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Arte e dor em Frida Kahlo * * Recebido da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, MG. O artigo é resultado do projeto "Paralelos entre saúde e arte: as cores de Frida Kahlo", apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFV (Of. Ref. N 005/2012/CEPH).

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A pintora mexicana Frida Kahlo é uma das mais importantes artistas do século XX. Após envolvimento em um acidente automobilístico, permaneceu em repouso para se recuperar das diversas lesões, evento significativo para o alvorecer de sua pintura. O objetivo deste estudo foi apresentar aspectos da biografia e da arte de Frida, buscando interseções entre sua arte e suas experiências de dor.

CONTEÚDO:

A partir da apreciação do filme e de telas selecionadas da autora - analisadas com o apoio dos artigos obtidos na revisão da literatura - foram organizadas quatro seções para a apresentação dos elementos obtidos: (1) As 'origens' de Frida, (2) O primeiro acidente, (3) O segundo acidente: Diego Rivera e (4) O martírio da maternidade frustrada.

CONCLUSÃO:

Frida obteve na arte seu maior conforto, transformando sua trajetória dolorosa e intensa em um fecundo processo de criação, o qual refletiu os sentidos de sua existência.

Dor crônica; Estresse psicológico; Medicina na arte; Pinturas


BACKGROUND AND OBJECTIVES:

The Mexican painter Frida Kahlo is one of the most important artists of the twentieth century. After being involved in a car accident, remained at home to recover from several injuries, significant event for the dawning of her painting. The aim of this study was to present aspects of the biography and life of Frida, seeking intersections between her artwork and her painful experiences.

CONTENTS:

From the appreciation of film and screens selected author - analyzed with the support of the articles obtained in the literature review - held four sections to the presentation of evidence obtained: (1) the 'origins' of Frida (2) first accident, (3) the second accident: Diego Rivera and (4) the Martyrdom of frustrated motherhood.

CONCLUSION:

Frida found in art her comfort, transforming her painful and intense trajectory in a work that reflected the meaning of her existence.

Chronic pain; Medicine and art; Paintings; Psychological stress


INTRODUÇÃO

A pintora mexicana Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón destacou-se como uma das mais importantes artistas do século XX. Embora tenha nascido no ano de 1907, na cidade de Coyoacán, mudou sua data de nascimento para 1910, a fim de prestar uma homenagem à Revolução Mexicana, aspecto que exprime bem seu espírito revolucionário. Foi a terceira filha do casal Matilde Calderón y González, católica e mestiça, e Guilhermo Kahlo, fotógrafo, judeu descendente de alemães austro-húngaros11. Bastos MM, Ribeiro MA. Frida Kahlo: uma vida. Psicanálise & Barroco. 2007;5(2):46-76..

As primeiras experiências de Frida com o sofrimento são atribuídas às sequelas de poliomielite aguda,doença que a atingiu aos seis anos de idade. Como consequências destacam-se a hipotrofia do membro inferior direito e a atrofia do pé direito, o que provocou, na futura artista, intenso padecimento ao ser apelidada de "Frida perna de pau". A partir disso, começou a usar calças - depois, longas e exóticas saias - indumentárias que se tornaram, mais tarde, uma de suas marcas registradas22. Orsini M, De Freitas MR, Coin CL, Mello MP, Catharino MA, Vaz AC, et al. Frida Kahlo: A arte como desafio à deficiência e à dor, com enfoque na poliomielite anterior aguda. Rev Bras Neurol. 2008;44(3):5-12..

Entre 1922 e 1925, frequentou a Escola Nacional Preparatória, almejando cursar medicina, sonho esse interrompido aos 18 anos, após envolvimento em um grave acidente entre um bonde e um ônibus no qual sofreu diversos ferimentos e fraturas que exigiram um longo período de recuperação. Considera-se esse um fator determinante para o alvorecer de sua pintura. O espelho fixado sobre um dossel que cobria a cama permitiu que Frida vencesse o tédio, retratando a si própria, tornando a série de autorretratos uma significativa parte de sua obra11. Bastos MM, Ribeiro MA. Frida Kahlo: uma vida. Psicanálise & Barroco. 2007;5(2):46-76..

A partir de então, paulatinamente, Frida se tornaria uma artista mundialmente reconhecida, em uma trajetória matizada por diferentes experiências, cabendo destaque à dor (sequela do acidente) que a acompanhou durante toda a vida e às desventuras da intensa paixão pelo renomado muralista Diego Rivera, 21 anos mais velho, com quem manteve um relacionamento longo e turbulento, repleto de traições. Sobre o amor que sentia por Diego, a pintora revela ter sido o maior de seus sofrimentos33. Levinzon GK. Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo. Rev Bras Psicanal. 2009;43(2):49-60..

As relações entre arte e sofrimento - em Frida Kahlo - são, nessa perspectiva, inextricáveis. Com efeito, no presente manuscrito objetiva-se percorrer recortes da história de vida e da arte de Frida Kahlo - enfocando especialmente, as interseções dessa última com a experiência da dor - tecendo-se reflexões acerca das principais telas da pintora. Para isso foi realizada revisão da literatura com estratégia de busca definida. Os artigos foram buscados em distintas bases de dados - LILACS, Scielo e Pubmed -, utilizando-se os vocábulos "Medicina na arte", "Pinturas" e "Dor Crônica" - todos pertencentes aos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS: http://decs.bvs.br/) -, além do termo "Frida Kahlo". A data limite para pesquisa foi 28 de fevereiro 2014. Adicionalmente, foram utilizados livros relativos à artista, como parte integrante do levantamento bibliográfico, além da apreciação de telas da pintora obtidas por meio do portal www.fridakahlofans.com. A tabela 1 explicita o total de citações encontradas (n=45).

Tabela 1
Estratégia de pesquisa bibliográfica

Foram selecionados seis textos que subsidiaram a presente investigação, de acordo com os critérios de inclusão - abordagem de aspectos referentes à arte de Frida Kahlo, destacando-se especialmente as interseções com a experiência de dor - de modo a contemplar o objetivo proposto pelo estudo. Outros manuscritos - de conhecimento prévio dos autores - complementaram a revisão bibliográfica. Os artigos foram lidos e as informações organizadas em diferentes seções - (1) "As 'origens' de Frida", (2) "O primeiro acidente", (3) "O segundo acidente: Diego Rivera", (4) "O martírio da maternidade frustrada" - as quais serão apresentadas a seguir.

CONTEÚDOS: VIDA, ARTE E DOR

A expressão do sofrimento de Frida através da arte representou diferentes momentos da vida da artista. Embora tenha utilizado a pintura para traduzir sua angústia diante das tragédias que marcaram sua existência, as adversidades em seu caminho não a impediram de ser uma mulher dinâmica e engajada cultural e politicamente, aspecto vociferado em suas telas.

As "origens" de Frida

Os aspectos iniciais da trajetória de vida de Frida são expostos em díspares pinturas, especialmente nas telas Meu nascimento (1932) e Minha ama e eu (1937) - respectivamente, figuras 1 e 2 -, nas quais se evidencia a delicada relação entre a pintora e sua mãe. Matilde Calderón y González, filha de um fotógrafo de descendência indígena, era cristã e dona de casa. Foi noiva de um alemão que se suicidou em sua presença para provar-lhe seu amor. A posterior união com Guilhermo Kahlo, também de origem alemã, provavelmente não lhe apagou as lembranças do primeiro noivo. Este permaneceu em sua memória - e em diferentes relatos - como seu grande amor11. Bastos MM, Ribeiro MA. Frida Kahlo: uma vida. Psicanálise & Barroco. 2007;5(2):46-76.. Guillermo Kahlo, comerciante de artigos fotográficos, nasceu em Baden-Baden; fotógrafo profissional emigrou para o México, aos 19 anos. Tendo sido considerado o "primeiro fotógrafo oficial do patrimônio cultural do México", Guillermo Kahlo é descrito como um homem culto e interessado por filosofia. Ele não estabeleceu uma relação afetiva com as filhas, exceto com Frida, com a qual era muito carinhoso. Ademais, o Sr. Kahlo depositava em Frida suas expectativas de um belo futuro profissional, estimulando o desenvolvimento intelectual e o espírito aventureiro da menina. Ela costumava acompanhá-lo em seus passeios, em suas atividades de pintor amador, além de ser sua confidente. Ele a ensinou também a manejar a máquina fotográfica, a revelar, retocar e colorir fotografias, experiências estas, que viriam a ser úteis, para a sua carreira de pintora.

Figura 1
Mi nacimiento (Meu nascimento) - 1932. Óleo sobre metal 30,5 x 35 cm. Colección privada de la “Madonna”. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0100.html
Figura 2
Mi nana y yo (Minha ama e eu) - 1937. Óleo sobre metal 30,5 x 37 cm. Museo Dolores Olmedo Patiño, Ciudad de México, México. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0190.html

Frida: Por que se casou, papa?

Guilhermo Kahlo: Não me lembro. Para ter você. 44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003.

Na figura 1, Frida se retrata nascendo por si só e lutando por sua sobrevivência, sem poder contar com a presença viva da mãe, ilustrando, muito provavelmente, o significativo sofrimento que o desamparo e o abandono materno causaram desde momentos precoces em sua vida33. Levinzon GK. Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo. Rev Bras Psicanal. 2009;43(2):49-60.. O nascimento precoce da irmã Cristina, fez com que a menina fosse entregue aos cuidados de uma ama-de-leite indígena. Na figura 2, a máscara de pedra da ama, bem como a ausência de contato visual com o bebê refletem o distanciamento entre a cuidadora e a menina55. Outeiral J. Meros Ensaios: Escritos Psicanalíticos. Editora Revinter: Rio de Janeiro, 1999..

Presume-se, com efeito, que a ausência da figura materna, fato este corroborado pela significativa ligação de Frida com o pai - quiçá como "compensação" - foi, também, evento incentivador e inspirador para seu despertar artístico55. Outeiral J. Meros Ensaios: Escritos Psicanalíticos. Editora Revinter: Rio de Janeiro, 1999..

O primeiro acidente

As sequelas e incapacidades resultantes do acidente sofrido aos 18 anos foram reproduzidas em diversos momentos de sua vida.

A dor é uma sensação desagradável, mas essencial para a sobrevivência. Fisiologicamente, a dor pode ser expressão de qualquer lesão real ou potencial ao tecido66. Silva JA, Ribeiro-Filho NP. A dor como um problema psicofísico. Rev Dor. 2011;12(2):138-51.,77. Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forinse; 2005.. A definição de dor elaborada pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) diz que a "dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável expressa pelo indivíduo representando uma lesão real ou potencial, ou descrita em termos de tal lesão"88. Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP Subcommittee on Taxonomy. Pain. 1979;6(3):249.. O sistema sensorial para a dor é amplo. Por ser o quadro álgico uma experiência individual, compreende-se que sua percepção é variável de acordo com a interferência de vários fatores como etnia, sexo e idade, entre outros. Com efeito, a experiência da sensação dolorosa tem grande alcance e sua interpretação pelo indivíduo é multidimensional - adquirindo díspares qualidades e intensidades - exprimindo-se com diferentes características, tecidas por elementos afetivo-emocionais, culturais, subjetivos e comportamentais66. Silva JA, Ribeiro-Filho NP. A dor como um problema psicofísico. Rev Dor. 2011;12(2):138-51.,77. Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forinse; 2005.. Sob uma concepção mais abrangente, admite-se que a dor é um sintoma presente em boa parte das doenças, seja como manifestação direta ou fazendo parte do processo diagnóstico e/ou da terapêutica. Ademais, o adoecimento produz um estado de dor emocional, relacionada diretamente à consciência da finitude e da fragilidade humana77. Canguilhem G. Escritos sobre a medicina. São Paulo: Forinse; 2005..

Guilhermo Kahlo: Como se sente Frida?

Frida: Nem lembro mais como era antes da dor44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003..

O alcance de seu padecimento foi expresso - em termos artísticos - através de órgãos expostos e de corpos sangrando e com cicatrizes99. Kelner G, Boxwell S, Silva AR. Catástrofe e representação na pintura de Frida Kahlo. Pulsional Rev Psicanál. 2000;XIII(132):34-44.. Na tela A coluna quebrada (1944) - figura 3 -, Frida expressa a intensa dor que sentia. Nesta pintura a artista se retrata usando o colete de aço - o qual foi indicado para controle do quadro álgico - destacando seu corpo aberto na qual está inserida uma coluna jônica partida em vários lugares, simbolizando sua coluna vertebral ferida. A dor é feita presente por pregos encravados em seu corpo nu, traduzindo o infindável martírio. O corpo de Frida está dividido, sangrando, pregado e isolado, transparecendo, pois, o suplício físico que nunca a abandonou ao longo da vida - "nem lembro mais como era antes da dor"44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003.. A solidão, metaforizada pela paisagem desértica, reforça o sofrimento de sua condição. Nos esforços para aliviar a própria dor, ela se submeteu a várias cirurgias ortopédicas - com objetivo de reparação da coluna -, tanto no México como nos Estados Unidos, sem obter melhora das suas queixas. O corpo aberto sugere a cirurgia1010. Lomas D, Howell R. Medical imagery in the art of Frida Kahlo. BMJ. 1989;299(6715):1584-7.,1111. Martínez-Lavín M, Amigo MC, Coindreau J, Canoso J. Fibromyalgia in Frida Kahlo's life and art. Arthritis Rheum. 2000;43(3):708-9..

Figura 3
La columna rota (A coluna quebrada) - 1944. Óleo sobre lienzo montado sobre fibra dura 43 x 33 cm. Museo Dolores Olmedo Patiño, Ciudad de México, México. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0480.html

Na tentativa de explicar os motivos para o quadro álgico crônico, alguns autores sugerem que Frida tenha sofrido de fibromialgia pós-traumática, a qual é caracterizada por dor generalizada persistente, fadiga crônica, distúrbios do sono e pela presença de pontos dolorosos em regiões anatômicas bem definidas. Esse conceito de fibromialgia - tal como é entendido atualmente - foi, possívelmente, desconhecido pelos médicos do início do século XX. Sugere-se, ainda, que alguns dos pregos fincados em seu corpo pudessem representar típicos pontos dolorosos - "trigger points" - da fibromialgia. Essa hipótese explicaria a dor crônica e a fadiga profunda apresentadas pela pintora, assim como a exígua resposta terapêutica1111. Martínez-Lavín M, Amigo MC, Coindreau J, Canoso J. Fibromyalgia in Frida Kahlo's life and art. Arthritis Rheum. 2000;43(3):708-9..

Médico: Seu pé está assim desde quando?

Frida: Sei lá. Vamos com uma desgraça de cada vez. Engesse-me para eu poder pintar.

Médico: É gangrena. Terei que amputá-lo. Sorte sua salvar a perna44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003..

O "Segundo acidente": Diego Rivera

A identificação artística e os ideais mexicanos e comunistas de Frida e Diego estão, provavelmente, entre os ingredientes do intenso e conturbado relacionamento vivido por ambos, repleto de infidelidades, desamparo, dor e abandono. Até o final de sua vida, Kahlo amou Rivera incondicionalmente e, em consequência disso, sofreu com tamanha intensidade, ao ponto de considerar o romance como o "segundo acidente" de sua vida. O matrimônio de Frida e Diego foi uma sucessão de aproximações e separações, momentos de grande ternura e de intensa dor, raiva, dependência, construção e destruição. Os dez anos iniciais do casamento foram marcados por diversas vicissitudes, três abortos espontâneos e três cirurgias importantes - retratados em muitas das suas telas, de díspares modos11. Bastos MM, Ribeiro MA. Frida Kahlo: uma vida. Psicanálise & Barroco. 2007;5(2):46-76..

Diversas são as obras que exprimem a angústia e sofrimento dos vínculos de dependência cultivados pela artista, merecendo especial atenção uma tela que se destaca pelo profundo desespero e desilusão vivenciados pela pintora: O coração partido (Figura 4). No quadro, Frida ilustra um enorme coração partido aos seus pés, expressando, conjectura-se, a intensidade de sua dor pelo romance do marido com sua irmã Cristina. Este fato reforçou a rivalidade entre ambas, uma vez que o nascimento precoce da filha caçula - como anteriormente comentado - , fez com que emergisse o sentimento de preterimento na artista, especialmente pela quebra do elo materno entre Frida e sua progenitora55. Outeiral J. Meros Ensaios: Escritos Psicanalíticos. Editora Revinter: Rio de Janeiro, 1999.. É importante comentar, igualmente, que nesse mesmo quadro Frida aparece de cabelos curtos, uma forma de irritar Diego. Ao lado, estão suas roupas de estilo europeu, a qual faz referência à época em que estava separada de Diego, que gostava mais dos vestidos da tradição Tehuama. Sob a água se encontra seu pé esquerdo com um aparato e juntos parecem um barco à vela, fazendo referência a uma cirurgia que sofrera em seu pé esquerdo. Seu uniforme escolar retratado ao fundo pode ser uma representação da época que conheceu Diego, ainda no colégio.

Figura 4
Recuerdo (El corazón) (Coração partido) - 1937. Óleo sobre metal 40 x 28,3 cm. Colección de Michel Petitjean Paris, França. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0180.html

Frida: Com a minha irmã? Seu animal!

Diego: Sou uma besta, um idiota, mas não significou nada. Nada! Fale comigo.

Frida: Tive dois acidentes trágicos na minha vida. O bonde e você. E você foi o pior44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003..

O quadro As duas Fridas (Figura 5), em especial, retrata muito bem a dor da separação. A tela foi pintada após o divórcio de Diego Rivera. Frida admitiu, posteriormente, que a pintura era o reflexo de suas emoções acerca de sua separação e de suas crises emocionais. A artista se pintou com duas personalidades distintas - através de duas mulheres opostas -, uma representada pela Frida mexicana (à direita) - trazendo em sua mão um amuleto com o retrato de Diego quando pequeno - e uma Frida europeia (à esquerda). Essas personagens simbolizam, respectivamente, a mulher amada e respeitada por Rivera e aquela rejeitada pelo pintor. Na tela, embora apenas a parte rejeitada, esvaindo-se de sangue, corra risco de morte, os corações expostos de ambas, ligados por um vaso sanguíneo, refletem o sofrimento gerado pelo fim do casamento1212. Fernandes FS. O mapa íntimo: três telas de Frida Kahlo. Rev Estud Fem. 2008;16(1):35-44..

Figura 5
Las dos Fridas (As duas Fridas) - 1939. Óleo sobre lienzo 173,5 x 173 cm. Museo de Arte Moderno, Ciudad de México, México. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0290.htm

Da mesma maneira, a desilusão amorosa é ilustrada em Autorretrato com cabelo cortado (Figura 6).

Figura 6
Autorretrato con pelo corto (Autorretrato com cabelo cortado) - 1940. Óleo sobre lienzo 40 x 28 cm. Museo de Arte Moderno Nueva York, Nueva York, EE.UU. Donado por Edgar Kaufmann, Jr. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0330.html

Nesta tela, a pintora se apresenta sentada em uma cadeira cercada por seus longos cabelos, os quais preenchem o vazio representativo da circunstância do desencontro amoroso. O verso de uma canção - pintado na parte superior do quadro - reflete o sentimento de rejeição por parte do homem amado: "Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca, já não te amo." Além disso, o largo e escuro terno de homem, em oposição às roupas femininas, traços inconfundíveis da cultura mexicana, sempre marcantes em seus autorretratos, exprime o redimensionamento de sua feminilidade, tamanha a profundidade de seu padecimento.

O martírio da maternidade frustrada

A impossibilidade de ser mãe - uma consequência da sequela da fratura pélvica sofrida no acidente - certamente foi motivo de intensa amargura, bem ilustrada na tela Henry Ford Hospital (Figura 7) e no diálogo abaixo (extraído do filme Frida):

Figura 7
Henry Ford Hospital (La cama volando) (A cama voando) - 1932. Óleo sobre metal 30,5 x 38 cm. Colección de Dolores Olmedo Patiño, Ciudad de México, México. Consultado em http://www. fridakahlofans.com/c0090.html

Frida: Estou grávida.

Diego: Seu corpo aguentará?

Frida: Ele (médico) não está nada otimista.

Diego: Odiaria vê-la sofrendo.

Frida: Estou acostumada.

Diego: Quer mesmo esse bebê?

Frida: Quero.

Diego: Está bem, tentaremos tê-lo.

Frida: Diego! O bebê saiu em pedaços. Quero ver meu filho 44. Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003. .

Nesta tela, Frida retrata o pesar pelo segundo aborto, através de imagens repletas de simbolismo. Em torno dela encontram-se seis objetos: um modelo anatômico da pelve, um feto, um caracol, uma - 1932. Óleo sobre metal 30,5 x 38 cm. Colección de Dolores Olmedo Patiño, Ciudad de México, México. Consultado em http://www.fridakahlofans.com/c0090.html autoclave, uma orquídea e uma pelve óssea. Cada um está ligado a uma fita vermelha - possivelmente representando um vaso sanguíneo ou um cordão umbilical - que a artista tem nas mãos. O modelo anatômico da pelve feminina sugere a objetivação do corpo como meros órgãos a serem inspecionados e manipulados por médicos. O feto masculino, perfeitamente formado, representa a nova vida pela qual Kahlo havia ardentemente esperado. O caracol simboliza a insuportável lentidão com que o aborto ocorreu. A autoclave representa sua apreensão com a probabilidade de o acidente tê-la tornado estéril. A orquídea, um presente de Diego, pode aludir à genitália externa feminina, ao passo que a pelve óssea sugere a inerente fragilidade do corpo humano, conforme fora revelada em seu acidente. O conflito da maternidade não realizada é expresso através da ambivalência do corpo humano em sua obra. Se por um lado o corpo é um recipiente para o sofrimento, representando a dor um sentimento impartilhável, por outro lado, Frida representa artisticamente seu corpo como meio de projeção externa e compartilhável de seu padecimento. Desse modo, através da postura, da expressão e da exteriorização de sua anatomia interna, ela é capaz de transmitir toda a complexidade de sua experiência1313. Gunderman RB, Hawkins CM. The self-portraits of Frida Kahlo. Radiology. 2008;247(2):303-6..

CONCLUSÃO

A dor é exprimível de variadas maneiras, podendo ser identificados seus múltiplos matizes na cultura, genuínas tentativas de produzir algum sentido para o sofrimento. A vida pode valer a pena de ser vivida desde que o sujeito assuma seus desejos de criar, constituindo diretivas e se dispondo, de fato, a aprender a viver1414. Siqueira-Batista R, Batista RS, Schramm FR. 'O sétimo selo' de Bergman e 'O estrangeiro' de Camus: os matizes da finitude. Existência e Arte. 2010;5:1-10.. Neste sentido, a obra de Frida Kahlo exprime, de forma intensa, uma biografia repleta de episódios marcantes. Sem usar disfarces ou quaisquer outros subterfúgios, a artista pinta legítimas experiências de vida, através das quais preencheu espaços - que a existência não ocupou ou ocupou com situações angustiantes - quiçá como um modo de traduzir a crueza da dor. Ainda que tenha tido sua vida caracterizada por intenso padecimento físico e psíquico, o mesmo foi elaborado e simbolizado pela artista, empregando cores vívidas para o enfrentamento da dor. Frida obteve na arte seu maior conforto, transformando e criando sua trajetória dolorosa e intensa em um trabalho que refletiu os próprios sentidos de sua existência.

OBRAS ARTÍSTICAS

Frida Kahlo Fans. Página da web dedicado a pintora mexicana Frida Kahlo. Consultado em www.fridakahlofans.com, 28 de fevereiro de 2014. Neste sítio foram consultadas as pinturas que compõem o presente artigo.

Museo Frida Kahlo. Consultado em http://www.museofridakahlo.org.mx/, 28 de fevereiro de 2014.

  • *
    Recebido da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, MG. O artigo é resultado do projeto "Paralelos entre saúde e arte: as cores de Frida Kahlo", apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFV (Of. Ref. N 005/2012/CEPH).

REFERENCES

  • 1
    Bastos MM, Ribeiro MA. Frida Kahlo: uma vida. Psicanálise & Barroco. 2007;5(2):46-76.
  • 2
    Orsini M, De Freitas MR, Coin CL, Mello MP, Catharino MA, Vaz AC, et al. Frida Kahlo: A arte como desafio à deficiência e à dor, com enfoque na poliomielite anterior aguda. Rev Bras Neurol. 2008;44(3):5-12.
  • 3
    Levinzon GK. Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo. Rev Bras Psicanal. 2009;43(2):49-60.
  • 4
    Frida. EUA / Canadá: Miramax Films / Trimark Pictures, 2003.
  • 5
    Outeiral J. Meros Ensaios: Escritos Psicanalíticos. Editora Revinter: Rio de Janeiro, 1999.
  • 6
    Silva JA, Ribeiro-Filho NP. A dor como um problema psicofísico. Rev Dor. 2011;12(2):138-51.
  • 7
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  • 8
    Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP Subcommittee on Taxonomy. Pain. 1979;6(3):249.
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  • 12
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  • 13
    Gunderman RB, Hawkins CM. The self-portraits of Frida Kahlo. Radiology. 2008;247(2):303-6.
  • 14
    Siqueira-Batista R, Batista RS, Schramm FR. 'O sétimo selo' de Bergman e 'O estrangeiro' de Camus: os matizes da finitude. Existência e Arte. 2010;5:1-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2013
  • Aceito
    14 Maio 2014
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