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A Lei de Beer Aplicada na Atmosfera Terrestre

The Beer's law applied to the earth's atmosphere

Resumos

A Lei de Beer da transferência radiativa tem grande aplicação em problemas atmosféricos que envolvam valores de radiação solar direta. Uma síntese da física da atenuação da radiação solar pela atmosfera e da derivação da lei de Beer é apresentada neste trabalho. São apresentadas aplicações da lei de Beer no cálculo do espectro de radiação solar direta na superfície terrestre, na região do ultravioleta, considerando condições de céu limpo e apenas espalhamento Rayleigh e absorção molecular. O método de Langley foi aplicado a dados de radiação ultravioleta solar de banda larga (0,32-0,40 mim) obtidos em Santa Maria, Rio Grande do Sul, no ano de 1994, como um exemplo ilustrativo da obtenção da irradiância no topo da atmosfera e da espessura óptica atmosférica para a banda utilizada.


The Beer's law has important utilizations in the atmosphere problems, when the direct solar radiation component isinvolved. In this work a summary of physical principles in atmospheric extinction of radiation and in the Beer's law derivation is presented. Also are presented some utilizations of the Beer's law in atmosphere: the calculation of the direc solar radiation ultraviolet spectrum at ground level, considering clear-sky conditions and attenuation only by Rayleigh scattering and molecular absorption. Also the Langley's method is applied to direct broadband solar radiation (0,32-0,40 mum) measured at Santa Maria, Rio Grande do Sul, in 1994, to obtain the iradiance at the top of atmosphere and the atmospheric optical depth.


A Lei de Beer Aplicada na Atmosfera Terrestre

The Beer's law applied to the earth's atmosphere

E. Echer e M. P. Souza,

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais,

INPE, S. José dos Campos, SP, Brasil

N. J. Schuch

Centro Regional Sul de Pesquisas Espaciais, CRSPE/INPE, Santa Maria, RS, Brasil

Recebido em 21 de Maio 2001. Aceito em 17 de Julho 2001

A Lei de Beer da transferência radiativa tem grande aplicação em problemas atmosféricos que envolvam valores de radiação solar direta. Uma síntese da física da atenuação da radiação solar pela atmosfera e da derivação da lei de Beer é apresentada neste trabalho. São apresentadas aplicações da lei de Beer no cálculo do espectro de radiação solar direta na superfície terrestre, na região do ultravioleta, considerando condições de céu limpo e apenas espalhamento Rayleigh e absorção molecular. O método de Langley foi aplicado a dados de radiação ultravioleta solar de banda larga (0,32-0,40 mm) obtidos em Santa Maria, Rio Grande do Sul, no ano de 1994, como um exemplo ilustrativo da obtenção da irradiância no topo da atmosfera e da espessura óptica atmosférica para a banda utilizada.

The Beer's law has important utilizations in the atmosphere problems, when the direct solar radiation component isinvolved. In this work a summary of physical principles in atmospheric extinction of radiation and in the Beer's law derivation is presented. Also are presented some utilizations of the Beer's law in atmosphere: the calculation of the direc solar radiation ultraviolet spectrum at ground level, considering clear-sky conditions and attenuation only by Rayleigh scattering and molecular absorption. Also the Langley's method is applied to direct broadband solar radiation (0,32-0,40 mm) measured at Santa Maria, Rio Grande do Sul, in 1994, to obtain the iradiance at the top of atmosphere and the atmospheric optical depth.

I Introdução

Para a atmosfera terrestre, a principal fonte de energia eletromagnética é a radiação solar. O Sol é um corpo essencialmente formado por plasma e sua atmosfera consiste de três camadas: fotosfera, cromosfera e coroa. A fotosfera é a camada que define o volume visível ("superfície" do Sol) e onde a radiação mais intensa, situada no visível, origina-se. As propriedades da fotosfera são relativamente estáveis no tempo e por isso a radiação emitida pelo Sol, no visível e infravermelho, é praticamente constante. Ao contrário, a radiação emitida em comprimentos de onda longos ou curtos é variável. Esta radiação é originada nas camadas solares mais externas onde as temperaturas são mais variáveis (Brasseur e Solomon, 1986). A radiação solar é uma forma de radiação eletromagnética, e quando disposta de acordo com seus comprimentos de onda ou freqüências forma um arranjo continuo, conhecido como espectro eletromagnético, com o máximo situado na região do visível (0,39mm1 1 1mm=10 -6m - 0,78mm), com uma curva similar à da radiação de um corpo negro emitindo a ~ 6000 K, seguindo portanto a lei de Planck para a emissão de radiação. A Fig. 1 apresenta o espectro eletromagnético. Da esquerda para a direita, encontram-se as ondas curtas, tais como raios gama, raios X, o componente eletromagnético dos raios cósmicos (l < 0,001 mm); a seguir, na ordem crescente de comprimentos de onda, vêm os raios ultravioleta (0,001 - 0,39 mm), a luz visível (0,39 - 0,77 mm), e a infravermelha (0,77 - 1000 mm ) e as usadas em radar, TV, rádio (l > 1000 mm) (Iqbal, 1983).


A radiação solar incidente num plano perpendicular ao feixe solar a uma distância de uma unidade astronômica (1 UA = 149,6×106 km) do Sol, era até bem pouco tempo chamada de "constante solar". Essa "constante" representa a quantidade de energia radiante em todos os comprimentos de onda recebida por unidade de tempo e de área no topo da atmosfera terrestre, corrigida para a distância média Terra-Sol, e eqüivale a aproximadamente 1365 - 1370 Wm2.

A radiação solar no topo da atmosfera recebeu o nome de "constante solar" pois antes das medidas regulares realizadas por satélites a partir dos anos 1970, as medidas eram determinadas em superfície através do método de Langley (Johnson, 1954). Como a variação da transmissão atmosférica é maior que variação da radiação solar, a variação da "constante solar" não era detectada. Os modelos de circulação global da atmosfera - que simulam o clima e permitem estudar suas variações, utilizavam essa "constante" como um de seus parâmetros, desconsiderando portanto, as alterações na intensidade da principal fonte de energia para o processo climático. Em anos recentes, evidências de que variações na emissão de radiação pelo Sol podem ter causado muitas das mudanças climáticas ocorridas no passado geológico levaram os pesquisadores a estudar o tema (Frölich e Lean, 1998). A variação da irradiância solar foi descoberta estar associada com a atividade solar, especialmente com o ciclo de 11 anos, sendo observado uma variação de 0,1% na sua intensidade entre o mínimo e o máximo de atividade solar (Frölich e Lean, 1998).

A radiação solar incidente sobre uma superfície horizontal é denominada radiação global, possuindo uma componente direta, correspondendo aos fótons provenientes diretamente do feixe solar, e uma componente difusa, sendo esta constituída pelos fótons que sofreram espalhamentos múltiplos na atmosfera e foram redirecionados para a superfície terrestre.

Na atmosfera terrestre, a absorção ocorre devido à presença de moléculas ou átomos com fortes bandas ou linhas em uma dada faixa de comprimentos de onda. Por exemplo, o O2 (oxigênio molecular) e o O3 (ozônio) apresentam fortes bandas de absorção na região ultravioleta (0,001-0,39 mm) do espectro eletromagnético, e outras espécies como H2O (vapor de água) e CO2 (dióxido de carbono) absorvem fortemente na região do infravermelho (0,7 - 1000 mm). A região do visível apresenta-se como uma janela atmosférica, onde não há fortes bandas de absorção, e a energia solar nesta faixa atinge a superfície terrestre pouco atenuada. A superfície terrestre absorve radiação solar principalmente na região do visível e re-emite no infravermelho, com a emissão similar à curva de emissão de um corpo negro a temperatura de aproximadamente 250 K. Esta radiação terrestre é parcialmente absorvida pela atmosfera, parcialmente refletida pelas nuvens e parcialmente escapa para o espaço.

A presença de espécies absorvedoras ocorre em toda a atmosfera terrestre, sendo os comprimentos de onda mais curtos do ultravioleta absorvidos na mesosfera (acima de 60 km), os intermediários na estratosfera (entre 20-30 km, pelo ozônio) e a radiação infravermelha na baixa estratosfera e troposfera (Brasseur e Solomon, 1986). A Fig. 2 apresenta em (A) o espectro de emissão de um corpo negro em cerca de 6000 K, em (B) a irradiância solar no topo da atmosfera terrestre e em (C) a irradiância solar ao nível do mar. Através da Fig. 2 podemos observar o processo de atenuação da radiação solar através dos gases existentes na atmosfera terrestre, como por exemplo o vapor de água e o gás carbônico, que atuam na absorção da radiação solar na região do infravermelho (principalmente 2-4 mm e em 15 mm com o CO2). Entretanto há na atmosfera terrestre outros elementos químicos que atuam como agentes participantes da extinção da radiação solar, entre os quais o CH4 (metano), o N2O (óxido nitroso) e outros.


A teoria da transferência radiativa expressa a interação da radiação com a matéria, descrevendo como um feixe de fótons é afetado pela presença em seu caminho de propagação de partículas (átomos, moléculas ou aerossóis 2 1 1mm=10 -6m ) opticamente ativas, ou seja, capazes de absorverem ou espalharem a radiação. A absorção de radiação consiste na transformação, pelas partículas, da energia disponível sob forma eletromagnética, em energia interna das partículas, a qual poderá ou não ser re-irradiada posteriormente, dependendo da estrutura eletrônica e da distribuição dos níveis quânticos da partícula. O espalhamento da radiação é um processo físico pelo qual uma partícula no caminho de uma onda eletromagnética absorve energia da onda incidente e re-irradia a energia em todas as direções. A energia então continua na forma de energia de ondas eletromagnéticas. A intensidade relativa da luz espalhada depende fortemente da razão do tamanho da partícula r ao comprimento de onda l da radiação incidente. O parâmetro de tamanho de Mie, x = 2pr/l, indica a relação entre o tamanho da partícula e o comprimento de onda da radiação (Coulson, 1975; McCartney, 1976; Lenoble, 1993).

Os aerossóis cujas dimensões são menores que o comprimento de onda da radiação incidente (r < 0,1l) espalham a radiação de forma similar ao espalhamento produzido pelas moléculas. Este espalhamento é descrito pela teoria conhecida como espalhamento Rayleigh. Quando as dimensões da partícula e o comprimento de onda da radiação são da mesma ordem de grandeza, o espalhamento apresenta propriedades mais complexas e a teoria que descreve esse tipo de espalhamento é conhecida como teoria de Mie. Para partículas grandes (parâmetro de tamanho de Mie grande) a luz é concentrada na direção frontal do feixe luminoso incidente (McCartney, 1976; Lenoble, 1993).

Um parâmetro de grande relevância em termos de balanço radiativo são as nuvens, que são observadas cobrindo parte do planeta praticamente todo tempo. As nuvens exercem papel muito importante, refletindo intensamente e absorvendo a radiação solar na faixa de 8 a 12 mm. Elas apresentam um elevado índice de refletividade que varia com a espessura das mesmas e com a quantidade de água nelas existentes. A maior parte da reflexão da radiação solar pelas nuvens se faz diretamente ao espaço, sendo assim considerada como energia perdida para a superfície terrestre; uma certa parte, porém se reflete na superfície inferior das camadas de nuvens mais elevadas e com isso é refletida de volta para a Terra. Essa reflexão se dá de maneira anisotrópica e se constitui no espalhamento da radiação solar descrito na teoria de Mie e Rayleigh. O efeito combinado de reflexão-retenção da radiação é conhecido como forçante das nuvens (cloud forcing); esse efeito tem implicações no clima, uma vez que a fonte de energia que mantém a vida na biosfera em equilibro, depende da harmonia no sistema Terra-atmosfera-oceanos, que por sua vez depende do equilí brio radiativo entre todos os integrantes do sistema (Hobbs, 1993; Pereira e Colle, 1997).

O tratamento mais sofisticado da interação da radiação com a atmosfera é obtido resolvendo a equação de transferência radiativa, detalhadamente desenvolvida por Chandrasekhar (1960), a qual considera que o feixe radiativo incidente num meio sofre absorção, espalhamento múltiplo e contribuição de emissões ou re-espalhamentos na direção do feixe. Uma aproximação mais simples, mas que encontra grandes aplicações em problemas atmosféricos, é a chamada lei de Beer-Bouguer-Lambert (lei de Beer) da radiação, que considera apenas a atenuação da radiação ocorrendo no feixe radiativo proveniente diretamente da fonte, no caso o Sol. A lei de Beer é a combinação de duas leis inicialmente separadas para a atenuação de radiação, a lei de Lambert-Bouguer que relaciona a quantidade de luz absorvida e a distância que ela viaja através de um meio homogêneo absorvedor, e a lei de Beer, que relaciona a absorção de luz e a concentração da substância absorvente no caso do meio ser constituído por uma solução diluída de uma substância absorvente num solvente não-absorvente. Estas duas abordagens são na prática expressões da mesma lei física.

A seguir descrever-se-ão alguns conceitos de transferência radiativa e a derivação da lei de Beer.

II Conceitos de Transferência Radiativa

A radiação eletromagnética consiste de ondas que se propagam, segundo a solução de equação de onda das equações de Maxwell, e no vácuo a sua velocidade de propagação é a velocidade da luz.

Na teoria eletromagnética, o vetor de Poyinting S expressa o fluxo de energia eletromagnética por unidade de área e por unidade de tempo (Reitz et al., 1982). Para meios não condutores, a equação de conservação de energia eletromagnética é expressa por:

Na Eq. (1), u é a densidade volumétrica de energia contida nos campos eletromagnéticos, expressa por

Em termos de notação da teoria de transferência radiativa (Lenoble, 1993), a energia associada às ondas eletromagnéticas é denominada energia radiante (Q), dada em unidades de energia [J]. A partir desta definição de energia, definem-se as seguintes quantidades.

Fluxo radiante (f) é a energia radiante emitida, transportada ou recebida por unidade de tempo. Iguala o fluxo do vetor de Poyinting (Eq. 1). Expresso em unidades de potência [W],

Densidade de fluxo radiante (F) é o fluxo radiante df que cruza qualquer elemento de superfície dA, que pode ser parte de uma fonte ou um detector, ou mesmo uma superfície fictícia, sem considerar as direções. A densidade de fluxo radiante é chamada irradiância (definida como E) quando a radiação é recolhida sob uma superfície e exitância radiante quando emitida por uma fonte. A unidade é expressa em potência por área [Wm- 2]:

Intensidade radiante (R) é o fluxo radiante df transportado no ângulo sólido dw. É usada para caracterizar a emissão de fontes pontuais. Expressa em termos de potência por unidade de ângulo sólido [W Sr- 1],

Radiância (L) é o fluxo radiante d2f em um ângulo sólido dw atravessando uma superfície dS perpendicular ao eixo do feixe de radiação. A radiância dá a descrição completa do campo radiativo por descrevê-lo em termos de direção de incidência. Expressa em unidades de potência por área e por ângulo sólido [Wm- 2sr- 1],

Neste trabalho, a lei de Beer será abordada em termos da irradiância.

As mesmas quantidades acima podem ser definidas em termos de quantidades monocromáticas para um comprimento de onda específico. Assim tem-se por exemplo que En e El são chamadas irradiâncias espectrais ou monocromáticas, definidas por:

III Derivação da lei de Beer

Na atmosfera a absorção e o espalhamento ocorrem simultaneamente e a atenuação da radiação em um meio real é expressa pela seção transversal de extinção (extinction cross section) se definida pela soma das seções transversais de absorção sa e espalhamento ss como

A seção transversal de extinção é um fator de ponderação indicando a eficiência em cada comprimento de onda com que a molécula absorve ou espalha a radiação, ou também pode ser compreendida em termos da probabilidade de uma molécula absorver ou espalhar um fóton incidente.

Para quantificar a atenuação de radiação em um meio contendo um material opticamente ativo, define-se a espessura óptica 3 1 1mm=10 -6m . A espessura óptica indica a quantidade de material absorvedor e espalhador opticamente ativos encontrados no caminho atravessado pelo feixe de radiação, sendo adimensional. É expressa como a integral ao longo do caminho óptico do produto da quantidade total de moléculas presentes no meio e a seção transversal de extinção para cada comprimento de onda. A espessura óptica é expressa por

Na Eq. (9), sl é a seção transversal de extinção, dx o caminho de integração e N(x) a densidade numérica por volume de átomos ou moléculas opticamente ativos [particulas cm-2](Coulson, 1975).

Se a irradiância monocromática que ingressa no meio é El e após atravessar uma espessura ds do meio a intensidade que sai é El + dEl , a atenuação da radiação pode ser expressa na forma

sendo

k

l o coeficiente de absorção volumétrico [cm

- 1]. Esta expressão indica que o feixe radiativo sofre atenuação proporcional à intensidade do próprio feixe e à quantidade de matéria opticamente ativa no caminho. Isto indica que a atenuação da radiação solar depende linearmente da quantidade total de atenuadores no caminho.

O coeficiente de absorção volumétrico relaciona-se com a seção transversal de extinção através de

Integrando-se a Eq. (10), e utilizando-se a Eq. (11), obtém-se

Na Eq. (12), Eol pode representar a irradiância espectral extraterrestre ou no topo da atmosfera terrestre.

Para a atmosfera terrestre, o comprimento de caminho ds é definido em termos do comprimento de caminho na vertical dz e do ângulo solar de zênite q. A Fig. 3 apresenta a geometria dos comprimentos de caminho na atmosfera terrestre.


Conclui-se através da trigonometria da Fig. 3 que ds = dz sec(q) e a Eq. (12) pode ser escrita na forma

Na Eq. (13), a integral eqüivale a definição da espessura óptica dada pela Eq. (9). O termo sec(q) pode ser substituído pela "massa de ar óptica m", a qual é definida como um termo para descrever o caminho atravessado pela radiação solar para atingir a superfície terrestre, dada pelo quociente entre o comprimento de caminho da radiação solar direta através da atmosfera pelo comprimento de caminho vertical na atmosfera. Para ângulos solares de zênite menores que 60o, a aproximação m = sec(q) é válida, pois a aproximação plano-paralela para a atmosfera terrestre pode ser utilizada (Lenoble,1993). A Eq. (13) pode ser escrita como

A Eq. (14) representa a lei de Beer para a atenuação da radiação solar direta pela atmosfera planetária. Ela demonstra que um feixe monocromático radiativo, ao atravessar um meio homogêneo e opticamente ativo, sofrerá uma atenuação exponencial neste meio.

IV Aplicações da Lei de Beer

IV.1 Cálculo do espectro da radiação solar na superfície terrestre

A lei de Beer (Eq. (14)) pode ser utilizada para o cálculo da transmissão atmosférica. Ela apresenta uma relação entre vários parâmetros, a radiação solar no topo da atmosfera, a radiação que atinge a superfície terrestre ou um dado nível na atmosfera e a espessura óptica atmosférica, a qual pode ser decomposta em espalhamento e absorção por componentes.

A espessura óptica total pode ser decomposta em três componentes como

em que tlR representa a espessura óptica devido ao espalhamento molecular Rayleigh, tlgas é a espessura óptica de absorção devido às moléculas de gás absorvedor e tlaer representa a espessura óptica de aerossóis devido a espalhamento e absorção. A espessura óptica de gases pode ser calculada conhecendo-se a coluna total do gás na atmosfera, a qual pode ser obtida por medidas de satélite ou com instrumentos na superfície, e a seção transversal de absorção do gás. A espessura Rayleigh é calculada da teoria de transferência radiativa, mas numerosas expressões empíricas também encontram-se disponíveis (Teillet, 1990).

Um exemplo da aplicação da lei de Beer para o cálculo do espectro de radiação solar ultravioleta (UV) na superfície terrestre é apresentado na Fig. 4. O espectro no topo da atmosfera foi medido, entre 0,15 e 0,40 mm, pelo experimento Atlas 3 SUSIM (Solar Ultraviolet Spectral Irradiance Monitor, Monitor de Irradiância Ultravioleta Solar Espectral), em 13 de novembro de 1994, numa missão do ônibus espacial da NASA (National Aeronautics and Space Administration)(Kaye e Miller, 1996). Neste cálculo consideraram-se um ângulo solar zenital de 45o e a extinção por espalhamento Rayleigh, e absorção molecular de O2, O3, SO2 (dióxio de enxofre) e NO2 (dióxio de nitrogênio), usando-se valores médios globais das colunas totais desses gases (Brasseur e Solomon, 1986). Considerou-se condição de céu limpo, e efeitos de aerossóis e nuvens não foram considerados. Nota-se que o espectro UV apresenta bastante estrutura, com as oscilações na intensidade da radiação correspondendo às linhas de Fraunhofer de absorção e emissão na atmosfera solar. O espectro solar aumenta com o comprimento de onda nesta região, pois o pico de emissão solar é próximo a 0,5 mm (Fig. 2). Na superfície terrestre, o espectro também apresenta as linhas de Fraunhofer e a tendência de aumento com o comprimento de onda, mas verifica-se um corte em torno de 0,30 mm, o que ocorre devido à forte absorção molecular pelo O2, em comprimentos de onda menores que 0,25 mm, e pelo ozônio, entre 0,25 e 0,30 mm (Lenoble,1993).


O espectro de absorção dos gases é essencialmente descontínuo. No caso de um gás atômico, o espectro consiste de um número de linhas espaçadas nas regiões espectrais do ultravioleta e do visível, que correspondem a diferentes transições eletrônicas características de espécies atômicas particulares. As linhas de absorção surgem de transições de estados padrão para estados superiores excitados. No caso de um gás molecular, como por exemplo os utilizados neste cálculo, a absorção ocorre em bandas, constituídas de um grande número de linhas espectrais pouco espaçadas. A razão para o surgimento de bandas é que toda transição eletrônica é tipicamente acompanhada por mudanças rotacionais-vibracionais, e então cada linha eletrônica é subdividida em muitas linhas (Brasseur e Solomon, 1986; Lenoble, 1993).

O O2 apresenta um espectro absorvedor bem característico na região do ultravioleta, com uma fraca banda de absorção de Herzberg em torno de 0,26 mm, um fraco contínuo de Herzberg entre 0,20-0,24 mm, bandas mais fortes de Schumann-Runge entre 0,17-0,19 mm, e a forte absorção do continuum de Schumann-Runge em torno de 0,15 mm. O O3 apresenta absorção nas regiões do ultravioleta e visível. As principais regiões de absorção são a banda de Hartley, entre 0,22-0,30 mm, com máxima absorção em 0,25 mm, a banda de Huggins, entre 0,30-0,40 mm, com máxima absorção em 0,31 mm, e a banda de Chappuis, em torno de 0,40-0,70 mm. O resultado da forte absorção por O3 e O2 na atmosfera é um corte virtual em comprimentos de onda da radiação solar que chegam ao solo próximo a 0,30 mm. Em comprimentos de onda menores que 0,20 mm o O2 absorve efetivamente, em comprimentos de onda menores do que 0,15 mm os fótons são suficientemente energéticos para ionizar os constituintes atmosféricos, tais como NO (óxido nitríco), O2, O (oxigênio atômico), N (nitrogênio atômico) e N2 (nitrogênio molecular). Em torno de 0,10 - 0,15 mm, ocorre uma `janela' onde a radiação é menos absorvida e capaz de penetrar até 70 km (Iqbal, 1983; Brasseur e Solomon, 1986; Lenoble, 1993).

O espectro de absorção do NO2 na região espectral utilizada neste cálculo aumenta por várias ordens de grandeza com o comprimento de onda, atingindo um pico em torno de 0,40 mm. O SO2 apresenta uma absorção praticamente inexistente abaixo de 0,25 mm, e uma estrutura bem forte e oscilante próximo a 0,30 mm, com seções de absorção inclusive maiores do que as do O3 , mas decaindo rapidamente após 0,32 mm.

O O2 é um gás praticamente constante na atmosfera em termos globais e então a sua influência sobre o espectro solar na superfície terrestre não sofrerá grandes variações. O SO2 e o NO2 estão presentes em quantidades muito pequenas, para uma atmosfera limpa. Eles apresentam maior abundância em regiões que sofrem influência de poluição, ou no caso de grandes erupções vulcânicas que injetem bastante SO2 na atmosfera. Neste caso a variabilidade espacial da radiação solar ocorre principalmente indo de regiões rurais para regiões urbanas e poluídas, a radiação solar é bem mais atenuada em regiões urbanas.

O O3 apresenta-se em maiores quantidades na atmosfera do que SO2 e o NO2 e apresenta tanto significativa variabilidade espacial, sendo menor no equador e máximo nas regiões polares, e variabilidade temporal, sendo em geral mais abundante na primavera de cada hemisfério e menor no outono de cada hemisfério. A variação anual do ozônio em condições normais é da ordem de uns 20% e o espectro de radiação será afetado de maneira não uniforme, com comprimentos de onda mais curtos, de maior absorção, sofrendo maior variabilidade.

A radiação solar em condição de céu claro é pouco atenuada quando comparada com condições de céu encoberto (parcialmente ou totalmente). A presença de nuvens e aerossóis atua como elemento espalhador, principalmente, da radiação solar. Como a região de comprimentos de onda mais curtos apresenta uma maior componente de radiação difusa em relação à radiação de ondas longas, a presença de nuvens reduz muito mais a região do visível do que a região do ultravioleta (em torno de 10-15% da radiação no visível é difusa enquanto pelo menos 50% no ultravioleta em torno de 0,30-0,35 mm, o que indica que em condições de céu totalmente encoberto a radiação de ondas longas será bem mais atenuada do que a de ondas curtas). Os aerossóis apresentam sua espessura óptica expressa pela lei de Angstrom (Iqbal, 1983; Lenoble, 1993), uma fórmula empírica, e a radiação de ondas longas é geralmente mais atenuada do que a radiação de ondas curtas. O leitor pode consultar inúmeros trabalhos na literatura científica especializada sobre o papel dos gases, nuvens e aerossóis na atenuação da radiação solar, como por exemplo nos artigos publicados na revista Journal of Geophysical Research-Atmospheres.

IV.2 Obtenção da espessura óptica atmosférica pelo método de Langley

O método de Langley foi criado por Samuel P. Langley do Smithsonian Institution, para determinar a constante solar no início do século XX (Johnson, 1954). Langley observou que a atenuação da energia solar dependia linearmente da quantidade total de atenuadores ao longo do caminho. A partir da lei de Beer (Eq. (14)) pode-se aplicar uma linearização para obter uma estimativa da irradiância no topo da atmosfera e da espessura óptica total. Dispondo-se de um conjunto de medidas de irradiância monocromática para um intervalo de massa de ar (sec(q)), pode-se extrapolar as medidas para encontrar a irradiância no topo da atmosfera, como a intersecção da reta de regressão linear com o eixo das ordenadas e o módulo da inclinação da reta de ajuste é a espessura óptica total atmosférica (Lenoble, 1993).

Lineariza-se a lei de Beer (Eq. (14)) aplicando-se o logaritmo natural

Esta equação é da forma

sendo

A e

B os coeficientes da reta de regressão linear, equivalendo respectivamente ao logartimo da irradiância extraterrestre e a espessura óptica total atmosférica, ou seja, (

E

l

o) =

e

A, t = -

B.

A Fig. 5 apresenta um exemplo da aplicação do método de Langley aos dados de radiação solar direta ultravioleta de banda larga (0,32-0,40 mm). No presente exemplo os dados não são de irradiância monocromática, mas o método de Langley foi empregado como um exemplo ilustrativo, para o valor médio da banda. Os dados foram obtidos em Santa Maria, Rio Grande do Sul (29oS, 53oW), durante o ano de 1994. Estes dados são medidas obtidas ao meio-dia local (12 hs) durante todo o ano de 1994 e cada ponto é um valor por dia. Os dados de irradiância estão em unidades de mWcm2. O coeficiente de correlação linear entre o logaritmo da irradiância e a secante do ângulo solar zenital obtido foi de r = -0,89. Os resultados estão expressos na Tabela I. Ressalta-se novamente que este é um exemplo para ilustrar a aplicação do método, com dados de radiação direta de banda larga. Para aplicação com maior rigor científico do método de Langley, a radiação medida deve ser, além de direta, de banda bem estreita, quase-monocromática, e as medidas efetuadas ao longo de um mesmo dia, para evitar grandes variações na transparência atmosférica. Os valores obtidos nesta aplicação podem ser considerados representativos da média para a banda toda, e para o ano todo.


Obteve-se como valores médios da banda 0,32-0,40 mm um valor de irradiância extraterrestre para o ano de 1994 de 8,85 ± 1,05 de mWcm2 e para a espessura óptica atmosférica um valor de 0,57 ± 0,04.

V Conclusões

A intensidade da radiação solar que atinge o topo da atmosfera terrestre é variável ao longo do ano em virtude de efeitos astronômicos. Ademais, a quantidade de radiação emitida pelo Sol é função do comprimento de onda e de fenômenos que ocorrem na própria fonte de energia. Assim, a quantidade de radiação que atinge a superfície da Terra dependerá de todos esses fatores, além da variabilidade natural da transmissão atmosférica. Os modelos que calculam a irradiância na superfície terrestre a partir da radiação que chega ao topo da atmosfera precisam estimar a energia absorvida e espalhada pela atmosfera bem como o albedo superficial. A transmitância da radiação solar na atmosfera é um processo complexo e de difícil descrição, devido ao grande número de propriedades físicas atmosféricas que a influenciam. Contudo a transmitância da radiação monocromática através da atmosfera terrestre pode ser determinada pela atenuação exponencial. Essa atenuação da radiação solar direta pela atmosfera planetária é representada pela lei de Beer. Essa lei demonstra que um feixe de luz monocromática, ao atravessar um meio opticamente ativo, sofrerá atenuação de forma exponencial. O coeficiente de atenuação é determinado a partir dos processos de espalhamento e absorção da radiação solar os quais dependem do tipo de gases e aerossóis presentes na atmosfera. Portanto, com boa aproximação a lei de Beer é usada como ferramenta física para descrever a atenuação da radiação solar em seu trajeto na atmosfera terrestre. Um exemplo de cálculo de radiação direta na faixa do ultravioleta apresentou o corte em torno de 0,30 mm e as flutuações associadas à estrutura de linhas de Fraunhofer. O método de Langley para obter a espessura óptica atmosférica foi aplicada, em um exemplo ilustrativo, aos dados de radiação UV-A em banda larga. Para o ano inteiro de 1994 foi obtido um valor médio de espessura óptica, indicando a transmissão média da banda, em torno de 0,60.

Agradecimentos

Agradece-se à FAPESP pela Bolsa de Doutorado Processo 99/07221-3 e ao CNPq pela Bolsa de Doutorado Processo 140373/2000-4.

2Aerossóis são partículas pequenas, sólidas ou líquidas, maiores que as moléculas, encontradas em suspensão na atmosfera.

3Em problemas atmosféricos refere-se à espessura óptica medida verticalmente acima de um dado nível de referência também como profundidade óptica.

  • [1] Brasseur, G. e Solomon, S., Aeronomy of the middle atmosphere, D. Reidel Publishing, Dordrecht, Holanda, 1986.
  • [2] Chandrasekhar, S., Radiative Transfer, Dover Publishing Inc., New York, EUA, 1950.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2001

    Histórico

    • Aceito
      17 Jul 2001
    • Recebido
      21 Maio 2001
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