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Acerca da mecânica estatística

Über statistische Mechanik

SEÇÃO ESPECIAL: CENTENÁRIO DA MORTE DE LUDWIG BOLTZMANN (1844-1906)

Acerca da mecânica estatística* * Traducão e notas de Sílvio R. Dahmen, Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: silvio.dahmen@ufrgs.br.

Über statistische Mechanik

L. Boltzmann1 1 Publicado originalmente em Populäre Schriften (Johann Ambrosius Barth Verlag, Leipzig, 1905).

Mui digníssimos conferencistas!

A minha palestra de hoje foi colocada sob a rubrica "matemática aplicada", embora minha atividade enquanto professor e pesquisador seja dedicada à Física. O enorme abismo que separou esta ciência em dois campos não poderia ter sido mais precisamente explicitado do que na divisão de temas das palestras deste congresso científico, ao qual coube a tarefa de lidar com uma quantidade tão ampla de assuntos que poderíamos na verdade denominá-lo uma enchente ou, usando um tom mais local, uma verdadeira Catarata do Niágara de palestras científicas. A divisão à qual me refiro é aquela da Física em uma área experimental e uma teórica. Eu, enquanto representante da física teórica, fui colocado em A. Ciências Normativas, ao passo que a física experimental só aparece muito mais tarde em C. Ciências Físicas. Entre elas encontramos a História, a Lingüistica, a Literatura, as Artes e a Religião. Por sobre tudo isto é necessário que o físico teórico busque o diálogo com o experimental. Não podemos assim nos esquivar completamente da pergunta a respeito da legitimidade desta divisão em uma área teórica e uma experimental da Física em particular e das Ciências em geral.

A esse respeito ouçamos primeiro um pesquisador de uma época na qual a Ciência praticamente não tinha ainda saído da infância: Immanuel Kant. Ele exigia que toda Ciência, enquanto tal, deveria ser deduzida, através de regras lógicas estritas, a partir de princípios unificados e teorias bem fundamentadas. Para ele as Ciências Naturais só tinham valor enquanto assentadas sobre fundamentos matemáticos. Assim a Química de seu tempo não se encontraria portanto entre as Ciências simplesmente por estar calcada sobre uma base empírica e não possuir um princípio regulador unificado.

Olhando sob este ponto de vista, a física teórica teria prioridade com relação à física experimental, assumindo de um certo modo uma posição superior. Aos experimentais restaria apenas carregar os tijolos, enquanto aos teóricos caberia a tarefa de com eles construir o edifício.

Considerando porém os acontecimentos das últimas décadas bem como os progressos esperados para os tempos vindouros veremos que a ordem na classificação é incorreta. A sequência de descobertas experimentais do século passado foi fechada com chave de ouro com o surgimento dos raios–X. A estes se somaram, neste século, uma cornucópia de novos raios com as mais intrigantes propriedades e que mais profundamente afetam toda nossa visão da natureza. A elucidação destes fenômenos inéditos promete sucessos futuros que serão tão maiores quanto mais intrigantes os fenômenos e quanto mais eles inicialmente pareçam contradizer nossa atual visão da natureza. Não cabe a mim porém descrever estes sucessos. Devo antes deixar aos representantes da física experimental aqui presentes a gratificante tarefa de falar sobre estes frutos que, podemos assim dizer, colhemos quase que diariamente, bem como se pronunciar acerca aqueles que ainda estão por vir.

Um representante da física teórica não se encontra em tão auspiciosa posição, muito pelo contrário. No momento esta área também se encontra na mais agitada atividade, poder-se-ia dizer até em um estado de revolu cão. Quão pouco compreensíveis são os resultados aí obtidos quando comparados aos experimentais! Isso mostra em um certo sentido o quanto de precedência cabe ao experimento quanto comparado com toda a teoria! Um fato é de imediato claro: os frutos experimentais podem ser rapidamente utilizados, como nas diferentes aplicações dos raios–X ou a utilização das ondas hertzianas para a telegrafia sem fio. O embate das teorias é, por outro lado, infinitamente mais longo e até parece que certas polêmicas, tão antigas quanto a própria Ciência, assim deverão permanecer enquanto esta existir.

Todo fato seguramente comprovado permanece para sempre imutável. Ele poderá quando muito ser estendido, complementado ou acrescido de novos fatos, mas nunca completamente derrubado. Disto se compreeende o porquê do contínuo progresso da física experimental, na inexistência de saltos repentinos, em ela nunca ser assolada por grandes revoluções ou como cões. Só raramente acontece de se tomar um fenômeno por algo que mais tarde se mostre incorreto – e mesmo nestes casos a elucidação do erro se dá rapidamente e nunca de maneira a influir muito sobre todo o edifício da Ciência.

Costuma-se enfatizar que toda verdade, descoberta e reconhecida como logicamente necessária, deve continuar existindo, inabalável. Mesmo que não possamos duvidar desta afirma cão, a experiência nos mostra que o edifício de nossas teorias não é constituído, em hipótese alguma, por verdades logicamente bem fundamentadas [e portanto] inabaláveis. Ele é antes sim formado por uma variedade de imagens arbitrárias acerca da interdependência dos fenômenos, das chamadas hipóteses.

É impossível obter uma teoria ou sequer uma descri cão clara, geral e apropriada da natureza que nos permita prever fenômenos futuros sem fazer uma extrapolação, por mínima que seja, para além daquilo que pode ser diretamente apreendido pelos sentidos. Isso vale não só para as antigas teorias, cujos fundamentos agora são motivo de muitas controvérsias, como também para as mais modernas, as quais se deixam levar pela doce ilusão de que parecem prescindir de hipóteses.

Obviamente pode-se manter as hipóteses bastante vagas, ou até quem sabe na forma de expressões matemáticas ou expressando em palavras um conceito mental que lhes seja equivalente. É possível assim controlar, passo a passo, a concordância [da teoria] com o fato dado; a derrubada completa do que foi até aquele momento construído não poderá com isso ser de todo excluída, como se mostrássemos agora por exemplo que a lei da conservação da energia na verdade é incorreta. Uma tal derrubada seria porém extremamente rara e inimaginavelmente improvável.

Uma teoria assim tão indefinida e pouco especializada serviria certamente como precioso guia para experimentos que se movessem por caminhos já aplainados e cujo objetivo fosse um maior detalhamento dos conhecimentos já adquiridos; para mais do que isto ela não tem serventia.

Em contraposição, hipóteses que dêem espaço à fantasia e corajosamente apontem para além do material exposto, são uma constante fonte de motivação para experimentos inovadores e tornam-se assim desbravadoras de descobertas nunca antes imaginadas. Obviamente uma teoria assim estará sujeita às revoluções, e poderá acontecer que um edifício teórico complexo colapse e seja substituído por um novo, mais eficiente. Porém ela ainda continuará servindo como modelo de aplicabilidade restrita a alguns fenômenos da nova teoria, como foi por exemplo o caso da teoria da emissão usada para explicar a catoptria e a dioptria2 2 A teoria da emissão, cuja origem remonta a Newton, baseava-se no princípio que corpos emitiam partículas de luz a uma velocidade c relativa a eles. A catoptria e dioptria são termos que se referem ao estudo da reflexão e refracão da luz, respectivamente. , a hipótese da elasticidade do éter luminífero no estudo dos fenômenos de interferência e reflexão e a teoria do fluido elétrico para explicar os fenômenos eletrostáticos.

Por sinal, as teorias que se vangloriam por não conterem hipóteses não devem estar a salvo de poderosas revoluções; ninguém deve assim duvidar que a teoria conhecida por Energética terá que mudar completamente sua roupagem se quiser continuar viva.

Acusaram as hipóteses em Física de, em certas circunstâncias, serem prejudiciais e atravancarem o progresso da Ciência. Esta acusação baseia-se principalmente no papel que a hipótese dos fluidos elétricos desempenhou no desenvolvimento do eletromagnetismo. Esta hipótese foi concluída em grande estilo por Wilhelm Weber, e o reconhecimento que seu trabalho recebeu na Alemanha de fato impediu o avanço da teoria de Maxwell naquele país, do mesmo modo que antes a teoria das emanações de Newton se colocara no caminho da teoria ondulatória. Tais situações desagradáveis não poderão jamais serem evitadas. A nós cabe esforçarmo-nos sempre no sentido de aperfeiçoar e completar coerentemente, ao máximo possível, a teoria dominante do momento. Então, se uma teoria de tal modo internamente coerente não colidir em momento algum com a experiência, torna-se irrelevante o fato de ela ser constituída por construtos mecânicos, imagens geométricas ou um aparato de fórmulas matemáticas. Sempre será possível o surgimento de uma nova teoria ainda não comprovada pela experiência que descreva uma área fenomenológica muito mais abrangente, embora ainda desconhecida. Então a teoria antiga ainda contará com a maioria dos seguidores até que esta nova área se torne acessível aos experimentos, e alguns testes decisivos não mais deixem dúvidas quanto à superioridade da nova. É sem dúvida útil que a teoria de Weber seja para sempre lembrada como uma advertência para que sempre preservemos a necessária mobilidade de espírito. Isto não diminui de modo algum o mérito de seu criador: o próprio Maxwell fala desta teoria com grande admiração. Também este exemplo não pode ser trazido à tona [como argumento] para se refutar a utilidade das hipóteses: a teoria de Maxwell inicialmente tinha um não menor número de hipóteses se comparada a outras teorias e somente depois de lograr o reconhecimento geral, foi sendo delas expurgada através [dos trabalhos] de Hertz, Poynting e tantos outros.

Aqueles que se opõem às hipóteses em Física disseram também que a criação e posterior desenvolvimento de diferentes métodos matemáticos para calcular hipotéticos movimentos moleculares se mostraram inúteis e até mesmo prejudiciais. Não posso reconhecer esta acusação como sendo legítima. Fosse este o caso, então dever-se-ia também dizer que a escolha do tema de minha palestra foi um erro, e assim seria compreensível que eu aqui mais uma vez tivesse me estendido por sobre o tema já muito discutido do uso de hipóteses em Física, tentando justificá-lo.

Escolhi como tema da minha palestra de hoje não o desenvolvimento da teoria física como um todo, pois tratei deste assunto há alguns anos no Encontro Alemão de Cientistas Naturais de Munique e embora desde então muito tenha novamente acontecido, ainda assim eu teria que repetir muita coisa. Além disso, aquele que declaradamente pertence a um partido, não está em condições de julgar o outro lado objetivamente. Não teço aqui uma crítica a seus valores; minha palestra nunca será crítica, mas informativa. Estou convencido do valor da visão de meus opositores e só me defendo quando tentam diminuir a utilidade da minha própria. Mas fazer um relato completamente apropriado, uma exposição do emaranhado de todas as linhas de pensamento, não só do ponto de vista do outro quanto do seu próprio é uma tarefa difícil.

Deste modo gostaria de escolher como objetivo final da minha palestra de hoje não a teoria cinética molecular apenas, mas na verdade também um ramo altamente especializado da mesma. Longe de querer negar que a mesma contém hipóteses, devo antes porém caracterizá-la mais como um quadro audacioso para além dos puros fatos observacionais. E mesmo assim não a considero indigna de ser aqui apresentada, uma vez que minha confiança na utilidade de hipóteses se estende até o ponto onde elas nos apresentam, sob uma nova luz, particularidades dos fenômenos observados e exemplificam as relações entre os mesmos com tal clareza que nenhum outro meio é capaz de fazer. Devemos porém manter em mente o fato que hipóteses são sempre passíveis de desenvolvimento, e o necessitam. Então, e somente então, quando todas as relações que elas representam puderem ser mais claramente compreendidas de outro modo, podemos abandoná-las.

Das questões acima citadas, uma que é tão velha quanto a própria Ciência e que ainda não foi respondida diz respeito ao fato da matéria ser contínua ou constituída por partes discretas (um número muito grande delas, mas não infinitas no sentido matemático). Esta pergunta é uma dentre aquelas questões complexas que constituem a fronteira entre a Física e a Filosofia.

Há apenas algumas décadas os cientistas tinham um profundo receio em aprofundarem-se nestas questões. Mas justamente a questão [acima] é muito atual nas Ciências para que simplesmente a ignoremos; é impossível porém discutí-la sem tocar questões ainda mais profundas, como a essência da causalidade, da matéria, da força, etc.. Estas últimas eram justamente as questões sobre as quais costumava-se dizer que não seriam assunto dos cientistas, devendo ser deixadas para os filósofos. Hoje a situação é bem outra: observa-se nos cientistas uma grande predile cão em discutir questões filosóficas. E com justiça, afinal umas das primeiras regras da Ciência é nunca confiar cegamente nos instrumentos com os quais se trabalha, mas antes testá-los por todos os lados possíveis. Afinal, como podemos confiar cegamente em conceitos ou opiniões inatos ou historicamente adquiridos, ainda mais agora que há exemplos em número suficiente que nos mostram que eles nos conduzem ao erro? Se quisermos testar os fundamentos novamente, onde devemos colocar a barreira entre Ciência e Filosofia, na qual deveríamos parar?

Espero que nenhum dos filósofos aqui presentes me leve a mal ou veja em minhas palavras alguma censura se disser, com toda a franqueza, que talvez não tenhamos sido muito felizes ao relegar tais questões à Filosofia. É bastante evidente que a Filosofia pouco fez promover seu esclarecimento e, sozinha e com sua visão unilateral, ela pode contribuir tão pouco quanto a Ciência, sozinha, poderia. Se esperamos grandes avanços, estes só virão com um trabalho conjunto destas duas áreas. Assim talvez os presentes me perdoem por tocar nestas questões, embora leigo no assunto – a relação entre elas e o objetivo desta minha palestra é por demais profunda.

Procuremos buscar algum conselho com o famoso filósofo por nós já citado, Immanuel Kant, acerca da constituição da matéria, se ela é contínua ou formada por átomos. Esta questão foi por ele tratada nas suas Antinomias3 3 Boltzmann refere-se aqui às Antinomias tratadas por Kant no capítulo intitulado Dialética Transcendental em sua obra máxima Crítica da Razão Pura. As antinomias, num total de quatro e constituídas sempre de uma tese e uma antítese, são respostas autocontraditórias às perguntas formuladas pela razão. As antinomias são: 1a) o Universo teve um comeco no tempo e é também espacialmente delimitado; 1b) o Universo não teve um comeco e não tem fronteira e é, do ponto de vista do tempo e do espaco, infinito. 2a) Toda substância composta ( zusammengesetzte) é formada de partes simples e não há nada que não seja ou simples ou composto pelo simples; 2b) Nenhuma coisa no Universo é formada por partes mais simples, e não há no Universo algo que seja simples. 3a) Os fenômenos no Universo como um todo não podem ser derivados apenas da causalidade segundo as leis da natureza. É preciso assumir uma causalidade pela liberdade para os explicar; 3b) não há liberdade, mas tudo no Universo ocorre em conformidade com as leis da natureza [determinismo]. 4a) Algo pertence ao Universo se sua existência for necessária a uma parte do mesmo ou à sua causa; 4b) não existe um ser necessário, seja no Universo, seja fora dele, que seja sua causa. Cf. I. Kant em Kritik der Reinen Vernunft, A426/B554ff., Meiner Verlag, 1998. Em português as edicões da Fundacão Calouste Gulbenkian e Editora Abril são altamente recomendáveis. . De todas as questões ali discutidas, ele conclui que é possível se chegar a uma prova lógica rigorosa da tese e de sua antítese. Prova-se rigorosamente que a divisibilidade da matéria não está circunscrita por qualquer limite, mas no entando uma indivisibilidade infinita contradiz as leis da lógica. Kant também trata da [idéia] de que um início e um fim do tempo, onde o espaço deixaria de existir, seria tão inimaginável quanto a eternidade ou uma dimensão infinita.

Esta não é a única situação na qual o raciocínio filosófico cai em contradições – tais situações surgem a cada passo. As coisas comumente aceitas são fonte de inesgotáveis enigmas para a Filosofia. Para explicar nossa cognição ela cria o conceito de matéria, apenas para descobrir que a matéria propriamente dita é totalmente incapaz deste atributo ou de criar sensações na mente. Com uma perspicácia infinita ela cria o conceito de espaço e tempo e descobre posteriormente que é impossível que algo exista neste espaço ou algo ocorra num certo tempo. Ela encontra barreiras intransponíveis na relação entre causa e efeito, mente e matéria, na possibilidade da [existência] da consciência, em resumo, em tudo e em cada coisa. Para concluir, ela descobre que a existência, o vir a ser a possibilidade de mudança de algo é completamente inexplicável e em si contraditório.

Para exemplificar esta lógica me surge à mente o exemplo de uma pessoa que, querendo fazer uma caminhada pela montanha, veste-se com uma roupa tão comprida e cheia de pregas que seus pés a todo momento nela se enroscam e ela acaba caindo já nos primeiros passos, ainda na parte plana do caminho. A origem deste tipo de lógica é resultado da confiança demasiada nas chamadas leis do pensamento. É óbvio que seria impossível termos experiências sensíveis se não houvesse em nós certas formas inatas de interligação de cognições, ou seja de pensamentos. Se quisermos melhor especificar estas leis, podemos dizer que elas são completamente apriorísticas, uma vez que elas se encontram na nossa mente, ou se assim preferirmos, no nosso cérebro, antes da experiência sensível. Nada me parece porém mais injustificável que deduzir, deste apriorismo, uma infalibilidade e segurança absolutas das leis do pensamento, que na verdade se desenvolveram segundo as mesmas leis da evolução que regiram a evolução do aparato óptico de nossos olhos, da acústica de nossos ouvidos ou do sistema de bombeamento de sangue de nosso coração. Ao longo da evolução da humanidade tudo que era inexpediente foi sendo posto de lado, e deste modo surgiu uma unidade e perfeição que podem facilmente ser confundidas com infalibilidade. Assim é compreensível que nos surpreendamos com a perfeição dos olhos, dos ouvidos ou do coração, mas isto não significa que possamos daí concluir algo acerca da perfei cão absoluta destes orgãos4 4 Nesta passagem fica clara a influência do naturalista inglês Sir Charles Darwin, cuja obra Boltzmann admirava profundamente. . Da mesma maneira, não devemos encarar nosso raciocínio lógico como absolutamente infalível. Eles se originaram em fun cão de um objetivo, que era o da aquisição do necessário à manutenção da vida e das necessidades práticas, com as quais os resultados de estudos experimentais mostram muito mais afinidade que com o teste do aparato do raciocínio. Não é de se espantar assim que as formas de pensamento transformadas em hábito não se adaptam completamente aos problemas abstratos da Filosofia, tão distantes das aplicações, e isto desde [os tempos de] Tales. Por esse motivo as coisas mais simples parecem tão misteriosas ao filósofo. Ele encontra contradições em todos os lugares. Mas estas não são nada mais que impressões errôneas e inapropriadas daquilo que nos é dado pelo pensamento. Na coisa dada em si não pode haver contradi cões. Tão logo contradições se mostrem aparentemente insuplantáveis, cabe a nós testar, estender e modificar imediatamente aquilo que nosso raciocínio chama de idéias, mas que nada mais são que representações adquiridas para a descrição das necessidades práticas, que foram por nós herdadas e cujo valor resistiu ao teste do tempo. Da mesma maneira que já há muito tempo um sem número de inven cões como o rolamento, a carroça e o arado, criadas com lúcida consciência, surgiram ao lado daquelas por nós herdadas, devemos também melhor ordenar, artificial e conscientemente, as idéias herdadas. Nosso objetivo não pode ser o de julgarmos os fatos do alto das nossas leis do pensamento, mas sim de adaptarmos nossos pensamentos, imagens e conceitos aos fatos. Uma vez que só através das palavras escritas, faladas ou refletidas conseguimos descrever claramente relações tão complexas, também podemos afirmar que é mister arranjarmos as palavras de tal maneira a exprimirem adequadamente o fato, ou seja que as relações estabelecidas entre as palavras sejam as mais adequadas possíveis às relações da realidade. Tão logo coloquemos o problema desta maneira, a solução mais apropriada ainda pode nos trazer as maiores dificuldades, mas ao menos ainda saberemos qual o objetivo almejado e não tropeçaremos em dificuldades por nós mesmos criadas5 5 Este parágrafo dá uma idéia clara da postura de Boltzmann e seu modus operandi, que podem ser resumidos na frase por ele utilizada na introdu cão de seu livro de mecânica clássica: Bring' vor, was wahr ist! Schreib' so, dass es klar ist! Und verficht's bis es mit dir gar ist! (Mostre aquilo que é verdadeiro! Escreva-o de maneira clara! E defenda-o até o último alento!). .

Muitas coisas inapropriadas nos hábitos e comportamento dos seres vivos surgem quando um modo de agir, que normalmente é adequado para a maioria das situações, acaba por se tornar um hábito, uma segunda natureza, da qual não mais conseguimos nos livrar, mesmo quando sua utilidade deixa de existir. Afirmo: esta acomodação extrapola o objetivo6 6 Boltzmann usa aqui a expressão idiomática über das Ziel hinausschiessen, que tem no inglês to overshoot the mark uma traducão mais apropriada. . Isto ocorre freqüentemente em se tratando das leis do pensamento e se torna fonte aparente de contradições entre elas e o mundo, bem como entre si próprias.

O fato dos fenômenos da natureza seguirem leis é a condi cão básica de todo conhecimento7 7 Boltzmann usa aqui uma palavra, Gesetzmässigkeit des Naturgeschehens, de difícil traducão. O termo mais próximo em português seria "legalidade dos acontecimentos da natureza ", mas não no sentido comumente usado de "estar dentro da lei" e sim de "ser descrito por leis". . Daívem o hábito de questionar a causa de tudo, uma compulsão irresistível, e nos perguntamos também a causa de tudo ter uma causa. Na verdade, muito se quebrou a cabeça com a pergunta se causa e efeito são uma ligação necessária ou representam uma simples sequência aleatória [de eventos], quando na verdade só faz realmente sentido perguntar se um acontecimento especial está ligado a um outro grupo do qual ele é uma consequência natural ou se, sob certas circunstâncias, isso não ocorre.

Do mesmo modo dizemos que algo é útil ou tem valor quando ele melhora as condições de vida do indivíduo ou da humanidade. Mas também extrapolamos o objetivo quando nos questionamos acerca do valor da vida quando, por não ter um objetivo outro que não a si própria, ela nos parece sem valor. O mesmo ocorre quando nos esforçamos sem sucesso em construir conceitos simples, sobre os quais tudo está assentado, a partir de outros ainda mais simples, para daídeduzir novamente as leis fundamentais.

Não devemos ter o desejo de deduzir a Natureza dos nossos conceitos; devemos sim adaptar estes últimos à primeira. Não devemos acreditar que tudo possa ser classificado de acordo com nossos categorias e que exista uma classificação final. Esta classificação será sempre imprecisa e adequada às necessidades do momento. Também a divisão da Física entre teoria e experimento é consequência apenas da divisão dos métodos atualmente utilizados e não permanecerá válida por toda a eternidade8 8 Aqui Boltzmann claramente tem em mente Kant e sua teoria de categorias. É interessante notar que Einstein, em seu texto Physik und Realität, publicado na RBEF 28, 1 (2006), repete em um parágrafo esta mesma idéia de Boltzmann. .

Minha teoria atual é totalmente diferente daquela que relega certas questões para além das fronteiras do conhecimento humano, pois nesta última está implícita uma lacuna, uma incompleteza da capacidade cognitiva humana, ao passo que eu pessoalmente reconheço nestas perguntas, nestes problemas, uma ilusão. Após uma reflexão superficial nos surpreendemos com o fato que, mesmo após reconhecida a ilusão, o ímpeto em responder estas perguntas não desaparece, tão poderosos são os hábitos do pensamento, dos quais não conseguimos nos desvencilhar.

Aqui acontece a mesma coisa que com as ilusões comuns, que continuam existindo mesmo após conhecidas suas causas. Daí a sensação de insegurança e insatisfação que toma conta do cientista quando ele filosofa. Essas ilusões só se desaparecerão lenta e continuamente e julgo que a tarefa maior da Filosofia está em mostrar claramente o quão inadequada é esta extrapolação de objetivos dos nossos hábitos de pensamento, bem como esforçar-se por achar, ao escolher e conectar conceitos e palavras, somente as expressões mais adequadas para os fatos dados, independente dos nossos hábitos herdados. Então aos poucos deverão desaparecer estas contradições e confusões e deverá surgir claramente, no edifício do pensamento, o que é tijolo e o que é cimento. Com isto a sensação opressiva, de que o mais fácil é o mais inexplicável, o mais trivial é o mais enigmático, nos abandonará. Hábitos de pensamento não justificados podem sim desaparecer com o tempo. Prova disto é que hoje muitas pessoas instruídas compreendem a geometria não euclidiana e a teoria dos antípodas9 9 Boltzmann usa aqui o substantivo Gegenfüssler, que é a traducão literal do latim antipedes = com os pés ao contrário. Era um termo usado para denotar o fato que, sendo a Terra esférica, as pessoas que viviam na antípoda em rela cão a um dado local estavam obviamente de ponta-cabeca. Deste modo os Gegenfüssler era o argumento das pessoas menos esclarecidas para refutar a hipótese que a Terra fosse esférica, uma vez que era impossível para alguém viver de cabeca para baixo. . Se a Filosofia conseguisse criar um sistema na qual se tornasse clara a ilegitimidade das questões já anteriormente citadas e com isso a necessidade em respondê-las desaparecesse, resolveríamos numa só tacada os mais obscuros enigmas e a Filosofia se tornaria digna do título de rainha das Ciências.

Nossas regras de pensamento inatas são, é verdade, a pré-condição para nossas complexas experiências, mas não o foram para formas de vida mais simples. Aí elas surgiram lentamente através de experiências simples e foram sendo herdadas pelas formas de vida superiores. Disto se explica que julgamentos sintéticos, herdados de nossos antepassados, surjam e nos sejam inatos, ou seja apriorísticos. Daí a origem de sua força coerciva, mas de não sua infalibilidade10 10 Novamente uma alusão à Teoria da Evolucão de Darwin. .

Quando afirmo que julgamentos do tipo "tudo é ou vermelho ou não-vermelho" surgiram da experiência, não quero com isso dizer que cada indivíduo controla esta verdade vazia na experiência, mas ele passa pela experiência de ver seus pais dizerem que todas as coisas são vermelhas ou não-vermelhas e imita esta designação.

Pode parecer que nos ocupamos com questões filosóficas de modo muito detalhado. A mim parece que não lograríamos chegar aonde chegamos por um caminho mais curto e fácil, a saber um veredicto abrangente acerca de como devemos atacar a questão da constituição atomística da matéria. Não vamos mais apelar para a lei do pensamento que diz que não há limite à indivisibilidade da matéria. Esta lei não vale mais do que o julgamento de um homem ingênuo que afirmasse "– não importa a direção para a qual eu ande sobre a Terra as verticais sempre parecem paralelas e portanto não pode haver pessoas que vivam de cabeça para baixo". Vamos, antes sim, partir por um lado apenas dos fatos, e por outro não ter qualquer preocupação na hora de construir conceitos e suas ligações que não o esforço em obter a expressão mais adequada possível para o fato.

No que tange ao primeiro ponto, os inúmeros resultados da termodinâmica, da Química e da cristalografia nos apontam que o espaço nos corpos aparentemente contínuos não está de maneira alguma preenchido por matéria de maneira uniforme e indistinta, mas que aí se encontram um sem número de entidades, as moléculas e átomos que, embora ínfimos, não são infinitamente pequenos no sentido matemático. Pode-se calcular suas dimensões por vários métodos, muito díspares entre si, e obter-se sempre o mesmo resultado.

A proficuidade deste método foi mais uma vez recentemente comprovada. Todos os fenômenos observados [nos experimentos com] raios catódicos e raios de Becquerel11 11 Ou seja, radioatividade. indicam que estamos lidando com diminutas partículas aceleradas, os elétrons. Depois de uma acirrada discussão esta visão se sobrepôs completamente àquela contrária, a da teoria ondulatória, utilizada quando do descobrimento destes fenômenos. A teoria mostrou-se não apenas adequada para uma explicação muito melhor dos fenômenos até então conhecidos como também incentivou novos experimentos e permitiu a previsão de fenômenos até então desconhecidos. Por meio disto ela acabou por se tornar uma teoria atomística para todo o eletromagnetismo. Se ela continuar evoluindo com o mesmo sucesso dos últimos anos, se fenômenos como a transmutação de emanações de rádio em hélio observados por Ramsay não permanecerem eventos isolados, então esta teoria promete conduzir-nos a conclusões inimagináveis acerca da constituição e natureza dos átomos. Os cálculos nos mostram que os elétrons são muito menores que os átomos da matéria ponderável, e hoje corre por todas as bocas não só a hipótese de que estes átomos sejam formados de várias partes bem como interessantes teorias acerca da maneira como são constituídos. A palavra átomo não deve nos iludir; ela foi emprestada de longas eras. Nenhum físico nos dias correntes associa aos átomos a [propriedade de] indivisibilidade12 12 Boltzmann refere-se aqui à etimologia grega original, a-thomos, que significa sem tomo, indivisível. .

Mas não quero aqui expor apenas estes fatos e as consequências deles derivadas. Eles não nos permitem concluir pela infinita ou limitada indivisibilidade da matéria. Se imaginarmos que aquilo que a Química chama de átomo é formado de elétrons, o que nos impede de imaginar que os elétrons sejam formados por corpúsculos com uma certa dimensão preenchidos continuamente de matéria?

Procuremos aqui, fiéis aos princípios filosóficos anteriormente desenvolvidos, procurar testar a elaboração de um conceito de um modo menos restritivo, e fazê-la da maneira mais adequada possível e livre de contradições

Vê-se inicialmente que não é possível definir o infinito de outro modo que não através de um limite de dimensões finitas sempre crescentes. Pelo menos até hoje ninguém conseguiu elaborar um conceito minimamente compreensível do infinito que não fosse este. Se quisermos assim ilustrar por palavras o contínuo, é necessário que comecemos obrigatoriamente com um número grande mas finito de partículas e que as do temos de certas propriedades, se quisermos daíestudar as propriedades da totalidade destas partículas. Certas propriedades desta totalidade só poderão atingir um limite definido se com o crescimento do número destas partículas suas dimensões diminuirem. Pode-se então afirmar que estas propriedades se aproximam do contínuo e, na minha opinião, esta é a única definição livre de contradições de um contínuo dotado de propriedades definidas.

Assim a pergunta acerca da constituição atomística ou contínua da matéria se reduz à questão se as propriedades [obtidas] ao se assumir um número grande e sempre crescente de partículas, ou seu limite, representam o mais fielmente possível as propriedades observadas da matéria. Obviamente não respondemos aqui a velha questão filosófica, mas já estamos curados do desejo de querer decidir a questão por um caminho contraditório e sem saída. O processo lógico pelo qual primeiro estudamos as propriedades de uma totalidade finita e então deixamos o número de elementos que constituem esta totalidade crescer indefinidamente, permanece inalterado nos dois casos e nada mais é do que uma descrição sucinta do mesmo processo lógico [que fazemos] com símbolos algébricos quando tomamos, como é cada vez mais comum, uma equação diferencial como ponto de partida de uma teoria física.

Não podemos imaginar os elementos da totalidade que escolhemos por imagens dos corpos materiais como estando sempre absolutamente parados, pois caso contrário o movimento seria impossível. Também num único e mesmo corpo um repouso relativo não pode existir, pois caso contrário não poderíamos explicar as propriedades dos fluidos. Além do mais nunca se cogitou outra coisa que não imaginar que eles também estejam sujeitos às leis da mecânica. Escolhamos assim para a explicação da Natureza uma totalidade [formada de] um número excepcionalmente grande de proto-indivíduos que se encontram em constante movimento e que estejam submetidos às leis da mecânica. Levantou-se contra isto uma objeção, que podemos tomar muito adequadamente como ponto de partida das considerações que formam o objetivo final desta palestra. As leis da mecânica não se alteram sequer minimamente se trocarmos, sem mais nem menos, o sinal do tempo. Assim processos puramente mecânicos podem ocorrer num sentido como no seu oposto, i.e. no sentido de tempo crescente como no de tempo decrescente. Notamos porém no nosso dia-a-dia que futuro e passado não coincidem tão perfeitamente quanto esquerda e direita, mas que ambos são completamente diferentes.

Isto é mais precisamente colocado através da chamada segunda lei da Termodinâmica. Ela nos diz que, quando um sistema arbitrário de corpos que não interage com outro sistema é deixado por si só, é sempre possível dizer em que direção uma mudança de estado se dará. Pode-se na verdade definir uma função da totalidade dos corpos, a entropia, com a propriedade que toda mudança de estado só pode ocorrer se ela implicar num aumento desta função, ou seja com o aumento do tempo a função sempre aumenta. Tal lei só pode ser obtida através de abstração, como o princípio de Galileu, uma vez que é impossível isolar completamente um corpo da influência de outros corpos. Como esta lei, junto a outras, sempre levou a resultados corretos até o momento, aceita-mo-la como correta, da mesmo modo que aceitamos o princípio de Galileu.

Desta lei segue que um sistema isolado de corpos deve render para um estado final específico, para o qual a entropia é um máximo. As pessoas se espantaram ao descobrir que uma consequência inexorável desta lei é que o Universo como um todo irá para um estado final onde tudo cessa. Este resultado é por si só compreensível se tomarmos o Universo como sendo finito e sujeito à segunda lei. Se imaginarmos o Universo como infinito e caso não imaginemos o infinito como um simples limite, surgem novamente as mesmas dificuldades lógicas já discutidas.

Uma vez que nas equações diferenciais da mecânica não há nada absolutamente análogo à segunda lei, só é possível expressá-la mecanicamente através de certas hipóteses sobre as condições iniciais [do sistema]. Para chegarmos às hipóteses adequadas, devemos partir do pressuposto que cada tipo de átomo ou entidade mecânica mais geral devem se encontrar, em grande número, nos mais variados estados iniciais, se quisermos com isto explicar corpos aparemente contínuos. Para lidar matematicamente com esta hipótese foi inventada uma Ciência própria cuja tarefa não é determinar o movimento de um único sistema mas descobrir as propriedades de um complexo de muitos sistemas mecânicos, que partem das mais variadas condições iniciais. O mérito da sitematização desta ciência, de tê-la apresentado em um livro e a ela ter dado um nome pertence a um dos maiores sábios americanos e, no que tange ao pensamento abstrato e pesquisa teórica, talvez o maior de todos: Willard Gibbs, professor do Yale College recentemente falecido13 13 Gibbs falecera no ano anterior a esta palestra. . A esta Ciência ele deu o nome de mecânica estatística. Ela está dividida em duas partes: a primeira estuda as condições sob as quais as propriedades externamente perceptíveis de um complexo de entidades mecânicas não se alteram, não obstante o intenso movimento destas entidades. Gostaria de chamar esta parte de estática estatística. A segunda parte calcula a variação gradual destas propriedades externas perceptíveis, quando estas condições não mais estão presentes. Podemos dar-lhe o nome de dinâmica estatística. Com relação à perspectiva futura que se nos abriu, de aplicar esta ciência à estatística dos seres vivos, à sociedade humana, à sociologia etc., e não pensarmos apenas em simples corpúsculos mecânicos, permito-me aqui fazer apenas este comentário en passant.

Uma explanação detalhada desta ciência só seria possível com o auxílio de fórmulas matemáticas e uma série de palestras. Desconsideradas as dificuldades matemáticas, esta ciência não está livre de dilemas em seus fundamentos. Ela se baseia na teoria de probabilidades que, como outras áreas da matemática, é absolutamente exata tão logo o conceito de probabilidades iguais seja introduzido. Porém este conceito, enquanto fundamental, não pode ser deduzido mas deve ser postulado. Acontece aqui o mesmo que acontece com as fórmulas do método dos mínimos quadrados, que só funcionam corretamente quando certas hipóteses acerca das probabilidades idênticas de erros elementares se aplicam. Destes problemas nos fundamentos se entende o porquê do mais simples dos resultados da estática estatística, a prova da distribuição de Maxwell para velocidades de moléculas de um gás, ainda não ser consenso.

O conjunto de premissas de mecânica estatística é consequência rigorosa das hipóteses feitas e permanecerá sempre válido, do mesmo modo que todo conjunto de hipóteses matemáticas bem fundamentadas o é. Sua aplicação aos fenômenos da Natureza é o protótipo de uma hipótese física. Se partirmos por exemplo da hipótese básica das probabilidades iguais14 14 Boltzmann refere-se ao postulado das probabilidades iguais a priori. , chegamos à leis para as propriedades de agregados de um grande número de indivíduos totalmente análogas às leis que o comportamento do mundo material nos mostra. Um movimento para frente ou uma rotação perceptível aos olhos devem se transformar cada vez mais em movimentos imperceptíveis das menores partículas, ou seja em movimento térmico, como Helmholtz de maneira bem característica coloca: movimento ordenado deve se transformar cada vez mais em movimento desordenado; a mistura de elementos diferentes, tal qual de temperaturas diferentes, de locais de maior ou menor movimento molecular, devem sempre se tornar mais uniforme. Que esta mistura não fosse perfeita desde o começo [dos tempos], que o mundo tenha antes sim partido de um estado inicial de baixíssima probabilidade, é um fato que podemos incluir entre as hipóteses mais fundamentais de toda a teoria e podemos dizer que o motivo pelo qual isso ocorreu é tão pouco conhecido como o motivo pelo qual o mundo é como o é e não diferente. Mas pode-se também tomar uma outra posição. Estados de grande ordem, e respectivas grandes diferenças de temperatura não são segundo a teoria absolutamente impossíveis, apenas extremamente improváveis, aliás num grau inimaginável15 15 Em uma famosa apreciacão da obra de Boltzmann em Física, Schrödinger afirmou que sua maior contribuicão fora mostrar que o que se cria ser impossível era na verdade improvável. . Se daí portanto imaginarmos o Universo suficientemente grande, segue das leis da probabilidade que ora aqui, ora ali surjam regiões da dimensão do espaço das estrelas fixas com distribui cões de estados altamente improváveis. Tanto no seu surgimento quanto no seu desaparecimento o transcorrer do tempo será unidirecional e um ser pensante que aíse encontre terá a mesma impressão do tempo que nós teríamos, embora o transcorrer do tempo para o Universo como um todo não seja unidirecional. É verdade que a teoria aqui desenvolvida extrapola a experiência ousadamente, mas ela tem justamente a propriedade que se espera que toda teoria deste tipo tenha: ela joga uma nova luz sobre os fatos vivenciados e nos motiva a cogitações e estudos mais profundos. Contrariamente à primeira lei, a segunda se nos afigura como uma lei puramente probabilística, como Gibbs já houvera afirmado na década de 70 do século passado.

Não evitei aqui as questões filosóficas na firme esperan ca que uma corajosa parceria entre a Filosofia e as Ciências Naturais renderá novos frutos a cada uma delas e que só por meio deste caminho é que chegaremos a uma verdadeira e conseqüente expressão de idéias. Quando Schiller, dirigindo-se aos filósofos e cientistas do seu tempo, disse: "– Que haja animosidade entre vocês! Ainda é cedo para uma aliança"16 16 Famoso poema de Friedrich Schiller que diz "Que haja animosidade entre vocês! Ainda é cedo para uma alianca. Só quando se separarem na busca, a verdade será conhecida. (Feindshaft sei zwischen euch! Noch kommt das Bündniss zu frühe. Wenn ihr im Suchen euch trennt, wird erst die Wahrheit erkannt.)". , não penso estar o contradizendo quando afirmo que acredito realmente que a hora da aliança é chegada.

Nota do Tradutor

A palestra Über statistische Mechanik foi apresentada por Boltzmann por ocasião de sua participação no Congresso de Ciências de St. Louis, nos EUA, em 1904, e publicada na coletânea Populäre Schriften, Johann Ambrosius Barth Verlag, Leipzig, 1905. Esta obra foi recentemente lançada no Brasil pela Editora Unisinos sob o título Escritos Populares, em tradução de Antonio A.P. Videira (cf. resenha neste número da RBEF, p. 409). Gostaria de agradecer ao Prof. Videira que gentilmente me cedeu uma cópia de sua tradu cão para que eu pudesse cotejar com a minha, feita diretamente da primeira edição das Populäre Schriften. Algumas notas de rodapé foram acrescidas sempre que necessárias. Coloquialismos do autor foram substituídos por termos equivalentes do português, quando existentes.

O tradutor gostaria de agradecer ao Erwin Schrödinger Institute, em Viena, pela oportunidade de participar do Boltzmann's Symposium e à Fundação Alexander von Humboldt (Alemanha) pelo suporte financeiro.

  • *
    Traducão e notas de Sílvio R. Dahmen, Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
  • 1
    Publicado originalmente em
    Populäre Schriften (Johann Ambrosius Barth Verlag, Leipzig, 1905).
  • 2
    A teoria da emissão, cuja origem remonta a Newton, baseava-se no princípio que corpos emitiam partículas de luz a uma velocidade
    c relativa a eles. A catoptria e dioptria são termos que se referem ao estudo da reflexão e refracão da luz, respectivamente.
  • 3
    Boltzmann refere-se aqui às Antinomias tratadas por Kant no capítulo intitulado
    Dialética Transcendental em sua obra máxima
    Crítica da Razão Pura. As antinomias, num total de quatro e constituídas sempre de uma tese e uma antítese, são respostas autocontraditórias às perguntas formuladas pela razão. As antinomias são: 1a) o Universo teve um comeco no tempo e é também espacialmente delimitado; 1b) o Universo não teve um comeco e não tem fronteira e é, do ponto de vista do tempo e do espaco, infinito. 2a) Toda substância composta (
    zusammengesetzte) é formada de partes simples e não há nada que não seja ou simples ou composto pelo simples; 2b) Nenhuma coisa no Universo é formada por partes mais simples, e não há no Universo algo que seja simples. 3a) Os fenômenos no Universo como um todo não podem ser derivados apenas da causalidade segundo as leis da natureza. É preciso assumir uma causalidade pela liberdade para os explicar; 3b) não há liberdade, mas tudo no Universo ocorre em conformidade com as leis da natureza [determinismo]. 4a) Algo pertence ao Universo se sua existência for necessária a uma parte do mesmo ou à sua causa; 4b) não existe um ser necessário, seja no Universo, seja fora dele, que seja sua causa.
    Cf. I. Kant em
    Kritik der Reinen Vernunft, A426/B554ff., Meiner Verlag, 1998. Em português as edicões da Fundacão Calouste Gulbenkian e Editora Abril são altamente recomendáveis.
  • 4
    Nesta passagem fica clara a influência do naturalista inglês Sir Charles Darwin, cuja obra Boltzmann admirava profundamente.
  • 5
    Este parágrafo dá uma idéia clara da postura de Boltzmann e seu
    modus operandi, que podem ser resumidos na frase por ele utilizada na introdu cão de seu livro de mecânica clássica:
    Bring' vor, was wahr ist! Schreib' so, dass es klar ist! Und verficht's bis es mit dir gar ist! (Mostre aquilo que é verdadeiro! Escreva-o de maneira clara! E defenda-o até o último alento!).
  • 6
    Boltzmann usa aqui a expressão idiomática
    über das Ziel hinausschiessen, que tem no inglês
    to overshoot the mark uma traducão mais apropriada.
  • 7
    Boltzmann usa aqui uma palavra,
    Gesetzmässigkeit des Naturgeschehens, de difícil traducão. O termo mais próximo em português seria "legalidade dos acontecimentos da natureza ", mas não no sentido comumente usado de "estar dentro da lei" e sim de "ser descrito por leis".
  • 8
    Aqui Boltzmann claramente tem em mente Kant e sua teoria de categorias. É interessante notar que Einstein, em seu texto
    Physik und Realität, publicado na RBEF
    28, 1 (2006), repete em um parágrafo esta mesma idéia de Boltzmann.
  • 9
    Boltzmann usa aqui o substantivo
    Gegenfüssler, que é a traducão literal do latim
    antipedes = com os pés ao contrário. Era um termo usado para denotar o fato que, sendo a Terra esférica, as pessoas que viviam na antípoda em rela cão a um dado local estavam obviamente de ponta-cabeca. Deste modo os
    Gegenfüssler era o argumento das pessoas menos esclarecidas para refutar a hipótese que a Terra fosse esférica, uma vez que era impossível para alguém viver de cabeca para baixo.
  • 10
    Novamente uma alusão à Teoria da Evolucão de Darwin.
  • 11
    Ou seja, radioatividade.
  • 12
    Boltzmann refere-se aqui à etimologia grega original,
    a-thomos, que significa sem tomo, indivisível.
  • 13
    Gibbs falecera no ano anterior a esta palestra.
  • 14
    Boltzmann refere-se ao postulado das probabilidades iguais
    a priori.
  • 15
    Em uma famosa apreciacão da obra de Boltzmann em Física, Schrödinger afirmou que sua maior contribuicão fora mostrar que o que se cria ser impossível era na verdade improvável.
  • 16
    Famoso poema de Friedrich Schiller que diz
    "Que haja animosidade entre vocês! Ainda é cedo para uma alianca. Só quando se separarem na busca, a verdade será conhecida. (Feindshaft sei zwischen euch! Noch kommt das Bündniss zu frühe. Wenn ihr im Suchen euch trennt, wird erst die Wahrheit erkannt.)".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      2006
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br