Resumos
No momento em que o ensino da sociologia do desenvolvimento está declinando nas universidades européias e, em menor grau, nas latino-americanas, afirma-se uma renovação da teoria da reciprocidade, precisamente nesse campo e no da economia social, a partir da antropologia e da sociologia econômica. O artigo trata, portanto, da contribuição da teoria da reciprocidade para a sócioantropologia do desenvolvimento. Divide-se em duas partes. A primeira apresenta brevemente os precursores e os fundamentos da teoria da reciprocidade. A segunda ilustra, a partir de alguns exemplos contemporâneos, a aplicação dessa teoria à sócio-antropologia do desenvolvimento rural. As considerações finais tratam dos limites e novas perspectivas heurísticas dessa teoria.
Reciprocidade; Teoria da reciprocidade; Sociologia do desenvolvimento
At a time when the teaching of sociology of development is fading from European universities, and to a lesser extent in Latin America, appears a renewal of the theory of reciprocity in this field of social economy, coming from anthropology and sociological economics. The article presents the contribution of the theory of reciprocity to a socio-anthropology of development. It is divided into two parts. The first briefly presents the forerunners and foundations of the theory of reciprocity. The second illustrates, from some contemporary examples, applying this theory to socio-anthropology of rural development. The conclusion presents the limits and some new heuristic perspectives of this theory.
Reciprocity; Theory of Reciprocity; Sociology of development
DOSSIÊ
Teoria da reciprocidade e sócio-antropologiado desenvolvimento
Theory of reciprocity and social anthropology of development
Eric Sabourin
Antropólogo e sociólogo, pesquisador titular no CIRAD (Centro de cooperação internacional em pesquisa agronômica para o desenvolvimento) Montpellier, França, dep. Meio Ambiente e Sociedade, Unidade de Pesquisa "Políticas e mercados"; Pesquisador associado ao departamento de sociologia e ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Autor do livro Camponeses do Brasil entre reciprocidade e troca mercantil (2009, Garamond)
RESUMO
No momento em que o ensino da sociologia do desenvolvimento está declinando nas universidades européias e, em menor grau, nas latino-americanas, afirma-se uma renovação da teoria da reciprocidade, precisamente nesse campo e no da economia social, a partir da antropologia e da sociologia econômica. O artigo trata, portanto, da contribuição da teoria da reciprocidade para a sócioantropologia do desenvolvimento. Divide-se em duas partes. A primeira apresenta brevemente os precursores e os fundamentos da teoria da reciprocidade. A segunda ilustra, a partir de alguns exemplos contemporâneos, a aplicação dessa teoria à sócio-antropologia do desenvolvimento rural. As considerações finais tratam dos limites e novas perspectivas heurísticas dessa teoria.
Palavras-chave: Reciprocidade. Teoria da reciprocidade. Sociologia do desenvolvimento.
ABSTRACT
At a time when the teaching of sociology of development is fading from European universities, and to a lesser extent in Latin America, appears a renewal of the theory of reciprocity in this field of social economy, coming from anthropology and sociological economics. The article presents the contribution of the theory of reciprocity to a socio-anthropology of development. It is divided into two parts. The first briefly presents the forerunners and foundations of the theory of reciprocity. The second illustrates, from some contemporary examples, applying this theory to socio-anthropology of rural development. The conclusion presents the limits and some new heuristic perspectives of this theory.
Keywords: Reciprocity. Theory of Reciprocity. Sociology of development.
Introdução
No momento em que o conceito de desenvolvimento vem sendo questionado, está se afirmando uma renovação do principio de reciprocidade e da sua teorização no campo da economia social e da sócio-antropologia do desenvolvimento.
O termo desenvolvimento, apesar de inumeráveis qualificativos, deixou de ser um conceito convincente e inovador. Associada, cada vez mais, à noção de crescimento, a idéia de desenvolvimento vem sendo reduzida ao principio da troca: troca de bens para a sua acumulação ou troca de serviços para satisfazer interesses privados. Portanto, como resposta a esse prisma redutor, do pensamento econômico dominante, as reações, no campo da sociologia, vieram de autores que se posicionaram contra o desenvolvimento (Latouche, 1986). Uns anunciaram o fim do desenvolvimento (Partant, 1996; Parfitt, 2002), o pós-desenvolvimento (Sachs e Esteva, 1996; Escobar, 1997) ou, mais recentemente, a era do decrescimento econômico (Latouche, 2007). Outros, como Rist (1996), denunciaram o desenvolvimento como sendo a expressão, e a imposição para o resto do mundo, de uma crença do Ocidente. Tais reações são relativamente lógicas num mundo ocidental seduzido pela ecologia e onde, precisamente, a ecologia política carece de teoria alternativa à economia da troca.
A teoria da reciprocidade surge, portanto, num período em que pode contribuir para preencher uma carência, um vazio, das teorias do desenvolvimento. Ela não anuncia o fim da era do desenvolvimento pela troca ou pelo mercado e, portanto, o fim do crescimento econômico. Antes, procura outra leitura das relações econômicas e sociais que aquela por meio unicamente do principio da troca e, portanto, abre propostas alternativas de economia humana em matéria de desenvolvimento, a partir de outra lógica social e econômica.
Este artigo se divide em duas partes. A primeira apresenta brevemente os precursores e os fundamentos da teoria da reciprocidade. A segunda ilustra, a partir de alguns exemplos contemporâneos, a aplicação dessa teoria à sócio-antropologia do desenvolvimento. As considerações finais tratam dos limites e novas perspectivas heurísticas dessa teoria.
Do principio de reciprocidade para a teoria da reciprocidade
Na base de toda teoria da reciprocidade, encontramos os autores pioneiros que permitiram reconhecer a validade e a universalidade das relações de reciprocidade nas civilizações e na história. Eles evidenciaram, também, o caráter estruturante desse princípio de reciprocidade, inclusive nas nossas sociedades contemporâneas. Refiro-me, em primeiro lugar, aos trabalhos fundadores de Simmel, Mauss, Lévi-Strauss, Polanyi e Gouldner. Mobilizarei também as interpretações de Scubla (1985), Caillé (2001), Anspach (2001), Papilloud (2002, 2003), Godbout (2000, 2007) e, em particular, as de Temple e Chabal (1995) que contribuíram para a renovação da teoria da reciprocidade.
Os pais da reciprocidade na antropologia
Mauss (1924) é mais conhecido por ter redescoberto a dádiva nas sociedades primitivas, do que por sua contribuição à noção de reciprocidade. Paradoxalmente, procurando colocar a dádiva na origem da troca (convém se situar dentro do contexto dos anos 20), ele mostra que a dádiva é oposta à troca mercantil. Mas demonstra, igualmente, através da formulação da tríplice obrigação - dar, receber e retribuir -, que é a reciprocidade que está no início dos ciclos de dádiva. No final da sua obra, Mauss (1931, 1947) engajou-se na análise teórica da reciprocidade e de suas diferentes expressões. Ele se deu conta da origem natural das estruturas de reciprocidade nas condições do parentesco original, em particular em termos de exogamia e de filiação, e estabeleceu a existência de formas de reciprocidade diretas (estruturas binárias) e indiretas (estruturas ternárias):
Lévi-Strauss, na sua introdução à obra de Mauss, em prefácio de Sociologia e Antropologia (1950, p. IX-LII), criticará Mauss por não ter percebido que é a troca, e não um sistema qualquer de crenças indígenas (o espírito da dádiva ou o mana), que constitui a estrutura subjacente às três obrigações de "dar, receber e retribuir". Na verdade, Lévi-Strauss critica Mauss por não ter postulado a troca no centro da função simbólica. Mas, associando aliança e parentesco à tripla obrigação - dar, receber e retribuir -, Mauss traçou um programa que Lévi-Strauss retoma nas Estruturas elementares do parentesco (1949), ordenando as relações de parentesco ao princípio da reciprocidade. Lévi-Strauss parte do postulado da troca como universal. Ele pergunta: como a reciprocidade, dando lugar à troca, pode ter uma ligação com o inconsciente estrutural? Para ele, a troca é uma totalidade e busca a realidade subjacente. Lévi-Strauss retoma a descoberta de Mauss: a reciprocidade original de base corresponde ao casamento exogâmico, que ele interpreta, então, como uma possibilidade ou uma garantia ao estabelecimento de relações de troca entre os homens. Lévi-Strauss reconhece, portanto, a reciprocidade como estrutura elementar, pelo menos do parentesco, mas para submetê-la a uma estrutura generalizada da troca, inclusive sob suas formas simbólicas.
Para os sociólogos: uma norma social universal
Simmel foi o primeiro sociólogo a tratar da importância da reciprocidade como fundamento das relações sociais. Já em 1896-98, ele considera a reciprocidade das prestações como essencial à coesão social, inclusive nas sociedades contemporâneas. O conceito chave de Simmel, a Wechselwirkung, traduzível pela expressão efeito(s) recíproco(s), evoca os efeitos de reciprocidade ativos no centro de todos os processos relacionais (Papilloud, 2002).
Gouldner, em The norm of reciprocity (1960), analisa a reciprocidade enquanto norma moral. Trata-se, para ele, de uma norma moral, generalizada e universal, essencial à manutenção de estruturas sociais e de sistemas sociais estáveis. Ele critica a abordagem funcionalista de Merton e Parsons, bem como a visão utilitarista que reduz a reciprocidade a um jogo com ganhos mútuos. Gouldner vai além da definição dualista da reciprocidade de Malinowski (1923), que supõe equivalências simétricas, identificando formas de reciprocidade assimétricas ou heteromorfas, assim como a variação das formas de reciprocidade segundo os estatutos dos indivíduos. Porém, ele não chegou a examinar quais são as estruturas de base constituídas pelas práticas de reciprocidade (em termos de aliança, de parentesco ou de prestações econômicas), suas condições e seus efeitos, tarefa que ele evocou como o dever do sociólogo.
A contribuição de Karl Polanyi no campo da economia
Polanyi identificou a reciprocidade e a redistribuição como categorias econômicas específicas e diferentes da troca. Propôs, em 1957, uma tipologia dos sistemas econômicos considerando diferentes modos de institucionalização do processo econômico na sociedade. Ele identificou três formas de integração social (Polanyi, 1957, p. 245): a reciprocidade definida como os movimentos entre pontos de correlação de grupos sociais simétricos; a redistribuição correspondendo aos movimentos de apropriação em direção a um centro, e, em seguida, desse em direção ao exterior; a troca assimilada aos movimentos de vai-e-vem tais como a passagem de 'uma mão para outra' dos objetos em um sistema mercantil.
Cada um desses diferentes modelos de integração social supõe suportes institucionais específicos, podendo, ainda, apoiar-se mutuamente de maneira articulada:
- a reciprocidade supõe uma estrutura de grupos de parentesco simetricamente ordenados.
- a redistribuição se apóia na existência de um centro de poder dentro do grupo.
- a troca apóia-se na existência de um sistema de mercado concorrencial, criador de preço.
Polanyi distinguiu a permuta (troca operacional) e a troca a preço pré-fixado (troca decisiva), que visam ganhos repartidos, da troca a preço negociado (troca integrativa), que supõe a busca do lucro.
Para Polanyi (1975, p. 52-56), o mercado de troca significa o mecanismo da oferta e da procura, criador de preço, e não constitui um fenômeno universal. O comércio, na Mesopotâmia antiga e durante mais de dois milênios, era um comércio sem mercado (no sentido de Polanyi), praticado por uma casta específica de comerciantes. O comerciante ganhava uma comissão, mas não podia produzir lucro por especulação. Os preços eram fixados e garantidos pelas autoridades. Os "portos de comércio", neutros e invioláveis, autorizavam uma circulação das mercadorias em grande escala (Revere, 1975, p. 82-92).
Essas três formas de integração social não são nem lineares, nem exclusivas, e não correspondem a estágios de desenvolvimento Elas coexistem em quase todos os sistemas econômicos, embora uma entre elas possa ser predominante em uma determinada sociedade.
A teoria da reciprocidade
Quatro elementos teóricos
O primeiro elemento próprio à teoria da reciprocidade envolve a definição do conceito do ponto de vista socio-antropológico. O princípio de reciprocidade não se limita a uma relação de dádiva/contra-dádiva entre pares ou grupos sociais simétricos. O reducionismo dessa definição, que por muito tempo prevaleceu na antropologia, conduz a uma confusão entre troca simétrica e reciprocidade. Esse impasse persistirá, enquanto a reciprocidade for interpretada com a lógica binária que convém à troca. A troca pode se reduzir, no limite, a uma permuta de objetos. Temple e Chabal (1995) propõem recorrer à lógica ternária de Lupasco (1951), que faz aparecer um Terceiro incluído na relação de reciprocidade. Permite, assim, interpretá-lo como o ser dessa relação e dar conta dela como da estrutura originária da intersubjetividade, irredutível à troca de bens, que libera do laço social ou da dívida.
Do ponto de vista econômico, a reciprocidade constitui, portanto, não somente uma categoria econômica diferente da troca mercantil, mas um princípio econômico oposto ao da troca ou mesmo antagonista da troca.
O segundo elemento da teoria é que a reciprocidade pode assumir várias formas. A antropologia consagrou apenas a reciprocidade das dádivas: oferendas, partilhas, prestações totais, potlatch que constituem o que Temple e Chabal (1995) designam pela forma positiva da reciprocidade. Mas existe, também, uma forma de reciprocidade negativa: a dos ciclos de vingança. Diferentemente da troca, cujo desenvolvimento é associado à lógica da concorrência e do acúmulo pelo lucro, a lógica da vingança está ligada a uma dialética da honra como a da dádiva está ligada a uma dialética do prestígio. Contudo, a sede de prestígio (fonte de autoridade e, portanto, de poder, nas sociedades de reciprocidade) motiva o crescimento da dádiva mais eu dou, mais eu sou. Entre as expressões extremas das formas negativas e positivas da reciprocidade, as sociedades estabeleceram, então, diversas formas intermediárias. Trata-se, em particular, de controlar o crescimento da dádiva: a ostentação, o potlatch, a dádiva agonística que podem destruir e submeter o outro mediante o prestígio.
Em terceiro lugar, as relações de reciprocidade podem ser analisadas em termos de estruturas, no sentido antropológico do termo. Assim, se distinguem segundo algumas estruturas elementares, tais como propostas inicialmente por Mauss (1931), Lévi-Strauss (1949), Scubla (1985) e Temple (1998). As relações de reciprocidade estruturadas sob uma forma simétrica são aquelas que geram valores afetivos e éticos, como o havia identificado Aristóteles (1994). A relação de reciprocidade em uma estrutura bilateral simétrica gera um sentimento de amizade; a estrutura de divisão simétrica dos bens dentro de um grupo gera a justiça. Assim, outros tipos de relação, em outras estruturas, podem produzir outros valores específicos.
O quarto elemento da teoria remete aos diferentes níveis do princípio de reciprocidade e aos modos que lhe são específicos. Existem três planos ou níveis de reciprocidade: o real, o simbólico (a linguagem) e o imaginário (as representações).
Assim, existem várias estruturas fundamentais de reciprocidade que geram sentimentos diferentes e, portanto, valores diferentes. Existem várias formas de reciprocidade, que lhe conferem imaginários diferentes. O sentimento do ser originário pode ser capturado no imaginário do prestígio ou no da vingança, dando lugar a formas de reciprocidade positivas, negativas e simétricas. Estruturas, níveis e formas se articulam para formar sistemas de reciprocidade.
A economia humana
Para Temple (1997), o apagar histórico da reciprocidade frente ao desenvolvimento do individualismo e do liberalismo, provém da passagem de uma cultura original, onde a reciprocidade era dominante ou equivalente às lógicas de troca, para uma verdadeira "privatização da dádiva". O valor da responsabilidade teria se apagado para dar lugar a relações de troca e de interesse, assim como para uma relação de propriedade estrita. Trata-se, aí, das conseqüências do quiproquó histórico entre troca e reciprocidade (Temple, 1992).
Para sair desse quiproquó da privatização da reciprocidade, Temple (1997) propõe uma opção política para uma economia mais humana. Certamente, o acúmulo dos bens e dos meios de produção é fonte de poder. No entanto, é preciso produzir para acumular. Então, é possível considerar também o motor da produção, que consistiria em produzir para dar ou para assegurar as necessidades elementares dos outros ou da coletividade.
A lógica da reciprocidade pode constituir um motor da produção - e de uma produção de excedentes - tão poderoso como aquele da lógica da troca para a acumulação do lucro. Contudo, as relações de reciprocidade geram valores humanos que garantem modos de regulação capazes de estabelecer justiça e contra-poderes, podendo limitar os excessos, assim como foram propostas modalidades de regulação dos excessos do livre mercado. A diferença é que, na hipótese da troca, esses valores humanos ideais são supostamente constituídos entre os homens (teoria da justiça de Rawls). Na perspectiva da teoria da reciprocidade, esses valores não preexistem entre os indivíduos; eles devem ser constituídos, precisamente, por meio de relações estruturadas de reciprocidade simétrica.
De fato, a amizade, a justiça, a responsabilidade exigem, para nascerem, as melhores condições de existência para o outro, e, consequentemente, uma economia que qualificaremos de humana para enfrentar a economia "natural" dos teóricos da economia liberal (Temple, 1997, p. 107).
Essa alternativa econômica necessita a análise das diversas matrizes de reciprocidade, assim como dos valores que elas produzem. É o papel das instituições políticas conciliarem essas matrizes no âmbito do melhor sistema possível (Temple, 1998).
De fato, sem estruturas de reciprocidade ternária, não há responsabilidade dos homens em relação ao bem comum, ao meio-ambiente ou perante as futuras gerações. Contudo, ser responsável, de acordo com Temple, significa saber que dividir está na base de toda e qualquer comunidade.
A perda de importância da reciprocidade no plano da justiça (por causa dos desequilíbrios econômicos) pode ter passado despercebida, graças ao paliativo da invenção do contrato social e da democracia política. Esse contrato social pôde operar na sociedade ocidental (embora cada vez menos), como uma espécie de corretivo necessário aos vieses e defeitos da troca. Mas ele supõe que os indivíduos estejam dotados de um ideal predestinado, o que a sociologia, a antropologia e a economia contemporânea não conseguiram provar.
Para essas disciplinas, como no trabalho dos autores que se interessaram pela noção de justiça (Rawls, 1971), a noção de reciprocidade permitiria (aliás permite) re-atualizar o problema da conciliação entre liberdade individual e justiça social. Pois, conforme Temple (2003), um modelo de sociedade que ignorasse o princípio de reciprocidade estaria se privando da compreensão da relação do individuo com a comunidade.
Aplicação à análise do desenvolvimento contemporâneo
As atividades econômicas não são motivadas apenas pelo interesse material individual ou corporativista. Muitas delas incluem também a preocupação com a satisfação das necessidades dos outros, ou com a manutenção do laço social. Nas sociedades rurais, trata-se da permanência de diversas formas de ajuda mútua agrícola e de associativismo ou das formas de manejo compartilhado de recursos naturais (águas, pastagens, terras, florestas, reservas extrativistas ou biodiversidade) e de bens em propriedade comum (infra-estruturas ou equipamentos coletivos). Nos dispositivos partilhados de acesso, produção ou manejo de recursos comuns, não é possível dissociar a satisfação de necessidades econômicas da prioridade dada ao laço social, à relação humana de solidariedade e de preocupação com a satisfação das necessidades do conjunto da comunidade.
As relações mobilizadas em tais estruturas de reciprocidade geram valores materiais ou instrumentais imateriais (conhecimentos, informações, saberes), mas produzem também valores afetivos (amizade, proximidade) e valores éticos como a confiança, a equidade, a justiça ou a responsabilidade. A distinção das estruturas elementares de reciprocidade (a partir da noção do Terceiro incluído) gerando sentimentos de si mesmo ou sentimentos compartilhados que dão lugar à produção de valores éticos ou espirituais, constitui o principal aporte inovador da teoria da reciprocidade.
A produção de valor e as estruturas de reciprocidade
Temple (1998) sistematizou as estruturas elementares de reciprocidade identificando os valores humanos que elas ajudam a produzir ou a reproduzir. Ele distingue estruturas de reciprocidade binária e estruturas de reciprocidade ternária. As duas principais estruturas binárias são o cara a cara e o compartilhamento.
A organização da produção e da reprodução econômica e social nas sociedades rurais contemporâneas oferece exemplos bem característicos e vivos dessas relações de reciprocidade estruturadas. A relação de cara a cara (face to face) é típica da ajuda mútua entre as famílias e os agricultores e produz a amizade, podendo se prolongar mediante alianças mais duradoras como o compadrio ou o casamento dos filhos.
A estrutura de compartilhamento é particularmente verificada no caso do manejo dos bens em propriedade comum: gestão de recursos naturais (terras, pastagens, floresta, água) ou de equipamentos coletivos (sistemas de irrigação, equipamentos ou maquinas agrícolas.
As estruturas ternárias envolvem, pelo menos, três partes. A reciprocidade ternária pode ser unilateral: é o caso da transmissão entre gerações transmissão de saberes (educação, iniciação, aprendizagem) ou de patrimônio (dotações de terras ou animais, enxoval, heranças). Nessa relação entre pais e filhos, o valor produzido é aquele da responsabilidade. Pode ser verificado no ato da construção da casa de um jovem casal ou nas regras assegurando a preservação dos recursos naturais para as próximas gerações.
Quando a reciprocidade ternária é bilateral, as prestações circulam nos dois sentidos. Aquele que se encontra entre dois doadores deve reproduzir a dádiva de um e aquela do outro, de maneira apropriada e equilibrada; tal preocupação é aquela da justiça (Temple, 1998, p. 241). Pois a dialética da dádiva leva a dar o máximo possível para comprometer o outro, para produzir um laço social. Mas a lógica da reciprocidade impõe um meio termo justo, aquele de não dar demais, para permitir ao outro retribuir sem perder o prestígio.
Mostrei, a partir dos testemunhos dos agricultores que a prática de uso compartilhado de um recurso gera também sentimentos (e valores éticos) de confiança e de equidade entre os usuários (Sabourin, 2009).
A forma de reciprocidade que gera valores éticos é a reciprocidade simétrica (ou equilibrada), mas os valores podem ser produzidos também por meio de relações de reciprocidade desigual. É, por exemplo, o caso da ajuda agrícola nas terras do senhor ou do chefe (Chrétien, 1974). Os valores ficam, então, presos ao imaginário que traduz essa desigualdade: a realeza (o príncipe, os nobres e os servos ou escravos), a divindade (as religiões e os seus sacerdotes…) ou o Estado com a sua burocracia e a sua tecnocracia.
Temple (2003) lembra, a propósito da reciprocidade assimétrica, que:
Se o imaginário se impõe ao valor produzido pela reciprocidade, leva cada um a se prevalecer do domínio que pode exercer sobre a própria relação de reciprocidade e, principalmente, sobre os meios de produção que ela envolve. É o que aconteceu entre os donos da terra e os artesãos, e que inaugurou a hierarquia das castas?
Este tipo de relação se estabeleceu historicamente na America Latina entre colonos e índios, senhores e escravos, patrões e peões, proprietários e meeiros ou moradores.
Ajuda mútua e reciprocidade
A ajuda mútua é reconhecida como uma forma de cooperação, de organização do trabalho relevando da reciprocidade ou da solidariedade na produção (Condominas, 1961, 1974; Mayer, 2002). Alberti e Mayer (1974) têm demonstrado, a partir de uma tipologia das modalidades de ajuda mútua agrícola nos Andes peruanos, a diferença de natureza entre relações de troca e de reciprocidade. Na ajuda mútua de reciprocidade, horas e dias não são contabilizados; a importância da relação humana prevalece sobre o valor da prestação material, mesmo se, até por necessidade, a devolução da prestação é esperada.
De fato, a relação de ajuda mútua coloca em jogo laços sociais, sentimentais e simbólicos. Assim, ela se diferencia da troca (troca simples ou troca mercantil mediante trabalho assalariado), na medida em que não implica uma retribuição equivalente, imediata ou diferida, que liberaria o beneficiário da sua dívida. Certamente, existe uma espera de retorno da ajuda, ainda mais, porque a pressão social, os valores de honra e de prestígio concorrem para isto, porém sem que haja nada de contratual, nem obrigatório.
Na ajuda mútua recíproca simétrica ou assimétrica, mede-se o quanto a relação social ou afetiva entre os sujeitos é mais importante que a natureza material da prestação de trabalho, mesmo se essa é necessária ou até indispensável. Assim, a ajuda mútua agrícola é uma prestação econômica que foge do quadro utilitarista da troca. Ela não pode ser reduzida à permuta de diárias de trabalho ou à troca mercantil de diárias pagas. No entanto, a ajuda mútua de reciprocidade manteve-se, num mundo rural cada vez mais dominado pela livre troca, precisamente porque, além das prestações materiais, ela assegura uma produção de valores sociais e simbólicos que são também essenciais para as comunidades rurais ou urbanas.
As relações de reciprocidade nos Andes não morrerão frente às forças de um mercado de troca impessoal, pois elas oferecem vantagens, um refúgio em relação à exploração dos mercados de troca e, em certos casos, porque elas permitem a produção e a circulação de mercadorias abaixo de seu real valor (Mayer, 2002, p. 137, tradução nossa).
No Poitou (oeste da França), a ajuda mútua bilateral entre duas famílias é chamada de coubiage. Ela era indispensável entre os camponeses para a safra do trigo e a fenação. A partir dos anos 20, com a introdução das primeiras máquinas debulhadoras a vapor, gerenciadas de forma coletiva ou associativa, a safra do trigo e, principalmente, as fenações exigiram uma forma de ajuda ampliada para com o conjunto das famílias da aldeia. As "debulhadoras" tornaram-se uma das principais oportunidades de ajuda mútua e de festa, no fim da era camponesa desta região.
Foram os progressos técnicos (mecanização e motorização), assim como a modernização institucional (cooperativas) que levaram à ampliação do círculo de ajuda e, conseqüentemente, à redistribuição compartilhada do trabalho entre as famílias. Passou-se de uma estrutura simétrica binária bilateral, o coubiage entre duas famílias, para uma estrutura binária ampliada ao conjunto do grupo, uma estrutura de partilha desenvolvida em torno de um equipamento comum (a debulhadora), através de uma cooperativa (CUMA Cooperativa de Uso de Material Agrícola).
Na medida em que esses grupos coletivos começaram a sair do quadro de uma só aldeia para participar dos trabalhos de debulha em outros municípios, houve uma evolução e, ao mesmo tempo, uma articulação em direção a uma estrutura ternária bilateral. Todavia, nos anos 70, esse sistema desapareceu com a arrumação fundiária que permitiu a ampliação das parcelas e o uso de colheitadeira-debulhadora automotora.
Manejo compartilhado dos bens ou recursos comuns
Nos dispositivos de gestão partilhada dos recursos naturais, as relações de compartilhamento contribuem para produzir sentimentos de pertencimento, mas também de confiança e respeito. Trata-se de valores produzidos pela relação de compartilhamento, que permitem, inclusive em condições de renda precária, conservar e reproduzir esses bens comuns, ao contrário do que afirmam as hipóteses utilitaristas de Olson (1966) ou de Hardin (1968). Essa abordagem prolonga as teses empíricas de Ostrom (1990, 1998) sobre a governança dos bens comuns pelas comunidades e organizações camponesas.
Para Ostrom (1998), não há cooperação sem reciprocidade, ou seja, sem retorno ou sem compartilhamento por parte dos usuários. Ela identifica e descreve certas estruturas de reciprocidade recorrentes e lhes confere uma importância especial, a ponto de fazer depender a ação coletiva e as políticas públicas da proporção de atores "em reciprocidade" (Ostrom, 2003). Ostrom (1998) constata que a aprendizagem das relações de reciprocidade e, conseqüentemente, a sua prática cria um círculo virtuoso (reciprocidade/confiança/ reputação).
A gestão dos recursos comuns repousa sobre uma estrutura de reciprocidade binária coletiva específica, o compartilhamento. Os valores afetivos e éticos gerados pelas relações de partilha correspondem a um sentimento de pertencimento e de confiança. O sentimento de pertencer a um todo é muito forte e aparece de forma espontânea na maioria dos depoimentos de camponeses, associado a uma noção de unidade, de solidariedade, de força e de vida do ser coletivo ou comunitário.
Chabal (2005, p. 5) insistiu no fato de que não é tanto o objeto da partilha que importa, mas as ações dos sujeitos. É o problema das infraestruturas hídricas ou dos equipamentos "recebidos" do exterior. Não se divide da mesma forma, o que foi construído e mantido em conjunto entre pares e o que provém de um centro de redistribuição exterior ao grupo. Na estrutura de compartilhamento, o fazer em conjunto, assim como o fato de depender de uma mesma fonte de recursos limitada, cria um sentimento de grupo.
Transmissão ou partilha dos saberes e estruturas de reciprocidade
As situações de transmissão dos saberes e de formação dos adultos oferecem exemplos em que podem se constituir relações de reciprocidade binárias ou ternárias, unilaterais ou bilaterais. Na França, Héber-Suffrin (1998) e Eneau (2005) aplicaram a teoria da reciprocidade nesse quadro.
Para Héber-Suffrin (1998), na experiência da associação Movimento de trocas recíprocas de saberes, o reconhecimento mútuo pela troca de saberes permite construir um espaço social que tem sentido e no qual tudo se torna possível. Permite, graças à relação de partilha, construir uma força do fazer e de abertura ao outro, de ampliação da sua rede social, para procurar em comum diferentes tipos de respostas apropriadas e apropriáveis pelos parceiros dessas relações.
Pesquisas conduzidas no Brasil aplicaram a teoria da reciprocidade em diversas situações de aprendizagem: formação de adultos em meio camponês (Coudel, 2005), construção de inovação no contexto da reforma agrária (Lenne, 2006), incubadoras de empreendimentos econômicos solidários (Kirsch, 2007).
Esses estudos permitiram identificar estruturas binárias simétricas e assimétricas criadas no âmbito de relações entre formadores e aprendizes. Evidenciaram, a partir de entrevistas dos atores envolvidos, a geração de diferentes sentimentos e valores correspondentes: reconhecimento, identificação e amizade, nas estruturas simétricas; submissão, respeito e dependência, nas estruturas assimétricas.
No caso das formações de adultos ou de jovens pertencentes a categorias oprimidas ou consideradas como subalternas pelo resto da sociedade, a consciência de si mesmo surge da construção pedagógica de uma relação simétrica. Recorrendo a aptidões espirituais, artísticas e manuais de todos ou à valorização dos saberes locais, os pedagogos podem criar estruturas de reciprocidade simétrica: são situações comuns de aprendizagens ou situações de aprendizagem mútua, que estabelecem uma paridade entre formadores e formados (Coudel e Sabourin, 2005; Sabourin 2009).
O reconhecimento da reciprocidade nos sistemas mistos
As articulações entre troca e reciprocidade
A noção de sistemas mistos aplica-se às situações onde relações de reciprocidade e de troca coexistem, o que corresponde à maioria dos casos nas sociedades contemporâneas, inclusive no meio rural dos países do Sul. Essa coexistência pode existir de maneira paralela e separada; ou mediante tensões, por causa do antagonismo de sistemas. Pode se dar, também, de forma complementar, quando existe uma interface de sistema que permite articular as práticas de reciprocidade e as práticas de troca.
Portanto, os sistemas mistos podem se diferenciar de acordo com as modalidades de articulação entre lógicas de troca e lógicas de reciprocidade: i) justaposição de mundos paralelos, ii) complementaridade reversível; iii) contradição com dois tipos de conseqüência: paralisia mútua das duas lógicas, ou domínio de uma sobre a outra.
É essencial não entrar em julgamentos de valor e explicitar as diferenças de natureza entre os dois sistemas, mas também as diversas configurações intermediárias que podem existir entre a polaridade da troca e a da reciprocidade.
São representações teóricas e, antes de tudo, ferramentas de análise. É evidente que não vamos perguntar aos agricultores ou a outros atores sociais de quais estruturas elementares de reciprocidade eles participam.
A noção de sistemas mistos é explicativa e operacional para dar conta de uma pluralidade de lógicas econômicas. Considero-a mais pertinente que a explicação pela hibridação de sistemas econômicos (Laville, 2000). A idéia de hibridação considera apenas a hipótese da complementaridade entre sistemas (reciprocidade, troca e redistribuição), como se ela fosse natural, enquanto os fatos mostram também situações de desenvolvimento paralelo (justaposição) bem como, de antagonismo. Concretamente, as maiores dificuldades das comunidades e das organizações camponesas se situam na interface entre o mundo da troca e aquele da reciprocidade.
Exemplo de sistemas mistos: os mercados de proximidade
Em matéria de comercialização dos produtos agrícolas, os camponeses ou suas organizações implementaram vários tipos de "interfaces", permitindo uma coabitação, uma articulação entre práticas de reciprocidade e práticas de troca.
A primeira interface é a da venda direta, que permite o encontro entre produtor e consumidor, a exemplo da venda na fazenda e nos quiosques de beira de estrada, na Nova Caledônia, ou em mercados de proximidade, como os mercados de produtores da França, da África ou do Brasil. Existe uma relação de troca, mas o contato direto entre produtor e comprador permite redobrar uma relação de reciprocidade binária que gera valores afetivos: sentimento de amizade, de reconhecimento mútuo ou valores étnicos de fidelidade e de respeito.
É o caso, também, das redes curtas controladas socialmente por agrupamentos de produtores ou das cooperativas de consumidores1 1 Ou pelos dois juntos, como é o caso no Brasil, na região de Porto Alegre, entre cooperativas do MST e cooperativas de consumidores. . Po-demos citar o caso dos mercados e das cestas camponesas na França, ou das associações mistas entre agricultores e consumidores (AMAP). Tais situações de contato direto dão lugar a relações humanas: conversações em torno do produto, dos procedimentos, das receitas. Geram, assim, sentimentos e valores de amizade, de fidelidade e de confiança, entre produtores e consumidores.
Quando a relação direta pelo encontro físico não é possível, existe a intermediação qualificada e interpessoal, da corretagem. O corretor per-mite estabelecer uma relação de reciprocidade ternária pelo interconhecimento e a informação sobre a qualidade do produto e sobre o produtor. Essa estrutura produz a confiança, a responsabilidade e a reputação (tanto do produtor como do corretor) que é fonte de prestígio.
A interface de sistema
As interfaces de sistemas constituem o que Ploeg (2008) chama de mecanismos de conversão: a articulação reciprocidade/troca permite uma conversão de lógicas, de valores.
Mostrei o interesse do reconhecimento e do apoio público às estruturas e dispositivos locais, que asseguram a gestão ou a produção de bens comuns ou públicos com base em relações de reciprocidade. É o caso do manejo de terras e equipamentos coletivos, e dos bens públicos locais: água, florestas, biodiversidade, informação, inovação, educação, saberes locais (Sabourin, 2003; 2008; 2009).
Tais instrumentos oferecem uma alternativa em termos de estratégia de desenvolvimento rural sustentável. Eles são particularmente adequados para as políticas, valorizando a multifuncionalidade da agricultura e dos espaços rurais, os serviços ambientais e os atributos específicos dos territórios.
No âmbito internacional, tais políticas de interface entre sistemas de troca e de reciprocidade correspondem ao espírito dos acordos comerciais preferenciais ou compensatórios, assim como aos programas de comércio justo (Sabourin, 2009b).
A qualificação e a certificação dos produtos é um exemplo de dispositivo coletivo que pode criar uma fronteira de sistema ou uma territorialidade de reciprocidade, protegendo certos produtos locais ou regionais da concorrência da troca capitalista (Temple, 2003).
Uma das dificuldades das políticas de economia solidária, ligada a suas bases teóricas, é precisamente a questão da articulação entre o empreendimento econômico solidário, cuja regulação é dominada pela lógica de reciprocidade, e o mercado capitalista, regulado pela lógica da troca (concorrência para a acumulação privada).
Quanto às políticas ambientais e de desenvolvimento sustentável, um tema que pouco explorei, e que deveria motivar convergências e comparações entre situações do Norte e do Sul, é aquele da ecologia política e da gestão dos recursos.
Os trabalhos comparativos sobre a multifuncionalidade da agricultura e dos territórios rurais constituem, entre outros, um bom exemplo da contribuição da teoria da reciprocidade para tratar da produção do bem comum, seja através dos bens públicos ou dos recursos comuns (Sabourin, 2010)
O fato de que os movimentos de ecologia política careçam de teoria deveria incitar seus pensadores a fundar suas propostas - não capitalista, anti-capitalista ou pós-capitalista - sobre alternativas teóricas apropriadas.
Considerações finais
Limites da proposta
A teoria da reciprocidade não nega a existência do princípio de troca, do ponto de vista econômico ou social, ao contrário. Tampouco está propondo uma substituição sistemática das relações de troca por relações de reciprocidade. Apenas chama para uma dupla leitura, pois cada uma dessas lógicas -troca e reciprocidade -podendo ser averiguada nos fatos, pode prevalecer-se de vantagens respectivas e, principalmente, de conquistas, dentre as quais, algumas são, sem dúvida, irreversíveis. A proposta não consiste em negá-las ou, ainda menos, em pretender voltar às origens.
Portanto, em matéria de desenvolvimento, não se trata de defender a exclusividade de uma ou de outra lógica, mas de realizar uma dupla referência. Assim como o indicou Temple (1997, p.107), o reconhecimento científico e público da economia de reciprocidade teria o mérito de delimitar uma articulação ou uma interface de sistema, entre sistemas de troca e sistemas de reciprocidade. Tal reconhecimento permitiria um debate entre os partidários de uma ou outra lógica, para tratar da natureza das organizações, da delegação do poder, dos princípios de gestão dos bens comuns ou públicos e, de forma geral, dos valores que devem orientar ou fundar os projetos de desenvolvimento econômico e social.
Sem interface, o quiproquó entre a natureza das lógicas de reciprocidade e de troca funciona para o benefício exclusivo da troca para a acumulação. Enquanto a economia política só reconhecer uma única lógica econômica, a da livre-troca, o pensamento único reinará, mesmo que escondido ou disfarçado atrás de várias escolas ou teorias.
A alienação da reciprocidade
Deve-se evitar uma idealização das práticas e sistemas de reciprocidade. Assim como a troca capitalista, eles conhecem alienações perigosas. No entanto, essas alienações são de natureza diferente daquela da economia de troca (a exploração capitalista). Por outra parte, tais práticas e sistemas foram pouco estudados e, então, criticados, salvo raras exceções (Geffray, 2007). Em primeiro lugar, é necessário estabelecer a crítica dessas formas de alienação. Os perigos ligados à centralização da redistribuição ou à assimetria da reciprocidade (dádiva agonística, paternalismo, clientelismo, etc.) são conhecidos e objetos de estudos, como no caso do Brasil (Léna et al, 1996). Portanto, ganhariam ao serem sistematizados e analisados a partir da perspectiva da teoria da reciprocidade (Sabourin, 2008c).
De fato, a crítica da exploração capitalista é inoperante em face desse tipo de alienação específica dos sistemas de reciprocidade ou dos sistemas mistos. Essas situações são particularmente graves nos países do sul, onde coexistem os dois sistemas. Pois, na falta de crítica adaptada, entra-se no círculo vicioso da conjunção das alienações dos dois sistemas: exploração capitalista e opressão paternalista, como identificado no Brasil (Sabourin, 2009a).
Outras formas de alienação dos sistemas de reciprocidade, ligadas à fixação dos estatutos (classes e castas) ou ao fechamento da reciprocidade dentro de imaginários totalitários (religiosos, ideológicos ou racistas), ganhariam também, ao serem reconsideradas sob o ângulo da teoria da reciprocidade.
Um potencial de contribuição importante para a análise das políticas públicas e da ação do Estado reside na questão da identificação das formas de alienação específicas às lógicas de reciprocidade. É um aspecto que não está sendo tratado pela teoria da dádiva, do mesmo modo que o tema da reciprocidade de vingança.
A dupla leitura dos princípios econômicos (reciprocidade e troca ou dádiva e mercado) deve ser complementada por uma dupla leitura das suas formas de alienação. Caso contrário, não existe possibilidade de crítica e de correção.
O desenvolvimento do clientelismo e do populismo na América Latina, e do neo-patrimonialismo na África, precisa dessa dupla análise para sair do impasse da critica estéril pela razão única ocidental. Tratase, também, de evitar os vieses da acumulação do poder nas mãos de governantes que escapam a todo controle por parte das suas bases sociais.
A tese proposta por Geffray abre, justamente, a perspectiva de uma oposição dialética entre o sistema de troca capitalista e um sistema de reciprocidade econômica e social, que se manifesta, aqui, principalmente mediante estruturas de reciprocidade assimétrica.
Esta relação dialética conduz, certamente, à dominação e à opressão dos "sujeitados", mas não segundo uma modalidade de exploração redutível à do capitalismo. De fato, no Brasil, como em outros lugares na América Latina, a crítica de essência marxista, ou suas aplicações revolucionárias ou reformistas, não chegou a se opor de maneira eficaz à opressão paternalista. Ao contrário, a hipótese dessa colusão das formas de alienação dos dois sistemas permite, entre outras coisas, explicar a permanência, ou mesmo o desenvolvimento, do clientelismo e do populismo na política, isto é, da redistribuição centralizada, como únicas alternativas realmente implantadas em escala continental frente à dominação mercantil neoliberal (da Argentina à Venezuela, passando por Uruguai, Bolívia, Brasil e Equador).
A idéia da exploração paternalista como dependente da exploração capitalista, utilizada por Geffray, pode, certamente, ser associada à noção de capitalismo periférico (Amazônia e Nordeste em relação ao sul do país e Brasil em relação aos países no norte), mas ela leva igualmente à noção de interdependência entre essas esferas. Ou seja, a uma ligação social, afetiva ou simbólica, certamente assimétrica, mas criadora de humanidade e de reciprocidade, mesmo sob o jugo da desigualdade e do tributo.
Recebido: 16/02/2011
Aceite final: 20/05/2011
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Set 2011 -
Data do Fascículo
Ago 2011
Histórico
-
Aceito
20 Maio 2011 -
Recebido
16 Fev 2011