede os esquemas disfuncionais, como uma vulnerabilidade cognitiva que se manifesta por meio da interpretação inadequada48, às vezes evidenciada inclusive antes do início da depressão49. Isso cria um senso de desamparo que é responsável pelos escores mais elevados nas escalas de depressão e de sintomas somáticos.

Indivíduos com TEPT e TDM comórbidos parecem ter estilos cognitivos depressogênicos mais inadequados do que indivíduos somente com TEPT14 . Observou-se que a culpa relacionada ao trauma, especialmente a que ocorre no contexto de vítimas de estupro50,51, veteranos do Vietnam52 e vítimas de violência conjugal53, está mais fortemente associada à sintomatologia depressiva do que ao TEPT, e a culpa excessiva ou inapropriada é um sintoma de depressão54. Andrews sugere que a vergonha acarreta experiências abusivas, seguida pela culpa, e depois a depressão55.

Os achados de Vranceanu et al., em uma amostra de crianças que sofriam de múltiplas formas de abuso e negligência, sugerem novamente que TEPT e TDM podem ter dois mecanismos de desenvolvimento diferentes, em que o estresse cumpre uma função central no desenvolvimento de depressão assim como ocorre com a falta de suporte social no desenvolvimento de TEPT56. No entanto, há uma alta correlação entre o estresse e o suporte social, o que ressalta a vulnerabilidade que um transtorno cria, permitindo o desenvolvimento do outro. Pessoas com um histórico de abuso na infância são mais suscetíveis aos efeitos dos estressores diários57, e esses indivíduos relatam mais estresse quando comparados aos seus correspondentes não maltratados58. Ademais, os sobreviventes de maus-tratos podem perceber os eventos da vida como mais estressantes, devido a sua predisposição a um sentimento global de desamparo59 e aos recursos menores para lidar com as situações60,61. Geralmente, eles possuem redes de suporte menores, que consideram insatisfatórias58,62. Uma explicação potencial para esses efeitos é que os maus-tratos causam distorções nas cognições das crianças em relação a elas mesmas e aos demais. Essas distorções se tornam internalizadas, levando a relações adultas não saudáveis63. É também provável que crianças maltratadas tenham menor suporte real na idade adulta devido ao fato de que seu suporte familiar potencial é limitado; seus pais e irmãos podem ter sido os perpetradores, ou podem eles próprios ter sofrido experiências de maus-tratos64, sendo, desta forma, ineficazes como provedores de suporte65. Além disso, frequentemente, as crianças que foram maltratadas crescem em ambientes familiares disfuncionais, e podem ter modelos pobres para relações adultas sadias64.

O papel dos recursos sociais no ajuste psicológico ao trauma/eventos estressantes/luto é também demonstrado por Holohan et al., por meio de dois estudos longitudinais realizados com vítimas de desastres naturais. Eles encontraram que as perdas de recursos interpessoais e de personalidade foram diretamente preditivas de sintomas depressivos ao longo de um extenso período de anos66,67. Basoglu, Salcioglu e Livanou demonstraram que uma intervenção comportamental desenhada para aumentar a sensação de controle sobre o medo reduz tanto o TEPT como os sintomas depressivos68. Porém, a depressão resultante da perda de recursos poderia requerer suporte social e compensação pelas perdas antes que houvesse algum melhora.

Livanou et al. amplificam a conexão entre perda e depressão, postulando que, apesar de que a depressão poderia se dever ao luto, ela poderia ser secundária ao TEPT em outros eventos estressantes20. O fato de que 24% dos indivíduos que não estavam em processo de luto na amostra traumatizada de Salcioglu et al. tinham depressão dá suporte a esta hipótese18. Nessa perspectiva, a depressão secundária poderia estar relacionada ao desamparo gerado pelos sintomas de TEPT crônico, à exposição a numerosos abalos posteriores imprevisíveis e incontroláveis, e ao medo antecipatório de uma experiência traumática futura69, que cria o sentido de perder o gerenciamento e o controle.

Dados importados de estudos sobre desastres naturais podem auxiliar a esclarecer a relação entre trauma e depressão. Salcioglu et al., em seu estudo sobre sobreviventes de terremotos na Turquia, demonstraram por meio de análises de regressão linear que a depressão estava especialmente relacionada à perda (de membros da família), ao passo que o TEPT estava fortemente relacionado ao medo durante o terremoto18.

Como se pode ver, o suporte social e o estresse estão inversamente correlacionados. Isso sugere que as vítimas de maus-tratos podem sofrer não somente de prejuízo em sua capacidade de desenvolver estruturas de suporte social básicas, mas também podem se tornar mais vulneráveis a estressores e perdas adicionais (e.g., perdas materiais ou pessoais).

Além das vulnerabilidades ambientais partilhadas pelo TEPT e pelo TDM, os dados do Vietnam Era Twin Registry sugerem que o TDM é o transtorno psiquiátrico com a maior sobreposição com as influências genéticas associadas ao TEPT. As influências genéticas na depressão maior são responsáveis por 100% da variância genética no TEPT70 . O polimorfismo S/S da região promotora do transportador de serotonina está implicado em ambos os transtornos71 . Os polimorfismos no FKBP5, uma co-chaperona reguladora de glicocorticóide das proteínas do estresse, que foram associados à recorrência de episódios depressivos maiores e resposta ao tratamento antidepressivo72, também foram associados à dissociação peritraumática73 (um fator de risco de TEPT) e depressão em crianças clinicamente lesionadas.

2) TEPT, depressão e dor crônica

A depressão como um possível mediador de dor crônica em TEPT foi o foco do estudo feito por Poundja et al. com veteranos de guerra masculinos74. Altos índices de associação de dor e TEPT foram encontrados em amostras de veteranos de guerra tratados em clínicas de TEPT75,76, com o notável índice de 80% de dor crônica, sugerindo que 89,5% do efeito do TEPT na dor é mediado pela depressão74 .

3) Comportamento suicida

Tanto TEPT como os episódios depressivos maiores estão individualmente associados ao risco de comportamento suicida. A prevalência na vida de tentativas de suicídio em uma amostra com episódios depressivos maiores é de aproximadamente 16%77 . Em uma pesquisa na comunidade, os pacientes com TEPT tinham 14,9 vezes mais probabilidade de tentar suicídio do que indivíduos sem TEPT3,78. Não há nenhum estudo que avalie a prevalência de comportamentos suicidas em uma amostra de TEPT comórbido com TDM. Os indivíduos com TEPT comórbido com TDM também apresentam um risco adicional e devem ser cuidadosamente avaliados com relação ao risco de suicídio por profissionais de saúde mental79,80.

4) Transtorno bipolar (TB)

Vários estudos demonstraram que indivíduos com TB têm alto risco de vivenciarem eventos traumáticos. Isso pode se dever ao comportamento destrutivo durante a mania ou a um histórico aumentado de trauma na infância81-83. Como resultado, os pacientes com TB geralmente relatam altos índices de TEPT durante a vida, variando de 16% a 39% em pacientes com TB-I avaliados no National Comorbidity Survey-Replication84,85.

Ademais, se o evento traumático ocorre durante as fases maníaca e hipomaníaca, há uma probabilidade mais alta de que os sintomas de TEPT se desenvolvam posteriormente86 . Estudos recentes sugeriram que um histórico de trauma pode estar relacionado à etiologia e ao prognóstico do TB84. Por exemplo, a perda parental precoce foi identificada como um fator de risco de TB87. Trauma de alto impacto foi associado a prognóstico pobre de TB88.

Pouco se sabe sobre o prejuízo na qualidade de vida (QV) e as consequências clínicas impostas pelo TEPT em pacientes bipolares. Levanta-se a hipótese de que as características do TEPT têm um impacto substancial no curso do TB devido a sua natureza, o que contribui para elevar a instabilidade emocional na vida dos pacientes com o transtorno84. Na avaliação na linha de base para um estudo, os pacientes bipolares com TEPT comórbido tinham menor probabilidade de estarem recuperados(eutimia relativa)89. Da mesma forma, os pacientes com TB e TEPT frequentemente têm prejuízo no sono, com consequente hiperexcitação crônica, tendo um impacto direto no curso do TB82, e sendo indicador de menor capacidade de lidar com os sintomas de TEPT90.

Encontrou-se que índices mais altos de comorbidade com transtornos de ansiedade, especialmente com TEPT89,91, são um fator importante associado a pior QV em pacientes com TB92 . Globalmente, a magnitude do impacto do TB na QV parece ser similar ao impacto das doenças crônicas (e.g., doença renal crônica ou artrite reumatóide)93. Apesar do fato de que seja mais provável encontrar-se escores mais baixos de QV durante a fase depressiva de pacientes com TB94-97, alguns fatores tais como sintomas maníacos98 , ser mulher99 e condições afetivas, tais como ciclotimia100, podem influenciar a autopercepção da QV. Além disso, mesmo os pacientes com TB em remissão demonstram prejuízo em seu relato de QV101-103 , indicando que outros fatores além dos sintomas de humor podem influenciar a QV em pacientes com TB97 .

2. TEPT comórbido com outros transtornos de ansiedade

Seguindo as mesmas linhas da comorbidade do TDM, a explicação da comorbidade entre TEPT e outros transtornos de ansiedade ainda não está clara. Eventos traumáticos podem ser um disparador compartilhado com outros transtornos de ansiedade além de TEPT. Brady relatou que a exposição à violência familiar está associada a sintomas de estresse pós-traumático e de ansiedade entre os jovens104 . Kar e Bastia realizaram um estudo com o objetivo de encontrar a prevalência de transtornos psiquiátricos pós-traumáticos tais como TEPT, TDM, transtorno de ansiedade generalizada e possíveis comorbidades em um grupo de estudantes adolescentes em áreas rurais, 14 meses após um desastre natural. Eles também estudaram a associação dessas morbidades a fatores sociodemográficos e seu impacto no desempenho escolar. O estudo demonstrou que adolescentes expostos a um desastre natural apresentaram um misto de sintomas de TEPT, de depressão e de ansiedade, e alta comorbidade de diagnósticos. No entanto, Kar e Bastia não tiveram êxito em provar qualquer associação entre essas morbidades e o prejuízo no desempenho escolar105.

Além disso, as influências genéticas comuns ao transtorno de ansiedade generalizada e os sintomas de transtorno de pânico são responsáveis por aproximadamente 60% da variância genética no TEPT106 .

É também possível que os transtornos de ansiedade pré-existentes aumentem o risco de exposição ao trauma e, subsequentemente, de TEPT. Silver et al. realizaram um estudo para examinar a associação entre a vitimização de pessoas com e sem um transtorno mental. Em comparação com as pessoas que não tinham transtorno mental, aquelas com transtornos de ansiedade vivenciaram mais agressões sexuais107. Esses achados foram controlados para comorbidade psiquiátrica, características demográficas e participantes que apresentavam comportamento violento.

Por outro lado, Marshall et al. realizaram um estudo com uma amostra do National Screening Day for Anxiety Disorders para investigar a relação entre sintomas de TEPT, nível de incapacitação e transtornos de ansiedade e depressivos comórbidos. Observaram que a incapacitação funcional, o número de transtornos de ansiedade, os índices de TDM comórbido e a ideação suicida atual aumentaram linear e significativamente com um número maior de sintomas de TEPT subclínicos108.

Discussão

Há alto índice de comorbidade entre TEPT e outros transtornos de ansiedade ou de humor.

Uma explicação para o vínculo entre o TEPT e TDM unipolar/outros transtornos de ansiedade pode estar relacionada ao gênero. Muitos estudos demonstraram que o gênero feminino é um importante fator de risco para o desenvolvimento de TEPT109. Dados do National Comorbidity Survey2 demonstraram que a prevalência de TEPT durante a vida é mais que o dobro em mulheres do que em homens (10,4% vs. 5,0%; p < 0,05).

Complementarmente, alguns argumentos focam as diferenças nos tipos de exposição. Quando a violência é realizada por um cônjuge, ela contribui significativamente para o surgimento de TEPT na população feminina110. Edwards et al. encontraram que escores mais baixos no domínio da saúde mental do questionário SF-36 sobre qualidade de vida estiveram associados a mais categorias de abuso (abusos sexual, físico e emocional), que é exatamente o tipo de experiência traumática mais frequentemente encontrada em mulheres111. Oquendo et al. encontraram que em 156 pacientes internados com depressão maior, aqueles com TEPT comórbido durante a vida tinham mais probabilidade de haver tentado suicídio do que os que não tinham TEPT comórbido (75% vs. 54%; p < 0,01), e no grupo com TEPT, o risco de uma tentativa de suicídio era maior entre as mulheres112.

Além disso, encontrou-se que TDM ou outro transtorno de ansiedade preexistentes prediziam a exposição ao trauma113. A probabilidade de desenvolver TEPT após a exposição traumática parece ser significativamente mais alta nesta população114.

Transtornos psiquiátricos foram também compreendidos com um fator de vulnerabilidade para o desenvolvimento de outro transtorno psiquiátrico após exposição à violência. Vários estudos foram realizados com o objetivo de identificar os fatores de risco para vulnerabilidade ao trauma e desenvolver transtornos psiquiátricos. Breslau revisou estudos epidemiológicos de TEPT na população geral e identificou transtornos psiquiátricos pré-existentes, histórico familiar de transtornos e abuso na infância como fatores de risco de TEPT em adultos115. Gabriel et al. fizeram um estudo transversal para avaliar a prevalência de TEPT, depressão maior e outros transtornos de ansiedade após um ataque terrorista em três grupos com diferentes níveis de exposição: pessoas feridas nos ataques, residentes da cidade não-feridos e agentes policiais envolvido nas operações de resgate. A proporção de pacientes que tinham um transtorno psiquiátrico atual foi de 5% nos indivíduos feridos e 9% nos não-feridos. Aqueles que tinham um transtorno comórbido eram 8% no grupo ferido e 22% no grupo não ferido. O transtorno mental comórbido com TEPT mais frequente foi depressão, seguida por agorafobia. Após análises multivariadas, o uso de medicações psicoativas antes do ataque foi um preditor significativo de TEPT e de depressão entre os indivíduos feridos; e histórico de transtorno psiquiátrico e gênero feminino entre os não feridos116. O estudo de Gabriel et al. fornece amplas evidências sobre uma associação entre transtorno psiquiátrico prévio (depressão maior e transtorno de ansiedade), ou uso prévio de medicações psiquiátricas e subsequente psicopatologia.

Tabela 1

Por outro lado, experiências traumáticas e TEPT podem ter um impacto maior no desenvolvimento e no curso de outros transtornos psiquiátricos. Um relato de caso descreve como um paciente sem histórico psiquiátrico desenvolveu TEPT, depressão e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) após um grave acidente de trabalho117. Mais ainda, de acordo com McFarlane e Bookless, pacientes com um histórico familiar de TEPT possuem risco oito vezes maior de terem transtornos de ansiedade comparados com outros sem esse histórico118. A pergunta se os eventos traumáticos aumentam ou não o risco de TDM, independentemente de seus efeitos em causar TEPT, seria esclarecida se fosse encontrada uma maior incidência de depressão maior em indivíduos que foram expostos a trauma, mas que não desenvolveram TEPT, em comparação com pessoas que não foram expostas. Tais evidências sugeririam que a consequência depressiva de eventos traumáticos poderia ter um padrão distinto, separado do de TEPT.

Por outro lado, evidências de um maior risco de início subsequente de TDM em pessoas expostas com TEPT, mas não em pessoas expostas que não desenvolvem TEPT, sugeririam que o TEPT poderia causar depressão maior ou que os dois transtornos compartilham uma vulnerabilidade subjacente comum1.

Estarão relacionados esses dois fatores de risco de TEPT (gênero feminino e depressão/transtorno de ansiedade pré-existentes)? Kessler et al. encontraram, nos dados do National Comorbidity Survey, que, apesar de que os homens demonstraram uma predominância de abuso/dependência de álcool ou de substâncias em comorbidade com TEPT, as mulheres apresentaram uma predominância de transtornos de ansiedade comórbidos2.

O TEPT também compartilha vulnerabilidades genéticas com outros transtornos de ansiedade e TDM. Um histórico familiar de transtornos psiquiátricos é um fator de risco consistente de se desenvolver TEPT115. Transtornos psiquiátricos pré-existentes, particularmente transtornos de conduta, depressão maior e dependência de nicotina, também aumentam o risco de TEPT119. Ao mesmo tempo, o TEPT aumenta o risco do primeiro episódio de depressão maior,1 assim como de dependência de álcool, drogas e nicotina115 . A incidência de outros transtornos psiquiátricos não é mais alta em indivíduos que vivenciam trauma, mas não desenvolvem TEPT. Este fato levou à sugestão de que o TEPT representasse uma vulnerabilidade generalizada à psicopatologia subsequente ao trauma115.

Finalmente, em termos de análise, são fundamentais os enfoques preventivos por meio da avaliação do histórico pessoal de trauma em populações de alto risco para a investigação do impacto da violência no neurodesenvolvimento das crianças e as profundas consequências de traumas nos seus cérebros. Já que a violência pode alterar permanentemente a neurogênese, a sinaptogênese de migração e a diferenciação neuroquímica, o curso do desenvolvimento cerebral ao longo do tempo é a chave para se compreender a relação entre a exposição à violência na infância e o surgimento dos sintomas. Este fato possui implicações para os desfechos psicopatológicos, as avaliações clínicas, as pesquisas, a intervenção e a prevenção. Portanto, são necessárias mais pesquisas para desenhar novas intervenções de tratamento120. não somente focadas no tratamento de sintomas, mas também em restaurar a saúde mental da criança durante a puberdade, quando o cérebro ainda tem algum grau de plasticidade121.

Conclusão

Os estudos disponíveis sugerem que os pacientes com TEPT possuem um maior risco de desenvolverem transtornos afetivos e, pelo contrário, os transtornos afetivos pré-existentes aumentam a propensão de uma pessoa aos efeitos indutores de TEPT de eventos traumáticos. Considerando a ampla variedade de transtornos relacionados ao TEPT e seus altos índices de comorbidade, questiona-se se eles constituem um fenótipo amplo único com a mesma etiologia ou se há diferentes classes de transtornos com diferentes etiologias. No entanto, há poucos estudos que examinaram esta questão, e a maioria deles trabalhou com pequenos tamanhos de amostras e diferentes metodologias, que podem limitar o caráter generalizável dos resultados.

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  • Correspondência:
    Lucas Quarantini Hospital das Clínicas
    Serviço de Psiquiatria
    Rua Augusto Viana, SN
    40110-909 Salvador, BA, Brasil
    E-mail:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009
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