Acessibilidade / Reportar erro

Fronteiras: da linha imaginária ao campo de conflitos

Borders: from the imaginary line to the field of conflicts

Resumos

Tomando por referencial teórico a noção de campo e baseando-se em depoimentos de autoridades e dirigentes de sindicatos patronais e de trabalhadores, são indicados aspectos que demonstram a existência de um campo de conflitos decorrente de disputas em torno da terra, de postos de trabalho, bem como de aspectos distintos das legislações nacionais no espaço fronteiriço brasileiro-uruguaio. As análises demonstram que a almejada integração entre as populações residentes nas cidades de Sant'Ana do Livramento e Rivera, permanece enquanto representação, muito mais discursiva do que real.

fronteira; campo do poder; representações sociais; conflito social


Taking the notion of field as a theoretical reference and based on statements by authorities as well as employers' and labor union leaders, aspects are pointed out that demonstrate the existence of a field of conflicts resulting from disputes over land, work positions, and distinct aspects of national legislations within the Brazilian-Uruguayan border space. Analyses demonstrate that the longed-for integration between populations living in the cities of Sant'Ana do Livramento and Rivera remains as representation, being more discursive than real.

border; power field; social representations; social conflict


DOSSIÊ SOCIEDADE E TERRITÓRIO

Fronteiras: da linha imaginária ao campo de conflitos1 1 Versão modificada em novembro de 2003 do capítulo 4 "Fronteiras revisitadas" de: MÉLO, José Luiz Bica de. Fronteiras abertas: o campo do poder no espaço fronteiriço Brasil - Uruguai no contexto da globalização. 2000. 376 p. Tese (Doutorado em Sociologia). - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Borders: from the imaginary line to the field of conflicts

José Luiz Bica Mélo

Professor do PPGCSA - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas, UNISINOS, São Leopoldo, RS. Endereço eletrônico: jlbica@poa.unisinos.br

RESUMO

Tomando por referencial teórico a noção de campo e baseando-se em depoimentos de autoridades e dirigentes de sindicatos patronais e de trabalhadores, são indicados aspectos que demonstram a existência de um campo de conflitos decorrente de disputas em torno da terra, de postos de trabalho, bem como de aspectos distintos das legislações nacionais no espaço fronteiriço brasileiro-uruguaio. As análises demonstram que a almejada integração entre as populações residentes nas cidades de Sant'Ana do Livramento e Rivera, permanece enquanto representação, muito mais discursiva do que real.

Palavras-chave: fronteira, campo do poder, representações sociais, conflito social.

ABSTRACTS

Taking the notion of field as a theoretical reference and based on statements by authorities as well as employers' and labor union leaders, aspects are pointed out that demonstrate the existence of a field of conflicts resulting from disputes over land, work positions, and distinct aspects of national legislations within the Brazilian-Uruguayan border space. Analyses demonstrate that the longed-for integration between populations living in the cities of Sant'Ana do Livramento and Rivera remains as representation, being more discursive than real.

Keywords: border, power field, social representations, social conflict.

Introdução

Para uma análise das fronteiras nacionais – materiais e simbólicas –, há necessidade de se investigar as formas como os agentes sociais que vivem em um contexto sócio-histórico e geográfico específico analisam o próprio contexto, bem como as relações desse contexto com o de outro Estado Nacional, como é o caso do campo fronteiriço Brasil-Uruguai.

A noção de campo que constitui o horizonte deste estudoéentendida no plano teórico como forma de pensamento relacional e enquanto noção operacional, como espaço sócio-histórico de disputas por capitais materiais ou simbólicos no qual são definidas as posições dominantes e dominadas (Bourdieu, 1989; Bourdieu, 1996), configuradas a partir de especificidades de ordem histórica e geopolítica, geradoras de um espaço fronteiriço no qual os diversos pares de cidades estabeleceram relações familiares e comerciais que fizeram com que a linha que separa os dois estados nacionais constituísse, no caso de Sant'Ana do Livramento e Rivera, uma fronteira seca, conformando, enquanto fronteira, apenas uma linha imaginária.

Há que se considerar, no entanto, que os brasileiros e os uruguaios da fronteira, embora próximos geograficamente, encontram-se distanciados por legislações nacionais, por histórias diferenciadas e objetivos distintos, fazendo com que a linha imaginária – a linha de fronteira – adquira conformações objetivas, compondo-se um processo sociocultural complexo em decorrência do que Cardoso de Oliveira denominou de "nacionalidades em conjunção".

É assim que em ambos os lados da fronteira pode-se constatar a existência de contingentes populacionais não necessariamente homogêneos, mas diferenciados pela presença de indivíduos ou grupos pertencentes a diferentes etnias, sejam elas autóctones ou indígenas, sejam provenientes de outros países pelo processo de imigração. Ora, isso confere à população inserida no contexto de fronteira um grau de diversificação étnica que, somado à nacionalidade natural ou conquistada do conjunto populacional de um e de outro lado da fronteira, cria uma situação sociocultural extremamente complexa (OLIVEIRA, 1997, p. 14).

Significa dizer que, diferentemente de regiões distantes de áreas de fronteira geopolítica, nesses lugares – principalmente nas cidades – medidas econômicas ou políticas implementadas afetam imediatamente, positiva ou negativamente, a população vizinha.

Tendo presente esses aspectos políticos e econômicos, este estudo tem por objetivo analisar os significados da fronteira Brasil-Uruguai, especificamente Livramento e Rivera, mantendo um olhar sociológico para além dessas localidades e buscando, a partir das manifestações discursivas, compreender os elementos de integração ou de conflito presentes nessas manifestações. Procura-se pensar os possíveis significados da fronteira no novo momento do capitalismo globalizado e da desejada discursivamente, mas incerta integração regional.

Busca-se também a reconstrução analítica do campo do poder, demonstrando-se a heterogeneidade das manifestações discursivas e a distância existente entre as medidas implementadas, em nível macro, pelos acordos do Mercosul e o cotidiano vivido pela maioria da população da fronteira Brasil-Uruguai.

O texto está divido em três tópicos. No primeiro, são analisadas as representações sobre a fronteira, contrapondo-se os aspectos ligados à integração e ao conflito. Em segundo lugar, visto que os aspectos conflituais são proeminentes, busca-se pontuar as representações discursivas segundo as posições no campo do poder. Por último, busca-se pensar quais as possibilidades de configuração de um novo campo do poder na fronteira Brasil-Uruguai, com a implementação do processo de integração regional.

1 A fronteira Livramento-Rivera: integração ou conflito?

No exame das representações2 2 Levantados mediante entrevistas gravadas com agentes sociais e políticos de Livramento e Rivera (autoridades e dirigentes de sindicatos patronais e de trabalhadores), nos anos de 1997 e 1998. dos diversos agentes sociais, podem ser destacados aspectos de ordem sociocultural utilizados por esses mesmos agentes para fortalecer o argumento de que entre Livramento e Rivera tem-se não "uma integração de direito mas uma integração de fato". Nesse aspecto, os discursos dos diferentes agentes sociais, tanto na esfera dominante quanto na esfera dominada, não diferem substancialmente.

Os discursosenfatizam que a existência dos problemas sociais, entre os quais a pobreza, estariam presentes nos dois lados da fronteira, sendo o desemprego cíclico da fronteira decorrência de uma espécie de "pêndulo": quando questões cambiais e econômicas favorecem uma das localidades, desfavorecem a outra. Em que pese a ressalva de que a existência da pobreza, como apontam os diferentes agentes, seria de ordem estrutural e histórica, antecedendo a própria formação dos dois Estados Nacionais, são enfatizados os aspectos ligados à integração. Haveria, em primeiro lugar, uma integração cultural ligada aos fatores lingüísticos, como se depreende pelo depoimento de um edil do Partido Nacional ao afirmar que

Há uma integração cultural muito forte faz muitíssimo tempo, pela própria via de relacionamento que há entre estas duas cidades que são uma só [cidade]. Famílias, educação, deslocamentos, rádio, música, TV. Há uma integração nesse sentido. Também nos estudos: ensino do português nas escolas de Rivera e espanhol em Livramento.

Este mesmo ponto de vista é corroborado pelo depoimento de uma autoridade de Livramento no que se refere ao ensino das línguas espanhola e portuguesa nas escolas de ambas as cidades ao afirmar que

Na área de educação nós fomos, mesmo antes do Mercosul, nós introduzimos nos currículos escolares do município, o espanhol. [...] Quando começou a discussão sobre Mercosul nós introduzimos [o espanhol] no currículo.3 3 Os estudos demonstraram que não mais existe tal convênio. Inexistindo, portanto em 1997 e 1998 – época da pesquisa de campo – o ensino da língua espanhola nas escolas públicas de Livramento e da língua portuguesa no ensino regular de Rivera. Instituto privado de línguas em Rivera que oferece a língua portuguesa, no momento, não tinha alunos no curso de português, pois segundo informações levantadas pelo pesquisador "os jovens riverenses e santanenses preferem estudar inglês".

De outra parte, para enfatizar a integração fronteiriça, temos as representações ligadas seja à solidariedade, seja à índole da população ou mesmo à baixa criminalidade ou ao tradicionalismo, tendo sido constadas afirmações de que "a fronteira é mais solidária(...)" e de que "o pessoal aqui da Campanha é de boa índole (...)".

A essas afirmaçõespodem ser agregadas, ainda, as relações familiares e as festividades, com a presença de autoridades riverenses e santanenses, pois seriam, segundo as representações discursivas, indicadores de uma "integração de fato".

Um outro tipo de discurso ligado à integração afirma a existência de uma "cordialidade sistêmica" que uniria Livramento e Rivera, reivindicando também aspectos ligados ao atavismo, isto é, a um certo "espírito" de fronteira e à coragem, dando-se ênfase a "um sistema de cordialidade [e] de vivências regulares e integradas que se acentuam mais ou menos, dependendo dos governantes".

O exame destes aspectos ligados à integração necessita, no entanto, de uma análise mais aprofundada para se perceber quanto de conflitualidade, de entraves de diferentes tipos, pauta as relações fronteiriças. Foi possível constatar ao longo do estudo, que os discursos, primordialmente dos agentes sociais dominantes, seja na esfera política, seja na esfera econômica, atribuem os "problemas" da fronteira a causas exógenas: centralização política e decisões tomadas na esfera federal. Se é correto pensar que a região de fronteira efetivamente está geográfica e politicamente distante dos centros de poder (Porto Alegre, Brasília e Montevideo), não se pode, no entanto, desconhecer que existem elementos endógenos ligados a um certo padrão de convivência cotidiana que está presente no próprio meio social. Mesmo que fosse possível admitir interesses coincidentes entre as duas localidades, como de resto aos demais pares de cidades da fronteira brasileiro-uruguaia, quais sejam Jaguarão-Rio Branco, Chuí-Chuy, Quaraí-Artigas, os próprios agentes sociais que enfatizam a integração admitem elementos de atrito ou de conflitualidade.

É possível verificar que não existem convênios formais na área política, conforme depoimento de um representante do legislativo municipal de Livramento.

Não existem especificamente [na área política] convênios entre Rivera e Livramento. Não existem convênios de direito, o que existem são convênios de fato. Te explico por que. Porque qualquer Convênio Internacional, por mais que aqui estejamos separados... mas estejamos unidos por interesses econômicos, pelo dialeto especial o portunhol, as uniões familiares... Por mais que... Legalmente, ao passar a linha, a coisa vai a Montevidéu ou Brasília, ao Itamarati. E todos sabemos que a política de Estado, via Itamarati é muito forte. O Brasil defende muito sua nacionalidade, seu território e isso não torna possível a existência de convênios.

Existe sim aqui um organismo integrado pela Câmara de Vereadores de Santana do Livramento e pela Junta Departamental de Rivera: O Conselho Legislativo Internacional [formado por 7 vereadores e 7 ediles]. Mas esse Conselho pode apenas fazer sugestões. É mais um foro de discussão: não tem capacidade [poder] de decisão.

Mesmo apontando a importância desse "organismo integrado" que seria o Conselho Legislativo Internacional Livramento-Rivera (Mélo e Sarturi, 2003), os discursos indicam a inexistência de acordos formais capazes de dar conta de demandas como, por exemplo, na área da segurança pública. Conforme manifestação de um edil do Partido Colorado que lamenta a ausência de tais regulamentos, como um Convênio de Extradição entre o Brasil e o Uruguai, mencionando que "(...) se alguém comete um delito no lado uruguaio passa para o lado brasileiro e não se pode fazer nada".

A mesma argumentação está presente na manifestação de um vereador santanense, afirmando que existe um "bom entrosamento entre as autoridades brasileiras e uruguaias", mas que tal entrosamento estaria sendo dificultado pela inexistência de regulamentação de atuação conjunta entre autoridades de ambos os países, principalmente na esfera policial ou de fiscalização aduaneira.

Ao lado das manifestações que destacam aspectos jurídicos, existem aqueles depoimentos que buscam apontar para a integração com base naquilo que poderia ser efetivado mas que, na realidade efetiva, não ocorre, tais como acordos na esfera sanitária ou de produção leiteira, dificultadas pelas barreiras sanitárias estabelecidas diferencialmente por ambos os países.

Sendo o Uruguai internacionalmente considerado como área livre de aftosa sem vacinação e sendo parte do Brasil – o Rio Grande do Sul, em particular – área livre de aftosa com vacinação,4 4 Essa situação foi alterada em virtude da febre aftosa ter atacado, em 2000, também o rebanho uruguaio. Em 2003, tanto o Rio Grande do Sul quanto o Uruguai são áreas livres de aftosa com vacinação. este não pode fornecer seus produtos para serem processados no Uruguai, sob pena de contaminar a produção daquele país – tal como no caso do leite de Livramento na planta da CONAPROLE (Cooperativa Nacional de Productores de Leche) de Rivera. Com base nesse princípio, embora Livramento e Rivera pudessem ter os laticínios processados em uma mesma planta, dadas a proximidade geográfica e a existência de rebanho leiteiro em ambos os lados da fronteira, isso, de fato, não ocorre.

Aos aspectos ligados à conflitualidade nas esferas sanitárias e de economia primária, pode ser agregado um outro aspecto de ordem política, relacionado às especificidades de cada um dos países: os períodos de eleições e os calendários eleitorais nas esferas locais, regionais (departamentais e estaduais) e nacionais no Brasil e no Uruguai não coincidem. Elemento esse, sem maior importância à primeira vista, mas que dificulta o estabelecimento de acordos duradouros entre duas cidades. Além disso, não haveria, de acordo com depoimento de edil da Frente Amplio, "afinidade ideológica ou vontade política de integração [visto que] na prática, Livramento e Rivera sempre tiveram uma certa integração das pessoas [mas] não institucional".

Acrescente-se aindao fenômeno das migrações internas, intensificadas, segundo os depoimentos, por situações cambiais diferenciais, que, em determinados períodos, proporcionava a aquisição de produtos em Livramento com preços inferiores aos praticados em Rivera. De acordo com diversos depoimentos, o deslocamento de cidadãos uruguaios desde diferentes pontos do país e a fixação de residência em Rivera ocasionou, nos anos noventa, o agravamento da situação econômica não só em Rivera mas também em Livramento. Nem mesmo o comércio de free shop de Rivera teria sido capaz de gerar postos de trabalho que absorvessem os desempregados riverenses e os desempregados "doble chapa" residentes em Livramento como se depreende pelo depoimento abaixo:

Este é o panorama geral da situação no Departamento. Mas Rivera é um Departamento que tem certas particularidades: pela integração com Livramento. Através da integração com Livramento, com o Brasil, tem provocado por diferenças cambiais que eram muito favoráveis aos uruguaios que faziam compras no Brasil, antes do Plano Real. Isto provocou um grande deslocamento de famílias do interior do país [Uruguai] para Rivera. Sobretudo de jubilados [aposentados] que vieram para cá e trouxeram outros familiares. Este Departamento se não é o primeiro, está entre os primeiros em movimento de população [migrações internas]. Isto gerou uma pressão demográfica sobre a cidade. O que aconteceu? Com esses aposentados vieram suas famílias e isso aumentou as taxas de desemprego.

Os aspectos acima indicados apontam para a inexistência da integração de fato e da permanência de uma situação de crise que, à época da pesquisa, afetava de forma mais acentuada a cidade de Livramento. A manifestação de um vereador santanense ligado ao setor imobiliário ilustra este ponto de vista, mencionando que, em Livramento, somente a parte hoteleira, em função do cassino e do free shop de Rivera, tem conseguido sobreviver à crise econômica que tem afetado aquela cidade.

Se podemos afirmar que nacionalidades diferenciadas podem estabelecer um processo de integração sempre tenso e complexo, como apontou Cardoso de Oliveira, a complexidade aumenta quando se tem número significativo de cidadãos que são de duas nacionalidades a um só tempo. Autoridades da Junta Departamental de Rivera estimavam, para 1998, em dez mil o número de cidadãos com dupla nacionalidade5 5 Considera-se brasileiro todo aquele que nasce no território nacional ( jus solis). A legislação uruguaia considera cidadão uruguaio todo o descendente de uruguaio, mesmo nascido em outro país ( jus sanguinis). em Livramento e Rivera, dos quais cerca de sete mil seriam eleitores. São os chamados "doble chapa".6 6 A expressão tem analogia com a prática, decorrente de Lei – não mais em vigor – que obrigava os moradores das cidades da fronteira Brasil-Uruguai, ao realizarem o licenciamento de veículos, à colocação de placas (chapas) brasileiras e uruguaias ao mesmo tempo.

Considerando que, mesmo residindo em Livramento, o cidadão pode trabalhar em Rivera (e vice-versa), toda vez que ocorre o aprofundamento da crise naquela cidade onde trabalhava, com o conseqüente desemprego, aumenta a pressão sobre o mercado de trabalho do outro lado. Podem ser citados como exemplo o fechamento – na metade dos anos noventa – do Frigorífico Armour, do Lanifício Albornoz e a redução das atividades da vinícola Almadén, aliado ao desemprego no comércio de Livramento como importantes elementos para a intensificação do desemprego de "doble chapas" residentes em Rivera.

Depoimento de ex-vereador santanense ilustra a não-integração na esfera política e em outras esferas do social, afirmando que Livramento e Rivera estariam "de costas uma para a outra".

Quando se trata de explicar – discursivamente – a crise da fronteira é que as representações dos agentes sociais ficam claramente demarcadas. Por meio delas, demonstra-se a existência de tensões que configuram uma situação de desigualdade: um campo de disputas pela explicação legítima tanto da crise quanto das possíveis saídas para essa situação.

Uma das possíveis saídas para a crise econômica da fronteira seria, conforme discussões empreendidas por diferentes agentes políticos da região nos anos 1997 e 1998, a criação de uma Área de Livre Comércio em diferentes municípios da fronteira Brasil-Uruguai. Essa Área de Livre Comércio teria um formato semelhante ao comércio de free shop: venda de produtos brasileiros ou importados somente para estrangeiros, no caso, para uruguaios e argentinos.7 7 Apesar das inúmeras reuniões de autoridades de Livramento, Quaraí, Jaguarão e Chuí e de uma tentativa de aprovação de projeto de lei na Câmara Federal Brasileira tendo como relator o Deputado Jair Soares do PPB (Partido Progressista Brasileiro, RS), o projeto não saiu do papel.

Em praticamente todas as entrevistas surgiram manifestações sobre o desemprego e a situação de miséria que, em grande parte, agudiza-se em uma ou outra das cidades em decorrência do grande número de "doble chapas", como indicamos acima. Ilustrativo do tópico desemprego é a manifestação de vereador santanense, que também atua na esfera policial, ao relacionar o desemprego com a delinqüência. Segundo o entrevistado, o fato de o "delinqüente" poder evadir-se com facilidade para o Uruguai seria mais um entrave para a ação policial e para a redução das práticas criminalizadas na fronteira, principalmente aquelas relacionadas com atividades comerciais ilegais.

A análise das relações no espaço fronteiriço Livramento-Rivera aponta para a existência de aspectos conflituais. Apesar de parte das manifestações discursivas afirmarem o contrário, foi possível constatar que aspectos ligados à crise econômica, ao desemprego e às práticas criminalizadas como o abigeato e o contrabando são a demonstração de elementos de tensão no cotidiano da fronteira. Há outros elementos, tais como as lutas agrárias, como será visto a seguir.

2 Lutas agrárias e campo do poder na fronteira

Outro importante ponto de disputas estabelecidas no plano discursivo refere-se ao problema da terra. Como indicamos em outro lugar,8 8 Capítulo 2: Terra, Propriedade e Dominação em MÉLO, 2000, p. 79-115. a terra tem estado no centro das lutas pela consolidação das fronteiras nacionais do Brasil e do Uruguai, desde o século passado.

A intensificação da luta pela terra no Rio Grande do Sul e a instalação de acampamentos – com os primeiros assentamentos de colonos nos municípios de Bagé e Livramento em 19919 9 MILES de "sin tierra" invadieron estancias a 30 kilometros de la frontera con el Brasil. El País, Montevideo, 05 set. 1991, p. 1 e 9; RATIFICAN invasiones em Uruguay de "sin tierra". El País, Montevideo, 06 set. 1991, p. 1 e 10; DENUNCIA de EL PAíS: Las FF.AA patrullan la frontera para impedir invasión "sin tierra". El País, Montevideo, 07 set. 1991, p. 7; LAS CANCILLERÍAS de Uruguay y Brasil están "en estrecho contacto" por los "sin tierra". La República, Montevideo, 07 set. 1991, p. 8. e, na seqüência, em 199710 10 LOS SIN TIERRA de Brasil muy cerca de suelo uruguayo; no cruzarían frontera; amenazan con penetración "ideológica" en nuestro país . El País, Montevideo, 17 ago. 1997, p. 1 (1ª sección); TROPAS, tanques, y aviones vigilan límite con Brasil; Tareas de inteligencia y control migratorios por presencia de los "Sin Tierra". El País, Montevideo, 22 ago. 1997, p. 1 (1a sección). – proporcionaram posicionamentos de diferentes agentes sociais: colonos ligados ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), autoridades civis e militares uruguaias e, conseqüentemente, autoridades e dirigentes locais de Livramento e Rivera. A proximidade com a fronteira uruguaia ensejou a notícia – reiteradas vezes negada pela direção do MST11 11 "Exigencias al Uruguay - Rio de Janeiro (AP) – Un alto dirigente del Movimiento de los Sin Tierra (MST), dijo ayer, lunes, que sus militantes no invadirán territorio uruguayo, pero advertió que el vecino país necesita también de una reforma agraria y que ya se mantienen contactos a nivel de entidades similares en territorio uruguayo. 'No vamos a invadir tierras uruguayas. Pero si el gobierno de allí teme a invasiones, entonces la tierra está sobrando. El gobierno tiene que hacer una reforma agraria, para los uruguayos sin tierra' dijo Dionilson Marcón, el principal dirigente del MST del estado de Rio Grande do Sul. Marcón dijo también que los dirigentes campesinos de Brasil, Uruguay y Argentina, 'intercambian informaciones y visitas. El Mercosur no existe sólo para que la burguesia haga negocios. Los trabajadores del Mercosur también tienen que organizarse.' Las declaraciones de Marcón constituyeron la primera indicación de que existen contactos entre las organizaciones campesinas de esos tres países, y también la primera vez que un lider campesino brasileño del MST insinúa que en Uruguay debería dictarse una reforma agraria". EXIGENCIAS al Uruguay. El País, Montevideo, 19 ago. 1997, 2ª sección p. 13. NASCIMENTO, Solano. Uruguai nega rumores de invasão. Zero Hora, Porto Alegre, 12 set. 1991, p. 47 – de que colonos ligados ao MST estariam planejando a invasão de fazendas no Uruguai.

As informações davam conta de que, em 1991, havia de fato preocupações de setores uruguaios ligados ao setor ganadero, isto é, ao setor pecuário, e às Forças Armadas, principalmente nos Departamentos de Rivera e Cerro Largo, com a presença dos sem terra. Manifestações semelhantes aconteceram em 1997 quando aumentou o número de assentamentos em Livramento.12 12 Nos anos de 1996 e 1997 foram instalados oito assentamentos em fazendas adquiridas pelo INCRA em Livramento (NAVARRO, 1996, p. 63-67). Ilustrativo das opiniões divergentes sobre a luta pela terra na fronteira pode ser constatado pela manifestação de liderança sindical santanense que havia atuado no Comitê de Apoio ao MST em Livramento em 1991. A manifestação traça um paralelo entre 1991 e 1997.

Pois então. Naquela época [1991] aconteceu o mesmo. Exatamente igual. Passado algum tempo da vinda dos colonos foram passadas informações para alguns setores do Uruguai de que os colonos estavam planejando uma invasão... [...] Pois é. Nós cuidávamos dessa parte, de desmentir isso [a invasão do Uruguai] aqui na fronteira. Aquilo foi muito interessante porque já deixava claro qual era o tipo de integração que existia. Que era uma integração apenas entre alguns setores... [...]. Em muitos aspectos não existe integração nenhuma, até porque o Uruguai é um país com sérias dificuldades. Exatamente. Isto é muito significativo, porque a gente vive numa região muito conservadora. E nós temos essa dificuldade de romper com esse conservadorismo.

Por parte dos pecuaristas santanenses, também não havia aceitação de que houvesse assentamentos de colonos ligados ao MST. Em documento elaborado em junho de 1991 – Carta de Livramento – externaram a desconformidade com a política de reforma agrária do Governo Federal.13 13 PRODUTORES de Livramento querem sem-terra longe. Zero Hora, Porto Alegre, 21 jun. 1991, p. 43. Desde 1991 há desconformidade das autoridades dos municípios fronteiriços com os assentamentos: PREFECTO de Yaguarón [Jaguarão] toma medidas contra "colonos". El País, Montevideo, 26 ago. 1997, p. 12.

Dirigente rural riverense atribui parte dos problemas da fronteira à forte presença de brasileiros proprietários de terras no Uruguai e reivindica – para o Uruguai – o estabelecimento de legislação semelhante à brasileira que impedisse a compra de terras por estrangeiros em uma faixa de fronteira determinada.

O que tem acontecido na fronteira é que muitas terras foram compradas por gente que não é do nosso país. O que não nos cai muito bem. Não que sejamos chauvinistas ou coisa desse tipo, mas nos parece que no tratamento entre os países deve haver reciprocidade. Por exemplo, o Brasil, que é um país muito grande onde não lhes falta terras, tem uma faixa, uma área de fronteira que não vende a estrangeiros. Nós não temos essa faixa de fronteira. Se um brasileiro chega aqui e quer comprar um campo aqui ao lado da cidade ele pode comprar. Mas se eu quero comprar do outro lado eles [os brasileiros] não me deixam. [...]. Então, essa situação para nós é irritante. Se tem defendido a tese junto aos políticos e governantes uruguaios de que fizéssemos o mesmo – considerando um grande número de produtores, como eu lhe falava, com estâncias à deriva – os preços das terras baixariam, e interessaria aos brasileiros, estrangeiros que ultrapassassem a fronteira, como argentinos, europeus. E a tese é de se defender o preço, o preço cairia. E teríamos igual tratamento, no que praticamente não vai influenciar muito quem vai comprar terras, só possibilidades. Ou do contrário, criar essa mesma faixa.

Também parlamentares do Partido Nacional (Blanco) demonstraram preocupação com um possível plano do governo brasileiro de, ao instalar assentamentos em municípios da fronteira brasileiro-uruguaia, esconder objetivos estratégicos.

[...]. No sólo los sin tierra nos debe preocupar... también los con tierra... también las grandes extensiones de tierras adquiridas por ciudadanos brasileños en nuestra frontera, que no tiene únicamente el objetivo de radicación en nuestro territorio, sino que puede llegar a tener otras conotaciones u otro objetivo estratégico.

Por eso no descartamos, que de trás de este Movimiento radical de izquierda, que se permite opinar sobre la realidad uruguaya y dar soluciones sobre los problemas nacionales, esté una bien montada estrategia nunca desmentida por el vecino gigante, de que sus verdaderas fronteras van más allá de los limites geográficos. [...].14 14 "NO SÓLO deben preocupar los sin tierra" [Discurso no Parlamento Uruguaio, Deputado pelo Departamento de Rocha]. Jornada, Rivera, 23 ago. 1997, p. 8.

Mesmo segundo o dirigente da Frente Amplio que, "em princípio, apóia a reforma agrária brasileira", a existência de grande número de propriedades em mãos de brasileiros, principalmente nos Departamentos de Rivera, Artigas e Cerro Largo, teria importantes implicações na esfera do trabalho, na medida em que estaria proporcionando a presença cada vez mais acentuada dos "indocumentados brasileños", ocasionando dois problemas básicos: a presença de trabalhadores ilegais sem quaisquer garantias em termos de direitos sociais e, em segundo lugar, a pressão sobre o já reduzido mercado de trabalho no espaço agrário uruguaio. Este último aspecto também foi apontado por pesquisadoras uruguaias, visto que "dentro de las consecuencias sociales podemos hacer referencia a el desplazamiento de la mano de obra rural por los indocumentados brasileños con la consecuente migración hacia las ciudades donde se vive en condiciones de marginalidad" (Cardozo e Fernández, 1997).

A integração fronteiriça, freqüentemente anunciada como exemplo para o mundo, enfrenta dificuldades de ordem política, econômica e social. Aspectos ligados à terra, relações comerciais, políticas e culturais, se não representam impedimento para processo de integração autônoma entre brasileiros e uruguaios, demonstram entraves que, sem dúvida, dificultam essa integração. Isso ficou evidenciado com a instituição dos acordos do Mercosul.

3 MERCOSUL: fim da fronteira? Novas fronteiras?

Uma das preocupações da população das áreas de fronteira por ocasião da assinatura dos acordos que instituíram o MERCOSUL – Mercado Comum do Sul, no ano de 1991, era com a possibilidade de invasão de produtos brasileiros no Uruguai. Havia o receio de que, com isso, se inviabilizasse o próprio comércio ilegal, principalmente aquele chamado de "contrabando formiga".15 15 CON el Mercosur la frontera tiene "los días contados" según Zero Hora. La República, Montevideo, 26 set. 1991, p. 39.

Sabe-se que essa prática econômica e social tem conseqüências sociais importantes. O diferencial de preços em função de políticas cambiais próprias de cada país gera o "efeito gangorra", ou "efeito pêndulo": os preços das diferentes mercadorias, sob esse efeito, quase nunca coincidem. Aproveitando-se desse componente é que sobrevive e se recria, desde a constituição das fronteiras nacionais Brasil-Uruguai, tanto o grande contrabando (de gado em pé, charque, arroz), quanto o "contrabando formiga" (de produtos alimentícios, gás, bebidas).

Ao lado dessas preocupações que afetariam as populações que vivem desse tipo de comércio – aquilo que dirigente político uruguaio chamou de arancel zero – podem ser agregadas as expectativas de que os acordos comerciais fossem além da esfera econômica ou pudessem "favorecer" as populações fronteiriças. Os levantamentos demonstraram, em relação ao Mercosul, uma diversidade de discursos que vão desde a recusa da integraçãoaté o ponto de vista de que a integração de direito poderia ser estabelecida.

Efetivamente, não só autopeças, mas outros produtos exportados pelo Brasil para o Uruguai, passaram a custar menos do que no Brasil. Fato este que ensejou uma situação juridicamente estranha: produtos brasileiros sendo negociados por arancel zero do Uruguai para o Brasil e produtos – a cerveja uruguaia, por exemplo – a preço inferior no Brasil do que no mercado uruguaio.

Há também sindicalistas uruguaios que afirmam que, em Livramento e Rivera, nada mudou com o Mercosul ou que

Se modificaram algumas coisas, o aumento do trabalho informal de ambos os lados, mudou para pior. Aqui seguimos vivendo da mesma forma que antes da vigência dos acordos que criaram o Mercosul. Exatamente igual. A diferença talvez exista em Porto Alegre, Buenos Aires e Montevidéu.

Ou, se houve mudança, não teria sido sentida pela região, conforme expressão de edil do Partido Colorado.

O Mercosul constituiu-se por uma série de acordos bilaterais nos quais, conforme preâmbulo do Tratado de Assunção, os países assumem o compromisso "de modernizar suas economias para ampliar a oferta e a qualidade dos bens de serviço disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida de seus habitantes".16 16 Tratado de Assunção, 26 mar. 1991. Tem como órgão executivo o Grupo Mercado Comum formado por dez subgrupos, entre os quais o subgrupo que trata das questões trabalhistas e de seguridade social.17 17 Foi criado em 1991 com o nome de Relações Trabalhistas (Subgrupo 11). Pela Resolução/GM/res. 20/95 passou a ser remunerado como subgrupo 10 com o nome de "Assuntos laborais, emprego e seguridade social ".

Os estudos apontaram que, efetivamente, na esfera comercial de Livramento e Rivera, o Mercosul não trouxe alterações significativas: o "pêndulo" permaneceu, apenas com inversão em alguns produtos, como tem sido desde o século passado. Por parte dos trabalhadores, esperava-se que o problema dos "indocumentados" pudesse ter sido resolvido. Não se observou, no entanto, alteração significativa no que se refere às cláusulas sociais e trabalhistas.

Apesar dos esforços do estabelecimento de, por exemplo, uma legislação que trate das questões sociais no Mercosul, até o ano de 1997, de acordo com depoimentos de dirigentes sindicais ligados aos trabalhadores, tanto de setores urbanos quanto de setores rurais, não teria ocorrido qualquer avanço relacionado às questões sociais e trabalhistas. Persistia, segundo depoimentos, uma clara situação de desrespeito aos direitos dos trabalhadores, com denúncias, inclusive, de que trabalhadores rurais brasileiros estariam em regime de escravidão – tendo havido também casos de morte – no Uruguai, principalmente no setor madeireiro.

Em relação ao trabalho ilegal, nossos levantamentos localizaram denúncia de trabalho escravo no Uruguai, Departamento de Paysandú.18 18 Brasileiros trabalhavam em regime semi-escravo em fazenda uruguaia; o grupo havia sido contratado para cortar árvores e aplainar um monte. Zero Hora, Porto Alegre, 23 jan. 1997, p. 63. A fiscalização realizada pelo Ministério do Trabalho Uruguaio, no entanto, nada constatou.19 19 À época dos levantamentos de campo – anos de 1997 e 1998 – o setor de fiscalização do Ministério do Trabalho, em Rivera, contava com apenas dois funcionários sem veículo para deslocamentos no interior do Departamento.

Ao apontar esses elementos conflituais, podemos verificar que os acordos do Mercosul não alteraram significativamente a situação vivida pela maioria da população. Para que ocorram alterações substantivas, faltam, basicamente – à luz dos estudos empreendidos –, três medidas, ainda distantes de serem implementadas: alterações na estrutura fundiária da região, resolução das questões trabalhistas e descentralização administrativa.

O Uruguai conta, desde 1948 (Ley 11029 de 12 jan. 1948), com o INC – Instituto Nacional de Colonización, mas, desde o início, fatores de ordem técnica e política, principalmente de ordem política, têm feito com que o INC não realize a colonização: faltam terras fiscais (terras públicas) e recursos para adquiri-las. A direção do INC estimava, em 1991, que existiriam no país entre doze e quinze mil aspirantes, isto é, candidatos a colono, estando desatualizado o seu cadastro que então somava 35 mil.20 20 "EL INSTITUTO de Colonización no tiene tierras ni recursos para expropriar". [Entrevista com Ricardo Britos, Vice-Presidente do INC]. La República, Montevideo, 27 set. 1991, p. 52. No caso da fronteira brasileira, como vimos, estão ocorrendo assentamentos de colonos ligados ao MST – em fazendas compradas pelo INCRA – embora enfrentando a oposição dos setores dominantes do meio rural.

Mesmo aqueles que entendem que o incentivo ao turismo seria uma possibilidade para a região reconhecem que pouco tem sido feito nessa área em decorrência da falta de investimentos públicos ou privados capazes de gerar e fortalecer um pólo turístico na região fronteiriça que vá "além do cassino" ou do "comércio de free shop".

Existem aqueles que vêem no processo de Globalização um dos componentes importantes da situação não só da fronteira, mas dos próprios países.

Nós temos discrepância, enquanto partido político de oposição ao partido [Colorado] que está no poder. Discordamos em vários pontos. Mas o tema da globalização afeta todo mundo. Basicamente porque a abertura faz com que a concorrência seja muitíssimo mais profunda. Um país pequeno, com uma produção pequena, como o nosso, tem que competir não na quantidade mas sim na qualidade. A competição é muito grande: por exemplo, no setor de vestuário o Uruguai foi importante, mas hoje as empresas que fazem roupas são em muitos casos de empresas que trazem o tecido da China, Taiwan, esses tipos de países que exportam muitíssima quantidade. O setor de confecção no Uruguai perdeu a capacidade de gerar mão-de-obra. Hoje é mais lucrativo ser representante de uma fábrica e trazer o vestuário pronto. É mais barato e o risco é menor. Coloca-se [no mercado] interno com preços mais acessíveis para as pessoas.

As análises empreendidas neste último tópico apontaram para um campo complexo de relações sociais onde interesses locais e nacionais estão ora imbricados, ora distanciados. Há uma forte defesa da propriedade da terra em ambos os lados da fronteira geopolítica, de modo que as possibilidades de transformações agrárias significativas, pelo menos a curto prazo, não sejam vislumbradas. Talvez, com o esgotamento da fronteira agrária, isto é, com esgotamento do stock de terras no Rio Grande do Sul, venham a ser criadas possibilidades de internacionalização dos conflitos agrários. Enquanto isso, parcela significativa da população busca sobreviver pelo contrabando formiga ou trabalho informal (ou até mesmo em situação de completa ilegalidade, como é o caso dos indocumentados brasileiros em fazendas de arroz no Uruguai), enquanto os grupos sociais dominantes usufruam dos benefícios de poder circular em ambos os lados da fronteira.21 21 Para quem possui capital, há sempre a possibilidade de se transformar em comerciante, estancieiro, arrozeiro ou forestador no outro lado da fronteira. Em Rivera e Livramento, os comerciantes representam o grupo que, juntamente com os arrozeiros e ganaderos, domina tanto economicamente quanto na esfera política.

Conclusão

Os estudos indicaram que o processo de globalização e a integração regional dele resultante não constituíram, até o momento, novos agentes sociais na fronteira, ou mesmo no poder central dos dois países, capazes de alterações substantivas no campo do poder. Some-se a isso o fato de que as associações ou sindicatos de trabalhadores do Brasil e do Uruguai, se em termos discursivos podem indicar um processo de integração em marcha, na análise efetiva do campo das relações sindicais em Livramento e Rivera, não demonstram força organizativa suficiente para galgar postos na esfera legislativa ou mesmo no poder executivo local, nem apresentam capacidade política significativa capaz de exercer pressão junto ao poder central.

As análises aqui desenvolvidas apontam para o fato de que, enquanto persistir inalterada a situação econômica e política na região, não poderão ser efetivadas alterações significativas na esfera das relações socioculturais no sentido do estreitamento de redes de relações autônomas e solidárias. Se o processo de integração regional na esfera econômica vem avançando, o mesmo não tem ocorrido com as relações políticas e socioculturais, sendo, portanto, problemático falar em integração ou fronteira da paz. Talvez os ícones da integración de hecho sejam a televisão, no presente, e o contrabando – como era no passado.Na apreensão de um processo complexo – o campo do poder no espaço fronteiriço – as representações discursivas possibilitaram a compreensão de diferentes interesses e, portanto, dediferentes representações da fronteira. Procurou-se considerar tais discursos como importantes na produção e reprodução da fronteira e na conformação de um padrão de relações sociais que, pautado por desigualdades internas desde longa data, busca repensar-se no novo momento do capitalismo em processo de globalização.

Foi possível verificar as clivagens em cada lado da fronteira, demonstrando-se que, em situação de altos índices de desemprego, diferenças no acesso ou controle de um recurso importante como a terra e fracos laços nas relações políticas do par de cidades Livramento-Rivera, a linha imaginária não separa efetivamente, mas constitui elemento importante no campo de conflitos – por vezes manifestos, por vezes velados – na fronteira em movimento e nas representações discursivas.

Recebido: 12/01/2004 Revisado: 04/03/2004 Aceite final: 22/03/2004

  • BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1989. p. 131-161.
  • BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
  • CARDOZO, Susana, FERNÀNDEZ, Virginia. Cambios en la forma de producción y sus consecuencias socioeconomicas para el area fronteriza del noreste del Uruguay. In: CASTELLO, Iára Regina e outros. Fronteiras na América Latina: espaços em transformação. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS/FEE, 1997, p. 89-95. Citação p. 94.
  • MÉLO, José Luiz Bica de. Fronteiras abertas: o campo do poder no espaço fronteiriço BrasilUruguai no contexto da globalização. 2000. 376 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • MÉLO, José Luiz Bica de; SARTURI, Eduardo Fernandes. As fronteiras da representação: O Conselho Legislativo Internacional Sant´Ana do Livramento-Rivera. In: TAVARES DOS SANTOS, José Vicente; BARREIRA, César, BAUMGARTEN, Maíra (orgs). Crise Social & Multiculturalismo: estudos de Sociologia para o século XXI. São Paulo: SBS/Hucite, 2003. p. 179-204.
  • NAVARRO, Zander. Pequena história dos assentamentos rurais no Rio Grande do Sul, Brasil, 19781990. In:NAVARRO, Z., MORAES, M.S, MENEZES, R. Política, protesto e cidadania no campo: as lutas sociais dos colonos e dos trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS, 1996. p. 63-67.
  • OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnicidade e nacionalidade no Mercosul. Política Comparada Revista de Políticas Comparadas, Brasília, v. 1, nº 2, 1997, p. 9-20.
  • 1
    Versão modificada em novembro de 2003 do capítulo 4 "Fronteiras revisitadas" de: MÉLO, José Luiz Bica de.
    Fronteiras abertas: o campo do poder no espaço fronteiriço Brasil - Uruguai no contexto da globalização. 2000. 376 p. Tese (Doutorado em Sociologia). - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • 2
    Levantados mediante entrevistas gravadas com agentes sociais e políticos de Livramento e Rivera (autoridades e dirigentes de sindicatos patronais e de trabalhadores), nos anos de 1997 e 1998.
  • 3
    Os estudos demonstraram que não mais existe tal convênio. Inexistindo, portanto em 1997 e 1998 – época da pesquisa de campo – o ensino da língua espanhola nas escolas públicas de Livramento e da língua portuguesa no ensino regular de Rivera. Instituto privado de línguas em Rivera que oferece a língua portuguesa, no momento, não tinha alunos no curso de português, pois segundo informações levantadas pelo pesquisador "os jovens riverenses e santanenses preferem estudar inglês".
  • 4
    Essa situação foi alterada em virtude da febre aftosa ter atacado, em 2000, também o rebanho uruguaio. Em 2003, tanto o Rio Grande do Sul quanto o Uruguai são
    áreas livres de aftosa com vacinação.
  • 5
    Considera-se brasileiro todo aquele que nasce no território nacional (
    jus solis). A legislação uruguaia considera cidadão uruguaio todo o descendente de uruguaio, mesmo nascido em outro país (
    jus sanguinis).
  • 6
    A expressão tem analogia com a prática, decorrente de Lei – não mais em vigor – que obrigava os moradores das cidades da fronteira Brasil-Uruguai, ao realizarem o licenciamento de veículos, à colocação de placas (chapas) brasileiras e uruguaias ao mesmo tempo.
  • 7
    Apesar das inúmeras reuniões de autoridades de Livramento, Quaraí, Jaguarão e Chuí e de uma tentativa de aprovação de projeto de lei na Câmara Federal Brasileira tendo como relator o Deputado Jair Soares do PPB (Partido Progressista Brasileiro, RS), o projeto
    não saiu do papel.
  • 8
    Capítulo 2:
    Terra, Propriedade e Dominação em MÉLO, 2000, p. 79-115.
  • 9
    MILES de "sin tierra" invadieron estancias a 30 kilometros de la frontera con el Brasil.
    El País, Montevideo, 05 set. 1991, p. 1 e 9; RATIFICAN invasiones em Uruguay de "sin tierra".
    El País, Montevideo, 06 set. 1991, p. 1 e 10; DENUNCIA de EL PAíS: Las FF.AA patrullan la frontera para impedir invasión "sin tierra".
    El País, Montevideo, 07 set. 1991, p. 7; LAS CANCILLERÍAS de Uruguay y Brasil están "en estrecho contacto" por los "sin tierra".
    La República, Montevideo, 07 set. 1991, p. 8.
  • 10
    LOS SIN TIERRA de Brasil muy cerca de suelo uruguayo; no cruzarían frontera; amenazan con penetración "ideológica" en nuestro país
    . El País, Montevideo, 17 ago. 1997, p. 1 (1ª sección); TROPAS, tanques, y aviones vigilan límite con Brasil; Tareas de inteligencia y control migratorios por presencia de los "Sin Tierra".
    El País, Montevideo, 22 ago. 1997, p. 1 (1a sección).
  • 11
    "Exigencias al Uruguay - Rio de Janeiro (AP) – Un alto dirigente del Movimiento de los Sin Tierra (MST), dijo ayer, lunes, que sus militantes no invadirán territorio uruguayo, pero advertió que el vecino país necesita también de una reforma agraria y que ya se mantienen contactos a nivel de entidades similares en territorio uruguayo. 'No vamos a invadir tierras uruguayas. Pero si el gobierno de allí teme a invasiones, entonces la tierra está sobrando. El gobierno tiene que hacer una reforma agraria, para los uruguayos sin tierra' dijo Dionilson Marcón, el principal dirigente del MST del estado de Rio Grande do Sul. Marcón dijo también que los dirigentes campesinos de Brasil, Uruguay y Argentina, 'intercambian informaciones y visitas. El Mercosur no existe sólo para que la burguesia haga negocios. Los trabajadores del Mercosur también tienen que organizarse.' Las declaraciones de Marcón constituyeron la primera indicación de que existen contactos entre las organizaciones campesinas de esos tres países, y también la primera vez que un lider campesino brasileño del MST insinúa que en Uruguay debería dictarse una reforma agraria". EXIGENCIAS al Uruguay.
    El País, Montevideo, 19 ago. 1997, 2ª sección p. 13. NASCIMENTO, Solano. Uruguai nega rumores de invasão.
    Zero Hora, Porto Alegre, 12 set. 1991, p. 47
  • 12
    Nos anos de 1996 e 1997 foram instalados oito assentamentos em fazendas adquiridas pelo INCRA em Livramento (NAVARRO, 1996, p. 63-67).
  • 13
    PRODUTORES de Livramento querem sem-terra longe.
    Zero Hora, Porto Alegre, 21 jun. 1991, p. 43. Desde 1991 há desconformidade das autoridades dos municípios fronteiriços com os assentamentos:
    PREFECTO de Yaguarón [Jaguarão] toma medidas contra "colonos".
    El País, Montevideo, 26 ago. 1997, p. 12.
  • 14
    "NO SÓLO deben preocupar los sin tierra" [Discurso no Parlamento Uruguaio, Deputado pelo Departamento de Rocha].
    Jornada, Rivera, 23 ago. 1997, p. 8.
  • 15
    CON el Mercosur la frontera tiene "los días contados" según Zero Hora.
    La República, Montevideo, 26 set. 1991, p. 39.
  • 16
    Tratado de Assunção, 26 mar. 1991.
  • 17
    Foi criado em 1991 com o nome de Relações Trabalhistas (Subgrupo 11). Pela Resolução/GM/res. 20/95 passou a ser remunerado como subgrupo 10 com o nome de
    "Assuntos laborais, emprego e seguridade social
    ".
  • 18
    Brasileiros trabalhavam em regime semi-escravo em fazenda uruguaia; o grupo havia sido contratado para cortar árvores e aplainar um monte.
    Zero Hora, Porto Alegre, 23 jan. 1997, p. 63.
  • 19
    À época dos levantamentos de campo – anos de 1997 e 1998 – o setor de fiscalização do Ministério do Trabalho, em Rivera, contava com apenas dois funcionários sem veículo para deslocamentos no interior do Departamento.
  • 20
    "EL INSTITUTO de Colonización no tiene tierras ni recursos para expropriar". [Entrevista com Ricardo Britos, Vice-Presidente do INC].
    La República, Montevideo, 27 set. 1991, p. 52.
  • 21
    Para quem possui capital, há sempre a possibilidade de se transformar em comerciante, estancieiro, arrozeiro ou
    forestador no outro lado da fronteira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Aceito
      22 Mar 2004
    • Recebido
      12 Jan 2004
    • Revisado
      04 Mar 2004
    Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: revsoc@ufrgs.br