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Bartolomeu Lourenço de Gusmão: o primeiro cientista brasileiro

Bartolomeu Lourenço de Gusmão: the first Brazilian scientist

Resumos

Bartolomeu Lourenço de Gusmão foi o primeiro inventor e cientista brasileiro, célebre pela criação do balão a ar quente em 1709. Nos 300 anos de sua mais famosa invenção, este artigo apresenta uma nova biografia do fundador da Aerostática e um estudo original dos seus inventos.

Bartolomeu Lourenço de Gusmão; balão a ar quente; efeméride


Bartolomeu Lourenço de Gusmão was the first Brazilian inventor and scientist, famous by the creation in 1709 of the hot air balloon. In the 300 years of his best known invention, this article presents a new biography of the forerunner of Aerostatics and a new study of his devices.

Bartolomeu Lourenço de Gusmão; hot air balloon; ephemeris


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Bartolomeu Lourenço de Gusmão: o primeiro cientista brasileiro

Bartolomeu Lourenço de Gusmão: the first Brazilian scientist

Rodrigo Moura VisoniI, 1 1 E-mail: rmvisoni@yahoo.com.br. ; João Batista Garcia CanalleII

IMuseu Aeroespacial, Universidade da Força Aérea, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIInstituto de Física, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Bartolomeu Lourenço de Gusmão foi o primeiro inventor e cientista brasileiro, célebre pela criação do balão a ar quente em 1709. Nos 300 anos de sua mais famosa invenção, este artigo apresenta uma nova biografia do fundador da Aerostática e um estudo original dos seus inventos.

Palavras-chave: Bartolomeu Lourenço de Gusmão, balão a ar quente, efeméride.

ABSTRACT

Bartolomeu Lourenço de Gusmão was the first Brazilian inventor and scientist, famous by the creation in 1709 of the hot air balloon. In the 300 years of his best known invention, this article presents a new biography of the forerunner of Aerostatics and a new study of his devices.

Keywords: Bartolomeu Lourenço de Gusmão, hot air balloon, ephemeris.

1. Os precursores do balão

O aeróstato é uma das poucas invenções que poderiam ter ocorrido em praticamente qualquer época da humanidade. A elevação da fumaça produzida por fogueiras sempre foi um dos sinais mais perceptíveis ao homem de que o ar, uma vez aquecido, tende a subir, e muitos povos antigos produziam os tecidos leves e fortemente trançados necessários para se cozer um balão.

Um desses povos era o peruviano. Na opinião de Michael Debakey (1940-), fundador da International Explorer Society (IES), com sede em Coral Gables, Flórida, Estados Unidos: "Os peruanos primitivos possuíam as qualidades necessárias para fabricar qualquer coisa mais leve que o ar. Eles possuíam a inteligência, a organização social, a superioridade têxtil e o conhecimento do vôo." [1].

Após três anos de preparação, em 28 de novembro de 1975 a International Explorer Society promoveu uma experiência com um balão construído apenas com materiais disponíveis no tempo e na região dos pré-incas, o Condor I. O aeróstato, de forma tetraédrica e com 30 metros de altura, alçou voo com os aeronautas Julian Nott, inglês recordista mundial de altitude em balão, e o estadunidense Jim Woodman. Os balonistas subiram numa nacela trançada com a planta totora do lago Titicaca, nacela essa feita na forma de uma embarcação peruana. Inflado a partir de uma fogueira preparada no solo, o Condor I subiu rapidamente, estabilizando-se a uma altura de cerca de 250 metros. Em seguida, iniciou uma queda vertiginosa. O lastro lançado rapidamente pelos dois tripulantes abrandou a descida, mas isso não os impediu de serem atirados para fora da aeronave no choque com o chão. Surpreendentemente, nenhum dos dois se feriu.2 2 Sobre a experiência foram publicadas duas reportagens no jornal peruano 7 Dias Del Peru: uma em 29 de novembro e outra em 5 de dezembro de 1975. A experiência também foi notícia no The New York Times, dos Estados Unidos, edição de 15 de dezembro de 1975: a matéria, intitulada Nazca Balloonists?, cita Bartolomeu Lourenço de Gusmão e está disponível em http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,879533-1,00.html.

A experiência foi inconclusiva, pois a aeronave não levava consigo a fonte térmica necessária para caracterizar o veículo como um balão autêntico, e foi muito criticada por diversos pesquisadores, em especial a francesa Simone Waisbard:

Os arqueólogos peruanos, é preciso dizer, não manifestaram qualquer interesse por aquilo que julgaram como uma experiência 'teatral', destinada a fazer sensação. Para eles, ela não prova de maneira alguma que os antigos peruanos puderam voar em outros tempos.

Na verdade, o principal responsável pelo malogro da experiência foi o vento louco dos pampas, que sopra em turbilhões endiabrados em certos dias. Porém, de qualquer maneira, o peso, antes de tudo, foi o inimigo número um. Dois passageiros de grande tamanho, pesando cada um 80 kg, representavam muito mais que índios de pequena estatura, a julgar pelos personagens nazcas pintados sobre as cerâmicas. Além disso, nestas podem-se ver anões que participam das festividades religiosas, onde se sabe, eles representavam um papel preponderante, como em todas as classes sacerdotais das civilizações evoluídas da América antiga, incluindo os Incas.

Eu estou convencida de que, se os Nazcas, povo muito experiente em todas as ciências e técnicas, tivessem imaginado um aparelho do tipo Condor, teria sido com um só piloto a bordo, escolhido entre os mais leves.

Quanto a fazer o barquinho em redes de malha fechada, é outro erro que eles não teriam cometido e, muito menos, procurar redes do lago Titicaca! Nos pântanos existentes em certos locais do litoral, crescem juncos. E sobretudo, eu conheço bem o defeito da totora: seu peso ainda! Grandes peritos em cestaria, uma barquinha em forma de cesta leve, como aquela em que repousa cada uma de suas múmias, teria preferência.

Enfim, de onde viria a certeza dos exploradores do I.E.S. a respeito de um eventual vôo pré-histórico, sobre os pampas? Sempre segundo as divulgações através da imprensa, 'de uma antiga cerâmica Nazca, decorada com um motivo que representa uma bolsa de ar quente...'

Eu não conheço a referida cerâmica e nem pude obter do I.E.S. nem desenho, nem fotografia da mesma. [2]

Já o historiador inglês Noel Joseph Terence Montgomery Needham (1900-1995), autor da série de volumes intitulada Science and civilization in China (Ciência e Civilização na China), e o chinês Deng Yinke (1936-), autor de Ancient Chinese inventions (Antigas Invenções Chinesas), realizaram estudos concluindo que os primeiros balões a ar quente teriam sido na verdade confeccionados na China.

Sem esquecer de mencionar Bartolomeu de Gusmão- o que mostra a extensão de sua pesquisa -, Needham afirmava em seu texto de 1965, The Balloon in East and West (O Balão no Oriente e no Ocidente), que "a China provavelmente foi o país de origem dos balões de ar quente":

Animadores da Páscoa no século 17, na Europa, faziam um truque divertido com cascas de ovo vazias que se erguiam no ar literalmente 'com a ajuda de seu próprio vapor'. Tal fato é relatado em vários livros, por exemplo, no poema de Jacques de Fonteny, L'Oeuf de Pasques, de 1616, que descreve o truque como um costume tradicional. O procedimento é simples e exige apenas um pouco de habilidade. O conteúdo de um ovo é retirado por um pequeno buraco e a casca é cuidadosamente seca. A quantidade certa de orvalho (água pura) era introduzida no buraco e a casca era fechada com cera. Em seguida, com o calor do sol, o ovo começava a se mexer, ficava cada vez mais leve e se erguia no ar, flutuando por um tempo antes de cair. Não sabemos o quanto este truque é antigo na Europa, mas ficamos muito surpresos em ler a respeito disso no livro de Duhem, pois já encontramos um modelo similar da máquina de voar mais leve que o ar em um texto chinês, não do século 17, mas do século 2 a.C. O texto se chama Huai-Nan Wan Pi Shu (As dez mil artes infalíveis do Príncipe Huai-Nan), um compêndio de antigas técnicas taoístas (...). O texto afirma, de forma concisa, como de costume: 'É possível fazer ovos voarem no ar adicionando um pedaço de estopim aceso.' E um antigo comentário incorporado no texto explica: 'Pegue um ovo e remova seu conteúdo da casca, depois acenda um pequeno estopim de artemísia (dentro do buraco) para encerrar uma forte corrente de ar. O ovo, por si só, se erguerá no ar e voará.' Assim, o método de Liu An era mais parecido com o método dos irmãos Montgolfier que com o dos ovos que voavam com vapor, já que aquele usava nada além de ar quente. A descoberta deste texto nos faz pensar nas relações entre China e Europa na pré-história dos voos aéreos sob uma perspectiva um tanto diferente. (...)

A China provavelmente foi o país de origem dos balões de ar quente por várias razões. Do período Han em diante, havia papel disponível na região, mas não em nenhuma outra parte do mundo, e o desenvolvimento das clássicas lanternas de papel esféricas teria incentivado as experiências. Quando a abertura superior era pequena demais e a fonte de luz e calor era excepcionalmente forte, em alguns casos elas devem ter demonstrado a tendência de se erguer no ar e flutuar sem sustentação. E de fato não é difícil encontrar exemplos dos populares balões de ar quente como um antigo esporte na área cultural chinesa. Goullart, por exemplo, faz uma descrição gráfica dos costumes sazonais envolvendo balões na região de Lichiang, na província de Yunnan. Ele nos diz que em julho, um mês crítico antes da estação de chuvas, o arroz já estava plantado e as pessoas não tinham muito o que fazer, então, nas noites, além de dançar, os jovens e as garotas Nakhi faziam balões de ar quente com papel bruto oleoso colado em uma estrutura de bambu. Com montinhos de lascas de pinho em chamas por baixo, eles subiam no ar da noite, alguns flutuando no alto, como estrelas vermelhas, por vários minutos, antes de pegarem fogo e cair em um lugar distante. Duhem, novamente, relata passatempos similares no Camboja. Ainda é preciso encontrar descrições medievais para preencher a lacuna na continuidade, mas é provável que uma pesquisa mais profunda revelará esses indícios. (...)

Sugere-se até mesmo que uma prática originalmente chinesa foi levada ao conhecimento dos europeus na época das invasões mongóis. Muitas evidências foram obtidas nas crônicas do Leste Europeu em que balões de ar quente na forma de dragões foram usados como sinalização ou como estandartes pelo exército mongol na Batalha de Liegnitz em 1241, e esse fato é aceito como seguro por muitos escritores. Certamente muitos trabalhos alemães do começo do século 15 sobre a tecnologia militar, como o manuscrito Belliforti de Konrad Kyeser, apresentam desenhos de cavalheiros segurando o que pareciam ser dragões voadores no ar na extremidade das cordas. Em seu trabalho, ele afirma que continham lâmpadas a óleo, além de combustíveis para dar um efeito como se estivessem cuspindo fogo. Fica difícil analisar essas descrições e imagens, que, até certo ponto, lembram mais pipas que balões de ar quente, e o assunto precisa ser estudado mais a fundo, mas estamos inclinados a acreditar que um elemento aerostático considerável estava envolvido. Não importa quais eram de fato os esquemas envolvidos, aparentemente eles continuaram a existir no século 16, pois um relato de Charles V em Munique em 1530, acompanhado de uma xilogravura contemporânea, atesta a existência de um dragão similar cuspindo fogo voando ou flutuando. (... ) Depois, em 1709, foi a vez das atividades do clérigo brasileiro Frei Gusmão [sic], que pôs fogo nas cortinas da sala de audiências do Rei de Portugal com um modelo do Montgolfière. Apenas oito décadas se passaram antes que o homem fosse realmente capaz de alçar voo. Assim, seguindo um rastro tênue, iluminado apenas de forma irregular, voltamos a apostar na visão anteriormente sustentada por evidências menos seguras, ou seja, de que a China de fato teve um papel importante na pré-história dos balões e dirigíveis. [3]

A despeito de todas as evidências apontadas por Needham, o fato é que o aeróstato era completamente desconhecido na China quando da divulgação dos balões dos irmãos Montgolfier. Em uma de suas cartas mais curiosas, escrita de Pequim em 15 de novembro de 1784 (apenas um ano após a primeira ascensão de balão em Paris), o jesuíta J.J. Amiot descreveu o interesse que os pesquisadores vinham demonstrando, e disse que eles estavam dispostos a reconsiderar, sob a perspectiva dos Montgolfier, histórias antigas encaradas há gerações apenas como fábulas. O próprio Amiot, que não desprezava a sabedoria dos antigos filósofos chineses, questionava-se se talvez Huang Ti ou Shen Nung talvez não conhecessem algum fluído mais leve que o ar há tempos esquecido [4].

Já Deng Yinke, em 2005, contou uma história bastante diferente da suposta invenção do balão pelos chineses:

De acordo com os registros históricos, o inventor do balão de ar quente foi Zhuge Liang (181-234), um político e estrategista respeitado do período dos Três Reinos.

Ao comandar as frotas no fronte, a saúde de Zhuge Liang ficou debilitada em razão do excesso de trabalho constante. Antes de morrer, ele projetou uma luminária para confundir o inimigo: uma lâmpada a óleo foi instalada sob um saco de papel e o saco flutuou no ar, pois a lâmpada aquecia o ar. Após sua morte, o inimigo passou a temer a luz no ar, achando que alguma força divina o ajudava. Mais tarde, esse balão de ar quente em papel foi batizado de Lanterna Kongming (Zhuge Liang também era conhecido como Zhuge Kongming). No Período das Cinco Dinastias (907-960), uma guerreira chamada Xin fez uma enorme Lanterna Kongming acesa com resina de pinho para usá-la como um sinal militar. Fan Chengda, um poeta da Dinastia Song do sul, escreveu um poema sobre a Lanterna Kongming: "As velas ergueram-se no ar e lá ficaram." Na Dinastia Yuan (1271-1368), o balão de ar quente se tornou popular em todo o país, e, durante os festivais, esses balões eram acesos, o que atraia enormes multidões de espectadores. Joseph Needham percebeu que a invenção do papel na China remontava a vários séculos antes de seu uso em outros países; com o papel, as pessoas fabricavam lanternas e algumas lanternas com buracos bem pequenos na parte superior costumavam se elevar e até flutuar no ar em razão da luz e do calor fortes. [5]

Infelizmente, Deng Yinke não transcreveu os tais "registros históricos" que confeririam a Zhuge Liang o mérito pela invenção do balão a ar quente. É curioso que esse personagem tenha escapado à investigação de Needham. A falta de documentos comprobatórios e a ausência de concordância entre as pesquisas não permitem chegar a nenhuma conclusão segura sobre um possível surgimento do balão na China.

Leonardo da Vinci (1452-1519), o gênio renascentista italiano tantas vezes precursor nas ciências mais distintas, planejou diversos aparelhos aéreos, como o paraquedas, o helicóptero, o ornitóptero e o planador, mas ao que parece, não pensou no balão, embora ele já tivesse se dado conta, no século dezesseis, da força ascensional do ar quente - e mais, que esta poderia servir para gerar movimento. Num desenho feito por ele na década de 1510, constante da coleção de 403 páginas organizada sob o nome de Códice Atlântico, conservado na Biblioteca Ambrosiana em Milão, na Itália, há o esboço de uma churrasqueira que funcionaria com base nessa propriedade: o aparelho, provido de uma chaminé que se afunila, tinha na parte superior desta uma hélice horizontal movida pelo fluxo de ar aquecido. O eixo da hélice, vertical, ligado na base a um sistema de engrenagens, transmitiria o movimento rotativo para outro eixo, este horizontal, que consiste justamente no espeto onde a carne é colocada. Com isso o ar quente faria girar a carne sobre o fogo (Fig. 1).


O princípio que explica, dentre vários outros fenômenos físicos, porque um balão sobe, é o chamado Princípio de Arquimedes, que assim se enuncia: "Todo corpo mergulhado total ou parcialmente em um fluido sofre a ação de uma força vertical de baixo para cima, denominada empuxo, igual ao peso do volume do fluido deslocado pelo corpo." O empuxo pode ser menor, igual ou maior que o peso do balão; assim, este pode descer, permanecer estático ou ascender até o nível em que o novo empuxo se iguale ao seu peso.

O primeiro a aplicar comprovadamente o Princípio de Arquimedes na aeronáutica foi padre italiano Francesco Lana Terzi (1631-1687). Em 1670 ele publicou Prodromo ovvero saggio di alcune invenzioni nuove all'Arte Maestra, livro em que apresentava diversas invenções, dentre as quais uma barca aérea suspensa por quatro globos de cobre, grandes, finos e vazios em seu interior (Fig. 2). A elevação da aeronave seria propiciada pelo empuxo do ar atmosférico. No seu livro parecia entusiasmado e certo da viabilidade da invenção:

Sei claramente que não errei nas minhas provas. Apresentei-as a muitas pessoas entendidas e sábias e nenhuma delas encontrou erros no meu discurso. Todos manifestaram o desejo de observarem uma experiência com uma bola que, só por si, se elevasse nos ares. De boa vontade teria efetuado essa experiência, antes de tornar pública a minha invenção, se a pobreza religiosa que professo me permitisse despender uma centena de ducados e se se visse vantagem na satisfação de tão agradável curiosidade. Peço aos leitores deste livro, a quem interesse a efetivação da referida experiência, que me comuniquem os resultados, pois se o corpo não subir facilmente, devido a qualquer erro, talvez eu lhes possa indicar o modo de o corrigir.

Não vejo outras dificuldades que possam opor-se ao êxito da minha invenção, a não ser uma, que me parece ser a maior de todas: que Deus não esteja disposto a permitir que semelhante máquina tenha êxito, na prática, para evitar muitas conseqüências que poderiam vir a perturbar o governo civil e político entre os homens.

É bem fácil de ver que nenhuma cidade estaria livre de surpresas, pois poder-se-ia levar o balão, diretamente, a qualquer hora, por cima da sua praça, pô-lo em terra e descer nela quem lá fosse. O mesmo sucederia nos lugares descobertos das casas particulares e nos navios que percorrem as águas. Também, sem descer, se poderiam incendiar esses navios com fogos de artifício, com balas e com bombas. E não só os navios, como também as casas, os castelos e as cidades, fazendo precipitar os fogos de grande altura, sem o perigo de ser molestado quem os deitasse. [6]


Terzi estava teoricamente no caminho certo, mas na prática nenhum globo de cobre vazio pode ser leve o bastante para flutuar e ao mesmo tempo resistir à pressão externa da atmosfera. Ele foi o último dos precursores do balão antes do advento de Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

2. Bartolomeu Lourenço de Gusmão

Em 1685 o Brasil era a maior das colônias portuguesas. O Estado de São Paulo ainda era a Capitania de São Vicente, e a cidade de Santos nada mais que uma vila dessa capitania. A economia local baseava-se no comércio e na agricultura de subsistência. Foi nesse ambiente de pouco desenvolvimento e progresso que nasceu, naquele ano, o primeiro dos inventores brasileiros, Bartolomeu Lourenço de Gusmão (Fig. 3).


No início da vida ele não tinha esse nome: no dia 19 de dezembro de 1685, na Igreja Paroquial da Vila de Santos, ele foi batizado pelo Padre Antônio Correa Peres simplesmente como "Bertholameu". Era o quarto filho do português Francisco Lourenço e da brasileira Maria Álvares.3 3 Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (Brasil). Processo de habilitação de genere et moribus de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, estante 1, gaveta 3, n. 57, p. 11.

O casal teria ao todo doze descendentes, seis homens e seis mulheres, um dos quais, Alexandre de Gusmão, viria a se tornar importante diplomata em Portugal. Já a maioria dos outros membros da irmandade optou ou foi orientada pelos pais a devotar-se à vida eclesiástica, dentre esses, Bartolomeu [7].

O menino cursou as primeiras letras provavelmente na própria Capitania de São Vicente, no Colégio de São Miguel, então o único estabelecimento educacional da região, fundado em 1653.4 4 Em A vida gloriosa e trágica de Bartholomeu de Gusmão, Afonso d'Escragnolle Taunay se refere ao mesmo colégio como "Colégio Jesuítico de Santos" (p. 72). Prosseguiu os estudos na Capitania da Bahia. Aí ingressou no Seminário de Belém, em Cachoeira, onde teria início a sua profícua carreira de inventor [8].

3. O primeiro invento: uma bomba hidráulica

O Seminário de Belém ficava situado sobre um monte de 100 metros de altura e possuía precário abastecimento de água, que tinha que ser captada e transportada em vasos a partir de um brejo subjacente. Percebendo o problema, Bartolomeu inteligentemente planejou e construiu um maquinismo para levar água do brejo até a edificação, por meio de um cano longo. O invento, testado com absoluto sucesso, foi considerado admirável e de grande utilidade por todos do estabelecimento, inclusive pelo próprio reitor e fundador do seminário, o renomado sacerdote Alexandre de Gusmão (1649-1724) [9].

Terminado o curso no Seminário de Belém, Bartolomeu transferiu-se para Salvador, a capital do Brasil à época, e ingressou na Companhia de Jesus, de onde saiu antes de se formar jesuíta, em 1701 [10]. Viajou para Portugal, a fim de aprimorar a sua cultura e conhecimentos, aonde chegou já famoso pela memória extraordinária. Ficou hospedado em Lisboa, na casa do 3º Marquês de Fontes (1676-1733), que se impressionara com os dotes intelectuais do jovem [11]. De volta ao Brasil, pediu privilégio em 1705 à Câmara da Bahia para o seu aparelho de anos atrás, o "invento para fazer subir água". A patente, expedida em 23 de março de 1707 pelo rei português Dom João V (1689-1750), foi a primeira concedida a um brasileiro.5 5 Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (Portugal). Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 28, folha 112.

Infelizmente o documento não fornece descrições nem desenhos da máquina. Sabe-se graças a uma carta de J. Augusto dos Reis, morador do arraial de Belém, na Bahia, a Antônio Cândido de Portugal de Faria, o 2º Visconde de Faria [1868-?], datada de 16 de março de 1912, que ainda então, ao lado das ruínas do famoso prédio, existiam alguns resquícios do protótipo construído [12]. Em 1938, porém, sequer destroços restavam daquele que foi o primeiro invento brasileiro, conforme atestou nesse ano o historiador Afonso d'Escragnolle Taunay (1876-1958):

O resto do aparelho, alguma armação ou engrenagem, represas e muralhas que existiram, tudo consumiu o tempo ou destruíram os homens, pois mesmo da fonte, cujas águas foram outrora aproveitadas, nada mais existe que um quadro de alvenaria forrado a tijolos, para proteger a minação, e um amontoado de blocos que se desconjuntam, e por onde flui cristalino um fio de água tranqüilo. [13]

É certo que a máquina não devia ser uma simples bomba de sucção, visto que a água fora elevada à altura de mais de 100 metros. Esse tipo de bomba, por depender da pressão atmosférica para funcionar, não consegue sugar a água a mais de 10 metros de altura, limite acima do qual o peso da coluna d'água passa a ser maior que o da coluna de ar que empurra o líquido pela tubulação. O invento poderia, é verdade, se tratar de uma série conjugada de bombas aspirantes, dispostas por diversos patamares, mas não se crê nesse caso que Bartolomeu houvesse pedido patente para solução tão vulgar, à qual não lhe caberia qualquer prioridade, por ser já amplamente conhecida. Ele utilizou provavelmente alguma bomba hidráulica que empurrasse, e não sugasse, a água pela tubulação-ou seja, uma bomba premente.

Leonardo da Vinci, o mais ilustre dos homens da Renascença, foi autor, na década de 1480, de vários projetos de máquinas hidráulicas. No trabalho intitulado Dispositivos para elevar água, do Códice Atlântico, figuram diversos desenhos a bico-de-pena de mecanismos destinados ao transporte de água de um lugar baixo para outro mais elevado (Fig. 4). Talvez a máquina construída por Bartolomeu se parecesse com um desses projetos, alguns baseados na cóclea ou "parafuso de Arquimedes", um aparelho para transportar porções de água conhecido há séculos. Esse aparelho é, por exemplo, detalhadamente descrito na obra De Architectura (Livro X, capítulo 6), do engenheiro romano Marcos Vitrúvio Polião, que viveu no século I a.C.6 6 O livro foi traduzido para o português em 2006 por M. Justino Maciel com o título de Tratado de Arquitetura. Polião, porém, não atribuiu a Arquimedes a autoria do engenho; esta lhe é conferida pelo historiador grego Diodoro da Sicília, que também viveu no século I a.C. [14].


Leonardo da Vinci mostra o dispositivo como um tubo espiralado em torno de um eixo apto a rotação. Mergulhando-se a extremidade inferior do aparelho na água de um lago ou brejo e girando-se o conjunto, a água adentra o tubo e sobe ao longo do eixo, até transbordar na parte superior [15].

Não é provável que Bartolomeu conhecesse os esboços das invenções de Leonardo da Vinci. Esses desenhos ficaram por muito tempo guardados ou esquecidos em coleções particulares, só vindo a ser redescobertos em meados do século dezoito.

Em 1708, já ordenado sacerdote, Bartolomeu embarcou mais uma vez para Portugal, matriculando-se em 1º de dezembro na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra, a qual deixou meses depois [16]. Instalou-se em Lisboa, onde foi recebido com sumo agrado pelo rei Dom João V e pela rainha Maria Ana de Áustria, apresentado que fora aos soberanos por um dos maiores fidalgos da sua Corte, D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Menezes. Esse homem era ninguém menos que o 3º Marquês de Fontes, o mesmo que o havia recolhido à sua casa quando de sua primeira estada em Portugal [17].

4. O aeróstato

Em Lisboa o padre Bartolomeu Lourenço pediu patente para um "instrumento para se andar pelo ar"-que se revelaria ser, mais tarde, o que hoje se conhece por "aeróstato" ou "balão"-concedida no dia 19 de abril de 1709.7 7 Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (Portugal). Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 31, folha 202 e verso. O fato causou celeuma na cidade e o núncio apostólico aí residente, o cardeal Miquelângelo Conti (1655-1724), apressou-se em escrever uma carta ao Vaticano comunicando a novidade:

Esta cidade encontra-se divertida pelos discursos sobre uma proposta feita ao Rei por um sacerdote do Brasil, vindo com as últimas naves, o qual pretende inventar nova navegação para ir às Índias sem tocar a Tramontana, porém diretamente pelo levante e poente; e também um engenho para voar, até com dez pessoas dentro, a respeito do qual foram ouvidos os pareceres de muitos ministros e matemáticos.8 8 Archivio Vaticano (Vaticano). Nunziatura di Portogallo, tomo 67, "Foglietto di avvisi".

A notícia rapidamente se espalhou para outros reinos europeus, que deram a devida publicidade. Bartolomeu ganhou a alcunha pejorativa de "Voador" [18] e o seu invento, divulgado na Europa em estampas fantasiosas, que em geral o retratavam como uma barca com formato de pássaro, ficou conhecido como "Passarola" [19] (Fig. 5).


Tais ilustrações haviam sido na verdade elaboradas pelo filho primogênito do 3º Marquês de Fontes, D. Joaquim Francisco de Sá Almeida e Menezes [1695-1756], com a conivência de Bartolomeu. O futuro 2º Marquês de Abrantes contava 14 anos em 1709 e era, então, aluno de matemática do padre, sendo a única pessoa à qual ele permitia livre acesso ao recinto em que o engenho voador era guardado. Como o rapaz vivesse assediado por curiosos, que constantemente lhe faziam indagações acerca da invenção, resolveu ele, para parar de ser importunado, elaborar o exótico desenho da Passarola, em que tudo era propositadamente falseado. E para preservar o verdadeiro princípio da invenção-o Princípio de Arquimedes -, atribuiu a ascensão da engenhoca ao magnetismo, então a resposta para quase todos os mistérios científicos. Esperava dessa maneira melhor proteger o segredo confiado à sua guarda e ainda ludibriar os bisbilhoteiros. Comunicou o plano a Bartolomeu, que o aprovou, e fingiu deixar o desenho escapar por descuido. A Passarola, inspirada ao que parece na fauna fabulosa de algumas lendas do Brasil, foi rapidamente copiada pelos primeiros que a apanharam, logo se espalhando pela Europa em várias versões, para grande riso dos dois embusteiros [20].

Bartolomeu deu início à confecção do "instrumento para se andar pelo ar" no dia 6 de maio de 1709. Alguns dias depois alojou-se em Alcântara, numa quinta que lhe fora oferecida por D. João V, por julgá-la mais acomodada para a fábrica do invento [21]. Demonstrações públicas foram marcadas para 24 de junho, o dia de São João (santo homônimo do rei português), mas acabaram adiadas, porque o monarca se encontrava então adoentado.

O presbítero brasileiro tornou-se assunto de todas as conversas, sendo por uns considerado homem de gênio, e por outros, feiticeiro e visionário [22]. A Princesa Isabel Cristina, mulher de Carlos VII, da Espanha, muito interessada no novo invento, assim contava as novidades à sua mãe, Cristina Luísa D'Oettingen, Duquesa de Brunswick, em carta de 2 de julho de 1709:

Quem me dera um dia junto a Vossa Alteza! Quantas coisas eu teria a dizer! A rainha de Portugal pediu-me ir visitá-la logo que esteja pronto o navio voador, pelo que está em Lisboa um homem que se gaba de poder fazer um capaz de viajar pelos ares. Se essa invenção tiver êxito, eu irei todas as semanas passar um dia com Vossa Alteza. Seria uma viagem encantadora para mim, mas duvido muito que ele leve avante a idéia! [23]

5. Ensaios com balões

Foi em agosto que o padre Bartolomeu Lourenço fez perante a corte portuguesa cinco experiências com balões de pequenas dimensões construídos por ele: na primeira, realizada no dia 3 na Casa do Forte, no Palácio Real, o protótipo utilizado pegou fogo antes de subir; na segunda, feita no dia 5 noutra dependência do palácio, a Casa Real, o aeróstato se elevou a 4 metros, quando começou a arder ainda no ar, sendo logo derrubado por dois servos armados de paus, receosos de que o engenho incendiasse os cortinados do recinto; na terceira, feita provavelmente no dia 6 de novo na Casa do Forte, o balão, contendo no interior uma vela acesa, logrou fazer um vôo curto, mas se queimou no pouso; na quarta, feita possivelmente no dia 7 no Terreiro do Paço (hoje Praça do Comércio), o balonete se elevou a grande altura, pousando depois sem chamuscar; na quinta, feita no dia 8 na Sala das Audiências, no interior do Palácio Real, o globo subiu até o teto do aposento, aí se demorando, quando enfim desceu com suavidade (Fig. 6).


Em 3 de outubro de 1709, na ponte da Casa da Índia, Bartolomeu fez nova demonstração do invento. O aparelho utilizado era maior que os anteriores, mas ainda incapaz de carregar um homem. A experiência teve êxito absoluto: o aeróstato subiu alto, flutuou por um tempo não medido e pousou sem estrépito.

Pelo menos cinco testemunhas registraram essas experiências: o cardeal italiano Miquelângelo Conti, eleito papa em 1721 sob o nome de Inocêncio XIII;9 9 Archivio Vaticano (Vaticano). Nunziatura di Portogallo, tomo 67, "Foglietto di avvisi". os escritores Francisco Leitão Ferreira (1667-1735) [24] e José Soares da Silva (1672-1739) [25], nomeados membros da Academia Real de História Portuguesa em 1720; o diplomata José da Cunha Brochado (1651-1733) [26] e o cronista Salvador Antônio Ferreira [27], portugueses.

Em 1843 o escritor Francisco Freire de Carvalho disse haver tomado conhecimento, graças a um ancião chamado Timóteo Lecussan Verdier, de outra experiência aerostática, assistida pelo diplomata português Bernardo Simões Pessoa, em que o balão partiu da Torre de São Roque e caiu junto à costa da Cotovia por detrás de S. Pedro d'Alcântara. Verdier, por sua vez, assegurava que o relato da ascensão lhe fora transmitido pelo próprio Pessoa em tempos muito anteriores ao ano de 1783, quando dos primeiros vôos de balões na França [28].

Lamentavelmente, todas essas experiências, embora assistidas por ilustres personalidades da sociedade portuguesa da época, não foram suficientes para a popularização do invento. As exageradas capacidades alardeadas na petição a respeito da máquina voadora, o incêndio de três dos protótipos testados, as diminutas dimensões dadas aos aeróstatos e a notória falta de controle dos mesmos, causaram decepção e má impressão no público, tornando evidente a precariedade da invenção. Esses fatores desestimularam a construção de um modelo grande, tripulável.

6. Novos inventos

Em 1710 o engenhoso clérigo publicou Vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água, opúsculo no qual descrevia novos maquinismos criados por ele, destinados a expulsar a água que com freqüência inundava e fazia ir a pique as embarcações. Para a automação dos maquinismos ele procurava aproveitar a energia do vento ou das ondas, ou a correnteza das águas, ou ainda o próprio movimento oscilatório das naus no mar: neste último caso, o balanço deveria fazer subir e devolver ao oceano, por meio de um jogo de pesos e contrapesos e de uma série de canaletas inclinadas, a água acumulada nos porões [29] (Fig. 7).


Parece ter realizado testes com algum desses aparelhos, pois escreveu: "Neste mesmo porto vi, estando quieta a embarcação, dar mui apressadamente à bomba, sem que o rio tivesse mais movimento que o que lhe tinha comunicado um vento mui brando. Este movimento quase sempre é acompanhado do do mesmo navio, donde vem que ambos juntos deitarão fora muita mais água" [30]. Em 27 de setembro de 1713, na Holanda, ele pediu patente para um invento similar, uma "máquina para a drenagem da água alagadora de qualquer embarcação em alto mar", expedida três meses depois, em 14 de dezembro (Fig. 8).10 10 National Archief (Holanda). H223, n. 1.665.


De 1713 a 1715 Bartolomeu morou na Holanda, na Inglaterra e na França. No primeiro desses países teria tentado "assar carne ao sol com uns vidros" [31], e no último trabalhado como bufarinheiro [32]. Regressou para Portugal e em 1718 pospôs o aditivo "de Gusmão" ao nome, com o que prestava uma homenagem ao seu tutor no Seminário de Belém da Cachoeira, o Padre Alexandre de Gusmão, que havia lhe incutido o gosto pelas ciências. Em 1719 retomou os estudos canônicos na Universidade de Coimbra, iniciados e interrompidos no ano de 1709 para se dedicar ao invento de voar [33].

Em 1720 Bartolomeu concluiu a Faculdade de Cânones e retornou a Lisboa, chamado que fora pelo rei para servir no Ministério das Relações Exteriores. Colocado na Secretaria de Estado, exerceu aí diversas funções, ocupando-se inclusive da decifração de mensagens codificadas interceptadas de diplomatas estrangeiros-a prática da espionagem era comum nas cortes européias. Dessa missão, da maior confiança e dificuldade, se incumbiu notavelmente: não houve cifra, por mais difícil que fosse, que não decodificasse [34].

Foi também um dos cinqüenta acadêmicos com que em 8 de dezembro de 1720 se constituiu, sob a proteção de D. João V, a Academia Real de História Portuguesa. Encarregado de escrever a História eclesiástica do bispado do Porto, ocupou-se do assunto em várias das reuniões feitas, e na sessão de 13 de julho de 1724 chegou a ler o prólogo da obra, que contou com aprovação geral dos seus consócios [35].

Bartolomeu de Gusmão havia atingido o cume da sua carreira: gozava da estima do rei e desfrutava de elevada posição na corte. Era Doutor em Cânones, Secretário de Estado, membro fundador da Academia Real de História Portuguesa e Fidalgo Capelão da Casa Real. Possuía ampla e merecida reputação tanto como homem de letras como de ciências. Era célebre por possuir talentos notáveis, como memória prodigiosa e criatividade para invenções, além de uma cultura vasta e invulgar, que lhe permitia atuar nos mais diversos campos dos saberes, entre os quais aerostação, criptografia, hidráulica, história, literatura, matemática e teologia.

As pesquisas técnico-científicas prosseguiam. Em 1721 o sábio dedicou-se à fabricação de carvão artificial,11 11 Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (Portugal). Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 56, folha 249. e em 1724 criou uma máquina para aumentar o rendimento dos moinhos hidráulicos, reconhecida por patente portuguesa de 18 de julho desse ano.12 12 Idem, livro 66, folha 324 verso e 325. É possível que a máquina tenha sido inspirada na visão que ele teve dos moinhos holandeses, quando de sua passagem pelos Países Baixos, em 1713. Esse seria o seu último invento.

7. Fuga e morte

Bartolomeu estava na iminência de ser denunciado à Inquisição como apóstata judaizante. Há tempos ele mantinha amistosas relações com cristãos novos brasileiros vigiados pelo Santo Ofício. Em especial com o casal Miguel de Castro Lara e Maria Coutinho, na casa de quem ficava até tarde, quando havia descantes e danças [36]. Essa convivência com patrícios apegados às leis mosaicas originou-lhe ao menos desde 1713 uma crise religiosa que acabaria por descambar, quando muito em 1722, em judaização.

Desconfiado do risco de delação, fugiu de Lisboa no dia 26 de setembro de 1724 [37]. Acompanhou-o um irmão, João Álvares de Santa Maria (1703-1762), frei da Ordem dos Carmelitas Calçados, a quem também havia convencido a adotar a fé judaica. João aportara em Portugal na nau Nossa Senhora de Boa Viagem em dezembro de 1722 e desde maio de 1724 estava instalado na casa do irmão.

A fuga foi um desastre: os irmãos tentaram evadir-se para a Inglaterra, mas não conseguiram embarcação com esse destino. Foram então para a Espanha, fazendo parte do caminho a pé e outra num burrico. Durante a jornada Bartolomeu acabou adoecendo gravemente e chegou a ser internado no Hospital da Misericórdia da cidade de Toledo, mas não resistiu. Faleceu na madrugada do dia 18 de novembro de 1724, aos 38 anos de idade, na mais completa miséria, assistido pelo irmão. Foi enterrado no dia seguinte na Igreja de São Romão [38] (Fig. 9). Com a sua morte, a invenção do balão permaneceria esquecida por decênios, até ocorrer, em 1782, na França, a sua reinvenção, pelos irmãos Montgolfier [39] (Fig. 10).



Desde então, por muito tempo, no Brasil, foi tradição soltar todos os anos, no dia 24 de junho, frotas inteiras de pequenos balões a ar quente, numa homenagem ao verdadeiro inventor do balão e Pai da Aerostação, o padre brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Esse costume foi proibido em 1998 pela lei nº 9.605, em razão da possibilidade desses artefatos provocarem incêndios em florestas e em assentamentos humanos. Era o lado adverso da invenção que permitiu à humanidade vislumbrar pela primeira vez a rota para os céus.

8. Considerações finais

Tudo indica que Bartolomeu de Gusmão buscou na ciência do matemático grego Arquimedes (287 a.C.-212 a.C.) a inspiração para a concepção da maioria dos seus inventos. O "invento para fazer subir água" era possivelmente derivado do parafuso de Arquimedes; o balão a ar quente, do Princípio de Arquimedes; e os vidros para assar carne ao sol tratavam-se decerto de um sistema de espelhos baseados nas propriedades ópticas das lentes convergentes, que pode ter sido imaginado a partir dos lendários espelhos ardentes do sábio de Siracusa, conquanto esses jamais tenham existido.

Alguns dos textos de Arquimedes haviam sido publicados em latim na Itália em 1543, por Niccolò Fontana Tartaglia (1500–1557), e em 1565, por Federico Commandino (1508-1575). [40] Desses textos, Gusmão deve ter estudado com especial atenção Sobre os Corpos Flutuantes, que contém o famoso Princípio de Arquimedes, utilizado por ele na realização do balão. Conhecendo o empuxo arquimediano, ele compreendeu que o ar aquecido que escapava de uma chama era mais rarefeito que o ar ambiente, podendo fazer subir na atmosfera objetos leves atirados sobre o fogo. Imaginou então um modo de conter esse ar quente num recipiente a fim de que o objeto ascendesse sozinho no ar. Armou uma pira sob um invólucro de papel e confirmou que o aparato tendia a subir.

Gusmão havia criado a mais espetacular máquina do mundo de então, mas as experiências aerostáticas conduzidas em Lisboa durante os meses de agosto e outubro de 1709 não lograram despertar mais que uma frívola curiosidade. Se tais demonstrações houvessem alcançado repercussão no meio científico, poderiam haver antecipado em décadas o surgimento da teoria cinética dos gases, cujo primeiro esboço só seria publicado em 1738, em latim, pelo físico holandês Daniel Bernouilli (1700-1782), na obra Hydrodynamica [41].

A divulgação dos balões dos irmãos Montgolfier, em 1783, estimulou muitas pesquisas nesse sentido. Em 1787, o cientista francês Jacques Alexandre César Charles (1746-1823), inventor do balão a hidrogênio, percebeu que, à pressão constante, o volume de uma determinada massa gasosa aumenta ou diminui de acordo com a temperatura. Em 1802, outro cientista francês, Joseph Gay-Lussac (1778-1850), confirmou os resultados de Charles e descobriu que uma quantidade fixa de gás, sob volume constante, tem a sua pressão aumentada ou diminuída também conforme a variação da temperatura. Seus estudos permitiram-lhe formular a lei da dilatação dos gases que hoje leva o seu nome, a Lei de Gay-Lussac. Já a fórmula que relaciona a pressão e a temperatura de um gás perfeito com volume constante carrega o nome de Lei de Charles.

A partir da década de 1960, os balões de ar quente passaram por uma renovação, devido em parte ao norte-americano Paul Edward Yost (1919-2007) e sua empresa, a Raven Industries. Yost e seus sócios fundaram a Raven Industries em 1956 para desenhar e construir balões a ar quente para o Departamento de Pesquisa Naval da Marinha dos Estados Unidos, que queria os balões para o transporte de cargas pequenas, a curtas distâncias. Yost e a sua equipe estudaram o modelo então comum do balão a ar quente, pouco modificado desde a época dos Montgolfier, e o aperfeiçoaram, acrescentando um sistema combustor de propano, um novo material de envelope, um novo sistema de inflação (a maçarico) e novas tecnologias de segurança.

Quando na década de 1960 o Departamento de Pesquisa Naval da Marinha dos Estados Unidos perdeu o interesse nos balões a ar quente, Yost começou a vendê-los como equipamento esportivo [42]. Logo apareceram outras empresas, à medida que mais e mais pessoas se envolviam com o balonismo. Com o passar dos anos, os projetistas continuaram a modificar os balões, desenvolvendo novos materiais, dispositivos de segurança e formatos criativos de envelope. Alguns fabricantes também aumentaram o tamanho da cesta e a capacidade da carga, construindo balões capazes de levar até trinta passageiros!

Os modernos balões de ar quente constituem versões modificadas do modelo criado por Gusmão e desenvolvido por Yost. As viagens de balão são um negócio de vários milhões de dólares e as corridas de balão e outros eventos continuam a atrair multidões de espectadores e participantes. Está na moda (entre os bilionários), até mesmo, construir balões de alta tecnologia para viagens de volta ao mundo. O fato de ainda serem tão populares numa era de aviões a jato, helicópteros e viagens espaciais mostra que os balões de ar quente jamais perderão seu encanto e romantismo!

[2] Idem Ref. [1], p. 59-60.

[4] Idem Ref. [3], p. 598.

[18] Idem, Ref. [17], p. 198.

[30] Idem, Ref. [29], p. 208.

[35] Idem, Ref. [34], p. 118.

Recebido em 25/5/2009

Aceito em 30/8/2009

Publicado em 16/10/2009

  • [1] S. Waisbard, As Pistas de Nazca (Editora Hemus, Săo Paulo, 2004), p. 57.
  • [3] J. Needham, in Science and Civilization in China (Cambridge University Press, Cambridge, 1965), v. 4, p. 595-599.
  • [5] D. Yinke, Ancient Chinese Inventions (China Intercontinental Press, Pequim, 2005), p. 112-113.
  • [6] F.L. Terzi, Prodromo Ovvero Saggio di Alcune Inventione Nuove Premesso All'arte Maestra Opera (Rizzardi, Brescia, 1670).
  • [7] Visconde de Săo Leopoldo, Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro LVX, 406 (1902).
  • [8] M.F. Cruz Filho, Bartolomeu Lourenço de Gusmăo: Sua Obra e o Significado Fáustico de Sua Vida (Biblioteca Reprográfica Xérox, Rio de Janeiro, 1985), p. 6.
  • [9] A. d'Escragnolle Taunay, Bartholomeu de Gusmăo e a sua Prioridade Eerostática (Imprensa Oficial, Săo Paulo, 1938), p. 542-543.
  • [10] S. Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, 178 (Civilizaçăo Brasileira, Rio de Janeiro, 1945).
  • [11] J.S. da Silva, Gazeta em Forma de Carta (anos de 1701-1716) (Biblioteca Nacional, Lisboa, 1933), tomo I, p. 8-9.
  • [12] V. de Faria, Academie Aéronautique Bartholomeu de Gusmăo (Imprimeries Reunies S.A., Lausanne, 1913), p. 219-220.
  • [13] A. d'Escragnolle Taunay, A Vida Gloriosa e Trágica de Bartholomeu de Gusmăo (Imprensa Oficial, Săo Paulo, 1938), p. 87.
  • [14] P.D. Napoliani, Arquimedes: Pioneiro da Matemática (Duetto Editoral, Săo Paulo, 2007), p. 11.
  • [15] M. White, Leonardo, O Primeiro Cientista (Record, Rio de Janeiro, 2002), p. 100.
  • [16] J. Cortesăo, Alexandre de Gusmăo e o Tratado de Madrid (Parte I - Tomo I, 1695-1735) (Ministério das Relaçőes Exteriores, Rio de Janeiro, 1952), p. 155.
  • [17] J.S. da Silva, Gazeta em Forma de Carta (anos de 1701-1716) (Biblioteca Nacional, Lisboa, 1933), tomo I, p. 191-192.
  • [19] F.F. de Carvalho, Revista Trimensal de História e Geografia tomo V, 12, 342 (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1849).
  • [20] P.J. Martello, Opere - Tomo Quinto (Nella Stamperěa di Lélio Della Volpe, Bolonha, 1723), p. 375-377. Disponível em http://books.google.it/books?id=1Hk0AAAAMAAJ{/&}printsec=frontcover{/&}dq=editions:00cZgTYt6UcuEFQ4H1#PPP9,M1
  • [21] J.S. da Silva. Gazeta em Forma de Carta (anos de 1701-1716) (Biblioteca Nacional, Lisboa, 1933), tomo I, p. 198.
  • [22] J. de Carvalho, O Instituto: Revista Científica e Literária 71, 319 (1924).
  • [23] A.F. Simőes, A Invençăo dos Aeróstatos Reivindicada (Typographia da Folha do Sul, Évora, 1868), p. 27.
  • [24] F.F. de Carvalho, Revista Trimensal de História e Geografia tomo V, 12, 348 (1849).
  • [25] J.S. da Silva, Gazeta em Forma de Carta (anos de 1701-1716) (Biblioteca Nacional, Lisboa, 1933), tomo I, p. 208-209.
  • [26] Joaquim de Carvalho, O Instituto: Revista Científica e Literária 71, 476 (1924).
  • [27] Manuel Maria Rodrigues, Occidente: Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro 717, 270 (1898).
  • [28] Francisco Freire de Carvalho, Revista Trimensal de História e Geografia tomo V, 12, 357 (1849).
  • [29] A. d'Escragnolle Taunay, Obras Diversas de Bartolomeu Lourenço de Gusmăo (Companhia Melhoramentos, Săo Paulo, 1934), p. 201-209.
  • [31] A.F. Simőes, A Invençăo dos Aeróstatos Reivindicada (Typographia da Folha do Sul, Évora, 1868), p. 92.
  • [32] A. d'Escragnolle Taunay, Bartolomeu de Gusmăo, Inventor do Aeróstato: A Vida e a Obra do Primeiro Inventor Americano (Ediçőes Leia, Săo Paulo, 1942), p. 59-60.
  • [33] B.L. de Gusmăo, Sermăo que na Última Tarde do Tríduo com que os Acadęmicos Ultramarinos Festejam ŕ Nossa Senhora do Desterro, Pregou o Muito Reverendo Padre Bartholomeu Lourenço de Gusmam, na Paroquial de S. Joăo de Almeida aos 9 de Janeiro Deste Ano, Estando o Santíssimo Sacramento Exposto (Oficina de Antonio Pedrozo Galram, Lisboa, 1718).
  • [34] D.G. de Freitas, A Vida e as Obras de Bartolomeu Lourenço de Gusmăo (SEDAI, Săo Paulo, 1967), p. 225.
  • [36] J.L. de Azevedo, Novas Epanáforas (Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1932), p. 164.
  • [37] F.F. de Carvalho, Atas das Sessőes da Academia Real das Cięncias de Lisboa tomo I, p. 218 (1849).
  • [38] B. Leithe, in IV Congresso de História Nacional (Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1951), p. 15-103.
  • [39] M.H. Reynaud, Les Temps des Ballons (Éditions de La Martiničre, Paris, 1994), p. 25.
  • [40] P.D. Napolitani, Arquimedes: Pioneiro da Matemática (Duetto Editoral, Săo Paulo, 2007), p. 80.
  • [41] D. Bernouilli, Hydrodynamica, Sive de Viribus et Motibus Fluidorum Commentarii (Johann Reinhold Dulsseker, Strasbourg, 1738). Disponível em http://books.google.com.br/books?id=7zEVAAAAQAAJ{/&}pg=PA38{/&}lpg=PA38{/&}dq={%}22sive+de+viribus+et+motibus+fluidorum+commentarii{%} 22{/&}source=bl{/&}ots=uO{_}LKC4Sx1{/&}sig=ReIFRdcWDj4GZFr3vX{_}F56xfOtQ{/&}hl=pt-BR{/&}ei=diIHSpS8OoejtgeF5vj5Bg{/&}sa=X{/&}oi=book{_}result{/&}ct=result{/&}resnum=1{#}PPP1,M1
  • [42] D. Hevesi, Ed Yost, 87, Father of Modern Hot-Air Ballooning, Dies, in The New York Times (New York Times Company, Nova Iorque, 4 jun. 2007). Disponível em http://www.nytimes.com/2007/06/04/us/04yost.html
    » link
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Sobre a experiência foram publicadas duas reportagens no jornal peruano
    7 Dias Del Peru: uma em 29 de novembro e outra em 5 de dezembro de 1975. A experiência também foi notícia no
    The New York Times, dos Estados Unidos, edição de 15 de dezembro de 1975: a matéria, intitulada
    Nazca Balloonists?, cita Bartolomeu Lourenço de Gusmão e está disponível em
  • 3
    Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (Brasil).
    Processo de habilitação de genere et moribus de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, estante 1, gaveta 3, n. 57, p. 11.
  • 4
    Em
    A vida gloriosa e trágica de Bartholomeu de Gusmão, Afonso d'Escragnolle Taunay se refere ao mesmo colégio como "Colégio Jesuítico de Santos" (p. 72).
  • 5
    Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (Portugal).
    Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 28, folha 112.
  • 6
    O livro foi traduzido para o português em 2006 por M. Justino Maciel com o título de Tratado de Arquitetura.
  • 7
    Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (Portugal).
    Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 31, folha 202 e verso.
  • 8
    Archivio Vaticano (Vaticano).
    Nunziatura di Portogallo, tomo 67, "Foglietto di avvisi".
  • 9
    Archivio Vaticano (Vaticano).
    Nunziatura di Portogallo, tomo 67, "Foglietto di avvisi".
  • 10
    National Archief (Holanda). H223, n. 1.665.
  • 11
    Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (Portugal).
    Chancelaria de D. João V-Ofícios e mercês, livro 56, folha 249.
  • 12
    Idem, livro 66, folha 324 verso e 325.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      30 Ago 2009
    • Recebido
      25 Maio 2009
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