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Baudrillard: trabalho e hiper-realidade

PENSATA

Baudrillard: trabalho e hiper-realidade

Hermano Roberto Thiry-Cherques

Professor da Escola Brasileira de Administração Pública, Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro – RJ, Brasil

BAUDRILLARD: TRABALHO E HIPER-REALIDADE

Jean Baudrillard (Reims, 27 de julho de 1929 – Paris, 6 de março de 2007), sociólogo, poeta, fotógrafo e filósofo francês, jamais foi um acadêmico. Não passou no exame da agrégation (para o cargo de professor secundário), nem teve cargo universitário. Foi estruturalista, adaptando o estruturalismo para compreender o limite entre o real e a imaginação. Dedicou-se ao estudo do impacto das mídias e da tecnologia na vida contemporânea.

Sem se importar com as críticas ao seu modo de se expressar e aos conceitos que inventou (King, 1998), procurou demonstrar como a cultura da atualidade é fruto de uma realidade construída, a “hiper-realidade”. Questionou a dominação imposta pelos sistemas de signos, o “valor simbólico”, que substituiu o valor de troca e o valor de uso como matrizes da economia e da sociedade.

Baudrillard sustentou que a expansão contínua da estrutura sígnica de dominação demandou o estabelecimento de redes de informações e de um sistema tecnológico que alteraram substancialmente a racionalidade, o pensar e o agir contemporâneos. Debitou essa mudança à intoxicação midiática por ter gerado a perda do referencial das identidades, feitas servas de um feudalismo tecnológico que não tem outro propósito senão a sua autossustentação.

Neste ensaio, sintetizo a posição de Baudrillard sobre o trabalho na economia e na sociedade contemporâneas. Examino como, a partir do conceito de sociedade de consumo, Baudrillard descreve o trabalho enquanto parte essencial da racionalidade do simulacro, na qual o esforço produtivo foi substituído pelos códigos da hiper-realidade.

O CONSUMO

A ideia princeps de Baudrillard é a de que um objeto tem um valor simbólico, além do valor de uso e do valor de troca. A realidade virtual em que vivemos, a hiper-realidade, estruturada pela informação e pela tecnologia, é sustentada pelo amálgama de elementos antes diferenciados, como a produção e o consumo, e pela dispersão do sistema de valores fundados na ilusão de que a economia e a sociedade têm um sentido determinado ou de que, até mesmo, têm algum sentido (Baudrillard, 2001).

A posição de Baudrillard sobre o trabalho foi construída paulatinamente. Em O sistema dos objetos (1968), ele analisou metodicamente a relação dos homens com os objetos na sociedade de consumo. Descreveu como um “plano da racionalidade do objeto” engendra uma significação para além do seu uso, de modo que o sistema, antes tecnologicamente coerente, deixou de sê-lo. A dimensão simbólica fez com que o valor da funcionalidade fosse destituído em benefício de uma convenção funcional. A subjetividade da valorização levou a uma metafuncionalidade do meio eletrônico, uma função para além das suas limitações, que, manipulada simbolicamente pela publicidade, acarretou a irresponsabilidade do consumidor em relação ao que consome.

Na passagem da sociedade industrial (“metalúrgica”) para a sociedade dos símbolos (“semiúrgica”), Baudrillard viu o trabalho ser condicionado pela competição e pela “personalização” (customização). A competição, sob o signo de uma suposta liberdade, migrou da produção para o consumo. Ser livre passou a ser ‘poder consumir o que se deseja’. A personalização criou a ilusão da originalidade, do exercício da preferência pessoal. No plano do trabalho instaurou a ilusão da livre escolha das ocupações.

Na sociedade semiúrgica, o objeto perdeu o seu valor de uso e o seu valor de troca para ressurgir como função, como valor de signo. O interesse não está nos objetos, mas no sistema de signos que os espelha. O sígnico, a sintaxe, se desvencilha do produto e se apega à finalidade. Compreender a atualidade é compreender a mensagem contida no sistema de signos que a constitui. Por isso, Baudrillard procedeu à crítica da economia política do signo a partir não da produtividade, mas da “consumidade”, da capacidade de consumir. O consumo muda os signos e serve à economia. Como no processo digestivo, o sistema precisa da aquisição de bens e serviços para se reproduzir. De modo que a racionalidade se inverteu: deixou de ser a racionalidade da produção para ser a racionalidade do consumo.

Considerar não o uso nem a troca (a mercadoria) mas o sígnico implica buscar, em vez da utilidade, o signo que ela comunica, a distinção, a hierarquia, a posição em uma sociedade regida pelo consumo. Em A sociedade de consumo (1970, p. 242-246), Baudrillard retomou e sintetizou o seu pensamento sobre o trabalho. Em vez de somente comprarmos e vendermos o tempo de trabalho, agora devemos comprar o tempo livre para que possamos consumi-lo. O consumo e não a produção rege o trabalho. O trabalho não é somente uma necessidade, mas uma imposição econômico-cultural.

Trata-se de outra ilusão: o tempo livre é a liberdade de perder tempo, de matar tempo. O verdadeiro valor do tempo é o de ser perdido. O que nos faz ganhar tempo é o seu uso vazio, o tempo verdadeiramente livre. Mas na sociedade de consumo, o tempo do lazer é consumido. Integra o sistema de produção, obedece a uma lógica alienante. Cria uma identidade falsa, diferente daquela que o trabalho negava.

O lazer é um trabalho, tornou-se um dejeto, um subproduto do tempo produtivo. O lazer reproduz todos os constrangimentos do tempo produtivo. É tempo ocioso, mas não é tempo livre. A ociosidade, que foi a característica das classes abastadas, tornou-se o “consumo” do tempo inútil. O lazer leva à regressividade, às formas anteriores de trabalho (bricolagem, coleção, pesca etc.).

O lazer é um dever. O tempo cronometrado (das férias) não é livre: está preso à sua distinção de tempo de produção abstraído. O trabalho se opõe ao lazer, mas o lazer não é livre. O tempo do não trabalho não é o da calma, do escape da fadiga da vida laboriosa, do repouso, mas o da aquisição. O que chamamos de lazer é o tempo medido – um tempo que não existe nas sociedades primitivas; o tempo do feriado, das férias. Tem-se que fazer coisas, ir a lugares. É um tempo improdutivo, mas que gera valores – status, prestígio etc. Não é trabalho e não é descanso (Jung, 2000).

O tempo livre tem que ser ganho, seja comprando-o com o trabalho seja economizando trabalho com a tecnologia e a produtividade. O lazer é o consumo do tempo improdutivo. O tempo do lazer não é livre porque não podemos perdê-lo simplesmente não fazendo nada, isto é, temos que produzir sem sentido (hobby) ou consumir sem necessidade (turismo).

Vivemos e trabalhamos no ambíguo e no imaginário. O shopping center é o símbolo máximo da sublimação do real, tanto no sentido que o termo “sublimação” tem na física, de passagem direta do sólido para o gasoso, como no sentido da psicanálise, de transformação de um impulso em um ato socialmente aceito. No shopping o dinheiro é de plástico, o clima e a iluminação são artificialmente controlados, o alimento e a diversão estão sempre disponíveis, a vida foi domesticada. Toda a complexidade da existência humana – a separação entre trabalho, lazer, natureza e cultura – se tornou arcaica. Tudo foi digerido e reduzido ao mesmo vazio.

Na sociedade de consumo, o valor está nas ideias, nos signos dos objetos. Está no sentido que o objeto empresta à existência, sentido esse fornecido desde o exterior, condicionado culturalmente, codificado e introjetado pelas mídias. Os objetos adquiridos não são os que o trabalhador produziu. Não são de sua escolha os objetos de vestir, de morar, de transportar. São imposições publicitárias. A tecnologia que diverte é a mesma com que se trabalha. Obedece a um esquema de sedução. Supõe-se uma escolha racional e livre, mas não há nem escolha nem libertação pelo consumo.

As identidades deixaram de ser aquelas do trabalho (o que se faz para viver) e passaram a ser as do consumo (como se vive). As relações individuais são as relações com os grupos. A satisfação confunde-se com a conformidade. Mas o trabalhador não é uma vítima passiva do sistema. É um integrante do sistema. Não é mais força de trabalho, mas força de consumo (Baudrillard, 1972). O seu trabalho serve não à produção, mas ao poder diferenciador do consumo. Trabalha-se para adquirir, e o que se adquire é o trabalho dos outros. O consumo é um trabalho social, é um dever para com a sociedade.

O FETICHE

Ao proceder à crítica da economia política do signo (1972), Baudrillard sustentou que o fetichismo da mercadoria, um atributo do valor de troca, não do seu valor de uso, foi ultrapassado pelo valor sígnico. A racionalidade do signo se autoatribui um valor em si: compram-se e vendem-se marcas sem levar junto a materialidade da empresa, das pessoas, do trabalho ali simbolizada. A racionalidade da produção real, do trabalho real, se encontra totalmente esvaziada.

Não há como o ser humano se realizar ou, muito menos, ser salvo pelo trabalho, como queriam Hegel e Marx. Isso porque não há mais como vincular o valor-trabalho com o produto. O próprio princípio do trabalho tornou-se flutuante, não havendo mais nenhuma equivalência entre o salário e a atividade. Como, perguntou-se Baudrillard, podemos justificar a diferença entre o salário de um piloto de Boeing, que tem responsabilidade sobre, digamos, 100 vidas em relação ao de um condutor de ônibus, que, por sua vez, tem a seu cuidado talvez 50 vidas?

O raciocínio é retomado em O espelho da produção (1973), em que ele procura demonstrar como a produção, não podendo mais obedecer à racionalidade romântica, passa a fetichizar (a lhe atribuir qualidades mágicas) o trabalho. O signo, pela hegemonia do código, muito mais do que uma mercadoria, permite um controle, uma exploração totalitária do esforço produtivo. O trabalho telemático é um trabalho simulado, como o dos simuladores de voo. Pode ser controlado à distância, e o seu resultado é inteiramente simbólico (Baudrillard, 1997).

Baudrillard argumenta que o valor de uso de um objeto – a sua utilidade em relação à satisfação de determinadas necessidades – e o valor de troca – o valor de mercado, o preço do objeto – se tornaram irrelevantes em face do valor de signo. Por exemplo, uma aliança de casamento tem um valor sígnico incomparável com seu valor de troca e não tem nenhum valor de uso (Lechte, 2002). Com isso, a assertiva de Marx de que o que distingue os homens dos animais não é o pensamento, mas a produção de seus meios de subsistência perde sentido. O duplo caráter do trabalho: trabalho social-abstrato / valor de troca e o trabalho concreto / valor de uso esconde um “vício secreto” que consiste em pensar que o trabalho industrial representa uma performance política. No Capital, Marx diz que o trabalho é o pai e a terra é a mãe da produção. Baudrillard se diverte com esse "eros produtivo". Com o valor do signo, a ideia de que o trabalho é a autoprodução, a auto-objetivação do homem, que o trabalho humaniza a natureza e naturaliza o homem, não se sustenta.

A partir dessa constatação, Baudrillard deduz que a existência humana não pode ser reduzida ao esforço produtivo. A ideologia tratou de universalizar a dimensão qualitativa e quantitativa do trabalho, articulando-as. Quantitativamente o trabalho foi transformado em valor monetário abstrato, mas qualitativamente ele não pode ser medido; então foi fetichizado. Na verdade, o trabalho se encontra universalizado não por seu valor de mercado, mas por seu valor humano: trabalha-se por necessidade social.

A RACIONALIDADE DO SIMULACRO

Em A troca simbólica e a morte (1976), Baudrillard prossegue na argumentação, afirmando que a troca simbólica perdeu seu caráter organizador uma vez que o campo simbólico só subsiste na forma do simulacro. Os simulacros substituíram as ideologias. O código marxista e o código freudiano escondem a perda do valor. O código da sociedade de consumo é o da salvação do corpo enquanto signo da saúde, da beleza, do erotismo. É o do desprezo pelo espírito, pela sensatez, pelo saber, pelo amor. Vale a função-signo, o corpo, que não é um artigo, uma mercadoria, mas um artifício de venda: um simulacro.

A violência que obriga ao esforço produtivo não existe mais. O trabalho se tornou uma demanda social, como o lazer. Cada vez menos energia humana é necessária à produção de coisas reais. Vive-se a dramaturgia do trabalho, com seus ritos, suas obrigações, suas férias, suas greves. Trabalhamos para gerar simulacros. O próprio trabalho é um simulacro onde o posto, o nível, o lugar, a organização identificam o signo. Nem o produto nem o esforço produtivo são valorizados. Só o simulacro.

Em Da sedução (1981), Baudrillard argui que a falta de sentido da vida, como forma encantada, e a sedução da produção, como forma desencantada, regem o mundo contemporâneo. Na sociedade do simulacro, da melancolia, o mal transparece no racismo, na xenofobia. A ideia do objeto determina uma ordem regida pela sedução que essa ideia exerce. O produto, material ou não, é evidente, visível. Não é sedutor. O simulacro é misterioso, oculto, suposto. Sob o domínio do universo simbólico, vivemos da sedução e morremos do fascínio (Bogard, 1990).

O signo estabelece a posição dos indivíduos e os laços sociais, tem uma racionalidade própria. Baudrillard critica as teorias que procuram estabelecer alguma coisa além do manifesto, que ele denomina “hermenêuticas da suspeição”. O marxismo, a psicanálise e o estruturalismo privilegiam a busca das racionalidades latentes, enquanto o verdadeiro problema é a “sedução” do superficial, do aqui e agora (Baudrillard, 1983).

A ideia de que as necessidades primárias governam a sociedade é um mito. Nenhum objeto existe isolado de outros: todo objeto é relacional. A diferenciação é categórica. Na sociedade de consumo, os objetos tornam-se signos, a economia definida pela necessidade é deixada para trás. A necessidade ou bem é psicológica ou bem é cultural. O estilo de vida e os valores – não a necessidade econômica – são a base da vida social. A distinção entre necessidades verdadeiras e falsas, artificiais e reais (Escola de Frankfurt e Galbraith), não faz sentido. É um moralismo.

Em Simulacros e simulação (1981), Baudrillard diz que a ilusão do sistema consiste em oferecer uma explicação perfeita descolada da realidade imperfeita. Sustenta que a sociedade e a economia funcionam porque as pessoas acreditam que existe uma racionalidade intrínseca na economia e na sociedade. O que ele chama de Disneyworld é a máquina invisível que dá suporte a essa crença. Em Disneyworld o trabalhador não é uma pessoa, mas um signo. O tempo está sincronizado, o espaço obliterado, ambos são representados em um mesmo contexto. Lidamos com uma metástase generalizada, o clone do mundo e do nosso universo mental (Baudrillard, 2000). O trabalho e o trabalho-lazer invadem a vida segundo um código espaçotemporal hegemônico.

O sistema hegemônico transforma os valores: impõe a cultura do simulacro, em que o sentido da existência é irreal, é simulado, em que o real é perdido, os significados são abolidos pela saturação dos signos. No sistema hegemônico, devemos todos, sob pena de repressão social, ter uma posição; no escritório como na praia, na fábrica como em frente à TV. O sistema nos treinou para crermos que o trabalho, a tecnologia, a cultura da informação, o lazer são desejáveis. A nossa realidade é codificada, é constituída de “senhas” (Baudrillard, 2000). Fomos “retribalizados” (Baudrillard, 1970) segundo o que consumimos. O trabalhador é uma cópia dos outros trabalhadores e, no tempo, uma cópia de si mesmo. Somos todos replicantes.

A LÓGICA DOS CÓDIGOS

A troca simbólica define domínios de racionalidade. Há um componente econômico na racionalidade do nosso tempo, mas há outras racionalidades: a de status, a sexual, a dos laços sociais, a da informação. No mundo em que vivemos, subsistem quatro lógicas diferentes:

1. a das operações práticas, que corresponde ao valor de uso – lógica da utilidade, o objeto é um instrumento;

2. a da equivalência, que corresponde ao valor de troca – lógica do mercado, o objeto é um bem;

3. a da ambivalência, que corresponde à troca simbólica – lógica do presente, o objeto é um símbolo, tem valor evocativo, mágico, cultural;

4. a da diferença, que corresponde ao valor do signo, ao código – lógica do status, o objeto é um signo, é um sinal, está por outra coisa.

O valor de uso e a força de trabalho são abstrações que não têm a ver com os bens produzidos, mas com a energia despendida pelo trabalhador. A economia escapa ao valor de uso e também ao valor simbólico. Os conceitos utilizados pelos liberais, pelos marxistas, pós-marxistas e freudianos já não se aplicam. A interpretação freudiana do signo e a que procede do estruturalismo (Saussure, Mauss, Lévi-Strauss) são equivocadas. O campo simbólico é marcado pela ambivalência, pela reciprocidade e pela transgressão. Passamos além: vivemos a era dos códigos.

Somos servos dos códigos (binário, DNA, digital). A era do código supera a era do signo. Não produzimos mais, re-produzimos. Codificamos para copiar. A simulação e o modelo são as chaves da nossa economia. Superamos a falsificação, que, no Renascimento, estabelecia a diferença entre o natural e o artificial. Superamos a produção, que, na era industrial, estabeleceu a diferença entre o produto e o processo de trabalho. Na era digital impera a simulação: dominada pelo código, a diferença entre a produção e a reprodução é anulada.

A crítica de Baudrillard às abordagens convencionais ao trabalho é a mesma de Derrida ao logocentrismo e de Foucault ao racionalismo: as epistemologias que aí estão são inadequadas para analisar o quadro de ocupações ligadas aos serviços, à informação e à dinâmica da vida contemporânea em geral. A nossa sociedade, como as sociedades primitivas e arcaicas, não é construída sobre a base do trabalho produtivo. A riqueza material provinda do binômio trabalho-investimento foi subsumida pela riqueza simbólica derivada do intercâmbio de destruição, desamparo, dádiva e transgressão.

A racionalidade dos códigos implica que a qualidade não precede a quantidade. A qualidade é concreta e natural, enquanto a quantidade é abstrata e artificial: refere-se ao salário pago. O sistema estrutural gerado pela articulação entre quantidade e qualidade é que leva à ideia de necessidade do trabalho produtivo. A autonomização do trabalho como categoria é um fetiche que não subsiste.

Na sociedade codificada não existe a liberdade nem do tempo livre. A forma como se gasta o tempo livre é distintivo de status, da posição que temos na sociedade. O tempo, como o trabalho, é um mecanismo funcional, não um ritmo (sucessão de momentos naturais de um ciclo). O tempo é função do modo de produção, encontra-se submetido ao mesmo estatuto da produção e do consumo. O tempo livre define-se pela ausência do tempo de trabalho, não pelo lazer.

Ocupações essenciais, como a execução de tarefas domésticas, a pesquisa, a criação cultural não são medidas. Não fazem parte dos índices e da racionalidade econômica. Pelo mesmo motivo, a mensurabilidade, a produção de coisas inúteis, como a moda, e a de coisas nocivas, como o tabaco, são medidas e valorizadas. A perspectiva virtual é um vestígio da realidade, como vestígios são o corpo, o sexo e o trabalho (Baudrillard, 1999).

O TRABALHO HIPER-REAL

O “sistema de necessidades” que rege o consumo, além de não se relacionar com o valor de uso, também não se relaciona com o desejo imposto. Estas são categorias do século XVIII. A universalização do trabalho é devida à “articulação estrutural” de dois termos: qualidade e quantidade. O trabalho foi universalizado não pelo valor de mercado, mas pelo valor que tem para o ser humano (Lane, 2002).

O trabalhador é um consumidor. Marx disse que o consumo é necessário para a reprodução da força de trabalho, que o trabalhador compra o necessário para subsistir. Baudrillard diz que o trabalhador compra sem conexão com a necessidade. Consome coisas de que não precisa – horas de internet gastas sem propósito, por exemplo –, e esse consumo faz mover a economia, como as empresas dot.com fazem mover a bolsa. O sistema mudou. O trabalhador descolou-se do produto. Produz mecanicamente, mas o produto foi subsumido pelo processo de produzir, e esse processo é regido pelo consumo.

Não existe algo como a liberdade do tempo improdutivo, como não existe a liberdade de produzir (de não produzir) e a liberdade de consumir (de não consumir). O tempo improdutivo tem um valor de status: é mercadoria e é signo. O trabalho tornou-se um objeto de consumo na medida em que se o prefere à ociosidade. O amor ao trabalho é confundido com a vida workaholic, a hiperatividade é confundida com a industriosidade, a laboriosidade com a criatividade; o patológico com o são. O trabalho se desmaterializou: o espaço privado e o organizacional se confundiram com o espaço público (Rogue, 2005).

Escapamos do mundo fordista para o mundo da fragmentação espacial da produção, materializado na interiorização e no deslocamento. A indústria de alta tecnologia substituiu as fábricas do século XX. Estamos na era da hiper-realidade, das empresas hiper-reais, como as da internet, que operam para além da materialidade do produto. O trabalho deixou de ser uma atividade para tornar-se uma operação (Baudrillard, 1990).

Neste mundo, o trabalhador vive entre a autonomia e a submissão. É autônomo para encontrar novos empregos, para se habilitar por si mesmo, para se deslocar. Mas é compelido à passividade do consumo induzido. Vive, produz e consome a artificialidade. O agir racional do trabalhador consiste em operar na hiper-realidade do sistema, em entrar na esfera dos significados flutuantes, dos sentidos flutuantes e da falta de sentido. Consiste em jogar com a ambivalência, já que o jogo não tem regras estáveis (Coulter, 2007), em adotar estratégias de risco, abandonando a posição objetiva radical de sujeito (Baudrillard, 1993, p. 150).

Baudrillard deixou escrito, a indiferença é a forma atonal de desafio do nosso tempo (1993). A grande barreira a ser superada pelo trabalhador é a do conforto que essa indiferença propicia.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
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