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Modos de viver a velhice: lições do Estudo Fibra

Em dezembro de 2020, coincidindo com o auge da pandemia de covid-19, foi declarado pela Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU)11 Década do Envelhecimento Saudável nas Américas (2021-2030) - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde. https://www.paho.org/pt/decada-do-envelhecimento-saudavel-nas-americas-2021-2030. Accessed May 11, 2022.
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o início da Década do Envelhecimento Saudável 2020-2030, em apoio a ações em prol de uma sociedade igualitária para todas as idades, em todas as nações ao redor do mundo. Esta é uma iniciativa global de longo alcance, que centraliza nas pessoas idosas, a união de esforços de governos e entidades internacionais, no sentido de melhorar a qualidade de vida das populações. Apesar das crises sanitária, econômica e humanitária ocasionadas pela pandemia SARS-covid-19; a despeito das desigualdades socioeconômicas vigentes entre as nações, e na contramão do ressurgimento da guerra no berço da civilização ocidental, a iniciativa da ONU, apoiada pela Organização Mundial da Saúde, vem num momento oportuno. É imprescindível a criação e o incentivo de políticas públicas que promovam o bem-estar das populações envelhecidas em diferentes contextos populacionais.

O processo demográfico de envelhecimento humano, iniciado nos séculos XIX e XX e vivenciado ao longo das últimas décadas em todos os países do mundo, trouxe consigo distintos modos de envelhecer. Essas trajetórias são fortemente influenciadas pelos determinantes sociais e pelas experiências individuais das pessoas idosas ao longo do curso de vida. A saúde e a funcionalidade dessas pessoas são densamente impactadas pelas adversidades socioeconômicas experimentadas no transcorrer da vida e pela heterogeneidade cultural do ambiente onde vivem. Como resultados dessas influências, observam-se diferenças importantes entre grupos populacionais, quanto aos desfechos de saúde e quanto aos níveis de desempenho físico e capacidade funcional. Aparte os aspectos puramente biológicos, essas diferenças são reflexos das desigualdades de gênero e das experiências de adversidades vivenciadas na infância, na idade adulta e na própria velhice. Entre elas, podemos citar a experiência de fome na infância; as discrepâncias dos papeis sociais de gênero, a violência doméstica, e o abuso financeiro na vida adulta, como fatores de risco importantes associados ao declínio da saúde, da funcionalidade e do bem-estar das pessoas idosas.

Desde a segunda metade do século XX, está ocorrendo um acelerado processo de envelhecimento demográfico com profundas repercussões em vários âmbitos da sociedade brasileira. Podemos enumerar uma série de características peculiares a esse processo, entre eles a urbanização e a feminilização da velhice. Por se tratar de um país de dimensões continentais, repleto de nuances culturais e marcado por desigualdades sociais, inclusive e principalmente na área da saúde, o processo de envelhecimento populacional no Brasil apresenta-se de forma heterogênea e complexa.

Diferentes fenótipos de envelhecimento são observados na apresentação das síndromes geriátricas na população brasileira. O Estudo Fibra22 Neri AL, Yassuda MS, de Araújo LF, et al. Metodologia e perfil sociodemográfico, cognitivo e de fragilidade de idosos comunitários de sete cidades brasileiras: Estudo FIBRA. Cad Saude Publica. 2013;29(4):778-792. doi:10.1590/S0102-311X2013000400015, um dos mais importantes estudos populacionais desenvolvidos no Brasil sobre fragilidade e financiado pelo CNPq, vem fornecendo, por meio das suas publicações ao longo dos últimos 15 anos, importantes evidências de que há forte influência do ambiente na apresentação de quadros clínicos ligados a aspectos da saúde e da funcionalidade dos idosos. Já observado em outro estudo epidemiológico realizado em populações com distintos perfis de envelhecimento33 Gomez F, Zunzunegui MV, Alvarado B, et al. Cohort Profile: The International Mobility In Aging Study (IMIAS). Int J Epidemiol. May 2018. doi:10.1093/ije/dyy074
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, esse dado contribui para a explicação da apresentação clinica das comorbidades e do declínio funcional nesse contingente populacional.

A professora Anita Liberalesso Neri, da UNICAMP, uma das coordenadoras do Estudo Fibra, vem nos brindando com publicações científicas que trazem importantes evidências sobre o perfil do envelhecimento e suas nuances no Brasil. Deu continuidade ao Estudo Fibra por meio da formação de coortes de idosos, no sentido de observar longitudinalmente as transformações em diversos aspectos do estado de saúde e da funcionalidade, em subamostras de populações oriundas do estudo original. Para tanto, utilizou dados do Fibra das cidades de Campinas-SP e de Ermelino Matarazzo, distrito situado na zona leste da cidade de São Paulo (SP), com idosos que participaram da linha de base em 2008 e 2009 e que foram entrevistados novamente entre 2016 e 2018. Essa iniciativa de seguimento ensejou uma nova onda de publicações importantes para a gerontologia brasileira.

Neste número, a Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia veicula um conjunto de artigos originados dos resultados das coortes estudadas no Estudo Fibra. A coletânea de trabalhos foi oportunamente denominada Modos de viver a velhice, e planejada para chamar atenção para a heterogeneidade presente no processo de envelhecimento. O conteúdo dos artigos publicados neste número sugere ao leitor um olhar atencioso para a velhice avançada (80 anos ou mais), em parte dos textos, comparada com a velhice inicial (72 a 79 anos). Do mesmo modo, convida-nos a analisar várias dimensões do envelhecer, entre elas: a fragilidade, a capacidade funcional, a mobilidade no espaço de vida, a atividade, a saúde oral, a depressão, o deficit cognitivo, as relações sociais, a participação social, a satisfação, o neuroticismo e o propósito de vida.

Encontraremos resultados de interesse clínico e psicossocial, entre eles os efeitos da associação entre fragilidade e estados depressivos na sobrevida e na mortalidade dessas pessoas. Outro achado de interesse na prática clínica revela que a capacidade de idosos de se deslocar nos vários níveis de espaços de vida pode ser uma ferramenta viável no rastreio da fragilidade e do risco de sarcopenia. Segundo outro estudo veiculado na coletânea, a presença de incontinência urinária influencia negativamente o convívio social, haja vista que iniciativas clínicas e psicossociais para pessoas com essa condição podem resultar na diminuição de efeitos psicológicos negativos e na redução do isolamento social.

Os artigos chamam a atenção para as diferentes implicações do envelhecimento populacional e os diferentes modos de envelhecer no nosso país. A leitura dos artigos permitirá uma reflexão produtiva sobre a necessidade de desenvolver novas abordagens de intervenção comunitária eficazes e efetivas para a população idosa brasileira.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Década do Envelhecimento Saudável nas Américas (2021-2030) - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde. https://www.paho.org/pt/decada-do-envelhecimento-saudavel-nas-americas-2021-2030 Accessed May 11, 2022.
    » https://www.paho.org/pt/decada-do-envelhecimento-saudavel-nas-americas-2021-2030
  • 2
    Neri AL, Yassuda MS, de Araújo LF, et al. Metodologia e perfil sociodemográfico, cognitivo e de fragilidade de idosos comunitários de sete cidades brasileiras: Estudo FIBRA. Cad Saude Publica. 2013;29(4):778-792. doi:10.1590/S0102-311X2013000400015
  • 3
    Gomez F, Zunzunegui MV, Alvarado B, et al. Cohort Profile: The International Mobility In Aging Study (IMIAS). Int J Epidemiol. May 2018. doi:10.1093/ije/dyy074
    » https://doi.org/10.1093/ije/dyy074

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2022
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