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Cognição, afetividade e moralidade

Cognition, affectivity and morality

Resumos

O presente trabalho fundamenta-se em algumas tendências atuais no campo da Psicologia Moral, que buscam compreender a natureza dos juízos e das ações morais, incorporando o papel da afetividade em tais processos. Para atender esse objetivo, são apresentados alguns trabalhos recentes bem como os dados relativos a uma investigação, na qual se buscou identificar e analisar as possíveis relações entre os estados emocionais, os raciocínios morais e a organização do pensamento dos sujeitos quando solicitados a resolverem conflitos de natureza moral. Dentre seus resultados, foi encontrada uma forte relação entre o estado emocional dos sujeitos e a forma como organizavam seu raciocínio. A partir das novas contribuições teóricas que vêm surgindo recentemente neste campo de estudos, discute-se a necessidade de se pesquisar como a educação moral pode ser pautada em parâmetros distintos daqueles relacionados ao desenvolvimento e à construção da capacidade racional da justiça. Sem negar a importância de tal construção, defende-se o princípio de que a educação deve preocupar-se também com a construção e organização da dimensão afetiva do psiquismo, buscando a formação de personalidades morais que integrem em seus juízos e suas ações, ao mesmo tempo, os interesses pessoais e coletivos.

Moral; Estados emocionais; Conflitos morais; Modelos organizadores


This work is based on current trends in the field of moral psychology which seek to understand the nature of moral judgments and actions, incorporating the role played by affectivity in such processes. To that effect, some recent works and the data related to a research are presented, in which possible relationships were looked for between emotional states, moral reasoning and the organization of the subject’s thoughts when asked to resolve conflicts of moral nature. Among the results, a strong relationship was found between the emotional state of the subjects and the way according to which they organized their reasoning. Drawing from recent theoretical contributions to this field of study, it is discussed how moral education can be built upon parameters others than those related to the development and the construction of rational ability for justice. Without denying the importance of such construction, it is advocated that education should also concern the construction and organization of the affective dimension of the psyche, seeking the development of moral personalities that integrate, at the same time, personal and collective interests in their judgments and actions.

Moral; Emotional states; Moral conflicts; Organizing models


Cognição, afetividade e moralidade

Valéria Amorim Arantes de Araújo

Universidade de Uberaba

Correspondência:

Valéria A. A. Araújo

Av. Nenê Sabino, 1801

Uberaba, MG 38.055-500

e-mail: varantes@yahoo.com.br

Resumo

O presente trabalho fundamenta-se em algumas tendências atuais no campo da Psicologia Moral, que buscam compreender a natureza dos juízos e das ações morais, incorporando o papel da afetividade em tais processos. Para atender esse objetivo, são apresentados alguns trabalhos recentes bem como os dados relativos a uma investigação, na qual se buscou identificar e analisar as possíveis relações entre os estados emocionais, os raciocínios morais e a organização do pensamento dos sujeitos quando solicitados a resolverem conflitos de natureza moral.

Dentre seus resultados, foi encontrada uma forte relação entre o estado emocional dos sujeitos e a forma como organizavam seu raciocínio.

A partir das novas contribuições teóricas que vêm surgindo recentemente neste campo de estudos, discute-se a necessidade de se pesquisar como a educação moral pode ser pautada em parâmetros distintos daqueles relacionados ao desenvolvimento e à construção da capacidade racional da justiça.

Sem negar a importância de tal construção, defende-se o princípio de que a educação deve preocupar-se também com a construção e organização da dimensão afetiva do psiquismo, buscando a formação de personalidades morais que integrem em seus juízos e suas ações, ao mesmo tempo, os interesses pessoais e coletivos.

Palavras-chave

Moral – Estados emocionais – Conflitos morais – Modelos organizadores.

Cognition, affectivity and morality

Abstract

This work is based on current trends in the field of moral psychology which seek to understand the nature of moral judgments and actions, incorporating the role played by affectivity in such processes. To that effect, some recent works and the data related to a research are presented, in which possible relationships were looked for between emotional states, moral reasoning and the organization of the subject’s thoughts when asked to resolve conflicts of moral nature.

Among the results, a strong relationship was found between the emotional state of the subjects and the way according to which they organized their reasoning.

Drawing from recent theoretical contributions to this field of study, it is discussed how moral education can be built upon parameters others than those related to the development and the construction of rational ability for justice.

Without denying the importance of such construction, it is advocated that education should also concern the construction and organization of the affective dimension of the psyche, seeking the development of moral personalities that integrate, at the same time, personal and collective interests in their judgments and actions.

Keywords

Moral – Emotional states – Moral conflicts – Organizing models.

Este artigo fundamenta-se prioritariamente em estudos recentes no campo da Psicologia Moral, que vêm buscando compreender a natureza dos juízos e das ações morais. Consideramos ser de grande importância a compreensão de tais processos psicológicos, principalmente do papel da afetividade na estruturação de projetos educacionais que almejem o que costuma chamar-se de educação moral ou, em outros termos, a construção de personalidades morais.

Para alcançar tal objetivo, apresentaremos alguns trabalhos recentes no campo da Psicologia Moral e dados parciais relativos a uma investigação que trouxe novas contribuições para o debate acadêmico (Araújo, V.A.A., 2000). Nessa pesquisa, buscamos identificar e analisar a influência que o estado emocional exerce no raciocínio moral e na organização do pensamento dos seres humanos quando solicitados a resolverem conflitos de natureza moral. Por fim, discutiremos a idéia de que a educação moral trabalhada na escola formal não seja limitada somente à construção do princípio de justiça. Defenderemos o princípio de uma educação moral que se preocupa também com os aspectos intrapessoais da personalidade humana e com a busca virtuosa da felicidade, do Bem (um conceito aristotélico).

O campo da Psicologia Moral

Lawrence Kohlberg (1927-1984), partindo do referencial teórico de Jean Piaget, elaborou a partir de 1958 um modelo psicogenético de desenvolvimento da moralidade humana que teve grande repercussão no meio intelectual em todo o mundo, criando uma nova linha de investigações em Psicologia Moral. Seu trabalho ajudou a consolidar esse campo de conhecimento e, de fato, suas idéias constituíram-se em referência para a maioria das pesquisas sobre moralidade.

Em suas investigações, realizadas com sujeitos de diferentes idades e de diferentes culturas, ele constatou a existência de alguns padrões de raciocínio moral que independiam da língua e da cultura, o que o levou a postular um caráter universal para o desenvolvimento do juízo moral, baseado em estágios de desenvolvimento rígidos e hierárquicos. O princípio básico dessa universalidade, de acordo com Kohlberg, seria a justiça, e assenta-se em uma perspectiva deontológica, de uma moral do dever.

Suas idéias centrais, publicadas no ano de sua morte (1984/92, p. 276) são: a universalidade moral (em oposição ao relativismo cultural e ético); o prescritivismo como uso de juízos morais (perspectiva deontológica); o cognitivismo como o elemento de raciocínio do juízo moral (em oposição ao emotivismo); o construtivismo; e a idéia de que o pressuposto metaético da justiça é primordial e de que os problemas morais como dilemas são fundamentalmente problemas de justiça.

Em outra ocasião, ele afirmou que

já dissemos que a essência do componente especificamente moral do juízo moral é o sentido de justiça (...) a essência da atmosfera moral de uma instituição ou meio é, pois, a estrutura da justiça. (1989, p. 96)

A teoria de Kohlberg para o desenvolvimento do juízo moral recebeu, e ainda recebe, muitas críticas. Uma delas (Sastre et al, 1994) diz respeito ao fato de ele não ter considerado, no estudo da moralidade humana, a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, inerentes aos conflitos morais enfrentados no cotidiano.

Concordamos com essa crítica e acreditamos ainda que uma análise do juízo moral fundamentado exclusivamente no princípio de justiça nos conduz à uma análise formal ou racionalista, que não corresponde em absoluto com a realidade vivida pelas pessoas em seu dia-a-dia.

Robert Selman (1988;1989) e Carol Gilligan (1985;1988), antigos colaboradores de Kohlberg, trouxeram contribuições importantes para esse debate.

Selman, baseado em um paradigma cognitivo-evolutivo-estrutural, propôs um modelo teórico em que o desenvolvimento moral está relacionado com o desenvolvimento social e centrado na capacidade do sujeito em adotar perspectivas de outras pessoas (adoção de papéis sociais). Para Selman

la adopción de perspectivas puede describirse conceptualmente como una forma de conocimiento social en un lugar intermedio entre el pensamento lógico y el pensamento moral. (1989, p. 113)

É importante ressaltar que a capacidade de adotar perspectivas segue, para este autor, uma evolução psicogenética hierárquica na qual, necessariamente, os novos estágios de adoção de perspectivas construídos são mais evoluídos que os anteriores. Para ele, a relação entre tais estágios e o desenvolvimento do juízo moral é direta: os primeiros são condição necessária para os estágios de desenvolvimento do juízo moral definidos por Kohlberg.

O modelo teórico proposto por Selman incorpora ainda a afetividade e a representação de valores sociais dos sujeitos. Para ele, na resolução de conflitos morais, os sujeitos necessitam integrar interesses individuais e relacionais, daí a importância de se considerarem os aspectos cognitivos, afetivos e sociais, presentes nas relações interpessoais.

Gilligan (1985) também buscou integrar em seu modelo teórico a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, centrando-se, entretanto, em análises de gênero. Para demonstrar a insuficiência do modelo kohlberguiano, Gilligan estruturou uma teoria moral em que distingue a existência de duas fontes, ou orientações, que tanto podem ser compreendidas como excludentes ou complementares, para explicar a moralidade humana: o princípio ou a orientação de justiça, em geral priorizada pelos homens; e uma outra orientação centrada no cuidado e na responsabilidade (care), priorizada nos juízos femininos. Sobre isso, no livro Mapping the Moral Domain (1988), a autora explica que o sexo biológico, a psicologia dos gêneros e as normas e valores culturais determinam os comportamentos femininos e masculinos. Com isso, acabam por afetar as experiências de igualdade e formação de vínculos, de homens e mulheres, influenciando, dessa maneira, o juízo moral.

Em nossa opinião, embasada na opinião de autores como Campbell & Chistopher (1996) e Araújo, U. (1999), apesar de questionarem o formalismo e impersonalismo da teoria de Kohlberg, bem como o princípio da "ética da justiça", nem Selman nem Gilligan questionaram a interpretação estruturalista do desenvolvimento moral por estágios, nem realizaram trabalhos empíricos voltados à compreensão, especificamente, do papel das emoções no raciocínio moral.

Nos últimos anos começaram a surgir trabalhos investigando o papel das emoções e dos sentimentos nos raciocínios morais dos seres humanos. De maneira geral, a preocupação dos investigadores centrou-se no estudo da atribuição de emoções e sentimentos a personagens que infringiam normas sociais e/ou morais. Entre eles, temos particular interesse em destacar alguns trabalhos de Nunner-Winkler e Sodian (1988), Arsenio e Kramer (1992), Lourenço (2000), Araújo, U. (1999), De La Taille (2000) e Sastre et al (2000, no prelo). Estes autores são referências importantes na elaboração das investigações que desenvolvemos, especialmente na que apresentaremos neste artigo.

Nunner-Winkler e Sodian (1988), baseando-se em teorias funcionalistas de emoções morais e utilizando-se de entrevistas clínicas, desenvolvem uma linha de investigações que tem como objetivo identificar e analisar o desenvolvimento das concepções infantis sobre as conseqüências emocionais de ações moralmente relevantes. Os resultados obtidos nos diferentes experimentos realizados pelas autoras, com sujeitos de 4 a 8 anos, possibilitaram a postulação da existência de uma tendência evolutiva da moralidade humana, que vai de uma orientação emocional centrada essencialmente no desejo do transgressor (atribuindo-lhe sentimentos positivos sempre e quando realizam um desejo próprio) a uma orientação emocional coerente com os comportamentos morais (atribuindo sentimentos negativos a quem prejudica outras pessoas e sentimentos positivos a quem adota comportamentos adequados à norma social).

Arsenio e Kramer (1992) ampliaram os experimentos realizados por Nunner-Winkler e Sodian considerando, na análise das respostas apresentadas espontaneamente pelos sujeitos, não só os sentimentos atribuídos aos agressores das histórias, mas também os sentimentos atribuídos às vítimas. Com isso, pretendiam aprofundar o estudo sobre os processos mentais subjacentes às representações dos sujeitos, analisando as relações entre as emoções dos diferentes personagens. Em termos gerais, os autores perceberam que os sujeitos mais novos (4 anos) não só atribuíram emoções opostas ao agressor e à vítima, como as tomaram como independentes umas das outras; e que os sujeitos mais velhos (6 e 8 anos) além de integrarem os pensamentos, sentimentos e desejos do agressor e da vítima, estabelecendo laços afetivos entre eles, foram capazes de atribuírem, aos mesmos personagens, sentimentos positivos e negativos.

Com o objetivo de também aprofundar os estudos sobre a atribuição de emoções, Lourenço (2000) analisou as emoções positivas e negativas que crianças atribuem a personagens agressores em condições reais (factuais) e de dever, relacionando tais emoções a seus comportamentos pró-sociais.

Ainda na linha de investigações sobre a atribuição de emoções, Sastre et al (2000, no prelo), diferente dos experimentos propostos por Nunner-Winkler, Arsenio e Lourenço, estudaram uma situação em que os sentimentos e desejos dos personagens eram apresentados aos sujeitos durante toda a história, e não somente após seu desfecho. Na situação-problema apresentada, desde o início da história o transgressor sentia-se contente e, ao mesmo tempo, preocupado por ter cometido um pequeno furto. No final, não sabendo o que fazer diante do fato, ele pede conselho a um amigo. Os resultados mostraram que em crianças de até 8 anos de idade, o desejo de recuperar um estado emocional positivo (devolvendo o objeto roubado para sentir-se bem) predominou sobre questões relacionadas a vantagens materiais e conceitos morais.

Outros autores vêm estudando nos últimos anos a atribuição de emoções, embora em diferentes perspectivas. Araújo, U. (1999) estudou o sentimento de vergonha, em sujeitos de 8, 12 e 16 anos, os quais atribuíam tal sentimento a sujeitos que transgrediram os valores morais de honestidade, de generosidade e de coragem. Nos seus resultados a que chegou, Ulisses Araújo constatou que poucos sujeitos faziam espontaneamente tal atribuição de sentimento. Na seqüência, quando eram solicitados a considerar a possibilidade de o personagem ter sentido vergonha, a maioria deles atribuiu esse sentimento ao personagem transgressor, em todas as idades. Araújo conclui que a vergonha não é atribuída espontaneamente aos personagens transgressores porque esse sentimento não é muito valorizado nas culturas ocidentais. Quando, porém, os sujeitos são levados a refletir sobre os sentimentos do personagem e a considerar a vergonha, a maioria reconhece a possibilidade de que tal sentimento é sentido por quem transgride valores morais.

De La Taille (2000), estudando também a atribuição do sentimento de vergonha, em oito pesquisas diferentes, encontrou uma gênese desse sentimento, notadamente quando relacionado à moral. Enquanto crianças de 6 anos atribuem maior sentimento de vergonha a personagens que experienciam situações de exposição pública e que envolvem danos materiais, sujeitos mais velhos tendem a atribuir mais vergonha a personagens que sofrem críticas em relação às suas qualidades morais. A vergonha moral atribuída aos personagens pelas crianças mais velhas refere-se ao medo todo moral de decair perante os olhos de outrem, notadamente os da pessoa respeitada.

Todos esses trabalhos sobre a atribuição de emoções têm em comum a intenção de buscar modelos teóricos mais abrangentes e completos sobre a moralidade humana, e a concepção de que a compreensão dessa moralidade pressupõe a confluência de aspectos cognitivos e afetivos na explicação do funcionamento psíquico humano.

Tal discussão, todavia, nos solicita a superar paradigmas teóricos e experimentais centrados numa análise linear do raciocínio e nos incita a elaborar investigações que permitam diferenciar e relacionar a confluência de ambos os processos, indissociáveis, nos atos mentais. Para isso, precisamos aceitar a diversidade de estilos e níveis de raciocínios e a diversidade de sistemas emocionais presentes na vida cotidiana dos sujeitos, o que nos leva a buscar novos modelos experimentais.

Elegemos para nortear nosso trabalho a Teoria dos modelos organizadores do pensamento (Moreno 1988; Moreno; Sastre; Leal; Bovet 2000). Os modelos organizadores são assim definidos por Sastre, Moreno, e Fernandez como

o conjunto de representações que o sujeito realiza a partir de uma situação determinada, constituído pelos elementos que abstrai e retém como significativo entre todos os possíveis, aqueles que imagina ou infere como necessários, os significados e as implicações que lhes atribui, e as relações que estabelece entre todos eles. Os modelos organizadores do pensamento constituem aquilo que é tido por cada sujeito como a realidade, a partir da qual elabora pautas de conduta, explicações ou teorias. (1994, p.19)

Ressalta-se, porém, que no modelo organizador elaborado por um sujeito não estão todos os elementos que configuram a realidade. De forma inversa, nem todos os elementos que figuram no modelo têm um referente na realidade, já que o sujeito pode imaginar elementos inexistentes, ou seja, ele pode fazer inferências.

Diante dessa definição, nos parece evidenciado que os modelos organizadores do pensamento são construídos não somente a partir da lógica subjacente às estruturas de pensamento, mas comportam os desejos, sentimentos, afetos, representações sociais e valores de quem os constrói. Quando o sujeito abstrai ou seleciona um elemento da realidade, atribui a ele um determinado significado e estabelece relações e/ou implicações com outros dados e significados, nos parece que esse processo psicológico está imbuído de sentimentos e emoções que guiam e/ou direcionam todas as três atividades.

Vemos na Teoria dos modelos organizadores um caminho para se entender os aspectos cognitivos e afetivos presentes no raciocínio humano, abrindo possibilidades para um entendimento mais coerente sobre as estratégias utilizadas pela mente humana na resolução de conflitos, incluindo os de natureza moral.

A partir dos pressupostos da Teoria dos modelos organizadores e dos resultados obtidos em investigações anteriores (Araújo, V.A.A., 1998), elaboramos uma pesquisa que procurou comparar o raciocínio empregado por sujeitos ao se defrontarem com um conflito de natureza moral em duas perspectivas diferentes: a deontológica (o que deve fazer o protagonista); e uma perspectiva que estamos chamando de cognitivo-afetiva, porque analisa os sentimentos, desejos e pensamentos do protagonista. Em nosso experimento, além disso, decidimos estudar não somente a atribuição de emoções, mas também a influência que diferentes estados emocionais podem exercer no raciocínio dos sujeitos ao se defrontarem com conflitos morais nas duas perspectivas citadas.

Apresentamos, a seguir, alguns dados de nossa tese de doutorado (Araújo, V.A.A, 2000). Salientamos que decidimos apresentar neste artigo apenas alguns exemplos de modelos organizadores aplicados por nossos sujeitos, para que o leitor ou leitora conheçam a estrutura de um modelo organizador do pensamento, e os dados referentes à comparação dos modelos organizadores aplicados nas diferentes perspectivas dependendo do estado emocional dos sujeitos. Tomamos tal decisão em razão de o objetivo deste artigo estar voltado para a investigação da influência dos estados emocionais na organização do pensamento e para a comparação desta influência em raciocínios aplicados em perspectivas diferentes.

Uma investigação empírica

Um mesmo conflito foi apresentado aos sujeitos em duas situações distintas: uma professora que flagra um aluno fumando maconha na escola, a) na primeira situação não demos nenhuma informação a eles sobre o contexto em que os fatos se deram nem características específicas da protagonista e demais envolvidos no conflito, e depois lhes perguntamos sobre o que deveria fazer a professora, protagonista da história; b) na segunda situação, fornecemos a eles várias informações sobre o contexto em que o conflito ocorreu, as características dos personagens envolvidos, detalhes de suas vidas, da comunidade a que pertenciam, das relações existentes entre elas, bem como dos sentimentos e emoções presentes na situação. No final, lhes questionamos sobre os pensamentos, sentimentos e desejos da professora ao se defrontar com a situação.

A amostra foi composta por noventa professores e professoras de escolas públicas brasileiras, divididos em três grupos de trinta profissionais. Cada grupo experienciou um determinado estado emocional antes de resolver os conflitos: a) o primeiro grupo experienciou emoções positivas, como satisfação, felicidade e alegria; b) o segundo grupo, que chamaremos de grupo neutro, não foi induzido a experienciar nenhuma emoção específica; c) o terceiro grupo experienciou emoções negativas, como insatisfação, frustração, desagrado e tristeza.

A partir da Teoria dos modelos organizadores do pensamento, nossa pesquisa pretendeu identificar e comparar os modelos organizadores aplicados por sujeitos que experienciaram diferentes estados emocionais, ao resolverem o mesmo conflito moral na perspectiva deontológica e na perspectiva cognitivo-afetiva. Para isso, apresentamos a seguir, os dois experimentos realizados:

EXPERIMENTO 1:

Perspectiva deontológica

Procedimentos:

  • Grupo 1 (positivo) e Grupo 3 (negativo): o encontro com cada grupo teve duração aproximada de três horas e trinta minutos.

Primeiro passo: solicitou-se aos professores e professoras que, individualmente, recordassem com detalhes alguma passagem de suas vidas, em qualquer âmbito, que lhes houvesse causado muita satisfação, alegria, agrado ou felicidade, no caso do grupo positivo; e grande insatisfação, tristeza ou frustração, no caso do grupo negativo. Após quinze minutos, aproximadamente, distribuiu-se uma folha de papel para que cada professor(a) descrevesse, detalhadamente, a situação recordada e também como se sentiu naquele momento.

Segundo passo: pediu-se para que, voluntariamente, algumas pessoas lessem ou relatassem a situação recordada, bem como os sentimentos experienciados naquela ocasião.

Terceiro passo: solicitou-se a alguns voluntários que dramatizassem uma das situações descritas, escolhida propositadamente por ter sido a que mais sensibilizou o grupo. Em alguns momentos, durante a dramatização, interrompeu-se a cena para questionar os atores e também os demais espectadores sobre os sentimentos e emoções que estavam experienciando naquele momento.

Quarto passo: solicitou-se aos docentes que respondessem, individualmente e por escrito, ao conflito moral apresentado.

A pergunta sobre o conflito apresentada aos sujeitos foi a seguinte:

O que deveria fazer a professora deste aluno? O que seria o mais correto? Por quê? Explique detalhadamente sua resposta.

  • Grupo 2: "grupo neutro"

Ressaltamos que o conflito e a questão foram apresentados aos sujeitos por escrito e que, anonimamente (por meio de pseudônimos), responderam também por escrito. Sua aplicação aconteceu entre os meses de abril e junho de 1998, em três escolas públicas, de Jundiaí e Itatiba (SP), nas quais os professores trabalhavam. Durante as aplicações das provas a pesquisadora esteve presente nos grupos, a fim de garantir que as respostas fossem realmente individuais.

Apresentação dos modelos organizadores:

Uma vez de posse dos protocolos, a etapa seguinte do trabalho consistiu em extrair os diferentes modelos organizadores elaborados e aplicados pelos sujeitos ao resolverem o conflito moral envolvendo o consumo de drogas na escola. Esse processo consistiu em buscar, no raciocínio emitido pelos sujeitos, os elementos abstraídos e considerados relevantes do conflito proposto, os significados que lhes atribuíram e as implicações que estabeleceram entre os mesmos elementos e/ou seus significados, conforme define a Teoria dos modelos organizadores.

Do ponto de vista metodológico, o que nos atrai nessa teoria, e que constitui um grande avanço conceitual, é o fato de não trabalharmos com categorias pré-determinadas de modelos organizadores. Eles são extraídos a partir das respostas dos sujeitos e não por inferências prévias do pesquisador. Isso significa que os modelos encontrados não se repetem necessariamente em outras situações e com outra amostra.

Foram detectados quatro diferentes modelos organizadores aplicados pelos sujeitos investigados na resolução do conflito moral proposto. Tais modelos foram denominados de 1, 2, 3 e 4. Em nossa análise pudemos identificar ainda que as implicações dos modelos 1 e 2 são semelhantes, assim como as dos modelos 3 e 4: enquanto os modelos 1 e 2 limitam o papel da professora ao encaminhamento do caso a terceiros, os modelos 3 e 4 têm como principal característica a participação direta da professora na resolução do conflito.

Por isso, decidimos classificá-los em duas categorias diferentes de modelos organizadores do pensamento: categoria A, reunindo os modelos 1 e 2, tem como implicações dadas pelos sujeitos que a professora não deve se envolver diretamente na resolução do conflito; categoria B, reunindo os modelos 3 e 4, tem como implicações dadas pelos sujeitos que a professora deve participar na resolução do conflito, ajudando o aluno em questão.

Para ilustrarmos a maneira como nossos sujeitos organizaram a situação proposta, e o que são modelos organizadores do pensamento, apresentaremos, a seguir, exemplos dos modelos 1 e 4 encontrados neste experimento, mostrando a diferença em seus princípios. Tais modelos representam as categorias A e B de modelos organizadores encontrados.

· MODELO 1 (CATEGORIA A)

Os sujeitos que aplicam esse modelo organizam suas explicações em torno de um elemento que não aparece explicitamente nem no enunciado do conflito nem na pergunta formulada pela experimentadora: a participação da direção da escola na resolução do problema. Eles atribuem à direção o significado de evitar que a droga se alastre na escola.

Os outros dois elementos que abstraem e retêm como significativo no modelo 1 são: o comportamento do aluno e o papel da professora. O fato de atribuírem à professora o papel de encaminhar o problema e de verem o comportamento do aluno como um comportamento problemático e de uma complexidade que supera o preparo dos professores, leva-os a defender a idéia de que o correto é a professora encaminhar o caso à direção da escola, para que esta evite que o consumo de drogas se alastre na escola.

A título de ilustração, segue uma resposta deste modelo (Categoria A):

— "...deveria comunicar o fato à direção da escola para que se tomassem providências, pois se o aluno entra com maconha na escola, logo todos estarão experimentando."

· MODELO 4 (CATEGORIA B)

A característica principal do quarto modelo é a atuação direta da professora na resolução do conflito. Nesse modelo os elementos abstraídos e retidos como significativos, diante do flagrante apresentado no conflito, são apenas o comportamento do aluno e o papel da professora. Os sujeitos significam o primeiro elemento como um comportamento que requer orientação, ajuda, diálogo, recuperação, por parte da professora. Os docentes que aplicaram esse modelo defendem, portanto, a idéia de que a conduta da professora diante do flagrante deveria ter por objetivo ajudar o seu aluno.

Apresentamos o seguinte exemplo de respostas do modelo 4 (Categoria B):

— "Conversar, chamando a sua atenção, procurando saber, conhecer o motivo quer está levando-o a isso. Pois escutá-lo é uma forma de ajudá-lo e levá-lo a descobrir, ele mesmo, se este é o caminho certo; e daí ele não só poderia se arrepender, mas deixar realmente de usar, e não querer jamais voltar."

EXPERIMENTO 2:

Perspectiva cognitivo-afetiva

Enquanto no primeiro experimento analisamos os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos ao resolverem um conflito na perspectiva deontológica, questionando sobre o que deveria fazer uma professora que flagra um aluno fumando maconha na escola, no segundo experimento aplicamos a mesma situação conflitiva, mas na perspectiva que definimos anteriormente como cognitivo-afetiva. Assim, questionamos sobre os sentimentos, desejos e pensamentos da protagonista, sem perguntar o que deveria fazer na situação.

Procedimentos:

A metodologia empregada nesse experimento, a amostra e os procedimentos foram exatamente os mesmos do experimento 1. Ressaltamos, inclusive, que os sujeitos que compuseram cada um dos três grupos (positivo, neutro e negativo) também foram os mesmos do experimento 1. Os dados do experimento 2 foram coletados uma semana após o experimento 1.

Nesse segundo experimento, após provocarmos os estados emocionais característicos de cada grupo, a pergunta sobre o conflito apresentada aos sujeitos foi a seguinte:

Tente fazer um esforço e coloque-se no lugar da professora Eliana, imaginando como ela vive essa situação. Descreva detalhadamente seus sentimentos, desejos e pensamentos.

Apresentação dos modelos organizadores:

Embora questionados a respeito dos sentimentos, desejos e pensamentos da protagonista, os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos diante do conflito moral que contemplava a perspectiva cognitivo-afetiva da situação foram semelhantes aos modelos organizadores aplicados por eles anteriormente na perspectiva deontológica, sendo que os princípios característicos de cada modelo eram os mesmos. Por isso, nesse experimento também pudemos criar as categorias A e B de modelos organizadores do pensamento.

Assim, os modelos organizadores encontrados no segundo experimento apresentavam os seguintes princípios: a) os modelos 1 e 2 atribuíam à personagem um papel passivo diante da situação-problema, defendendo a idéia de que a professora não deveria atuar diretamente na resolução do conflito. Adotavam, pois, a postura de calar-se ou de encaminhar o caso a terceiros, tidos como responsáveis pela resolução do conflito; b) os modelos 3 e 4 atribuíam à personagem um papel ativo diante da situação-problema, defendendo a idéia de que a professora deveria atuar diretamente na resolução do conflito. Adotavam a postura de que ela deveria agir pessoalmente na recuperação do aluno.

Para ilustrarmos a maneira como nossos sujeitos organizaram a situação proposta, e o que são modelos organizadores do pensamento, apresentaremos, a seguir, exemplos de modelos 1 (Categoria A) e 4 (Categoria B) encontrados nesse experimento, mostrando a diferença em seus princípios.

· MODELO 1 (Categoria A):

Os sujeitos que aplicam esse modelo organizador centram suas explicações nas emoções vividas pela professora, e a forma como as compreendem é um impedimento para fazer qualquer implicação que envolva a ação da professora diante da situação enfrentada. Consideram que o medo da professora, seu estado emocional e insegurança inibem sua ação. A impotência da personagem é o que caracteriza esse modelo.

Na elaboração desse modelo foram retidos como elementos significativos o comportamento do aluno, os sentimentos da professora, o papel dela, sua ação de denunciar o fato a outras pessoas e também o meio social. O papel da professora nesse modelo é o de denunciar o caso. Mas, ao entenderem que o comportamento do aluno causa medo na personagem, que o meio social é perigoso e que a denúncia pode lhe trazer represálias, violência ou perigo, todas as respostas fundamentadas no modelo 1 justificam que, diante do flagrante, a professora inibiria sua ação. Nas justificativas, além do medo, identificamos também os sentimentos de impotência, angústia e horror, que a fariam calar-se.

Como exemplo, apresentamos:

— "Sente-se impotente, incapaz de tomar uma atitude mais rígida. Qualquer atitude mais séria poderá acarretar em danos à sua pessoa. Sabe-se lá o que Marcelo seria capaz de fazer para que seus pais não soubessem do vício... seria seguro para a professora denunciar ou seria melhor se omitir? Em seu lugar não saberia qual a atitude seria mais sensata."

· MODELO 4 (Categoria B):

Nesse modelo organizador temos três elementos abstraídos e retidos como relevantes. O conjunto destes elementos, com seus diferentes significados, faz com que os sujeitos expressem, em suas respostas, o desejo da professora em ajudar o aluno ou apresentem a idéia de que ela deve agir para ajudá-lo. Apesar de atribuírem significados diferentes ao estado emocional da professora (constrangimento, culpa, desgaste, decepção, mal-estar, impotência, raiva, tristeza, ansiedade e outros), acreditam que exista o desejo da personagem em ajudar o aluno.

Isso nos parece relevante, se considerarmos que nossa pergunta esteve direcionada aos sentimentos, desejos e pensamentos da personagem, e não à sua ação. Tal conduta lhes permite deduzir que, o comportamento apresentado pelo aluno além de causar sentimentos negativos na professora, requer ajuda, orientação, diálogo.

Um exemplo de resposta característica deste modelo foi:

— "Eu amo meus alunos de uma forma geral. Quando estou com eles, mesmo em detrimento (sic) ao curto tempo que ficamos juntos, tento conhecer um pouco mais (o máximo possível) da personalidade de cada um. A ‘pessoa’, o ‘ser-humano’. No lugar da professora, em primeiro lugar, morreria de dó da criança, e mesmo sabendo que estaria diante de um problema quase impossível de ser tratado, esquematizaria uma forma de chegar e achegar-me a ele. Gradativamente eu tentaria ganhar sua confiança e o provocaria em uma conversa o assunto. Eu poderia abordar o assunto de várias formas: começando por passar um filme relativo ao problema para a classe do aluno. Mas, inevitavelmente, eu iria entrar em contato com ele de qualquer jeito."

Variação intrapessoal dos modelos organizadores:

Mostraremos, a seguir, o cruzamento de dados entre os dois experimentos. Para isso, comparamos as categorias de modelos organizadores aplicadas pelos sujeitos dos diferentes grupos (diferentes estados emocionais) ao resolverem os conflitos morais centrados na perspectiva deontológica (experimento 1) e na perspectiva cognitivo-afetiva (experimento 2). O gráfico 1, a seguir, mostra a distribuição percentual dos sujeitos que aplicaram a mesma categoria de modelos organizadores (A e A ou B e B) e categorias de modelos organizadores diferentes (A e B ou B e A) nas duas perspectivas, considerando seus diferentes estados emocionais. Buscamos, com isso, identificar se o estado emocional das pessoas também pode influenciar seu raciocínio em diferentes perspectivas.

Análise dos dados:

Ampliando os métodos e concepções de pesquisas experimentais que estudam as relações entre moralidade e emoções em histórias hipotéticas, essa pesquisa utilizou uma metodologia que permitiu identificar e analisar a influência que o estado emocional exerce no raciocínio moral e na organização do pensamento dos sujeitos, não se limitando a estudar a atribuição de emoções. Consideramos esse fato como promissor para a abertura de novos campos de investigação sobre o papel dos sentimentos e emoções no funcionamento psíquico e, consequentemente, para o estudo da moralidade.

Nos resultados apresentados, se o conflito moral é abordado desde uma perspectiva deontológica ou cognitivo-afetiva, verificamos que é muito diferente a influência dos estados emocionais na organização do pensamento dos sujeitos.

Podemos verificar que, enquanto a grande maioria dos sujeitos que experienciou estados emocionais positivos (90%) aplica modelos organizadores semelhantes (A e A ou B e B) para resolver os conflitos sob diferentes perspectivas (deontológica e cognitivo-afetiva), no caso do grupo negativo esse percentual cai para 50%. Esse dado deixa claro que o estado emocional, de fato, influenciou a forma por meio da qual os sujeitos organizaram seu raciocínio.

Outro aspecto relevante da pesquisa foi que, na perspectiva cognitivo-afetiva, quando questionamos sobre os sentimentos, desejos e pensamentos da personagem, embora não lhes tenhamos perguntado sobre ação, todos os sujeitos lhe atribuíram, espontaneamente, possíveis condutas em relação ao transgressor: retraimento ou ajuda. Isso deve-se ao fato de o papel da professora (com seus diferentes significados) ter sido um elemento abstraído por todos os professores e professoras que participaram dessa investigação.

Com isso, fica evidenciado que o sujeito ao organizar um modelo de pensamento pode incorporar elementos em seu raciocínio que não figuram nem no texto do conflito que lhe foi proposto nem na pergunta que lhe foi apresentada. De acordo com os pressupostos da Teoria dos modelos organizadores, o ser humano pode incorporar em seu raciocínio elementos que não figuram na realidade. Ou seja, nem todos os elementos que figuram no modelo têm seu referente na realidade sobre a qual se aplica, já que o sujeito pode imaginar elementos inexistentes por meio de inferências e considerá-los tão ou mais relevantes que os elementos claramente explicitados no texto do problema. No caso específico, estamos nos referindo aos possíveis comportamentos atribuídos pelos sujeitos à protagonista, aspecto não questionado por nós.

Analisando os dados relativos aos sentimentos que os sujeitos atribuíram à protagonista da história, foi interessante perceber que em todos os modelos organizadores aplicados pelos noventa sujeitos da pesquisa os sentimentos atribuídos à professora eram negativos, como impotência, angústia, horror, tristeza, insegurança, medo e preocupação. No entanto, a grande maioria dos sujeitos (90%) que experienciaram previamente emoções positivas, apesar de atribuírem a ela sentimentos negativos, ao estabelecerem as implicações e/ou relações com os outros elementos abstraídos e seus respectivos significados, organizaram seu raciocínio sugerindo uma conduta à professora coerente com o que acreditam ser o dever desta personagem, mantendo a mesma categoria de modelos de organização do pensamento.

Em suma, parece-nos que os sujeitos sob um estado emocional positivo situam a conduta da protagonista em um universo, no qual não há contradições entre seus desejos e seus deveres. Assim, tanto na perspectiva deontológica, em que respondem sobre o que deveria fazer a professora, quanto na perspectiva cognitivo-afetiva, que respondem sobre seus desejos, mantêm uma grande coerência na forma de organizar seu raciocínio. Ao contrário, para os sujeitos em estado emocional negativo esses dois universos, de desejos e deveres, são vistos de forma dicotômica. Tendem a não manter a mesma coerência quando analisam os deveres e desejos da professora.

Apesar de os sujeitos atribuírem à protagonista da história os mesmos sentimentos (negativos), os desejos atribuídos a ela são muito diferentes, dependendo do estado emocional que se encontravam no momento de analisar o conflito. Parece-nos que os sujeitos supostamente alegres e/ou satisfeitos não compreendem que a professora deveria encarar o conflito vivido somente como um dever moral que tinha de resolver, mas também como uma necessidade própria que ajudaria o aluno e a levaria ao bem-estar. Vemos essa forma dos sujeitos do grupo positivo organizarem o pensamento coerente com a ética aristotélica, segundo a qual a moralidade está na busca virtuosa da felicidade, do bem.

Concluindo esta análise, temos duas considerações a fazer. A primeira é que, ao estudar como o estado emocional atua na organização do pensamento humano, vimos como ele pode se constituir em força motivacional ética, que possibilita uma integração entre os desejos e os deveres inerentes às normativas sociais. Assim, entendemos que o pensar e o sentir são ações indissociáveis.

A segunda consideração refere-se ao papel funcional dos sentimentos na organização do pensamento. Nossa pesquisa demonstra que a afetividade influencia de maneira significativa a forma pela qual os seres humanos resolvem os conflitos de natureza moral. Assim como a organização de nossos pensamentos influencia nossos sentimentos, o sentir também configura nossa forma de pensar. Com isso, o papel da afetividade deixa de ser apenas motivacional no funcionamento psíquico, assumindo um papel também organizativo.

Moralidade, sentimentos e educaçäo

Integrar lo que amamos con lo que pensamos es trabajar a la vez razón e sentimientos; supone elevar estos últimos a la categoría de objetos de conocimiento, darles existencia cognitiva, ampliando así su campo de acción.

Moreno, M.

Abordaremos, afinal, as implicações deste trabalho para a educação, que é nosso campo de atuação profissional e o campo de onde nossos dados foram coletados.

A partir da discussão feita, fica evidenciada a necessidade de pensarmos uma escola em que os estados emocionais dos profissionais que ali trabalham sejam positivos, baseados na alegria, na felicidade e na satisfação interna, para que possam desempenhar de maneira eficiente seu papel de educadores, tendo como objetivo levar seus alunos e suas alunas a construírem a capacidade moral autônoma de resolver os conflitos do cotidiano. Este trabalho, porém, pode nos levar a outras considerações educacionais.

Primeiro, devemos pensar em um trabalho de educação moral que se inicia com o próprio grupo de professores e professoras construindo sua auto-estima, sua autoconfiança e sua capacidade de autoconhecimento. A valorização dos talentos pessoais por meio da estruturação de políticas educacionais que reconheçam as habilidades e interesses de cada profissional é um caminho nessa direção. Ações que solicitem a reflexão docente sobre aqueles valores considerados como universalmente desejáveis (Puig, 1998), e que permeiam muitas das relações escolares cotidianas, é outra perspectiva. Atividades como as que realizamos com o grupo positivo desta investigação podem ser uma referência para a tentativa de criação de um ambiente escolar baseado em sentimentos como satisfação, alegria, agrado ou felicidade. Tal ambiente parece propiciar condições para que os membros da comunidade escolar organizem seus pensamentos a partir de valores morais como solidariedade, generosidade e responsabilidade.

Acreditamos que essas possam ser ações possíveis de serem encampadas como prioridade nas escolas e estendidas a toda a comunidade. É evidente que, com essa idéia, não estamos negando outros aspectos que devem contemplar um programa de educação moral mais amplo, mas acrescentamos que este tipo de experiência pode enriquecer os objetivos propostos por educadores que buscam a construção de comunidades escolares mais justas e solidárias.

Em segundo lugar, vemos a importância de incluir definitivamente na pauta educacional o tema da afetividade e das emoções. Estamos nos referindo ao pressuposto de que a dimensão afetiva da personalidade precisa ser trabalhada na escola, assim como trabalhamos a matemática, a língua, as ciências etc. Se nossas pesquisas nos levam a concluir que o funcionamento psíquico humano não é composto somente pelos aspectos cognitivos, mas que os sentimentos e emoções também configuram nosso pensamento, por que pensar em uma escola que privilegia somente um destes aspectos?

O modelo educacional adotado por nossas escolas tem origem na Grécia Clássica (Moreno, 1997), e sabe-se que seus conteúdos foram selecionados visando ao desenvolvimento apenas da dimensão cognitiva. Não há nada que justifique voltar-se a educação para somente este aspecto da natureza humana, desconsiderando-se outros, como o da afetividade (Moreno et al., 1999, p.15). É preciso ter coragem para mudar a educação formal e tornar o conhecimento dos afetos e emoções em conteúdos a serem construídos por alunos e alunas.

Como educadores, devemos nos comprometer com a formação de jovens que, ao mesmo tempo que conheçam os conteúdos da ciência contemporânea, também reflitam, por exemplo, sobre os limites éticos da aplicação dessa ciência; pessoas conscientes de seu papel para a construção de uma sociedade mais justa e solidária; que saibam lidar com seus próprios sentimentos e afetos; e que saibam lutar (virtuosamente) pela felicidade própria e das outras pessoas. Em suma, devemos objetivar a formação de personalidades morais.

Do ponto de vista da prática educativa, acreditamos que um dos caminhos possíveis para se atingir tais objetivos passa pela inserção transversal de temáticas relacionadas à afetividade no currículo escolar. Nesse sentido, uma educação que tenha como objeto de construção de conhecimentos também os sentimentos pessoais e interpessoais, trabalhados na escola não como um apêndice e sim como uma finalidade da estrutura curricular, pode exemplificar essa nova maneira de conceber a educação. Abordar os sentimentos humanos como um conteúdo escolar, de forma sistematizada, é algo insólito em nossa realidade educacional .

No livro Falemos de sentimentos: a afetividade como um tema transversal, Moreno et al (1999) exemplificam como pode ser organizado um programa curricular que atenda a esses objetivos. As autoras afirmam que a educação da afetividade precisa levar em consideração a vertente racional e emotiva dos conceitos e fatos que os alunos e as alunas estão aprendendo, dispondo de um planejamento de atividades e técnicas didáticas que incluam e detalhem os conteúdos e objetivos curriculares específicos a cada uma delas.

Entendemos que um planejamento didático e pedagógico elaborado a partir dessa concepção de educação, e sua conseqüente realização no cotidiano das salas de aula, poderá levar alunos e alunas a construírem personalidades mais autônomas, justas e solidárias, e a serem mais conscientes de si e de seus próprios sentimentos.

Concluindo, assumimos tal posição a partir dos dados da investigação que apresentamos neste artigo. Parece-nos que vivenciar emoções positivas implica uma maior possibilidade das pessoas abstraírem elementos, atribuírem significados e estabelecerem relações e/ou implicações semelhantes, mesmo quando se modificam as perspectivas dos conflitos apresentados. Em um mundo cada vez mais conturbado, que cobra uma coerência cada vez maior dos profissionais da educação responsáveis pela educação moral, conseguir manter princípios coerentes na forma de raciocinar em face de dilemas de natureza moral, pode ser uma arma poderosa na mão de educadores conscientes de seu papel na sociedade. Ter como característica pessoal a manutenção de estados emocionais positivos, pessoas alegres, satisfeitas e felizes podem trazer conseqüências benéficas para a educação e para os educandos de maneira específica.

No outro extremo, pessoas infelizes, tristes, insatisfeitas com seu trabalho, tenderão a demonstrar maior instabilidade em sua forma de resolver conflitos de natureza moral. Esta instabilidade é característica da anomia e da heteronomia moral e os reflexos daí decorrentes podem ser prejudiciais para a educação das futuras gerações. Assim, trabalhos de educação moral voltados exclusivamente ao desenvolvimento de juízos e ações centrados no princípio de justiça podem não ser suficientes para a estruturação da moralidade.

Entendemos que a partir das discussões deste artigo e de novas contribuições teóricas que vêm surgindo recentemente no campo da Psicologia Moral, devem surgir pesquisas que estudem como a educação moral pode ser pautada em parâmetros distintos daqueles encontrados nos dias de hoje, que têm como pressuposto prioritário o desenvolvimento e a construção da capacidade racional da justiça. Sem negar a importância de tal construção, acreditamos que a educação deve preocupar-se também com a construção e organização da dimensão afetiva das pessoas. O resultado desse modelo de educação, pensamos, contribuirá para a formação de personalidades morais que integrem em seus juízos e suas ações, ao mesmo tempo, os interesses pessoais e coletivos. Personalidades que buscam o bem estar e a felicidade pessoal e coletiva.

Recebido em 04.05.01

Aprovado em 07.06.01

Valéria Amorim Arantes Araújo é doutora pela Universidade de Barcelona na área de Psicologia Moral e, atualmente, docente junto ao Programa de Mestrado em formação de professores da Universidade de Uberaba.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2001
  • Data do Fascículo
    Dez 2000

Histórico

  • Aceito
    07 Jun 2001
  • Recebido
    04 Maio 2001
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