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Os modos da teleologia em Cuvier, Darwin e Claude Bernard

The modes of teleology in Cuvier, Darwin and Claude Bernard

Resumos

A biologia pré-darwiniana reconhecia nos seres vivos uma finalidade dupla: as diferentes estruturas orgânicas, além de estar constituídas e articuladas de modo a integrar um ser organizado, possibilitavam também a adequação desse ser a seu entorno. Todavia, esta dupla conformidade a fim, que Cuvier ainda concebe como um único conjunto de condições que definem a própria possibilidade de um organismo, na biologia contemporânea aparecerá cindida em duas ordens de fenômenos diferentes. Assim, após a identificação do ponto de inflexão na história das ciências da vida, no qual se gerou essa cisão, investigamos neste trabalho as condições conceituais que a exigiram e possibilitaram. Propomos como resposta que essa "mitose conceitual" teve sua razão de ser no fim da idéia clássica de economia natural; e sugerimos ainda que a mesma deve ser considerada no contexto de uma mudança no ideal de ordem natural próprio da história natural.

G. Cuvier; C. Darwin; C. Bernard; Teleologia; História da biologia


Pre-Darwinian biology acknowledged the existence in living beings of a double finality: different structures were not only constituted and articulated in such a way as to integrate an organized being, but they also allowed the fit of this being into its environment. However, this double conformity to ends, still conceived by Cuvier as an unique set of conditions that defined the very possibility of an organism, will in contemporary biology appear split into two different kinds of phenomena. Thus, after identifying the turning point in the history of life sciences where that partition happened, we shall analyze the conceptual conditions that made it both possible and necessary. We hold that this "conceptual mitosis" had its raison d'être in the end of the classical idea of natural economy; and we shall also argue that it must be considered in the context of a change in the ideal of natural order of natural history.

G. Cuvier.; C. Darwin; C. Bernard; Teleology; History of biology


ARTIGOS

Os modos da teleologia em Cuvier, Darwin e Claude Bernard

The modes of teleology in Cuvier, Darwin and Claude Bernard

Gustavo Caponi

Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq. gustavocaponi@newsite.com.br

RESUMO

A biologia pré-darwiniana reconhecia nos seres vivos uma finalidade dupla: as diferentes estruturas orgânicas, além de estar constituídas e articuladas de modo a integrar um ser organizado, possibilitavam também a adequação desse ser a seu entorno. Todavia, esta dupla conformidade a fim, que Cuvier ainda concebe como um único conjunto de condições que definem a própria possibilidade de um organismo, na biologia contemporânea aparecerá cindida em duas ordens de fenômenos diferentes. Assim, após a identificação do ponto de inflexão na história das ciências da vida, no qual se gerou essa cisão, investigamos neste trabalho as condições conceituais que a exigiram e possibilitaram. Propomos como resposta que essa "mitose conceitual" teve sua razão de ser no fim da idéia clássica de economia natural; e sugerimos ainda que a mesma deve ser considerada no contexto de uma mudança no ideal de ordem natural próprio da história natural.

Palavras-chave: G. Cuvier. C. Darwin. C. Bernard. Teleologia. História da biologia.

ABSTRACT

Pre-Darwinian biology acknowledged the existence in living beings of a double finality: different structures were not only constituted and articulated in such a way as to integrate an organized being, but they also allowed the fit of this being into its environment. However, this double conformity to ends, still conceived by Cuvier as an unique set of conditions that defined the very possibility of an organism, will in contemporary biology appear split into two different kinds of phenomena. Thus, after identifying the turning point in the history of life sciences where that partition happened, we shall analyze the conceptual conditions that made it both possible and necessary. We hold that this "conceptual mitosis" had its raison d'être in the end of the classical idea of natural economy; and we shall also argue that it must be considered in the context of a change in the ideal of natural order of natural history.

Keywords: G. Cuvier. C. Darwin. C. Bernard. Teleology. History of biology.

APRESENTAÇÃO

Como Uexkúll (1945, p.175) soube certa vez assinalar: "nos seres vivos adultos distinguimos uma dupla conformidade a fim: de um lado, cada organismo está adaptado conforme um fim em si mesmo, e de outro, o organismo está adaptado conforme a fim a seu entorno". E, de certo modo, era a ambas as formas de teleologia que Cuvier (1817, p.6) aludia na célebre formulação do princípio das condições de existência, "vulgarmente denominado princípio das causas finais", que encontramos em O reino animal (Le règne animal): "como nada pode existir se não reúne as condições que tornam sua existência possível" – podemos ler ali – "as diferentes partes de cada ser devem estar coordenadas de maneira que tornem possível o ser total, não somente em si próprio, mas também com relação àqueles seres que o circundam".

Todavia, esta dupla conformidade a fim que Cuvier concebe como um único conjunto de condições que definem a própria possibilidade de um organismo, no discurso da biologia contemporânea mostrar-se-á cindida em duas ordens de fenômenos diferentes. A primeira delas é a teleologia interna para a qual o próprio Bernard (1878, p. 340) reconhecia um papel fundamental na fisiologia. A segunda é esta adaptação do organismo a seu meio que só o darwinismo permitiu erigir como objeto de pesquisa científica (Sober, 1993, p. 83).

A teleologia interna, se quisermos ser mais exatos, é aquela à qual aludia Kant (1992, § 66, p. 296) na terceira crítica, quando definia um produto organizado da natureza como "aquele em que tudo é fim e, reciprocamente, meio". Ou, se preferirmos as palavras do próprio Bernard (1878, p. 137), podemos falar de um corpo organizado e defini-lo como um sistema onde "todas as ações parciais são solidárias e geradoras umas das outras". A outra conformidade a fim, no entanto, é aquela a que Darwin (1859, p. 200) fazia referência quando, em A origem das espécies (On the origin of species), afirmava que "cada detalhe da estrutura de toda criatura vivente (...) pode ser considerada de utilidade especial para alguma forma ancestral ou de utilidade especial na atualidade para os descendentes de dita forma, ora direta ora indiretamente, através das complexas leis do crescimento".

Mas, para além da correta distinção de ambas as ordens de teleologia, tema que já nos ocupou em trabalhos anteriores (cf. Caponi, 2001; 2002), o que aqui nos interessará são as razões do divórcio entre essas duas formas da conformidade a fim que, segundo dissemos, cabe verificar na biologia contemporânea. Assim, após a identificação do ponto de inflexão na história das ciências da vida no qual se gerou essa cisão, investigaremos as condições conceituais que a exigiram e possibilitaram.

Neste sentido, e reconhecendo que, por ora, só se trata de duas conjecturas a ser posteriormente desenvolvidas e justificadas, diremos que essa "mitose conceitual" teve sua razão de ser mais imediata no fim da idéia clássica de economia natural; e, a seguir, nos permitiremos sugerir que ela teve também uma razão mais mediata, ainda que talvez mais fundamental, numa mudança daquilo que, seguindo Toulmin, caracterizaremos como o 'ideal de ordem natural' próprio da história natural.

1. OS MODOS DA TELEOLOGIA

Como Russell (1916, p. 34) tem sublinhado, e apesar de que, conforme acabamos de ver, a formulação do princípio das condições de existência aluda, de certo modo, ao entorno dos organismos (cf. Grimoult, 1998, p. 15; Lopez Piñero, 1992, p. 23), as condições externas de existência, o ambiente, não são fatores muito considerados no pensamento de Cuvier. Nas análises funcionais das estruturas anatômicas que encontramos em seus textos, o entorno nunca chega a ser um entorno ecológico concreto, mas qualquer coisa genérica como podem ser um meio aquático ou terrestre, ou uma dieta herbívora ou carnívora.

"Por condições de existência", observava muito bem Foucault, "Cuvier entendia a interseção de dois conjuntos: de uma parte, o conjunto das correlações que são fisiologicamente compatíveis entre si e, da outra parte, o meio no qual o organismo vive, isto é: a natureza das moléculas que ele haverá de assimilar ora pela respiração ora pela alimentação" (Foucault, 1994, p. 34; cf. Cuvier, 1805, p. 4). Na idéia cuvieriana de condições de existência (conditions d'existence) entra alguma coisa mais vagamente semelhante ao meio cósmico (milieu cosmique) bernardiano que às condições de vida (conditions of life) darwinianas. É possível dizer, nesse sentido, que o enfoque de Claude Bernard fica mais próximo ao interesse de Cuvier que ao enfoque de Darwin; o que não é tão surpreendente, se considerarmos que, conforme Cuvier (1805, p. iii e ss.) explicava a Mertrud, a anatomia comparada era para ele basicamente um método para o estudo não experimental da fisiologia orgânica (Balan, 1979, p. 158).1 1 Hoje, no espaço de inteligibilidade inaugurado por Darwin, lemos a anatomia comparada como um conjunto de evidências que testemunham a evolução e a genealogia dos seres vivos, isto é, como uma disciplina pertencente ao campo da biologia evolutiva. Mas isto pode nos levar ao engano quando tentamos compreender o significado que essa disciplina tinha para Cuvier. Para ele, e isto é óbvio, a anatomia comparada não podia ter um significado genealógico mas, sim, morfológico e fisiológico. Sua meta era revelar padrões de correlação entre órgãos; leis relativas ao modo em que a forma e o funcionamento de um órgão determinavam a forma e o funcionamento de outro. E, neste sentido, pode-se dizer que, por seu objetivo cognitivo, que era o estudo da economia animal (Balan, 1979, p. 73), ainda que não por seu método, que era comparativo e não experimental (Appel, 1987, p. 47; Jacob, 1973, p. 201; Lenoir, 1982, p. 63), a anatomia comparada cuvieriana aproxima-se mais do domínio do que hoje chamamos biologia funcional do que do domínio da biologia evolutiva. Considerar o projeto bernardiano como sendo uma reformulação em termos experimentais do projeto de Cuvier é mais correto que considerar o pensamento deste último como sendo o empecilho que desbaratou uma "aurora gálica " do pensamento evolucionista (cf. Buffetaut, 2001; Coleman, 1964; Corsi, 2001; Grimoult, 1998; Laurent, 2001; Le Guyader, 1998b). Para nós, a expressão história natural só pode ser um modo mais literário, ainda que um tanto fora de moda, de se aludir à biologia evolutiva. Mas, para Cuvier (1817, p. 3-4), ela era equivalente à física particular (physique particulière); isto é, um conjunto de disciplinas cujo objeto era "aplicar aos numerosos e variados seres que existem na natureza, as leis reconhecidas pelos diferentes ramos da física geral, com o fim de explicar os fenômenos que cada um desses seres apresenta"; e, na medida em que era uma física aplicada ao estudo da economia animal, podemos dizer que história natural dos seres organizados (Lenoir, 1982, p. 63) era para Cuvier algo muito próximo do que hoje chamamos fisiologia (Balan, 1979, p. 73).

Por isso, e indo um pouco além de Russell (1916, p. 43; 1948, p. 286 n.), podemos dizer que Darwin não somente fez um uso restritivo da noção de condições de existência, mas acabou também por desvirtuar essa noção. Em A origem das espécies, na única referência que se faz ao princípio formulado por Cuvier, a expressão em questão é usada como equivalente a condições do ambiente (Darwin, 1859, p. 206). No entanto, para Cuvier, as condições de existência têm a ver, antes de mais nada, com a condição de possibilidade de um ser vivo considerado em si mesmo como um todo coerente e harmônico, ou organizado; e isso se faz evidente quando, num pequeno escrito sobre as analogias zoológicas (cf. Coleman, 1964, p. 189-90), a idéia de condições de existência aparece vinculada à idéia de não-contradição: "todas as combinações que são não-contraditórias são possíveis; em outras palavras, tudo aquilo que tem uma condição de existência, cujas partes cooperam numa ação comum, é possível" (Cuvier apud Coleman, 1964, p. 189).

Darwin, de sua parte, "tomou a expressão 'condições de existência' para significar as 'condições ambientais' e considerou a lei das condições de existência como a lei da adaptação ao ambiente" (Russell, 1916, p. 239). Mas, como o próprio Russell aponta, não era isso o que Cuvier entendia por tais expressões: em O reino animal, elas são introduzidas para aludir à "coordenação das partes na formação do todo" (cf. Lenoir, 1982, p. 63). Para Darwin, no entanto, as condições de existência, que ele torna homólogas das condições de vida, têm somente a ver com as contingências da luta pela sobrevivência.

Mas, mesmo que, das duas conformidades a fim previstas por Cuvier, Darwin só tenha retido como objeto de sua indagação aquela que esse autor deixou subordinada como segundo plano; isso não significa que a outra conformidade a fim tenha sido esquecida pela biologia. Longe disso, e conforme já o apontamos na apresentação, a fisiologia experimental, cujo projeto Bernard enuncia com total clareza na sua Introdução ao estudo da medicina experimental de 1865, não poderá deixar de assumir essa teleologia interna como sendo sua idéia reguladora fundamental: entender um fenômeno orgânico não somente exige contar com uma explicação causal que nos mostre quais são suas condições antecedentes; mas também pressupõe uma análise funcional capaz de indicar o papel desse fenômeno na constituição e preservação do organismo.

Como Kant o entreviu, sem a noção de organismo entendido como entidade auto-constituinte (sem a noção de produto organizado da natureza) nunca poderíamos passar do puro domínio da física ao domínio dessa física do vivente que é a biologia funcional (Keller, 2000, p. 106; Lebrun, 1993, p. 600; Marques, 1987, p. 192; Merleau-Ponty, 1953, p. 215); e era também a isso que Claude Bernard (1984, p. 137) chamava a atenção quando dizia que:

"Enquanto o físico ou o químico pode negar toda idéia de causas finais nos fatos que eles observam; o fisiólogo é levado a admitir uma finalidade harmônica e preestabelecida nos corpos organizados cujas ações parciais são solidárias e geradoras umas das outras. É necessário reconhecer, por isso, que se decompomos o organismo vivente isolando as diferentes partes, é somente para facilitar a análise experimental, e não para conceber essas partes isoladamente. Quando se quer dar a uma propriedade fisiológica seu valor e sua verdadeira significação, sempre é necessário remeter-se ao conjunto e não tirar nenhuma conclusão definitiva sem levar em consideração seus efeitos com relação a esse conjunto".

Por isso, enquanto fisiólogos filósofos, dizia Bernard (1878, p. 340), podemos admitir um tipo de finalidade particular ou de teleologia intra-orgânica, segundo a qual "todo ato de um organismo vivo tem seu fim na interioridade desse organismo"."O agrupamento dos fenômenos vitais em funções", acrescentava Bernard, "é a expressão desse pensamento". Com efeito, a função – nada menos que o objeto privilegiado da fisiologia (Coleman, 1985, p. 241) – não era outra coisa para Claude Bernard (1878, p. 370) que "uma série de atos ou de fenômenos agrupados, harmonizados, com vistas a um resultado determinado". E, ainda que, para a execução de uma função, "as atividades de uma multidão de elementos anatômicos" convergissem entre si, tal função não podia ser reduzida à "soma bruta das atividades elementares e células justapostas" (Bernard, 1878, p. 370). Longe disso, para individualizar uma função, para que seja possível descrever um conjunto de atividades orgânicas como cumprindo uma função, devemos considerar essas atividades como "harmonizadas, concertadas, de forma que convirjam para um resultado comum" (Bernard, 1878, p. 370).

Porém, para que possamos entender os organismos enquanto seres vivos – e não meramente como sistemas físicos de alta complexidade – temos que ir além da análise fisiológica e além da teleologia intraorgânica. Isto é: somos levados a considerar esta outra forma de conformidade a fim que tem a ver com a relação que existe entre o organismo e seu meio ambiente2 2 Relação que, como Conry (1974, p. 734) aponta, Bernard (1878, p. 147) deixava explicitamente fora do escopo e do interesse da fisiologia. . A teoria darwiniana da seleção natural aparece então como aquela que nos permite pensar essa adequação de uma perspectiva científica. Pode-se dizer, por isso, que a principal contribuição do darwinismo tem sido a de permitir uma colocação e um tratamento não-teológico daquele problema que Newton formulou, na vigésima oitava questão de sua Óptica: "Por que os corpos dos animais são projetados com tanta arte, e para que fins são suas várias partes?" (Newton, 2000, § 28, p. 279).

Quase coincidindo no seu ponto de partida com a teologia natural que encontramos em Paley e também em Lineu, o argumento apresentado em A origem das espécies está baseado na presunção de que o mundo orgânico pode e deve ser compreendido em virtude das adaptações que nele se manifestam; mas a teoria da seleção natural nos permite fazer isso sem que tenhamos de apelar para a idéia de um artífice supremo (Campbell, 1983, p. 192; Ruse, 1983, p. 323; Gould, 1994, p. 138; Brandon, 1999, p. 383).

A INVERSÃO DARWINIANA

Voltamos assim a nossa oposição inicial entre as duas teleologias: a de Kant ou Bernard, e a de Darwin. Porém, ao fazer isso, não podemos deixar de notar algo que tem a ver com o modo pelo qual se vinculam ambas as formas de adequação a fim. Referimo-nos, especificamente, ao fato de que, dentro da biologia contemporânea, a teleologia darwiniana é, em certo sentido, o fundamento ou a razão de ser da teleologia intra-orgânica. É que, mesmo sem esquecer que o fisiólogo e o biólogo funcional não precisam, em geral, nem da idéia de seleção natural, nem da idéia de um projeto divino para dizer que a função do coração é bombear o sangue;3 3 A noção de ser organizado, por si própria, serve de sustentação categorial para esse juízo: Harvey nada deve, nesse sentido, nem a Darwin nem a Paley. se nos perguntamos sobre como é possível que existam seres cujas partes ou totalidade sejam meios e fins ao mesmo tempo, talvez, a única forma, permitida pela ciência atual, de levantar e responder essa pergunta seja aquela proposta por Darwin.

A presunção de que no organismo nada é em vão – presunção essa legitimada por Kant (1992, § 66 p. 296) como máxima na terceira crítica – não corresponde à idéia darwiniana segundo a qual cada estrutura orgânica responde, direta ou indiretamente, às exigências da seleção natural. Porém, uma tal presunção está baseada num certo princípio de economia: "nada há no organismo que não tenha um papel a cumprir"; e esse eco da navalha de Occam parece antecipar ou pedir uma fundamentação darwiniana: se não é um austero Deus pietista, quem poderia estar por trás dessa frugalidade vitoriana senão a cruel seleção natural? (cf. Darwin, 1859, p. 455).

Para Kant, a estrutura e o funcionamento dos seres organizados, e até sua constituição individual, podiam e deveriam ser objeto da ciência natural. Para ele, a idéia do que temos chamado de teleologia interna funcionava como um princípio heurístico, uma máxima, que guiava a análise causal. Ela, como apontou Cassirer (1967, p. 400), "prepara o terreno para a explicação causal assinalando os fenômenos e os problemas sobre os quais ela haverá de projetar-se". Mas, para o próprio Kant, a condição de possibilidade dos seres auto-organizados era algo que fugia a qualquer explicação em termos da ciência natural; por isso, no parágrafo 75 da terceira crítica, Kant reputa como um absurdo "esperar que um Newton possa ainda nascer para explicar mesmo que seja apenas a geração de uma folha de erva a partir de leis da natureza as quais nenhuma intenção organizou" (Kant, 1992, §75, p. 338). Assim, não sendo esta questão objeto da ciência natural, ela só podia permanecer como motivo de mera reflexão teológica (cf. Kant, 1992, §75, p. 338-9).

E eis precisamente o lugar onde se dá a grande ruptura do darwinismo: a teoria da seleção natural permitiu que entendêssemos a existência desses seres econômicos e austeros, nos quais cada coisa tem uma função a cumprir, sem apelar para a teologia do artífice supremo. Ali onde só parecia caber uma reflexão teológica, Darwin nos fez ver a forma e a possibilidade de um novo domínio de indagação científica. Aquilo que até então estava prometido à teologia transformara-se, com ele, em assunto de ciência (Sober, 1993, p. 82 e ss.).

Mas, malgrado Haeckel,4 4 Obnubilado pela sua interpretação mecanicista da teoria da evolução, Haeckel acredita replicar a Kant dizendo que "no entanto esse Newton, reputado impossível, apareceu sessenta anos mais tarde. Foi Darwin que, com a teoria da seleção, resolveu o problema reputado insolúvel" (Haeckel, 1961, p. 77). Darwin não foi, falando estritamente, aquele "Newton da folha de erva" ao qual Kant aludia; porque, longe de excluir a finalidade da biologia, o que aquele ex-tripulante do Beagle fez, foi mostrar como é que uma tal finalidade poderia tornar-se inteligível dentro de uma perspectiva naturalista. Todavia, para que essa naturalização da teleologia fosse possível, era mister inverter a maneira como a biologia pré-darwiniana vinculava a teleologia intra-orgânica com a adequação das estruturas orgânicas ao meio.

Com efeito, relativamente à maneira pela qual a perspectiva cuvieriana relaciona as duas teleologias, a relação estabelecida por Darwin implica uma inversão de hierarquias. Na biologia darwiniana, de certo modo, as exigências do meio são primárias com relação à estrutura interna do organismo. Isso não significa que, para Darwin, a estrutura interna do organismo não conte. Apenas que ela não é a chave principal para se entender o fenômeno biológico. Isso é exatamente o oposto do que, segundo vimos mais acima, acontece na perspectiva cuvieriana. Ali, o que chamamos de teleologia interna é o fundamental. É mister, portanto, não confundir o funcionalismo cuvieriano com o adaptacionismo darwiniano.

Assim, ainda que Amundson tenha razão ao apontar a importância da oposição entre a perspectiva darwiniana e a perspectiva morfológica ou estruturalista da biologia pré-darwiniana; ele está incorrendo numa confusão quando vincula essa última oposição àquela outra aludida por Russell em Forma e função (cf. Admudson, 1988, p. 154). Nesta obra, no contexto de uma comparação entre as perspectivas de Cuvier e de Etienne Geoffroy Saint-Hilaire, Russell (1916, p. 78) contrapõe "a atitude teleológica, com a sua insistência na prioridade da função sobre a estrutura, à atitude morfológica, com o seu convencimento da prioridade da estrutura sobre a função". Ademais, Russell considera esse contraste "um dos mais fundamentais da biologia".

Porém, o que ali Russell entende por atitude teleológica não é o privilégio do estudo da adaptação do organismo ao ambiente sobre a análise de sua coerência estrutural. Trata-se, antes, do privilégio do estudo da unidade funcional do organismo sobre o estudo de sua pauta morfológica. Russell, é verdade, fala de adaptação funcional, mas o que ele entende por isso não é a adaptação darwiniana às condições de vida, mas antes a adequação de uma estrutura à sua função na economia animal. De fato, no que tange à oposição por ele colocada, e conforme se evidencia dois parágrafos mais abaixo, Russell põe Darwin ao lado de Geoffroy e não ao lado de Cuvier. Já no que diz respeito à oposição pertinentemente salientada por Admudson, Cuvier – como bem apontavam Webster e Goodwin (1996, p. 15 e ss.) – fica do mesmo lado de Geoffroy e de Owen; isto é: do lado do estruturalismo e da tipologia, na calçada oposta à de Darwin.5 5 Podemos encontrar erros análogos ao de Admudson em Ruse (1983) e em Gould (2002). Assim, em A revolução darwiniana e citando este célebre parágrafo de Forma e função, Ruse (1983, p. 189) vincula o que Russell chama de atitude teleológica com o modo utilitário de entender as estruturas biológicas proposto pelos teólogos como Paley (1809). O comentário de Ruse abona, ademais, o duplo erro que cometem Coleman (1964, p. 43) e Appel (1987, p. 46) ao vincular o funcionalismo cuvieriano com uma teleologia a la Paley que, por sua vez, ambos confundem com o pensamento aristotélico (cf. McClellan, 2001, p. 7). Gould (2002, p. 329), de sua parte, considera o conflito entre o formalista Owen e o adaptacionista Darwin como um replay da polêmica entre o formalista Geoffroy e o funcionalista Cuvier. Na realidade, e até onde pudemos apreciar sua derradeira e monumental The structure of evolutionay theory, Gould (cf. 2002, p. 251) não toma muito cuidado em distinguir funcionalismo de adaptacionismo.

2. O KANTISMO CUVIERIANO

Sem negligenciar definitivamente o estudo de qualquer coisa semelhante a isso que hoje, darwinianamente, chamamos de adaptação, acontece que tanto o projeto cuvieriano quanto o bernardiano (Bernard, 1878, p. 340; 1984, p. 137; Cuvier, 1805, p. 46) centravam-se nessa teleologia intra-orgânica que Kant, segundo já o apontamos, tinha considerado como inerente à definição de ser organizado (Russell, 1916, p. 35; Cassirer, 1948, p. 161).6 6 Por isso, ainda quando tenha razão em apontar que a posição de Cuvier não supõe o apelo a uma teleologia a la Paley, McClellan (2001, p. 7) se equivoca ao não reconhecer o lugar que a teleologia interna, a la Kant, continua a ter tanto no pensamento de Cuvier quanto no de Bernard. Assim o reconhece Cuvier (1805, p. 6) nas primeiras páginas de suas Lições de anatomia comparada, quando cita textual e explicitamente a noção kantiana de ser organizado.

Mas esse interesse se exprime melhor no princípio de correlação das formas nos seres organizados introduzido no "Discurso preliminar" ao Pesquisas sobre os ossamentos fósseis dos quadrúpedes (Recherches sur les ossements fossiles de quadrupèdes) de 1812. Segundo este outro princípio, que é a genuína pedra basilar do projeto cuvieriano (Russell, 1916, p. 35; Le Guyader, 1998a, p. 24), "todo ser organizado forma um conjunto, um sistema único e fechado, no qual todas as partes se correspondem mutuamente, e convergem para a mesma ação definitiva por uma reação recíproca" (Cuvier, 1992, p. 97). Do ponto de vista de Cuvier, para que um organismo possa adaptar-se às exigências do seu ambiente num sentido mais ou menos próximo ao darwiniano, devia ser antes uma estrutura possível, isto é, uma estrutura submetida às constrições formais derivadas desse princípio de correlação das formas.

Sob esta perspectiva, complementada por sua vez pelo princípio da subordinação dos caracteres (Cuvier, 1817, p. 10), as estruturas anatômicas, que definem o modo pelo qual um animal se vincula ao seu entorno e às suas fontes de alimento, são um corolário de sua organização interna (id., ibid., p. 69). Grande parte do que hoje poderíamos chamar estratégias ou estruturas adaptativas era, para Cuvier (1805, p. 57), uma resultante necessária de certas leis de coexistência que regem a fisiologia dos organismos, e não uma simples resposta às exigências do ambiente.

Assim, e conforme lemos em O reino animal (Cuvier, 1817, p. 70-1), "é a respiração moderada dos mamíferos o que em geral os dispõe a marchar sobre a terra com força e de uma maneira contínua"; e é em virtude dessa mesma necessidade, e não pela mediação de algum processo lamarckiano ou darwiniano de adaptação, que "um animal que não pode digerir outra coisa que carne, deve, sob pena de destruição da sua espécie, ter a faculdade de perceber sua presa, de persegui-la, de capturá-la, de vencê-la, de despedaçá-la". Ele precisa, por isso e de maneira imperiosa, diz Cuvier, "de uma visão aguda, de um olfato delicado, de uma carreira rápida, e de força nas patas e nas mandíbulas" (Cuvier, 1805, p. 55).

Para Cuvier, um organismo é um sistema cuja harmonia ou coerência interna, sua condição de existência, somente pode ser percebida considerando sua inserção no entorno; mas seu modo de inserção nesse entorno não é independente de sua própria organização interna: um aspecto não pode ser considerado sem o outro. Isto é: na sua concepção da teleologia orgânica, a adequação ao entorno não somente está subordinada, mas é também absorvida na teleologia interna; esta é um aspecto daquela (cf. Nordenskiöld, 1949, p. 383; Gohau, 1974, p. 90; Le Guyader, 1988, p. 114).

Eis aí, mais uma vez, a grande e dupla diferença entre o ponto de vista cuvieriano e o darwiniano. Pois, em Darwin, existe não apenas uma inversão na hierarquia das teleologias; senão que, já antes, e como condição de possibilidade dessa mesma inversão, foi mister que acontecesse uma radical cisão entre ambas noções. Porém, se essa separação entre a teleologia de Kant e a de Paley, ou entre a teleologia de Bernard e a de Darwin, pode ser considerada como sendo um princípio de funcionamento legitimado pelos desenvolvimentos da biologia contemporânea, isso não obsta que, de uma perspectiva epistemológica, perguntemo-nos pelos fundamentos dessa separação. E é claro que nada pode estar mais longe de nosso interesse que pretender denunciar aqui qualquer coisa semelhante a um esquecimento de Cuvier, a uma ocultação da integralidade do ser vivo, ou a uma obliteração da continuidade existente entre as suas finalidades interna e externa.

Como estamos muito longe da tentação de escrever um manifesto holista, o que nos interessa fazer é antes perguntarmo-nos pelas razões, fundamentos e condições de inteligibilidade e visibilidade da cisão que temos apontado. Richard Lewontin (2000, p. 47) tem razão: "a separação do interno e do externo, proposta por Darwin, constituía um passo absolutamente essencial para o desenvolvimento da biologia moderna"; mas essa separação exigiu uma mutação epistemológica, cuja natureza e magnitude nem sempre têm sido devidamente apreciadas. A grande pergunta é: de que exigências, de que pressupostos e, se assim quisermos, de que obstáculos nosso modo de pensar o vivente teve de se libertar para poder dar esse grande passo?

3. DUAS CONJECTURAS

Assim, como primeiro ponto de inflexão, podemos assinalar o rompimento darwiniano com a interpretação biológica da idéia de economia natural corrente no final do século XVIII e início do XIX (Limoges, 1972, p. 9; Avila-Pires, 1999, p. 158). Como Limoges (1976, p. 77 e ss.) soube mostrar, e independentemente do fato de Darwin continuar a usar a expressão "economia natural" (Limoges, 1972, p. 9), o recurso à seleção natural como mecanismo capaz de produzir adaptações exigiu o abandono da forma sob a qual essa idéia se apresenta, sobretudo, nas obras de Lineu (1972a; 1972b); e esse abandono, por sua vez, tornou inviável a continuidade entre a economia animal e a economia natural que fica pressuposta no enunciado cuvieriano do princípio das condições de existência (Daudin, 1926, p. 58; Conry, 1974, p. 363; Balan, 1979, p. 159; Coleman, 1985, p. 38).

Desse modo, quebrada tal continuidade, o estudo da economia animal ficou condenado àquela fértil liberdade experimental que deu origem à fisiologia moderna: se a economia animal não está subordinada à economia natural, então ela é relativamente autônoma com relação à ordem cósmica e, portanto, pode ser estudada (assim como perturbada e manipulada experimentalmente) com relativa independência desta última ordem.

Porém, e também como efeito dessa ruptura, a história natural poderá reconhecer que, entre as formas vivas e o meio, existe uma relação que, para dizê-lo sumariamente, é sintética, e não analítica; uma relação que, longe de ser necessária, é o produto de uma série de contingências históricas que, em cada caso, é preciso reconstruir. Assim, uma vez quebrada a continuidade entre a ordem interna do organismo e sua inserção na ordem natural geral7 7 Num parágrafo de A lógica do vivente (La logique du vivant), François Jacob (1973, p. 16) distingue a biologia funcional da biologia evolutiva apontando que cada uma delas "aspira a instaurar uma ordem no mundo vivente". No caso da primeira, trata-se de uma ordem inter-orgânica; e no caso da segunda, de uma ordem intra-orgânica; mas o que Jacob não vê é que essa distinção não é conatural a toda ciência do vivente: na biologia pré-darwiniana, tal distância não era possível porque a continuidade entre a economia natural e a economia animal a tornava ininteligível. , a noção de adaptação poderá emergir como um conceito distinto daquele de função, isto é, a adaptação orgânica, entendida no sentido darwiniano do termo, recortar-se-á como algo visível.

Com efeito, numa perspectiva na qual se suponha uma clara continuidade entre a economia animal e a economia natural não há margem nem de inteligibilidade nem de visibilidade para a adaptação darwiniana. Numa tal perspectiva, os fenômenos, que depois virão a ser pensados com base nessa última categoria, serão ora negligenciados ora deixados num segundo plano e, nesse caso, sempre serão pensados ou como funções, no sentido fisiológico do termo, ou, em última instância, como curiosidades apropriadas à reflexão teológica.8 8 Nesse sentido é importante lembrar a insistência de autores como Limoges (1976, p. 38) e Barthelemy-Maudele (1979, p. 117) no fato de que não cabe procurar em Lamarck nenhuma noção que realmente anuncie a noção darwiniana de adaptação. Como se esse tema, tão caro aos teólogos e aos espíritos ingênuos, não fosse apto à indagação científica.

Mas, essa abertura ou interesse da biologia darwiniana pela singularidade e pela casuística da adaptação orgânica envolve, pensamos, uma outra diferença fundamental entre seu ponto de vista e o ponto de vista cuvieriano. Referimo-nos àquilo que, apelando para Toulmin (1973, p. 49), podemos caracterizar como uma mudança na concepção do ideal de ordem natural que está na base de uma e outra perspectiva. Entre Cuvier e Darwin, acreditamos existir uma diferença fundamental a respeito do que deve ser considerado como um evento digno de explicação: para o primeiro, o que deve ser explicado é a constância e permanência de certas regularidades que se verificam no modo pelo qual se organizam os seres vivos; para o segundo, no entanto, o que deve ser explicado não é a constância das formas, mas antes sua diversificação.

Por trás da multiplicidade das formas vivas, Cuvier (1817, p. 57) adivinhava quatro modos fundamentais de organização e o grande enigma da história natural era, nessa perspectiva, o porquê de tais planos fundamentais, sendo o estudo das leis da forma o que nos revelaria sua razão de ser. Mas, dentro das margens estabelecidas por essas leis da forma, dentro desses limites que estabelecem o repertório dos seres possíveis, Cuvier atribuía à natureza o poder e a propensão de gerar, espontaneamente, todas as variantes viáveis de seres vivos:

"permanecendo sempre dentro dos limites prescritos pelas condições necessárias de existência, a natureza se abandona a toda sua fecundidade naquilo que tais condições não a limitam; e sem jamais sair do pequeno número das possíveis combinações que se podem dar entre as modificações essenciais dos órgãos importantes, ela parece ter-se permitido variar ao infinito em todas as partes acessórias" (Cuvier, 1805, p. 58).

Nesse caso, dizia Cuvier (1805, p. 58), nem sequer é preciso que uma modificação seja útil para que ela seja realizada: "é suficiente que ela seja possível, isto é, que ela não destrua o acordo do conjunto" (cf. Russell, 1916, p. 38). Ainda que não seja de uma maneira explícita, Cuvier, tal como indica Coleman (1964, p. 17), parece acreditar que, dados os limites estabelecidos pelo princípio da correlação das partes, "tudo o que pode existir efetivamente existe, e tudo o que não existe não pode existir". Isto é, sem aceitar já a idéia da scala naturae, Cuvier aceita ainda aquilo que Lovejoy (1936, p. 52) chamou princípio de plenitude: o pressuposto, a confiança ou o temor secreto de que tudo aquilo que pode existir, e cuja existência não contradiz a existência de alguma outra coisa, de fato existe.

Esse pressuposto define a concepção do ideal de ordem natural de seu programa de pesquisa: a variedade e a multiplicidade das formas são dadas como algo óbvio, como aquilo que não precisa de explicação, como o estado ou o devir natural das coisas. Analogamente ao que acontece com o movimento retilíneo e uniforme na física clássica, no pensamento de Cuvier, o florescimento da variedade não precisa ser explicado: ça va de soi. A natureza é pródiga em formas e combinações (Russell, 1916, p. 38); se não há razões para que algo não exista, por que não haveria de existir?

O que se deve, todavia, explicar é o desvio dessa ordem natural ideal: a saída do movimento retilíneo e uniforme no caso da física clássica e, no caso da história natural cuvieriana, a existência de hiatos ou lacunas no plexo dos seres existentes que nos falam de aparentes possibilidades que não foram realizadas. Sendo as constrições formais, derivadas do princípio da correlação das partes, as chaves que nos explicam a existência desses intervalos que menoscabam a plenitude do mundo dos seres vivos (cf. Coleman, 1964, p. 171-2).

No entanto, no caso de Darwin, é a variedade aquilo que deve ser explicado: na sua perspectiva, não há diferença que não tenha uma razão de ser; e a mesma deve ser encontrada caso a caso. Na teoria darwiniana, não se pressupõe nenhuma força ou lei que leve à mudança e à diversificação dos seres vivos; e, para cada afastamento do tipo primitivo, para cada diferença registrada, deve haver alguma explicação que nos mostre que essa divergência do tipo responde a uma exigência da seleção natural.

"O mundo darwiniano", como muito bem apontou Conry (1974, p. 354), "já não reconhece o princípio de plenitude". A natureza darwiniana, ao contrário da cuvieriana, não é pródiga; ela é, pelo contrário, uma natureza austera e parcimoniosa; nela, entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem; nela, toda variação tem um custo e esse custo deve ser justificado por algum ganho. É a teoria da seleção natural que nos ensina a reconstruir, para cada caso particular, esse balanço entre ganhos e perdas que se constitui na razão de ser de todas as diferenças.

Enquanto que, em Cuvier, a variedade e a multiplicidade das formas são dados primitivos que nossa análise deve transcender na procura de regularidades e de limites a serem explicados; em Darwin, são as diferenças que, caso a caso, devem ser explicadas como aquilo que, em princípio, não tínhamos porque esperar. O movimento retilíneo uniforme do mundo darwiniano, o que nele é o estado natural das coisas, o ideal de ordem natural, é sempre a permanência do ancestral comum primitivo; e é o afastamento dessa forma ancestral o que, em cada caso particular, deve ser explicado. Por estranho que pareça, o mundo darwiniano, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o mundo de Lamarck, não é um mundo natural ou espontaneamente propenso à mudança.

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  • 1
    Hoje, no espaço de inteligibilidade inaugurado por Darwin, lemos a anatomia comparada como um conjunto de evidências que testemunham a evolução e a genealogia dos seres vivos, isto é, como uma disciplina pertencente ao campo da biologia evolutiva. Mas isto pode nos levar ao engano quando tentamos compreender o significado que essa disciplina tinha para Cuvier. Para ele, e isto é óbvio, a anatomia comparada não podia ter um significado genealógico mas, sim, morfológico e fisiológico. Sua meta era revelar padrões de correlação entre órgãos; leis relativas ao modo em que a forma e o funcionamento de um órgão determinavam a forma e o funcionamento de outro. E, neste sentido, pode-se dizer que, por seu objetivo cognitivo, que era o estudo da economia animal (Balan, 1979, p. 73), ainda que não por seu método, que era comparativo e não experimental (Appel, 1987, p. 47; Jacob, 1973, p. 201; Lenoir, 1982, p. 63), a anatomia comparada cuvieriana aproxima-se mais do domínio do que hoje chamamos biologia funcional do que do domínio da biologia evolutiva. Considerar o projeto bernardiano como sendo uma reformulação em termos experimentais do projeto de Cuvier é mais correto que considerar o pensamento deste último como sendo o empecilho que desbaratou uma
    "aurora gálica
    " do pensamento evolucionista (cf. Buffetaut, 2001; Coleman, 1964; Corsi, 2001; Grimoult, 1998; Laurent, 2001; Le Guyader, 1998b). Para nós, a expressão história natural só pode ser um modo mais literário, ainda que um tanto fora de moda, de se aludir à biologia evolutiva. Mas, para Cuvier (1817, p. 3-4), ela era equivalente à física particular
    (physique particulière); isto é, um conjunto de disciplinas cujo objeto era "aplicar aos numerosos e variados seres que existem na natureza, as leis reconhecidas pelos diferentes ramos da física geral, com o fim de explicar os fenômenos que cada um desses seres apresenta"; e, na medida em que era uma física aplicada ao estudo da economia animal, podemos dizer que história natural dos seres organizados (Lenoir, 1982, p. 63) era para Cuvier algo muito próximo do que hoje chamamos fisiologia (Balan, 1979, p. 73).
  • 2
    Relação que, como Conry (1974, p. 734) aponta, Bernard (1878, p. 147) deixava explicitamente fora do escopo e do interesse da fisiologia.
  • 3
    A noção de ser organizado, por si própria, serve de sustentação categorial para esse juízo: Harvey nada deve, nesse sentido, nem a Darwin nem a Paley.
  • 4
    Obnubilado pela sua interpretação mecanicista da teoria da evolução, Haeckel acredita replicar a Kant dizendo que "no entanto esse Newton, reputado impossível, apareceu sessenta anos mais tarde. Foi Darwin que, com a teoria da seleção, resolveu o problema reputado insolúvel" (Haeckel, 1961, p. 77).
  • 5
    Podemos encontrar erros análogos ao de Admudson em Ruse (1983) e em Gould (2002). Assim, em
    A revolução darwiniana e citando este célebre parágrafo de
    Forma e função, Ruse (1983, p. 189) vincula o que Russell chama de atitude teleológica com o modo utilitário de entender as estruturas biológicas proposto pelos teólogos como Paley (1809). O comentário de Ruse abona, ademais, o duplo erro que cometem Coleman (1964, p. 43) e Appel (1987, p. 46) ao vincular o funcionalismo cuvieriano com uma teleologia
    a la Paley que, por sua vez, ambos confundem com o pensamento aristotélico (cf. McClellan, 2001, p. 7). Gould (2002, p. 329), de sua parte, considera o conflito entre o formalista Owen e o adaptacionista Darwin como um
    replay da polêmica entre o formalista Geoffroy e o funcionalista Cuvier. Na realidade, e até onde pudemos apreciar sua derradeira e monumental
    The structure of evolutionay theory, Gould (cf. 2002, p. 251) não toma muito cuidado em distinguir funcionalismo de adaptacionismo.
  • 6
    Por isso, ainda quando tenha razão em apontar que a posição de Cuvier não supõe o apelo a uma teleologia
    a la Paley, McClellan (2001, p. 7) se equivoca ao não reconhecer o lugar que a teleologia interna,
    a la Kant, continua a ter tanto no pensamento de Cuvier quanto no de Bernard.
  • 7
    Num parágrafo de
    A lógica do vivente (La logique du vivant), François Jacob (1973, p. 16) distingue a biologia funcional da biologia evolutiva apontando que cada uma delas "aspira a instaurar uma ordem no mundo vivente". No caso da primeira, trata-se de uma ordem inter-orgânica; e no caso da segunda, de uma ordem intra-orgânica; mas o que Jacob não vê é que essa distinção não é conatural a toda ciência do vivente: na biologia pré-darwiniana, tal distância não era possível porque a continuidade entre a economia natural e a economia animal a tornava ininteligível.
  • 8
    Nesse sentido é importante lembrar a insistência de autores como Limoges (1976, p. 38) e Barthelemy-Maudele (1979, p. 117) no fato de que não cabe procurar em Lamarck nenhuma noção que realmente anuncie a noção darwiniana de adaptação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
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