Acessibilidade / Reportar erro

Impacto na mortalidade da admissão de pacientes em unidade de terapia intensiva durante a passagem de plantão: estudo de coorte utilizando escore de propensão

RESUMO

Objetivo:

Avaliar o impacto na mortalidade da admissão em unidade de terapia intensiva durante passagem de plantão médico.

Métodos:

Análise post-hoc de estudo original publicado previamente, com o objetivo de avaliar os impactos da readmissão em unidade de terapia intensiva nos desfechos clínicos. Este estudo de coorte retrospectivo, em centro único, com pareamento por escore de propensão, foi conduzido em uma unidade de terapia intensiva geral, aberta, com 41 leitos. Com base no tempo de internação na unidade de terapia intensiva, os pacientes foram categorizados em duas coortes: Grupo Passagem de Plantão (admissão entre 6h30 e 7h30 ou 18h30 e 19h30) ou Grupo Controle (internação entre 7h31 e 18h29 ou 19h31 e 6h29). Pacientes no Grupo Passagem de Plantão foram pareados com Grupo Controle na proporção de 1:2.

Resultados:

Entre 1° de junho de 2013 e 31 de maio de 2015, 6.650 pacientes adultos foram admitidos na unidade de terapia intensiva. Após a exclusão de participantes inelegíveis, 5.779 pacientes (389; 6,7% no Grupo de Admissão na Passagem de Plantão e 5.390; 93,3% no Grupo de Controle) foram elegíveis para pareamento por escore de propensão, dos quais 1.166 foram pareados com sucesso (389; 33,4% no Grupo Passagem de Plantão e 777; 66,6% no Grupo Controle). Após pareamento, admissão na unidade de terapia intensiva durante a passagem plantão não foi associada ao aumento da chance de óbito na unidade de terapia intensiva (RC: 1,40; IC95%: 0,92-2,11; p=0,113) ou no hospital (RC: 1,23; IC95%: 0,85-1,75; p=0,265).

Conclusão:

Internação em unidade de terapia intensiva durante passagem de plantão médico não impactou na mortalidade hospitalar.

Descritores:
Transferência da responsabilidade pelo paciente; Segurança do paciente; Avaliação de resultados da assistência ao paciente; Unidades de terapia intensiva/estatística & dados numéricos; Comunicação; Readmissão do paciente; Alta do paciente; Mortalidade hospitalar; Recursos em saúde/estatística & dados numéricos

ABSTRACT

Objective:

To investigate the impact of intensive care unit admission during medical handover on mortality.

Methods:

Post-hoc analysis of data extracted from a prior study aimed at addressing the impacts of intensive care unit readmission on clinical outcomes. This retrospective, single-center, propensity-matched cohort study was conducted in a 41-bed general open-model intensive care unit. Patients were assigned to one of two cohorts according to time of intensive care unit admission: Handover Group (intensive care unit admission between 6:30 am and 7:30 am or 6:30 pm and 7:30 pm) or Control Group (intensive care unit admission between 7:31 am and 6:29 pm or 7:31 pm and 6:29 am). Patients in the Handover Group were propensity-matched to patients in the Control Group at a 1:2 ratio.

Results:

A total of 6,650 adult patients were admitted to the intensive care unit between June 1st 2013 and May 31st 2015. Following exclusion of non-eligible participants, 5,779 patients (389; 6.7% and 5,390; 93.3%, Handover and Control Group) were deemed eligible for propensity score matching. Of these, 1,166 were successfully matched (389; 33.4% and 777; 66.6%, Handover and Control Group). Following propensity-score matching, intensive care unit admission during handover was not associated with increased risk of intensive care unit (OR: 1.40; 95%CI: 0.92-2.11; p=0.113) or in-hospital (OR: 1.23; 95%CI: 0.85-1.75; p=0.265) mortality.

Conclusion:

Intensive care unit admission during medical handover did not affect in-hospital mortality in this propensity-matched, single-center cohort study.

Keywords:
Patient handoff; Patient safety; Patient outcome assessment; Intensive care units/statistics & numerical data; Communication; Patient readmission; Patient discharge; Hospital mortality; Health resources/statistics & numerical data

INTRODUÇÃO

A demanda global crescente por leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) reflete o aumento da expectativa de vida e a prevalência crescente de enfermidades crônicas.(11. Estenssoro E, Alegría L, Murias G, Friedman G, Castro R, Nin Vaeza N, Loudet C, Bruhn A, Jibaja M, Ospina-Tascon G, Ríos F, Machado FR, Biasi Cavalcanti A, Dubin A, Hurtado FJ, Briva A, Romero C, Bugedo G, Bakker J, Cecconi M, Azevedo L, Hernandez G; Latin-American Intensive Care Network (LIVEN). Organizational issues, structure, and processes of care in 257 ICUs in Latin America: a study from the Latin America Intensive Care Network. Crit Care Med. 2017;45(8):1325-36.) Considerando a disponibilidade limitada de leitos de UTI, a melhoria das características organizacionais e operacionais dessa unidade é fundamental, para maior eficiência e melhores desfechos. No Brasil, a maioria da UTIs conta com intensivistas em tempo integral, isto é, 24 horas por dia, 7 dias por semana.(22. Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015; 41(12):2149-60.) Assim, a transferência frequente do cuidado entre profissionais da saúde é esperada.

A passagem do plantão consiste na transferência das informações do paciente, do planejamento terapêutico e das responsabilidades do profissional que está de saída para o profissional que chega.(33. Alsolamy S, Al-Sabhan A, Alassim N, Sadat M, Qasim EA, Tamim H, et al. Management and outcomes of patients presenting with sepsis and septic shock to the emergency department during nursing handover: a retrospective cohort study. BMC Emerg Med. 2018;18(1):3.) Associações entre passagem inadequada de plantão e desfechos clínicos já foram relatadas.(44. Petersen LA, Brennan TA, O’Neil AC, Cook EF, Lee TH. Does housestaff discontinuity of care increase the risk for preventable adverse events? Ann Intern Med. 1994;121(11):866-72.66. Kitch BT, Cooper JB, Zapol WM, Marder JE, Karson A, Hutter M, et al. Handoffs causing patient harm: a survey of medical and surgical house staff. Jt Comm J Qual Patient Saf. 2008;34(10):563-70.) Por exemplo, em um estudo realizado no departamento de emergência, a passagem inadequada de plantão teve efeito adversos sobre aproximadamente 5% dos pacientes, resultando em atraso da terapia.(77. Ye K, McD Taylor D, Knott JC, Dent A, MacBean CE. Handover in the emergency department: deficiencies and adverse effects. Emerg Med Australas. 2007;19(5):433-41.) Uma revisão de queixas de imperícia no departamento de emergência revelou índice de 24% de falta de diagnóstico devido à passagem inadequada de plantão.(88. Kachalia A, Gandhi TK, Puopolo AL, Yoon C, Thomas EJ, Griffey R, et al. Missed and delayed diagnoses in the emergency department: a study of closed malpractice claims from 4 liability insurers. Ann Emerg Med. 2007;49(2):196-205.) Em outro estudo, a transferência intraoperatória de cuidados anestésicos entre anestesistas se traduziu em risco 43% mais alto de mortalidade hospitalar para pacientes submetidos à cirurgia cardíaca.(99. Hudson CC, McDonald B, Hudson JK, Tran D, Boodhwani M. Impact of anesthetic handover on mortality and morbidity in cardiac surgery: a cohort study. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29(1):11-6.)

O processo de passagem de plantão é particularmente desafiador na UTI, dada a complexidade dos pacientes graves e a propensão deles a alterações repentinas de condição clínica.(1010. Colvin MO, Eisen LA, Gong MN. Improving the patient handoff process in the intensive care unit: keys to reducing errors and improving outcomes. Semin Respir Crit Care Med. 2016;37(1):96-106. Review.) O pacientes internados nessa unidade também tendem a ser instáveis e podem necessitar de manobras de ressuscitação, procedimentos invasivos e intervenções terapêuticas nas primeiras horas após a internação.(1111. Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34. Review.) Como consequência, a internação na UTI durante a passagem de plantão, quando os intensivistas se distanciam do cuidado direto do paciente, tem grande chance de aumentar a incidência de erros médicos e eventos adversos inesperados.(1212. Cavallazzi R, Marik PE, Hirani A, Pachinburavan M, Vasu TS, Leiby BE. Association between time of admission to the ICU and mortality: a systematic review and metaanalysis. Chest. 2010;138(1):68-75. Review.)

OBJETIVO

Avaliar o impacto na mortalidade hospitalar da internação de pacientes graves em unidade de terapia intensiva durante a passagem de plantão em um hospital terciário, e comparar o uso de recursos e os desfechos clínicos entre pacientes internados na unidade de terapia intensiva durante a passagem de plantão e pacientes internados em outros momentos.

MÉTODOS

Desenho experimental e local

Este estudo é uma análise post-hoc de dados extraídos de um estudo retrospectivo unicêntrico de coorte prévio que investigou os impactos da reinternação na UTI no uso de recursos e nos desfechos clínicos.(1313. Ponzoni CR, Corrêa TD, Filho RR, Serpa Neto A, Assunção MS, Pardini A, et al. Readmission to the intensive care unit: incidence, risk factors, resource use, and outcomes. A retrospective cohort study. Ann Am Thorac Soc. 2017; 14(8):1312-9.) O estudo original e esta análise post-hoc foram aprovados pelo Comitê de Ética do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) e isentos de consentimento informado (CAAE: 54065716.3.0000.0071; parecer: 1.464.901).

Local

Este estudo foi realizado em um hospital terciário, em São Paulo (SP). O hospital em questão contava com 662 leitos de internação, uma UTI geral aberta com 41 leitos e 91 leitos de unidade semi-intensiva.

Pacientes

Pacientes consecutivos de idade superior a 18 anos internados na UTI entre 1° de junho de 2013 e 31 de maio de 2015 foram incluídos no estudo. Pacientes com dados fundamentais faltantes (idade, sexo, horário da internação na UTI, diagnóstico de internação na UTI, Simplified Acute Physiology Score – SAPS – III no momento da internação na UTI, duração da internação hospitalar e na UTI e estado vital no momento da alta) foram excluídos.

Coleta de dados e variáveis estudadas

Os dados foram recuperados do sistema Epimed Monitor System® (Epimed Solutions, Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Esse sistema consiste em um formulário eletrônico estruturado de relatório de caso, no qual os dados do paciente são informados de forma prospectiva por gerenciadores de casos de UTI treinados.(1414. Zampieri FG, Soares M, Borges LP, Salluh JI, Ranzani OT. The Epimed Monitor ICU Database®: a cloud-based national registry for adult intensive care unit patients in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):418-26.) Foram coletadas as seguintes variáveis: características demográficas, comorbidades, localização antes da internação na UTI, horário da internação na UTI, SAPS III no momento da internação na UTI,(1515. Moreno RP, Metnitz PG, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005;31(10):1345-55. Erratum in: Intensive Care Med. 2006;32(5):796.) diagnóstico de internação na UTI, necessidade de medidas invasivas de suporte (vasopressores, ventilação mecânica, ventilação mecânica não invasiva – VNI – ou terapia de substituição renal – TSR) na entrada e durante a permanência na UTI, destino após a alta, duração da internação hospitalar e na UTI, frequência de reinternação na UTI, mortalidade hospitalar, mortalidade no momento da alta da UTI e mortalidade com 90 dias.

Definições

A passagem de plantão foi definida como a transferência dos cuidados do intensivista que estava de saída para o intensivista que chegava. O período de passagem de plantão estabelecido foi das 6h30 às 7h30 e das 18h30 às 19h30. Os pacientes foram alocados para uma das seguintes coortes, de acordo com o horário da internação na UTI: Grupo Passagem de Plantão (internação na UTI entre 6h30 e 7h30 ou entre 18h30 e 19h30) e Grupo Controle (internação entre 7h31 e 18h29 ou entre 19h31 e 6h29).

Características da unidade de terapia intensiva e processo de passagem de plantão

A UTI contava com médicos no local 24 horas por dia, na proporção de um intensivista para cada dez leitos. Não havia redução de pessoal ou atividades nos turnos da noite ou aos finais de semana. Existiam reuniões clínicas multidisciplinares diárias envolvendo intensivistas, enfermeiros, fisioterapeutas especializados em fisioterapia respiratória, nutricionistas, psicólogos e farmacêuticos clínicos. As decisões referentes à internação na UTI eram de responsabilidade do intensivista de plantão, ao passo que a alta era um processo de tomada de decisão que envolvia o intensivista de plantão e o clínico responsável pelo paciente fora da UTI.(1313. Ponzoni CR, Corrêa TD, Filho RR, Serpa Neto A, Assunção MS, Pardini A, et al. Readmission to the intensive care unit: incidence, risk factors, resource use, and outcomes. A retrospective cohort study. Ann Am Thorac Soc. 2017; 14(8):1312-9.) Os intensivistas de plantão em dias de semana variaram, uma vez que os turnos eram de 12 horas.

A passagem de plantão foi realizada duas vezes por dia, às 7h e às 19h, quando terminava o turno do intensivista até então de plantão. O intensivista que estava de saída geralmente começava a preparar a passagem de plantão com 30 minutos de antecedência, e o processode passagem de plantão costuma durar 30 minutos. Não foram utilizados protocolos específicos e nem ferramentas padronizadas para direcionar a passagem de plantão durante o período experimental.

A passagem de plantão entre enfermeiros de UTI e fisioterapeutas respiratórios se deu no mesmo horário da passagem de plantão entre intensivistas.

Análise estatística

As variáveis categóricas foram expressas na forma de frequências absolutas e relativas. As variáveis contínuas foram expressas na forma de medianas e intervalos interquatil (IIQ). A normalidade foi avaliada por meio do teste Kolmogorov-Smirnov. Os Grupos Passagem de Plantão e Controle foram comparados. As variáveis categóricas foram comparadas empregando-se o teste do χ2 ou o teste exato de Fisher, conforme o caso. As variáveis contínuas foram comparadas por meio do teste t para amostras independentes ou o teste U de Mann-Whitney para dados com distribuição anormal.

O pareamento baseado em escore de propensão foi empregado para consideração das diferenças entre as características dos pacientes, de forma a minimizar os efeitos de confusão. O escore de propensão de cada paciente do Grupo Passagem de Plantão foi estimado por meio de regressão logística baseada em 17 características relevantes (idade, sexo, SAPS III, motivo da internação na UTI, origem do encaminhamento, hipertensão, diabetes mellitus, câncer, insuficiência cardíaca congestiva, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença renal crônica, doença renal crônica com necessidade de diálise de longo prazo, cirrose hepática e uso de vasopressores, uso de ventilação não invasiva, TSR ou ventilação mecânica durante a internação na UTI). Pacientes com dados faltantes foram excluídos. Uma coorte pareada, de acordo com o escore de propensão, foi construída com base em estimadores ponderados. O pareamento foi realizado empregando-se o algoritmo “vizinho mais próximo”, sem substituição, de tal forma que cada paciente do Grupo Passagem de Plantão foi pareado com dois pacientes do Grupo Controle. Uma calibração de largura de 0,10 do desvio-padrão do logit do escore de propensão foi empregada no desenvolvimento do pareamento.(1616. Austin PC. Statistical criteria for selecting the optimal number of untreated subjects matched to each treated subject when using many-to-one matching on the propensity score. Am J Epidemiol. 2010;172(9):1092-7.,1717. Austin PC. Optimal caliper widths for propensity-score matching when estimating differences in means and differences in proportions in observational studies. Pharm Stat. 2011;10(2):150-61.)

Os testes estatísticos foram bicaudais, e valores de p inferiores a 0,05 foram considerados significantes. Não foram realizados ajustes para multiplicidade nas análises. As análises estatísticas foram realizadas empregando-se o programa SPSS para Windows da IBM, versão 22.0. Os gráficos foram gerados empegando-se o programa GraphPad Prism para Windows, versão 6.00 (GraphPad Software, Califórnia, EUA).

RESULTADOS

Características da população estudada

Ao todo, 6.650 pacientes foram internados na UTI entre junho 2013 e maio 2015. Destes, 871 foram excluídos por falta de dados completos e/ou idade inferior a 18 anos. A amostra final incluiu 5.779 pacientes (389; 6,7% no Grupo Passagem de Plantão e 5.390; 93,3% no Grupo Controle). A mediana de idade dos pacientes nesta coorte foi de 67 (IIQ de 53 a 80) anos, com 56,5% de pacientes do sexo masculino. Dos 5.779 pacientes elegíveis para pareamento baseado em escore de propensão, 1.166 foram pareados com sucesso (389; 33,4% no Grupo Passagem de Plantão e 777; 66,6% no Grupo Controle) (Figura 1). A distribuição do horário de internação na UTI na população estudada (n=5.779 pacientes) pode ser visualizada no histograma da figura 2.

Figura 1
Fluxograma dos pacientes
Figura 2
Percentagem de internações na unidade de terapia intensiva por hora do dia

Coorte antes do pareamento baseado em escore de propensão

As variáveis idade, sexo, SAPS III, motivo da internação na UTI, origem do encaminhamento, diagnóstico de internação, frequência de comorbidades e necessidade de ventilação mecânica, VNI, TSR ou vasopressores não diferiram entre os pacientes do Grupo Passagem de Plantão e os do Grupo Controle antes do pareamento baseado em escore de propensão (Tabela 1).

Tabela 1
Características dos participantes antes do pareamento baseado em escore de propensão

A mortalidade hospitalar foi de 14,1% (55/389 pacientes) e 11,7% (628/5.390 pacientes) no Grupo Passagem de Plantão e no Grupo Controle, respectivamente (razão de chance – RC: 1,25; intervalo de confiança de 95% – IC95%: 0,92-1,68; p=0,142). O uso de recursos, expresso como necessidade de vasopressores, ventilação mecânica, VNI ou TSR, não diferiu entre os grupos. A duração da internação hospitalar e a frequência de reinternação na UTI também foram semelhantes entre os grupos (Tabela 2).

Tabela 2
Desfechos antes do pareamento baseado em escore de propensão

Coorte após o pareamento baseado em escore de propensão

A mediana de idade da coorte pareada com base no escore de propensão foi de 67 (IIQ de 53 a 80) anos, com 54,9% (640/1.166) de pacientes de sexo masculino e mediana do SAPS III de 43 (IIQ de 32 a 55) (Tabela 3). Os grupos estudados mostraram-se bem balanceados com relação às variáveis idade, sexo, SAPS III no momento da internação na UTI, motivo da internação na UTI, origem do encaminhamento, prevalência de comorbidades, diagnóstico de internação na UTI e necessidade de medidas de suporte no momento da internação na UTI (Tabela 3).

Tabela 3
Características dos participantes após o pareamento baseado em escore de propensão

A mortalidade na UTI foi 10,8% (42/389 pacientes) e 8,0% (62/777 pacientes) no Grupo Passagem de Plantão e no Grupo Controle, respectivamente (RC: 1,40; IC95%: 0,92-2,11; p=0,113). A mortalidade hospitalar foi de 14,1% (55/389 pacientes) e 11,8% (92/777 pacientes) no Grupo Passagem de Plantão e no Grupo Controle, respectivamente (RC: 1,23; IC95%: 0,85-1,75; p=0,265). As variáveis necessidade de vasopressores, ventilação mecânica, VNI ou TSR, a duração da internação hospitalar e na UTI e a frequência de reinternação na UTI não diferiram entre os grupos (Tabela 4).

Tabela 4
Desfechos após o pareamento baseado em escore de propensão

DISCUSSÃO

O principal achado deste estudo retrospectivo unicêntrico de coorte pareada com base em escore de propensão foi que a internação na UTI durante a passagem de plantão não afetou o uso de recursos e nem os desfechos dos pacientes.

A ideia de que a internação durante a passagem de plantão possa influenciar no cuidado do paciente de urgência foi abordada recentemente em estudo retrospectivo unicêntrico de coorte com pacientes em sepse que chegaram à emergência durante a passagem de plantão da enfermagem.(33. Alsolamy S, Al-Sabhan A, Alassim N, Sadat M, Qasim EA, Tamim H, et al. Management and outcomes of patients presenting with sepsis and septic shock to the emergency department during nursing handover: a retrospective cohort study. BMC Emerg Med. 2018;18(1):3.) O estudo em questão não revelou diferenças significantes no tempo até a administração de antibióticos, no tempo para obtenção de dosagem de lactato sérico e cultura sanguínea e nem na mortalidade hospitalar entre os pacientes que chegaram durante a passagem de plantão e os demais.(33. Alsolamy S, Al-Sabhan A, Alassim N, Sadat M, Qasim EA, Tamim H, et al. Management and outcomes of patients presenting with sepsis and septic shock to the emergency department during nursing handover: a retrospective cohort study. BMC Emerg Med. 2018;18(1):3.)

Até onde se sabe o impacto da internação na unidade de terapia intensiva durante a passagem de plantão sobre os desfechos clínicos ainda não foi estudado. Entretanto, há evidências de que a transferência entre médicos do cuidado do paciente cirúrgico tenha relação com piores desfechos. O impacto da transferência intraoperatória total do cuidado anestésico entre anestesiologistas foi comparado com a situação oposta em um estudo populacional retrospectivo de coorte com 313.066 pacientes que passaram por cirurgias grandes no Canadá.(1818. Jones PM, Cherry RA, Allen BN, Jenkyn KM, Shariff SZ, Flier S, et al. Association between handover of anesthesia care and adverse postoperative outcomes among patients undergoing major surgery. JAMA. 2018;319(2):143-53.) No estudo em questão, o risco de eventos adversos pós-operatórios foi mais elevado entre os pacientes que passaram pela transição do cuidado médico durante a cirurgia.(1818. Jones PM, Cherry RA, Allen BN, Jenkyn KM, Shariff SZ, Flier S, et al. Association between handover of anesthesia care and adverse postoperative outcomes among patients undergoing major surgery. JAMA. 2018;319(2):143-53.) Em outro estudo retrospectivo unicêntrico, a transferência do cuidado anestésico durante a cirurgia esteve associada a um risco 43% mais alto de mortalidade hospitalar.(99. Hudson CC, McDonald B, Hudson JK, Tran D, Boodhwani M. Impact of anesthetic handover on mortality and morbidity in cardiac surgery: a cohort study. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29(1):11-6.) Analogamente, pacientes que passam por transferência de cuidados anestésicos durante a cirurgia têm desfechos piores do que os demais, principalmente devido à perda de informação.(1818. Jones PM, Cherry RA, Allen BN, Jenkyn KM, Shariff SZ, Flier S, et al. Association between handover of anesthesia care and adverse postoperative outcomes among patients undergoing major surgery. JAMA. 2018;319(2):143-53.)

O impacto dos erros de comunicação durante a passagem de plantão sobre os desfechos clínicos foi abordado em diversos estudos.(55. Arora V, Johnson J, Lovinger D, Humphrey HJ, Meltzer DO. Communication failures in patient sign-out and suggestions for improvement: a critical incident analysis. Qual Saf Health Care. 2005;14(6):401-7.,66. Kitch BT, Cooper JB, Zapol WM, Marder JE, Karson A, Hutter M, et al. Handoffs causing patient harm: a survey of medical and surgical house staff. Jt Comm J Qual Patient Saf. 2008;34(10):563-70.,1919. Horwitz LI, Meredith T, Schuur JD, Shah NR, Kulkarni RG, Jenq GY. Dropping the baton: a qualitative analysis of failures during the transition from emergency department to inpatient care. Ann Emerg Med. 2009;53(6):701-10.e4.2222. Starmer AJ, Spector ND, Srivastava R, West DC, Rosenbluth G, Allen AD, Noble EL, Tse LL, Dalal AK, Keohane CA, Lipsitz SR, Rothschild JM, Wien MF, Yoon CS, Zigmont KR, Wilson KM, O´Toole JK, Solan LG, Aylor M, Bismilla Z, Coffey M, Mahant S, Blankenburg RL, Destino LA, Everhart JL, Patel SJ, Bale Jr JF, Spackman JB, Stevenson AT, Calaman S, Cole FS, Balmer DF, Hepps JH, Lopreiato JO, Yu CE, Sectish, Landrigan CP; I-PASS Study Group. Changes in medical errors after implementation of a handoff program. N Engl J Med. 2014;371(19):1803-12.) Por exemplo, estudo prospectivo realizado em uma UTI terciária no Brasil mostrou que, na ausência de um protocolo de passagem de plantão, o diagnóstico e os objetivos do tratamento deixam de ser comunicados ou recordados pelos intensivistas logo após a passagem de plantão em 50% a 60% dos casos, demonstrando perda significativa de informação na transição entre intensivistas.(2020. Dutra M, Monteiro MV, Ribeiro KB, Schettino GP, Kajdacsy-Balla Amaral AC. Handovers among staff intensivists: a study of information loss and clinical accuracy to anticipate events. Crit Care Med. 2018;46(11):1717-21.) Portanto, o processo de passagem de plantão precisa ser melhorado, a fim de aumentar a segurança do paciente, diminuir a ocorrência de erros médicos e prevenir eventos adversos.(2121. Nasca TJ, Day SH, Amis ES Jr; ACGME Duty Hour Task Force. The new recommendations on duty hours from the ACGME Task Force. N Engl J Med. 2010;363(2):e3.) De fato, a implementação de um protocolo de passagem de plantão baseado em ferramentas orais e escritas padronizadas de transferência do cuidado levou à queda de 23% na incidência de erros médicos e de 30% nos índices de eventos adversos passíveis de prevenção.(2222. Starmer AJ, Spector ND, Srivastava R, West DC, Rosenbluth G, Allen AD, Noble EL, Tse LL, Dalal AK, Keohane CA, Lipsitz SR, Rothschild JM, Wien MF, Yoon CS, Zigmont KR, Wilson KM, O´Toole JK, Solan LG, Aylor M, Bismilla Z, Coffey M, Mahant S, Blankenburg RL, Destino LA, Everhart JL, Patel SJ, Bale Jr JF, Spackman JB, Stevenson AT, Calaman S, Cole FS, Balmer DF, Hepps JH, Lopreiato JO, Yu CE, Sectish, Landrigan CP; I-PASS Study Group. Changes in medical errors after implementation of a handoff program. N Engl J Med. 2014;371(19):1803-12.)

Este estudo teve limitações. Em primeiro lugar, o estudo foi realizado em uma única UTI de um hospital terciário brasileiro. Assim, os achados podem não ser generalizados para outras UTIs, uma vez que os sistemas de saúde e as características dos pacientes variam consideravelmente entre coortes distintas. Em segundo lugar, o pareamento baseado em escore de propensão foi empregado numa tentativa de mitigar os efeitos de confusão e aumentar a validade da análise. Entretanto, embora o pareamento baseado em escore de propensão tenha levado em conta as diferenças entre as características dos pacientes entre os grupos, o efeito de confusão não pode ser totalmente descartado.(1616. Austin PC. Statistical criteria for selecting the optimal number of untreated subjects matched to each treated subject when using many-to-one matching on the propensity score. Am J Epidemiol. 2010;172(9):1092-7.) Em terceiro lugar, uma vez que a duração exata de cada passagem de plantão não foi documentada, o período de passagem de plantão estabelecido foi das 6h30 às 7h30 e das 18h30 às 19h30 da noite. Entretanto, na UTI estudada, os intensivistas que estavam de saída começavam a preparar a passagem de plantão com 30 minutos de antecedência, e o processo de passagem de plantão costumava durar 30 minutos. Em quarto lugar, a incidência de erros de comunicação durante a passagem de plantão e o impacto das internações na UTI sobre a qualidade do processo de passagem de plantão não foram avaliados. Problemas de comunicação, como omissões e corrupção de informações, sobretudo devido a distrações, foram apontados como a principal causa de passagem inadequada de plantão.(1010. Colvin MO, Eisen LA, Gong MN. Improving the patient handoff process in the intensive care unit: keys to reducing errors and improving outcomes. Semin Respir Crit Care Med. 2016;37(1):96-106. Review.) Em quinto lugar, dados como a especialidade médica dos intensivistas de plantão durante o período experimental e a experiência deles no cuidado intensivo não estavam disponíveis. Espera-seque intensivistas experientes sejam mais capazes de estabelecer prioridades e lidar com situações complexas, como a internação na UTI durante passagem de plantão, sem comprometer a segurança do paciente. Finalmente, o impacto da internação na UTI durante a passagem de plantão sobre o desempenho da equipe, a satisfação da equipe e do paciente e a experiência do paciente e de sua família não foram investigados. Essas questões são dignas de serem abordadas mais a fundo.

CONCLUSÃO

Neste estudo retrospectivo unicêntrico de coorte com pareamento baseado em escore de propensão, a internação do paciente na unidade de terapia intensiva durante a passagem de plantão não se mostrou associada a maior mortalidade e nem a maior uso de recursos em relação à internação em outros momentos. Estudos prospectivos multicêntricos de larga escala se fazem necessários para melhor compreensão das associações entre internação durante a passagem de plantão e desfechos clínicos.

REFERENCES

  • 1
    Estenssoro E, Alegría L, Murias G, Friedman G, Castro R, Nin Vaeza N, Loudet C, Bruhn A, Jibaja M, Ospina-Tascon G, Ríos F, Machado FR, Biasi Cavalcanti A, Dubin A, Hurtado FJ, Briva A, Romero C, Bugedo G, Bakker J, Cecconi M, Azevedo L, Hernandez G; Latin-American Intensive Care Network (LIVEN). Organizational issues, structure, and processes of care in 257 ICUs in Latin America: a study from the Latin America Intensive Care Network. Crit Care Med. 2017;45(8):1325-36.
  • 2
    Soares M, Bozza FA, Angus DC, Japiassú AM, Viana WN, Costa R, et al. Organizational characteristics, outcomes, and resource use in 78 Brazilian intensive care units: the ORCHESTRA study. Intensive Care Med. 2015; 41(12):2149-60.
  • 3
    Alsolamy S, Al-Sabhan A, Alassim N, Sadat M, Qasim EA, Tamim H, et al. Management and outcomes of patients presenting with sepsis and septic shock to the emergency department during nursing handover: a retrospective cohort study. BMC Emerg Med. 2018;18(1):3.
  • 4
    Petersen LA, Brennan TA, O’Neil AC, Cook EF, Lee TH. Does housestaff discontinuity of care increase the risk for preventable adverse events? Ann Intern Med. 1994;121(11):866-72.
  • 5
    Arora V, Johnson J, Lovinger D, Humphrey HJ, Meltzer DO. Communication failures in patient sign-out and suggestions for improvement: a critical incident analysis. Qual Saf Health Care. 2005;14(6):401-7.
  • 6
    Kitch BT, Cooper JB, Zapol WM, Marder JE, Karson A, Hutter M, et al. Handoffs causing patient harm: a survey of medical and surgical house staff. Jt Comm J Qual Patient Saf. 2008;34(10):563-70.
  • 7
    Ye K, McD Taylor D, Knott JC, Dent A, MacBean CE. Handover in the emergency department: deficiencies and adverse effects. Emerg Med Australas. 2007;19(5):433-41.
  • 8
    Kachalia A, Gandhi TK, Puopolo AL, Yoon C, Thomas EJ, Griffey R, et al. Missed and delayed diagnoses in the emergency department: a study of closed malpractice claims from 4 liability insurers. Ann Emerg Med. 2007;49(2):196-205.
  • 9
    Hudson CC, McDonald B, Hudson JK, Tran D, Boodhwani M. Impact of anesthetic handover on mortality and morbidity in cardiac surgery: a cohort study. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2015;29(1):11-6.
  • 10
    Colvin MO, Eisen LA, Gong MN. Improving the patient handoff process in the intensive care unit: keys to reducing errors and improving outcomes. Semin Respir Crit Care Med. 2016;37(1):96-106. Review.
  • 11
    Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34. Review.
  • 12
    Cavallazzi R, Marik PE, Hirani A, Pachinburavan M, Vasu TS, Leiby BE. Association between time of admission to the ICU and mortality: a systematic review and metaanalysis. Chest. 2010;138(1):68-75. Review.
  • 13
    Ponzoni CR, Corrêa TD, Filho RR, Serpa Neto A, Assunção MS, Pardini A, et al. Readmission to the intensive care unit: incidence, risk factors, resource use, and outcomes. A retrospective cohort study. Ann Am Thorac Soc. 2017; 14(8):1312-9.
  • 14
    Zampieri FG, Soares M, Borges LP, Salluh JI, Ranzani OT. The Epimed Monitor ICU Database®: a cloud-based national registry for adult intensive care unit patients in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):418-26.
  • 15
    Moreno RP, Metnitz PG, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005;31(10):1345-55. Erratum in: Intensive Care Med. 2006;32(5):796.
  • 16
    Austin PC. Statistical criteria for selecting the optimal number of untreated subjects matched to each treated subject when using many-to-one matching on the propensity score. Am J Epidemiol. 2010;172(9):1092-7.
  • 17
    Austin PC. Optimal caliper widths for propensity-score matching when estimating differences in means and differences in proportions in observational studies. Pharm Stat. 2011;10(2):150-61.
  • 18
    Jones PM, Cherry RA, Allen BN, Jenkyn KM, Shariff SZ, Flier S, et al. Association between handover of anesthesia care and adverse postoperative outcomes among patients undergoing major surgery. JAMA. 2018;319(2):143-53.
  • 19
    Horwitz LI, Meredith T, Schuur JD, Shah NR, Kulkarni RG, Jenq GY. Dropping the baton: a qualitative analysis of failures during the transition from emergency department to inpatient care. Ann Emerg Med. 2009;53(6):701-10.e4.
  • 20
    Dutra M, Monteiro MV, Ribeiro KB, Schettino GP, Kajdacsy-Balla Amaral AC. Handovers among staff intensivists: a study of information loss and clinical accuracy to anticipate events. Crit Care Med. 2018;46(11):1717-21.
  • 21
    Nasca TJ, Day SH, Amis ES Jr; ACGME Duty Hour Task Force. The new recommendations on duty hours from the ACGME Task Force. N Engl J Med. 2010;363(2):e3.
  • 22
    Starmer AJ, Spector ND, Srivastava R, West DC, Rosenbluth G, Allen AD, Noble EL, Tse LL, Dalal AK, Keohane CA, Lipsitz SR, Rothschild JM, Wien MF, Yoon CS, Zigmont KR, Wilson KM, O´Toole JK, Solan LG, Aylor M, Bismilla Z, Coffey M, Mahant S, Blankenburg RL, Destino LA, Everhart JL, Patel SJ, Bale Jr JF, Spackman JB, Stevenson AT, Calaman S, Cole FS, Balmer DF, Hepps JH, Lopreiato JO, Yu CE, Sectish, Landrigan CP; I-PASS Study Group. Changes in medical errors after implementation of a handoff program. N Engl J Med. 2014;371(19):1803-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    06 Dez 2020
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br