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Avaliação do perfil hematológico de portadores de talassemia alfa provenientes das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil

Evaluation of alpha thalassemia carriers hematologic profile from Southeast and Northeast Brazilian regions

Resumos

A talassemia alfa é uma anemia hereditária resultante da síntese deficiente de cadeias alfa, provocando um excesso relativo de cadeias beta, que vão formar tetrâmeros identificados como hemoglobina H (Hb H) no indivíduo adulto. Para direcionar o diagnóstico laboratorial desta anemia, a análise dos índices eritrocitários, a eletroforese em acetato de celulose em pH neutro e a pesquisa de corpos de inclusão de Hb H são essenciais. O objetivo deste estudo foi traçar o perfil hematológico, por meio dos índices eritrocitários, dos portadores de talassemia alfa das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil. Foram analisadas 1.010 amostras de sangue periférico após consentimento informado. Os índices eritrocitários como contagem de glóbulos vermelhos (RBC), dosagem de hemoglobina (HGB), hematócrito (HCT), volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM) e concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) foram fornecidos por aparelhos automatizados com controle de qualidade interno e externo. Para o diagnóstico de talassemia alfa foram utilizados testes de triagem e complementares para talassemias, como eletroforese em pH neutro e pesquisa de corpos de inclusão de Hb H com coloração de azul cresil brilhante. Comparando-se os valores hematológicos observados nos dois grupos, notou-se que, em ambas as regiões, os índices com valores discrepantes foram os níveis de HGB e HCT, sendo a maior freqüência de variação observada entre as mulheres. Nos portadores do fenótipo alfa talassêmico da região Nordeste, todos os índices eritrocitários estavam abaixo dos valores de normalidade. Estes resultados evidenciam a necessidade de melhor avaliação do perfil hematológico de talassemia alfa em diferentes regiões, considerando-se os interferentes ambientais para um diagnóstico mais preciso.

Anemias; talassemia alfa; índices eritrocitários


Alpha thalassemia is a hereditary anaemia resulting from deficient synthesis of the alpha chains, causing a relative excess of beta chains which form tetramers identified as hemoglobin H (Hb H) in adults. To diagnose this type of anaemia it is essential to analyze the erythrocytic values, electrophoresis in neutral pH and to study the Hb H inclusion bodies. The aim of this study was to determine the hematologic profile of alpha thalassemia carriers from the southeastern and northeastern regions of Brazil. Peripheral blood samples from 1010 patients were analyzed. The erythrogram values, including the red blood cell count (RBC), hemoglobin level (HGB), hematocrit (HCT), mean cell volume (MCV), mean cell hemoglobin (MCH) and mean cell hemoglobin concentration (MCHC) were supplied by automatic devices. To diagnose alpha thalassemia, screening and complementary tests were performed, including electrophoresis in neutral pH and a study of the Hb H inclusion bodies with brilliant blue cresil staining. Comparing hematologic values obtained in both groups, the indices with discrepant values were related to HGB and HCT and the greatest variations in both regions were observed among women. In alpha thalassemic phenotypic carriers from the northeastern region, all the erythrocytic values were lower than normal. These results show the necessity of better evaluation of alpha thalassemia in different regions, considering the environmental factors in order to give an adequate diagnosis.

Anaemias; alpha thalassemia; red blood cells


ARTIGO ARTICLE

Avaliação do perfil hematológico de portadores de talassemia alfa provenientes das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil

Evaluation of alpha thalassemia carriers hematologic profile from Southeast and Northeast Brazilian regions

Gislane L. V. Oliveira; Carlos F. Mendiburu; Claudia R. Bonini-Domingos

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) – Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Campus de São José do Rio Preto/SP

Correspondência Correspondência: Gislane Lelis Vilela de Oliveira LHGDH – Departamento de Biologia – Ibilce-Unesp Rua Cristóvão Colombo, nº 2265, Jardim Nazareth 15054-000 – São José do Rio Preto-SP Fone: (17) 32212392 – Fax: (17) 32212390 E-mail: gislanevilela@yahoo.com.br

RESUMO

A talassemia alfa é uma anemia hereditária resultante da síntese deficiente de cadeias alfa, provocando um excesso relativo de cadeias beta, que vão formar tetrâmeros identificados como hemoglobina H (Hb H) no indivíduo adulto. Para direcionar o diagnóstico laboratorial desta anemia, a análise dos índices eritrocitários, a eletroforese em acetato de celulose em pH neutro e a pesquisa de corpos de inclusão de Hb H são essenciais. O objetivo deste estudo foi traçar o perfil hematológico, por meio dos índices eritrocitários, dos portadores de talassemia alfa das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil. Foram analisadas 1.010 amostras de sangue periférico após consentimento informado. Os índices eritrocitários como contagem de glóbulos vermelhos (RBC), dosagem de hemoglobina (HGB), hematócrito (HCT), volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM) e concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) foram fornecidos por aparelhos automatizados com controle de qualidade interno e externo. Para o diagnóstico de talassemia alfa foram utilizados testes de triagem e complementares para talassemias, como eletroforese em pH neutro e pesquisa de corpos de inclusão de Hb H com coloração de azul cresil brilhante. Comparando-se os valores hematológicos observados nos dois grupos, notou-se que, em ambas as regiões, os índices com valores discrepantes foram os níveis de HGB e HCT, sendo a maior freqüência de variação observada entre as mulheres. Nos portadores do fenótipo alfa talassêmico da região Nordeste, todos os índices eritrocitários estavam abaixo dos valores de normalidade. Estes resultados evidenciam a necessidade de melhor avaliação do perfil hematológico de talassemia alfa em diferentes regiões, considerando-se os interferentes ambientais para um diagnóstico mais preciso.

Palavras-chave: Anemias; talassemia alfa; índices eritrocitários.

ABSTRACT

Alpha thalassemia is a hereditary anaemia resulting from deficient synthesis of the alpha chains, causing a relative excess of beta chains which form tetramers identified as hemoglobin H (Hb H) in adults. To diagnose this type of anaemia it is essential to analyze the erythrocytic values, electrophoresis in neutral pH and to study the Hb H inclusion bodies. The aim of this study was to determine the hematologic profile of alpha thalassemia carriers from the southeastern and northeastern regions of Brazil. Peripheral blood samples from 1010 patients were analyzed. The erythrogram values, including the red blood cell count (RBC), hemoglobin level (HGB), hematocrit (HCT), mean cell volume (MCV), mean cell hemoglobin (MCH) and mean cell hemoglobin concentration (MCHC) were supplied by automatic devices. To diagnose alpha thalassemia, screening and complementary tests were performed, including electrophoresis in neutral pH and a study of the Hb H inclusion bodies with brilliant blue cresil staining. Comparing hematologic values obtained in both groups, the indices with discrepant values were related to HGB and HCT and the greatest variations in both regions were observed among women. In alpha thalassemic phenotypic carriers from the northeastern region, all the erythrocytic values were lower than normal. These results show the necessity of better evaluation of alpha thalassemia in different regions, considering the environmental factors in order to give an adequate diagnosis.

Key words: Anaemias; alpha thalassemia; red blood cells.

Introdução

As talassemias constituem, dentro das anemias hereditárias, um grupo heterogêneo e numeroso e podem ser consideradas como as mais comuns dentre as alterações genéticas monogênicas na população mundial. São caracterizadas por uma alteração na síntese de uma ou mais cadeias polipeptídicas da hemoglobina (Hb), gerando um desequilíbrio entre essas subunidades, dificultando o processo de eritropoese e causando hemoglobinização deficiente dos eritroblastos.1

A talassemia alfa atinge, segundo Mendes-Siqueira,2 pelo menos, 10% da população do sudoeste do estado de São Paulo. Em outras regiões do País, este número alcança os 20%. A alta freqüência e diversidade de portadores na população brasileira é devida às diferenças na composição étnica das diferentes regiões e à grande miscigenação ocorrida ao longo da história do Brasil.1,2

Esta anemia é resultante de mutações nos genes alfa, situados no braço curto do cromossomo 16 na região 16p.13.3 Alterações nestes genes ocasionam uma síntese deficiente de cadeias globínicas alfa, provocando um excesso relativo das outras cadeias, em especial da cadeia beta, modificando assim a composição da molécula de hemoglobina e alterando a fisiologia e morfologia do eritrócito.3 Esse excesso de cadeias despareadas pode se ligar para formar tetrâmeros de caráter instável como o tetrâmero b4, conhecido por Hb H no indivíduo adulto, e g4, conhecido por Hb Bart's, encontrado no período fetal e alguns meses após o nascimento.4,5

Estas hemoglobinas têm uma afinidade pelo oxigênio dez vezes maior que a Hb A, prejudicam a interação heme-heme e liberam quantidades insuficientes de oxigênio para os tecidos.4 São responsáveis pelas alterações fisiológicas e morfológicas dos eritrócitos, ocasionando microcitose e hipocromia em diferentes graus.6 A Hb H pode ser oxidada e formar precipitados intra-eritrocitários que, quando presentes nos eritroblastos, causam destruição intramedular dos precursores eritróides e conseqüente eritropoese ineficiente. Com o tempo, estes precipitados fixam-se na membrana do eritrócito, provocando danos e sua retirada prematura da corrente circulatória pelo sistema tecidual macrofágico, diminuindo assim o tempo de vida útil.1,7,8,9

Os portadores de talassemia alfa apresentam anemia com graus variáveis, hipocromia, microcitose, poiquilocitose, diminuição da fragilidade osmótica, reticulocitose, presença de Hb H em eletroforese e na pesquisa citológica de corpos de inclusão de Hb H com coloração vital.10

O indivíduo normal possui quatro genes alfa, dois em cada um dos cromossomos 16, e seu genótipo é representado por dois haplótipos (aa/aa), um proveniente do pai e outro da mãe. Os genes a1 e a2 são homólogos e codificam proteínas idênticas, divergindo em apenas 17%.3 Apesar dessa homologia, o gene a2 apresenta uma expressão de duas a três vezes maior que o gene a1, e esse fato é determinante para o estabelecimento do perfil dos portadores, pois a alteração do primeiro gene implica maiores conseqüências para o quadro clínico. Assim, a caracterização da talassemia alfa está relacionada a três fatores: o número de genes afetados, o grau de decréscimo na expressão do gene e o quanto o gene afetado (a1 ou a2) contribui para a síntese da globina alfa.11

Genotipicamente, centenas de associações podem ocorrer e determinar talassemia alfa; fenotipicamente essas interações resultam em uma das quatro amplas classificações: Portador silencioso; Traço alfa talassêmico; Doença de Hb H e Hidropsia fetal por Hb Bart's.5,12-15 As duas primeiras são as mais freqüentes no Brasil. A freqüência de Portadores silenciosos em nossa população varia de 10% a 15%, enquanto a de Traço alfa talassêmico está próxima de 4% entre os brancos e 10% entre os negros. Ambos os fenótipos apresentam marcadas variações regionais.11

Para o diagnóstico desta anemia hereditária, a análise dos índices eritrocitários, a hematoscopia, incluindo a análise da morfologia eritrocitária, e a pesquisa de corpos de inclusão de Hb H e a eletroforese em pH neutro são essenciais. Secundariamente, a dosagem de Hb A2, a contagem de reticulócitos e avaliação do suprimento de ferro auxiliam no diagnóstico diferencial de anemias de etiologia incerta.6,16 Os índices hematimétricos podem sofrer alterações na presença de hemoglobinopatias estruturais e são determinantes no diagnóstico diferencial das talassemias.17

As características fenotípicas e hematológicas dos portadores de talassemia alfa são variáveis e não há um padrão claramente definido na população brasileira, o que torna essencial uma avaliação desse perfil hematológico na população. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi avaliar o perfil hematológico, por meio dos valores de hemograma (RBC, HGB, HCT, VCM, HCM e CHCM) de indivíduos identificados como portadores de talassemia alfa por métodos de rotina diagnóstica, das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil.

Casuística e Métodos

Foram analisadas 1.010 amostras de sangue periférico de indivíduos de ambos os sexos, com idades variando de 1 a 90 anos, sem distinção de etnia, provenientes das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil. As amostras foram colhidas por punção venosa e acondicionadas em tubos contendo EDTA 5%, após consentimento informado e segundo aprovação do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. Este estudo foi desenvolvido no período de abril de 2003 a abril de 2005. Os índices eritrocitários foram fornecidos por aparelho Coulter Counter e os valores de referência utilizados para a análise foram obtidos segundo Greer et al.,19 sendo a contagem de glóbulos vermelhos (RBC) em milhões/mm3 dentro da faixa de 5.400.000 ± 800.000 para os homens e de 4.800.000 ± 600.000 para as mulheres; a dosagem de hemoglobina (HGB) em gramas/decilitro, variando de 16 ± 2 g/dl para homens e 14 ± 2 g/dl para mulheres; o hematócrito (HCT) em %, variando de 47 ± 5% para homens e de 42 ± 5% para mulheres; o volume corpuscular médio (VCM) em m3, na faixa de 87 ± 53 para ambos os sexos; a hemoglobina corpuscular média (HCM) em picogramas, variando de 29 ± 2 pg para ambos os sexos e a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) em %, variando de 34 ± 2% para ambos os sexos.

Para o diagnóstico de portadores de talassemia alfa foram realizados os seguintes testes de triagem: resistência globular osmótica em solução de cloreto de sódio a 0,36%20; Análise da morfologia eritrocitária1; Eletroforese em acetato de celulose em pH alcalino.21 Os testes complementares foram os seguintes: Eletroforese em acetato de celulose em pH neutro22; Pesquisa de corpos de inclusão de Hb H com coloração de azul cresil brilhante23; Contagem de reticulócitos22; Dosagem de Hb A2 por HPLC – Sistema Variant (BioRad).24 A análise estatística dos dados foi realizada através do programa Statdisk e a análise comparativa dos grupos pelo teste de hipótese para média de duas amostras independentes.25

Resultados

Das 1.010 amostras avaliadas, 831 foram provenientes da região Sudeste do Brasil, representando 82,28% do total analisado, sendo 595 (71,60%) do sexo feminino e 236 (28,40%) do sexo masculino, e 179 provenientes da região Nordeste, representando 17,72% do total, sendo 136 (75,98%) do sexo feminino e 43 (24,02%) do sexo masculino.

Em relação à triagem para talassemias, todas as amostras foram previamente identificadas como possíveis portadores de talassemia alfa, principalmente pela presença de Hb H em eletroforese em acetato de celulose em pH alcalino. Posteriormente, todas as suspeitas foram confirmadas com a realização dos testes complementares, com a visualização e quantificação da banda de Hb H em eletroforese em pH neutro e/ou visualização de corpos de Hb H na pesquisa citológica com coloração vital.

Analisando-se os indivíduos separadamente por região obtivemos os seguintes resultados: para a região Sudeste, em relação aos índices hematimétricos, 34,65% dos pacientes apresentaram RBC abaixo dos parâmetros normais, com média de 4,52 ± 0,59 x 103/mm3. Na dosagem de HGB, 60,17% dos indivíduos analisados mostraram valores abaixo dos de referência, com média 11,75 ± 1,85 g/dl, Em 58% dos indivíduos, as porcentagens de HCT estavam abaixo dos parâmetros, sendo a média de 36,68 ± 4,79%. Em 46,69% dos indivíduos, os valores de VCM estavam abaixo de 82 m3 e em 17,21% acima de 100 m3, sendo a média de 81,86 ± 11,15 m3. Em 50,54%, os valores de HCM estavam abaixo do esperado e 10,71% com HCM acima dos parâmetros normais, com média de 26,26 ± 4,31 pg. Em 46,81%, os valores de CHCM encontravam-se abaixo de 32%, com média de 31,92 ± 1,92. E em 7,1% observaram-se alterações em todos os índices hematimétricos. As mulheres foram as que apresentaram maior freqüência de alterações, especialmente nos índices RBC, HCT e CHCM, quando comparadas com os homens, que mostraram maior variação no HGB, VCM e HCM. As médias e desvios padrão dos índices eritrocitários estão representados na tabela 1, e o gráfico 1 mostra as porcentagens de indivíduos com estes índices hematológicos abaixo dos valores de referência para a região Sudeste.


Dentre as 179 amostras avaliadas para a região Nordeste, 45,25% estavam com RBC abaixo dos parâmetros de normalidade, sendo a média de 4,32 ± 0,62 x 103/mm3. Em 72,62% dos indivíduos analisados, a dosagem de HGB estava abaixo dos valores de referência, sendo a média 11,31 ± 1,89 g/dl. Em 70,39% das amostras, o HCT estava abaixo dos parâmetros, com média de 35,20 ± 5,08%. Em 46,37% dos indivíduos, o VCM estava abaixo de 82 m3 e em 13,96% acima de 100 m3, com média de 82,08 ± 10,01 m3. Em 48,60%, o HCM estava abaixo do esperado e em 8,38% o HCM estava acima dos parâmetros normais, sendo a média de 26,41 ± 4,08 pg. O CHCM estava com valores abaixo de 32% em 37,99% dos indivíduos, com média de 32,02 ± 1,74%. E 13,41% apresentaram alterações em todos os índices hematimétricos. As mulheres foram mais afetadas nos índices RBC, HCT e HCM, quando comparadas com os homens, que foram mais afetados no HGB, VCM e CHCM. As médias e desvios padrão destes índices estão representados na tabela 2, e o gráfico 2 mostra as porcentagens de indivíduos com os índices hematológicos abaixo dos valores de referência para a região.


Comparando-se as duas regiões estudadas, as análises estatísticas mostraram diferenças significativas entre as médias de RBC (p = 0,0001; a = 0,05); entre as médias de HGB (p = 0,0046) e entre as médias de HCT (p = 0,0004). Não houve diferenças significativas entre as médias dos outros índices hematimétricos (p > 0,05).

Discussão

O HGB, obtido diretamente do contador automatizado, fornece uma medida precisa da capacidade do sangue em transportar o oxigênio. O HCT é calculado a partir do RBC e do VCM, conforme fornecido pelo contador automático e, em virtude disto, o HCT torna-se menos exato. Para identificar um nível anormalmente baixo de HGB ou de HCT, precisamos primeiro estabelecer o valor normal médio e os limites da normalidade e levar em consideração as variações de idade, sexo, raciais e os interferentes ambientais.16, 17

Na amostra avaliada, a variação encontrada nos índices, devido à idade e ao sexo, é considerada normal e diversas explicações têm sido propostas para estas diferenças. Nas crianças, acredita-se que os altos níveis de fosfatos inorgânicos no organismo respondam por níveis mais elevados de 2,3-BPG nos eritrócitos e, portanto, por níveis de Hb mais baixos. Os homens jovens na pós-puberdade apresentam níveis mais altos de Hb, graças à ação estimulante dos andrógenos sobre os elementos precursores da série vermelha.16,18,19

Existem também vários fatores ambientais que podem desempenhar papel importante, principalmente quando afetam o transporte de oxigênio. A altitude provoca aumento da Hb da ordem de 1g/dl, a cada 3% a 4% da diminuição da saturação de oxigênio do sangue arterial. O tabagismo reduz a saturação da Hb pelo oxigênio e aumenta o nível de Hb. Nos fumantes, o nível de Hb pode aumentar de 0,5 a 1g/dl. É preciso, então, levar em consideração esses fatores para cada caso, a fim de distinguir entre a anemia fisiológica e a laboratorial.16,18

Os índices relativos ao tamanho dos eritrócitos e ao seu teor em Hb assumem grande importância no diagnóstico diferencial das anemias. O VCM, no indivíduo não-anêmico, é de 87 ± 5 m3. Em geral, os valores acima de 100 m3 sugerem defeito na maturação do núcleo dos precursores do eritrócito e valores abaixo de 82 m3 são sugestivos de defeito na síntese de hemoglobina.22

O HCM é o índice que informa o valor médio da quantidade de Hb que existe no interior do eritrócito.18 Com valores de 29 ± 2 pg, acompanha o VCM de perto, aumentando ou diminuindo em conjunto com este. As exceções ocorrem apenas em caso de microcitose devido à fragmentação das hemáceas ou às alterações de natureza osmótica.10,18,19

O CHCM, com valores de 34 ± 2%, é insensível quando se pretende fazer a distinção entre a falha da síntese de Hb que se acompanha da deficiência de ferro e outros fatores etiológicos. O aumento do CHCM para níveis superiores a 36% pode ser devido à presença de esferócitos.16,18

Avaliando-se o perfil hematológico dos portadores de talassemia alfa de ambas as regiões, Sudeste e Nordeste, podemos inferir que a média encontrada para os níveis de HGB foram relativamente baixas, principalmente quando considerados para os homens, mostrando uma provável deficiência na síntese de hemoglobina. Os valores de HCT estavam baixos para ambos os sexos, podendo levar a problemas no transporte de oxigênio nestes indivíduos e conseqüente má oxigenação tecidual. Os valores baixos de VCM estão relacionados com a presença de microcitose nas células vermelhas. As médias encontradas para o HCM estavam relativamente baixas, revelando a hipocromia dos eritrócitos. A microcitose e hipocromia são características evidentes já na triagem, pela análise morfológica dos esfregaços e evidenciam a produção deficiente de hemoglobina e sua conseqüente distribuição desigual nos eritrócitos. As pequenas alterações encontradas no CHCM não foram significativas, sendo indiferente no diagnóstico diferencial desta anemia hereditária.

Observou-se também que, em ambas as regiões, os dois índices mais afetados foram os níveis de HGB e o HCT, acompanhados do VCM e HCM. As mulheres foram as mais afetadas em todos os parâmetros em ambas as regiões.

Conclusões

A partir dos resultados obtidos conclui-se que o perfil dos portadores de talassemia alfa das duas regiões avaliadas são discretamente diferentes, provavelmente devido à composição étnica destas regiões e a fatores nutricionais, que devem ser levados em consideração no momento das análises laboratoriais e da interpretação dos resultados, para um diagnóstico mais preciso e confiável. Os índices eritrocitários foram de grande importância na identificação dos portadores, pois complementaram os testes de triagem de hemoglobinopatias e direcionaram os testes complementares para a confirmação das suspeitas de talassemia alfa.

A partir dos perfis traçados por este estudo, ficou evidente a necessidade de estudos adicionais, com avaliação dos perfis hematológicos de portadores de talassemia alfa em diferentes regiões. Os resultados contribuíram para caracterizar o perfil dos portadores de talassemia alfa na população brasileira, visando à melhoria nos diagnósticos e na qualidade de vida destes indivíduos. Salientamos ainda que, mesmo com as evidências hematológicas e laboratoriais clássicas, é aconselhável a análise molecular das principais alterações genéticas do gene alfa globina para uma conclusão definitiva do diagnóstico de talassemia alfa.

Recebido: 21/11/2005

Aceito após modificações: 18/03/2006

Trabalho desenvolvido no Laboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas (LHGDH) - Ibilce-Unesp.

Avaliação: Editor e dois revisores externos.

Conflito de interesse: não declarado

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  • Correspondência:

    Gislane Lelis Vilela de Oliveira
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      18 Mar 2006
    • Recebido
      21 Nov 2005
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