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Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos

EDITORIAL EDITORIAL

Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos

Celso C. C. Guerra

Professor Livre-docente de Hematologia - Unifesp-SP. Ex-presidente da SBHH (1979-1981)/ (1998-2000)

Correspondência Correspondência para: Celso C. C. Guerra Av. Brasil, 1640 - J. América 01430-001 - São Paulo - SP Tel.: (11) 853-4555 / 853-6611 - Fax: (11) 858-2025 E-mail: chspdire@ruralsp.com.br

Eleito para a Diretoria da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH) para o biênio 1979-1981, na primeira reunião foram avaliados os dois maiores problemas do setor. Na área da Hematologia, um dos problemas era que, nos países desenvolvidos, as leucemias agudas da infância tinham 50% de cura, enquanto no Brasil eram raros os casos de cura. Após algumas reuniões, a Dra. Silvia Regina Brandalise formou o grupo brasileiro de Tratamento de Leucemias Agudas na infância e com suporte da SBHH instituiu o primeiro protocolo nacional que começa a colocar o Brasil com resultados comparáveis aos resultados internacionais.

O outro problema na área de Hemoterapia estava na falta de doadores, levando os serviços públicos à exigência de doação de sangue para internar os pacientes ou à realização de coletas de sangue em presídios. Os bancos de sangue privados, por sua vez, recorriam nas capitais e cidades de médio porte à doação remunerada, criando, assim, uma profissão - a do doador gratificado.

A comissão indicada pela Diretoria da SBHH e constituída por Pedro Clóvis Junqueira e Jacob Rosemblit, entre outros, apresentou então uma proposta de campanha de Doação Voluntária de Sangue com cartazes e folhetos.

Uma das causas da baixa doação de sangue estava na "proibição" de solicitação de doações de parentes e amigos dos pacientes da Previdência Social, pois os sindicatos entendiam, àquela época, que o Governo pagava o sangue e, por isso, não havia a necessidade de reposição dos estoques.

A SBHH enviou cartas aos Ministérios da Previdência e da Saúde e pediu apoio à campanha de doação voluntária, não tendo sequer obtido resposta à solicitação.

Em dezembro de 1979 compareci a uma entrevista pública com o então ministro Jair Soares e apresentei a campanha de doação voluntária da SBHH. O ministro afirmou que deveríamos apresentá-la no Congresso de Doação Voluntária, organizado pela Associação dos Doadores Voluntários de Sangue, no mês de fevereiro do ano seguinte, em Brasília.

A SBHH, na ocasião, já havia protestado, junto aos organizadores deste evento, da ausência de hemoterapeutas brasileiros no programa, pois só haviam sido convidados colegas europeus, e o único brasileiro convidado era um especialista em moléstias infecciosas.

Juntamente com Leonel Szterling e Nelson Hamerschlak compareci ao encontro e no evento questionei as colocações ofensivas à classe médica hemoterapeuta e ao rótulo indiscriminado de comerciantes de sangue. Apresentei então a nossa campanha, que já começava a ter apoio da sociedade e da maioria dos hemoterapeutas brasileiros

Em março de 1980, a SBHH foi convidada para assistir em Brasília ao lançamento do Pró-Sangue. Neste documento, o governo posicionava-se de forma clara pela doação voluntária de sangue e estabelecia um projeto de estatização da atividade hemoterápica com a substituição dos serviços privados pelos públicos.

Reunidos com os hemoterapeutas em São Paulo foi decidido que a doação remunerada deveria ser extinta.

Estudando os modelos de hemoterapia existentes observou-se que hospitais privados como o Albert Einstein, Santa Catarina e Sírio Libanês já conseguiam manter o estoque de sangue com a reposição voluntária, e alguns dos serviços públicos, como o do Hospital do Servidor do Estado de São Paulo, capital, também coletavam sangue no local e mantinham o seu suprimento de sangue sem recorrer à doação remunerada.

A experiência mundial de países que deixaram de remunerar doadores mostrou que, para se atingir a doação altruísta, era necessário um estágio intermediário com o apelo à doação de reposição entre amigos e familiares dos pacientes que necessitavam de transfusões.

Assim definiu-se um modelo em que o hemoterapeuta passava a atuar dentro dos hospitais dando suporte aos colegas no diagnóstico e na terapêutica das hemorragias e doenças onco-hematológicas. Como estas situações ocorriam em pacientes internados, passou-se a atuar na obtenção de doadores junto a amigos e parentes dos internados dirigindo-se a coleta de sangue para dentro dos hospitais. Além disso, era necessário que os hospitais instalassem áreas para a coleta de sangue em suas instalações, permitissem suas campanhas de doação e o corpo clínico colaborasse na ação de convencimento da necessidade de doação de sangue.

Na ocasião procurei o Dr. Pedro Kassab, presidente da AMB, que nos orientou em definir um dia a partir do qual não haveria mais doação remunerada. Este dia "D" deveria ser precedido por ações que facilitassem o objetivo final.

Assim, realizei os seguintes passos para o encerramento da remuneração ao doador de sangue:

1. Consultei o Conselho Regional de Medicina (CRM) sobre responsabilidade no fornecimento de sangue. O órgão definiu que o suprimento do sangue era de responsabilidade da comunidade, dos médicos, dos enfermeiros e também dos hemoterapeutas. Assim, este deixava de ser o único responsável pela obtenção do sangue.

2. Solicitei do superintendente do Instituto Nacional de Medicina e Previdência Social (Inamps), Dr. Camanho, para que se pudesse coletar sangue de amigos e parentes dos pacientes da Previdência Social.

3. Solicitei do secretário da Saúde de São Paulo, Dr. Adib Jatene, para que o mesmo facilitasse a instalação de centros de coleta de sangue nos hospitais.

4. Mobilizei os hemoterapeutas na iniciativa privada em um programa de conscientização da importância da doação de sangue para a sociedade e da necessidade de eliminação da doação remunerada.

O medo dos profissionais de falta de sangue e perda de serviços foi substituído pela vontade de mostrar que não eram os culpados pela situação, mas sim vítimas do modelo existente.

5. Ao chegar o dia "D" procuramos o Exército para comunicar o que iria ocorrer. No início, o general que nos atendeu pensou que iríamos pedir doadores, prática comum na época. Ficou surpreso ao saber que esta não era a nossa intenção e que o objetivo era comunicar a campanha que deveria se transcorrer normalmente. Nesta época, o sangue era fortemente ligado às Forças Armadas, que consideravam assunto estratégico e vivíamos um período de exceção.

O Dr. Pedro Maçanobu Takatu, presidente da regional da SBHH em São Paulo, colaborou na coordenação desta campanha.

No dia 1º de maio de 1980 terminou a doação remunerada no estado de São Paulo.

Foi feito um documento divulgando o fim da remuneração de doadores no estado de São Paulo e enviado às nossas Regionais a medida realizada. O Boletim da SBHH que circulava mensalmente relatava tudo o que estava ocorrendo e colaborou na campanha de erradicação da doação remunerada.

Estive pessoalmente em alguns estados reunindo com diversos colegas para acelerar o processo e definindo o fim da remuneração para após um a dois meses em todo o Brasil. Convocava-se a imprensa, divulgava-se o fato e pedia-se o apoio na mobilização de doador altruísta. Estive em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Brasília, Goiânia, Belém, Maranhão, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Ceará, Bahia. No Rio de Janeiro não houve unanimidade, pois os hospitais públicos do Rio de Janeiro não realizavam coletas, sendo o sangue adquirido de bancos de sangue privados que não eram de hemoterapeutas.

Terminada a doação remunerada de sangue em São Paulo, a SBHH conseguiu sensibilizar a Associação Paulista de Propaganda e a Associação Brasileira de Relações Públicas, que indicou o Sr. Rafael Sampaio para coordenar os trabalhos de divulgação. Este conseguiu fazer circular gratuitamente uma campanha de doação de sangue pelos meios de comunicação. Assim, a MPM Casa Branca organizou e desenvolveu a campanha com peças para a imprensa escrita, rádio e televisão, altruisticamente e sem nenhum recurso financeiro do governo, mobilizando doadores para os serviços públicos e privados.

O novo modelo de atuação do hemoterapeuta repercutiu no meio da classe médica e recuperou a sua imagem transformando a Hemoterapia em verdadeira especialidade médica.

Nos dois anos como presidente da SBHH acompanhei o desenvolvimento da Hematologia e da Hemoterapia e principalmente a integração das duas especialidades.

O Pró-Sangue recém-implantado auxiliou na abertura do mercado de trabalho e na integração das duas especialidades até então separadas.

Por ocasião do estabelecimento do Pró-Sangue foi feito um documento confidencial de mais de 200 páginas para o governo, em que analisei os aspectos positivos e negativos da decisão governamental. Os positivos foram a doação voluntária, unificação dos serviços de Hematologia e Hemoterapia, maior investimento do governo na área pública do setor. Trazia no entanto uma política para a indústria de hemoderivados equivocada, o que levou a maioria das fábricas de hemoderivados à inativação e ao fechamento. Foi o caso da multinacional Hoechst, da sem fins lucrativos - o Instituto Santa Catarina - e da privada LIP, que encerraram suas atividades. Só restou o Hemope, governamental, que não se desenvolveu. Denunciei que os hemoderivados importados, que custavam no mercado internacional o valor de 40 dólares o frasco de 250U, eram então adquiridos por 280 dólares. Portanto, o grupo dos vampiros que se encontram encastelados nos órgãos públicos comemoram também 25 anos de atuação sem que nada, na realidade, tenha sido feito no setor de produção de hemoderivados no País.

Agora o governo estabeleceu a Hemobrás, e a coleta do sangue pelos órgãos públicos passa de 60% contra 20% dos anos de 80 e não há justificativas para que ocorra novo fracasso.

O presente mostra que as nossas críticas anteriores eram fundamentadas, pois continuamos dependentes da importação de hemoderivados e com fraudes na compra dos fatores para tratar os hemofílicos.

Acredito que estas críticas confidenciais tenham levado as autoridades da área do sangue ao início das apurações de fatos. No entanto, apesar de não esperarmos reconhecimento pessoal, nunca me ocorreu uma menção de parabenização à SBHH pela campanha que terminou em curto espaço de tempo com a doação remunerada no Brasil e que coube à iniciativa privada, inclusive orientando as instituições públicas a não coletarem em presídios e não exigirem doação para a internação de pacientes.

Para não ficar no passado, quero deixar bem claro que países auto-suficientes em hemoderivados, como EUA, Alemanha, Áustria, utilizavam da plasmaférese remunerada, e países como Inglaterra, Itália não conseguiam a auto-suficiência, tendo que importar hemoderivados.

O plasma para ser utilizado na produção de hemoderivados tem que ter uma qualidade dificilmente obtida na doação comum. É importante lembrar que atualmente a produção de fatores de coagulação por engenharia genética já é uma realidade.

Vamos encerrar com os votos de pleno sucesso à Hemobrás e que o Brasil se torne auto-suficiente em hemoderivados com produtos de qualidade e preços compatíveis.

Recebido: 10/03/05

Aceito: 11/03/05

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

Conflito de interesse: não declarado

  • Correspondência para:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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