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Expressões de gênero no processo de cuidado e prevenção da COVID-19 durante a pandemia: reflexões da e para a terapia ocupacional social 1 1 Material resultado da Pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações” e foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo pelo parecer de número 4.091.794

Resumo

O presente artigo discute as expressões de gênero no processo de cuidado e prevenção da COVID-19 e busca explicitar as manifestações do sexismo nas questões relativas às mudanças no cotidiano acarretadas pela pandemia, além de refletir sobre as possibilidades de ação da terapia ocupacional social frente a essas problemáticas. A investigação se desdobrou de um projeto mais amplo, intitulado “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, realizado entre maio e novembro de 2020, cujo objetivo geral foi avaliar os impactos da pandemia de COVID-19 em bairros de maior vulnerabilidade dos municípios onde o estudo foi realizado. A metodologia se baseou na utilização do material produzido no processo de ida a campo. Trata-se de um estudo qualitativo que se debruçou sobre as informações obtidas na realização de rodas de conversa, entrevistas, aplicação de questionários, na produção de relatórios e diários de campo e na articulação deste material com referenciais teóricos que privilegiam a terapia ocupacional social e os estudos de gênero. Dentre os resultados, destaca-se a diferente forma como homens e mulheres compreenderam o período e estabeleceram seus modos de vida na pandemia, além das distintas atitudes e comportamentos frente aos cuidados necessários à prevenção da COVID-19. A crítica à masculinidade hegemônica permite um acúmulo de conhecimento que favorece a elaboração de processos interventivos, como a realização de oficinas de atividades e rodas de conversa que objetivam amenizar os reflexos desse pensamento na sociedade.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Estudos de Gênero; Masculinidade; COVID-19; Prevenção de Doenças; Sexismo

Abstract

This article discusses the expressions of gender in the care and prevention process of COVID-19 and seeks to explain the manifestations of sexism in issues related to the changes in daily life caused by the pandemic, in addition to reflecting on the possibilities of actions of occupational therapy in this context. The investigation presented in this article unfolded from a broader project, entitled: “Inequalities and vulnerabilities in the COVID-19 epidemic: monitoring, analysis, and recommendations”, carried out between May and November 2020, whose general objective was to assess the impacts of the COVID-19 pandemic in more vulnerable neighborhoods of the municipalities where the study was carried out. The methodology was based on the use of material produced in the field research process; this is a qualitative study that focused on the information obtained through conversation circles, interviews, application of questionnaires, the production of reports and field diaries, and the articulation of this material with theoretical references that favor social occupational therapy and gender studies. Among the results, it’s possible to highlight the different ways in which men and women comprehended the period and established their ways of life in the pandemic, in addition to the different attitudes and behaviors towards the care necessary to prevent COVID-19. The critique of hegemonic masculinity allows for an accumulation of knowledge that favors the development of interventional processes, such as the carrying out of activity workshops and conversation circles that aim to soften the reflexes of this thought on society.

Keywords:
Occupational Therapy; Gender Studies; Masculinity; COVID-19; Disease Prevention; Sexism

Introdução

A crise causada pela pandemia de COVID-19 tem afetado profundamente a vida de todos sujeitos. Porém, os desdobramentos sanitários, sociais e econômicos desencadeados pela contaminação em massa recaem mais pesadamente sobre a parcela mais vulnerável da população, escancarando as desigualdades pré-existentes na sociedade, sejam elas econômicas, raciais e/ou de gênero (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2020Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL. (2020). América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19 - Efectos económicos y sociales. Recuperado em 01 de julho de 2021, de https://repositorio.cepal.org/handle/11362/45337
https://repositorio.cepal.org/handle/113...
; Farias & Leite Junior, 2021; Faustino & Gonçalves, 2020Faustino, D., & Gonçalves, R. A. (2020). A nova pandemia e as velhas relações coloniais, patriarcais e racistas do capitalismo brasileiro. Lutas Sociais., 24(45), 275-289. http://dx.doi.org/10.23925/ls.v24i45.53009.
http://dx.doi.org/10.23925/ls.v24i45.530...
), sendo essa última dimensão o foco das discussões no presente artigo.

O Brasil é um país que notoriamente reproduz concepções patriarcais e machistas em todas as suas camadas sociais, e o fato de estar entre os primeiros no ranking de países que mais violenta e mata mulheres no mundo (Ferreira, 2020Ferreira, R. G. G. (2020) Diversidade sexual na escola: sobre silêncios e preconceitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Paulo, Santos.) reitera e legitima essa constatação. A reprodução do machismo está enraizada na população, não apenas na realidade individual de cada cidadão e no cotidiano de grande parte das famílias brasileiras, mas também na forma como os processos institucionais – públicos e privados – são conduzidos, com diferentes manifestações que variam de acordo com a interseccionalidade de alguns marcadores sociais da diferença – além do gênero – tais como classe, raça e religião (Melo et al., 2020Melo, K. M. M., Malfitano, A. P. S., & Lopes, R. E. (2020). Os marcadores sociais da diferença: contribuições para a terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 1061-1071. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoarf1877.
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; Brah, 2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376. Recuperado em 09 de fevereiro de 2021, de https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf.
https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396....
).

A expressão do que foi conceituado por Connell (1995)Connell, R. W. (1995). Masculinities: knowledge, power and social change. Berkeley: University of Califórnia Press. como masculinidade hegemônica atravessa todas as relações de poder, encontrando-se presente desde os discursos de representantes governamentais, na formulação de leis e projetos de governos e até nas práticas de violência concretas e simbólicas que acontecem nas relações interpessoais mais íntimas. É possível analisar a construção de um conceito hegemônico a respeito do que é ser homem e como esse pode ser prejudicial para toda a população, uma vez que relacionamos um conjunto de ações executadas por atores políticos inseridos no Estado com a lógica de comportamentos associados a uma determinada masculinidade padrão. Tanto a disseminação de informação sem base científica comprovada pelos principais órgãos de saúde a respeito da COVID-19 quanto a má execução de políticas públicas que deem suporte às populações socialmente vulneráveis podem ser relacionadas a esse conceito de masculinidade.

Essa normatividade de gênero define, de forma direta e indireta, a construção de práticas e comportamentos exercidos por homens e mulheres de todas as classes sociais. Nota-se também esses atravessamentos no momento em que o mundo vivencia a pandemia do novo coronavírus, haja vista que as medidas de prevenção à COVID-19 mais popularizadas e discutidas cientificamente como eficazes – como o distanciamento físico, o isolamento social no caso da infecção pelo vírus ou em sua suspeita, o uso das máscaras, a higienização das mãos, o esquema vacinal, entre outras (Centers for Disease Control and Prevention, 2021Centers for Disease Control and Prevention – CDC. (2021). Coronavirus Disease 2021(COVID-19): Prevention & Treatment. Recuperado em 30 de julho de 2021, de https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/prevent-getting-sick/prevention.html
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
) – têm sido incorporadas de forma diferente entre homens e mulheres, como observamos com base neste estudo.

A Terapia Ocupacional, enquanto área de conhecimento, tem sido convocada a intervir em diferentes áreas e contextos no enfrentamento da COVID-19. Voltando-nos especificamente para a Terapia Ocupacional Social como área que se dedica a lidar com sujeitos individuais e coletivos que vivenciam impedimentos na sua participação social (Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia Ocupacional Social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v13i3p95-103.
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; Melo et al., 2020Melo, K. M. M., Malfitano, A. P. S., & Lopes, R. E. (2020). Os marcadores sociais da diferença: contribuições para a terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 1061-1071. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoarf1877.
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), tal participação pode estar sendo limitada ou interrompida por questões de ordens físicas, mentais, estruturais e, inclusive, numa dimensão social, como decorrente da desigualdade de gênero que afeta todos os sujeitos. Contudo, é possível afirmar que as mulheres são limitadas de exercerem sua participação social em maior escala (Alves & Cavenaghi, 2013Alves, J. E. D., & Cavenaghi, S. M. (2013). Indicadores de desigualdade de gênero no Brasil. Mediações, 18(1), 83-105. http://dx.doi.org/10.5433/2176-6665.2013v18n1p83.
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), o que provoca prejuízos em seus modos de vida. Durante a pandemia, vê-se um agravamento dessa situação;

O isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 traz à tona, de forma potencializada, alguns indicadores preocupantes acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. As organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica observaram aumento da violência doméstica por causa da coexistência forçada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus (Vieira et al., 2020Vieira, P. R., Garcia, L. P., & Maciel, E. L. N. (2020). Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Revista Brasileira de Epidemiologia, 23, 1-5. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200033.
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, p. 2).

Compartilhamos com Silva & Oliver (2019Silva, A. C. C., & Oliver, F. C. (2019). Participação social em terapia ocupacional: sobre o que estamos falando? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 858-872. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1883.
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, p. 859) que a participação social é o envolvimento dos sujeitos em grupos sociais e/ou nos espaços públicos e comunitários que geram transformações em seus cotidianos e em suas condições de vida, condições que, segundo as autoras, podem estar marcadas “pelo adoecimento, violência, sofrimento mental e/ou psíquico, injustiça social e ocupacional, desigualdade, preconceitos, exclusão e opressão”.

Neste artigo, buscamos, portanto, explicitar as manifestações do sexismo nas questões relativas às mudanças no cotidiano acarretadas pela pandemia, bem como refletir sobre as possibilidades de ação da Terapia Ocupacional Social frente a essas problemáticas.

Metodologia

Para a realização deste estudo, debruçamo-nos sobre os materiais empíricos advindos da participação na pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, realizada entre os meses de maio a novembro de 2020.

A pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações” se dedicou a analisar os processos e impactos da pandemia da COVID-19 em 16 territórios de cinco municípios, todos no Estado de São Paulo, bem como as formas de operacionalização de redes de apoio e de solidariedade organizadas pelos grupos sociais participantes da investigação, considerando suas realidades territoriais e agenciamentos.

A atuação no processo de execução dessa pesquisa gerou um acúmulo de aprendizados, cuja análise serviu como uma das bases para construção do presente artigo, sendo este uma interpretação das experiências e conhecimentos adquiridos por meio da inserção na pesquisa citada, utilizando, portanto, os mesmos procedimentos metodológicos da pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, na qual nossa participação possibilitou um outro olhar para parte dos dados e das experiências produzidas no processo de execução da mesma.

Para a realização da pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, foram utilizados diferentes métodos para a composição do campo empírico, a saber: análise de indicadores sociodemográficos dos territórios estudados; questionários estruturados e entrevistas semiestruturadas; rodas-de-conversa e usuário-guia.

A condução da pesquisa e do processo investigativo foi centralizada por eixos temáticos concernentes: 1) à relação entre o acesso à informação e a adesão às estratégias e táticas de prevenção e combate à disseminação da COVID-19; 2) às relações entre condições de moradia e mobilidade das pessoas e o isolamento domiciliar; 3) à intensificação da relação de desigualdade de gênero durante o período de pandemia; e, por fim, 4) às relações entre a perda de renda, o aumento da pobreza e a insegurança alimentar e nutricional e relações com a produção da saúde.

Os quatro eixos temáticos citados nortearam a construção e análise dos métodos utilizados para produção de dados. Posteriormente ao seu levantamento e à produção, os dados foram separados nesses mesmos blocos temáticos. Para análise, os pesquisadores se constituíram em grupos, e cada grupo se dedicou a analisar um dos temas investigados.

O questionário estruturado foi construído em quatro fases distintas, cada uma composta por diversas etapas. Essas foram: a definição de conteúdo e elaboração de itens, validação de conteúdo por comitê de especialistas e estudo-piloto, com ajustes no instrumento para obtenção da versão final. Na primeira fase da pesquisa, foram aplicados cerca de 713 questionários, sendo 100 no sítio de Santos, São Paulo, nos bairros Alemoa e Saboó.

A investigação dos indicadores sociodemográficos foi feita com base no levantamento dos dados das seguintes fontes: censo do IBGE 2010; o SEADE (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social); o “Cad único” (cadastro único, oficial e elaborado de forma rigorosa junto a famílias atendidas com algum benefício); os dados de cadastro individual e domiciliar levantados pelos Agentes Comunitários de Saúde e boletins epidemiológicos municipais referentes à morbidade e mortalidade por COVID-19.

Com a evidência de algumas questões mais emergentes resultantes do questionário e da própria ida dos pesquisadores a campo relativas à desigualdade de gênero, passamos para um segundo momento, em que foram realizadas nove entrevistas em profundidade e duas rodas de conversa com o objetivo de adensar os dados referente à investigação proposta junto à temática em tela, de forma que fosse possível acessar com mais profundidade as questões relativas às problemáticas atravessadas pelo gênero. As rodas de conversa foram realizadas com jovens garotas moradoras dos territórios investigados. Elas aconteceram em forma de conversa coletiva conduzida por perguntas previamente elaboradas pelos pesquisadores, mas que não foram seguidas com total rigidez, possibilitando mais fluidez e o aparecimento espontâneo de outras questões relevantes para a pesquisa e foram registradas por meio de diários de campo.

Assim, a análise desses processos foram realizadas à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da Terapia Ocupacional Social e dos estudos sobre gênero e sexismo, principalmente, fundamentados em autores e autoras que utilizam o conceito de masculinidade hegemônica, conceito que diz sobre a regência das formas como se dão as relações, tanto na microesfera pessoal de cada um quanto nas relações de poder que se estabelecem na política, nas relações profissionais e que se perpetuam por meio de mecanismos sistemáticos e institucionais.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos2 2 Número do parecer: 4.091.794 , sendo que todas as participações foram previamente autorizadas via a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e todos os nomes citados no artigo são fictícios, em respeito à confidencialidade das informações dadas pelos colaboradores.

A discussão apresentada adiante está assentada na relação dualista homem-mulher, o que não significa que desconsideramos as outras formas de expressões de gênero e orientações sexuais. O campo empírico nos levou a essa construção binária, que é majoritária nos territórios estudados e parte fundamental das problemáticas trazidas neste artigo. Com isso, as informações reunidas e analisadas foram organizadas em dois eixos temáticos que centralizaram as reflexões propostas neste artigo: o gênero feminino como definidor da experiência na pandemia e a masculinidade e o discurso negacionista – da esfera pública à individual.

Resultados e Discussão

O gênero como definidor da experiência na pandemia

Priore (1997)Priore, M. L. M. (1997). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp., ao reconstruir a história das mulheres no Brasil, evidenciou em seus escritos o quanto as mulheres pobres desde sempre chefiaram suas casas e são responsabilizadas pela reprodução social, reprodução que envolve a garantia de sua subsistência econômica e afetiva, delas mesmas e de seus filhos. Isso compõe a história da nossa sociedade, e é uma realidade que se mantém quase que inalterada até os dias atuais. Com base nas informações reunidas no campo empírico e com resultado do avanço nos últimos anos das religiões neopentecostais nas periferias urbanas brasileiras, notamos um número significativo de famílias que têm se organizado nos moldes da família nuclear: pai, mãe e filhos, molde esse considerado por muitos como único, desejável e legitimado socialmente (Machado, 2017Machado, M. D. C. (2017). Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, 23(47), 351-380. http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832017000100012.
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).

No interior dessas composições, pudemos observar alguns sinais da prevalência de um modelo desigual de divisão de responsabilidades dentro das casas, seguindo a dinâmica padrão com a qual se organiza a produção de cotidiano dos brasileiros, que segue o modelo socialmente estabelecido, em que o homem é responsável financeiramente pelo provimento da família, sob a ótica de que são eles (homens) que tem a aptidão necessária e essa responsabilidade é inerente à sua condição de gênero masculino. Em contrapartida, a mulher deve então se responsabilizar pelas outras obrigações relacionadas à vida doméstica e aos cuidados dos(as) filhos(as).

A desigual divisão de tarefas domésticas, que sobrecarrega especialmente as mulheres casadas e com filhos, comprova como o ambiente do lar é mais uma esfera do exercício do poder masculino. Na maioria das vezes, a presença dos homens em casa não significa cooperação ou distribuição mais harmônica das tarefas entre toda a família, mas sim o aumento do trabalho invisível e não remunerado das mulheres (Vieira et al., 2020Vieira, P. R., Garcia, L. P., & Maciel, E. L. N. (2020). Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Revista Brasileira de Epidemiologia, 23, 1-5. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200033.
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, p. 3).

Segundo Connell (1995)Connell, R. W. (1995). Masculinities: knowledge, power and social change. Berkeley: University of Califórnia Press., são essas características que se desdobram em ações cotidianas que fazem com que a masculinidade possa ser entendida como determinada configuração de práticas. Nesse sentido, de acordo com Nascimento et al. (2011Nascimento, A. R. A., Trindade, Z. A., Gianordoli-Nascimento, I. F., Pereira, F. B., Silva, S. A. T. C., & Cerello, A. C. (2011). Masculinidades e práticas de saúde na região metropolitana de Belo Horizonte - MG. Saúde e Sociedade, 20(1), 182-194. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902011000100020.
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, p. 184), “o que se considera masculinidade hegemônica é um conjunto recorrente de elementos articulados (crenças, atitudes, práticas) que servem de referência para a definição do que é ser homem em determinado contexto”.

Com base em perguntas que questionavam como eram divididas as tarefas domésticas antes e durante o período de distanciamento social, ficou nítido o fato de que, mesmo em uma realidade de fechamento de escolas e aumento da carga do trabalho doméstico por consequência da presença de crianças em casa, a forma como as funções relativas à manutenção da casa, cuidado das crianças, preparo da comida e outras tarefas dessa natureza se mantinham sendo responsabilidade das mulheres, gerando um excesso de trabalho para as mesmas. Essa realidade se manteve até mesmo diante de cenários em que os homens permaneciam em casa durante o dia, por estarem desempregados.

Era sempre a mulher. Eram mães solo e donas de casa que cuidavam da casa e já estavam ali tentando ajudar o companheiro; ou donas de casa que não tinham ajuda de seus companheiros e acabam por perder seus “bicos”, suas faxinas, que possibilitavam a compra de alimentos. Sempre a mulher. (Trecho do diário de campo das pesquisadoras B. e J., Santos, 2020).

Podemos observar essa mesma realidade no relato presente em outro artigo escrito com base nas experiências de campo concernentes à pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, que fez parte da composição das informações trazidas no presente artigo:

Uma das pesquisadoras de campo, que durante a pandemia esteve envolvida com a entrega de aproximadamente 1200 cestas básicas, destacou que a esmagadora maioria das pessoas atendidas foram mulheres, e que há um sentimento de vergonha por parte dos homens em buscar esse tipo de auxílio. Mesmo nas situações em que a mulher continuou trabalhando fora de casa e os maridos foram dispensados do trabalho, a mulher continuava a ser a responsável pela elaboração da alimentação (Furtado et al., 2021Furtado, L. A. C., Nasser, M. A., Nakano, A. K., Fegadolli, C., Silva, C. G., Souza, L. R., Rodrigues, J. F., Paula, L., & Bragagnolo, L. M. (2021). Pesquisa desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de Covid-19: monitoramento, análise e recomendações. São Paulo: Unifesp. Recuperado em 01 de julho de 2021, de https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/61363
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, p. 231).

Diante da constatação de que mesmo frente a uma mudança significativa dos modos de vida acarretada pela pandemia, ainda foram preservadas as formas desiguais com as quais as famílias compartilham responsabilidades da vida doméstica, é possível perceber a prevalência dos modelos hegemônicos patriarcais como regentes das relações; “modelos hegemônicos de masculinidade socialmente legitimados estão também em jogo nas famílias. Por exemplo, as estratégias de gênero dos homens definem negociações em torno do trabalho doméstico e da ‘dupla jornada’” (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2013). Masculinidade gegemônica: repensando o conceito. Rev. Estudos Feministas, 21(1), 241-282. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014.
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, p. 253), evidenciando como as normativas de gêneros regulam a construção de papéis nas relações heteronormativas. Nesse caso, as mulheres ainda assumem papel central de organizadora da família e da casa, por vezes, somado à necessidade de geração de renda, o que as deixam sobrecarregadas.

Essa sobrecarga pôde ser observada no campo que estivemos inseridos, evidenciando mudanças impostas pela pandemia, no que diz respeito a hábitos de prevenção à COVID-19, manutenção da rotina da casa, cuidado com os filhos e supervisão das atividades escolares e outras atividades que aprofundam uma desigualdade de gênero que caracteriza as relações conjugais, conforme argumentado por Oliveira (2020)Oliveira, A. L. (2020). A espacialidade aberta e relacional do lar: a arte de conciliar maternidade, trabalho doméstico e remoto na pandemia da COVID-19. Revista Tamoios, 16(1), 154-166. http://dx.doi.org/10.12957/tamoios.2020.50448.
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:

Em um cenário de crescente instabilidade política, econômica e social, são mulheres que carregam os custos físicos e emocionais mais pesados. São também as que conectadas em redes de apoio mútuo e colaboração expressam a ação solidária e a resistência horizontal que sobrevive à pandemia (Oliveira, 2020Oliveira, A. L. (2020). A espacialidade aberta e relacional do lar: a arte de conciliar maternidade, trabalho doméstico e remoto na pandemia da COVID-19. Revista Tamoios, 16(1), 154-166. http://dx.doi.org/10.12957/tamoios.2020.50448.
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, p. 158).

Alguns aprendizados provenientes da ida à campo revelam que a desigualdade de gênero que estrutura as relações já era um problema pré-existente à deflagração da pandemia de COVID-19, mas que se aprofunda e ganha mais visibilidade nesse período; a centralidade do papel da mulher no sustento da vida doméstica é ainda mais acentuada neste momento de instabilidade econômica e social. A maternidade se torna definidora de grande parte da experiência vivenciada por uma considerável parcela das mulheres que participaram do estudo.

Com base nas entrevistas com homens e mulheres, é perceptível a diferença na forma que esses compreendem o período que vivemos e na forma como se estabelecem seus modos de vida. A expectativa que recai sobre as mulheres é a de que essas se responsabilizem pelo cuidado de forma geral, seja do lar, das crianças, da alimentação e até mesmo dos cuidados em saúde. Inclusive, esse cuidado é interpretado de forma essencialista, principalmente pelos homens, como se fosse algo inerente à condição de mulher:

Sim, mulher se cuida mais, ela preza mais pela segurança, pela família e tem um carinho maior, acho que é natural da mulher isso daí. (Entrevista “Ágora”, 22 anos, Alemoa).

A naturalização do papel da mulher enquanto cuidadora também é sustentada pelo papel oposto exercido pelos homens, que negligenciam sua saúde, pois a ideia de procurar por assistência médica e, nesse caso específico, seguir as recomendações de prevenção à COVID-19, em especial as que dizem respeito ao uso das máscaras e ao distanciamento físico, pode significar fraqueza e vulnerabilidade (Gomes, 2003Gomes, R. (2003). Sexualidade masculina e saúde do homem: proposta para uma discussão. Ciência & Saúde Coletiva, 8(3), 825-829. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000300017.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003...
citado por Nascimento et al., 2011Nascimento, A. R. A., Trindade, Z. A., Gianordoli-Nascimento, I. F., Pereira, F. B., Silva, S. A. T. C., & Cerello, A. C. (2011). Masculinidades e práticas de saúde na região metropolitana de Belo Horizonte - MG. Saúde e Sociedade, 20(1), 182-194. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902011000100020.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902011...
), calcado também na percepção mais tradicional do vínculo entre autocuidado e feminilidade (Keijzer, 2006Keijzer, B. (2006). Hasta donde el cuerpo aguante: género, cuerpo y salud masculina. Revista la Manzana, 1(1), 137-152. Recuperado em 5 de fevereiro de 2021, de https://www.gub.uy/ministerio-industria-energia-mineria/sites/ministerio-industria-energia-mineria/files/documentos/noticias/hasta_donde_el_cuerpo_aguante_genero_cuerpo_y_salud_masculina_b.keizjer_2003.pdf
https://www.gub.uy/ministerio-industria-...
).

Tais divergências geram disputas entre condutas dentro de um mesmo núcleo familiar, tornando a relação conflituosa, com brigas e descontentamentos. Isso pode ser observado na fala de Ana, moradora do bairro da Alemoa:

Ah, ultimamente. Particularmente, de verdade, porque eu não preciso tá mentindo, tá tendo muitas brigas… muitas brigas mesmo, por conta de querer sair, deixar a mulher em casa, porque é assim né, aqui [...] o meu marido acha que ele é imune, que ele não vai morrer. Só que ele não percebe que não é ele não ter medo de pegar, é ele pegar e passar para quem tá dentro de casa, tanto que eu já peguei, meu bebê pegou, ele pegou e ele não para. Então, questão de briga aqui acaba tendo muito até… particularmente até ontem. Diz ele que vai melhorar, vai parar com isso [fala com tom de riso e incredulidade]. Aí eu falei para ele que pra mim não vai dar mais, não. Se continuar assim não vai dar, não. Eu tenho que cuidar dos meus filhos, tenho que cuidar da minha saúde e cuidar de um homem que não tá prestando atenção na família que ele tem pra mim não dá certo. (Entrevista Ana, 30 anos, Alemoa).

Fica evidente a crítica da mulher em relação ao comportamento de seu companheiro, o qual, com base em uma dada masculinidade, reitera a crença de que os homens são fortes e não são vulneráveis à doença. Ao refletirmos sobre as formas como se exercem os papéis de gênero dentro das relações conjugais e familiares, evidenciamos uma redução ou até mesmo a interrupção da participação social das mulheres na pandemia, que foram restringidas no exercício de suas liberdades individuais, significando não possuírem outras ações/atividades que não as relacionadas à maternidade e ao universo doméstico, dadas as novas demandas e aumento da vulnerabilidade social geradas pelo cenário pandêmico.

O cumprimento dos papéis socialmente definidos sem que haja um processo de reflexão ou problematização a respeito de como são discrepantes as vivências entre homens e mulheres que coabitam na mesma casa reforça a ideia de que existe um pensamento hegemônico perpassando o modo como se projetam e estabelecem as experiências de cada um, constituindo um processo de dominação. De acordo com Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel., os sistemas simbólicos são construídos historicamente e considerados como naturais, ou seja, ao serem naturalizados, eles cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação.

A masculinidade e o discurso negacionista: da esfera pública à individual

Dentre as características que compõem o conjunto de elementos referentes à ideia hegemônica de masculinidade, está a resistência física, a crença de que o corpo masculino não deve ser abalado, pois a fragilidade ainda é associada ao feminino. Dessa forma, o cuidado com o corpo e com a saúde também não fazem parte do universo masculino; tal como aponta Keijzer (2006)Keijzer, B. (2006). Hasta donde el cuerpo aguante: género, cuerpo y salud masculina. Revista la Manzana, 1(1), 137-152. Recuperado em 5 de fevereiro de 2021, de https://www.gub.uy/ministerio-industria-energia-mineria/sites/ministerio-industria-energia-mineria/files/documentos/noticias/hasta_donde_el_cuerpo_aguante_genero_cuerpo_y_salud_masculina_b.keizjer_2003.pdf
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, de forma geral, o autocuidado e a valorização do corpo no sentido da saúde é algo quase inexistente na socialização dos homens. Pelo contrário, cuidar de si ou cuidar dos outros aparece como algo claramente feminino (Keijzer, 2006Keijzer, B. (2006). Hasta donde el cuerpo aguante: género, cuerpo y salud masculina. Revista la Manzana, 1(1), 137-152. Recuperado em 5 de fevereiro de 2021, de https://www.gub.uy/ministerio-industria-energia-mineria/sites/ministerio-industria-energia-mineria/files/documentos/noticias/hasta_donde_el_cuerpo_aguante_genero_cuerpo_y_salud_masculina_b.keizjer_2003.pdf
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, p. 140).

A crença na invulnerabilidade de seus corpos atravessa diretamente a forma como se percebe o processo saúde-doença e como a pandemia de COVID-19 foi percebida no imaginário social, influenciando a postura dos homens diante da nova realidade de exigências sanitárias e normas de convivência, postura essa que foi reforçada e reproduzida em todos os segmentos da sociedade, originando-se da esfera pública que se propaga até a realidade individual.

As ideias ocultas sobre a virilidade masculina também são reforçadas e atualizadas pela narrativa do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que, em suas primeiras declarações em referência à COVID-19, no dia 24 de março de 2020, declarou:

No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha, ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa (British Broadcasting Corporation, 2020British Broadcasting Corporation – BBC. (2020). 2 momentos em que Bolsonaro chamou covid-19 de 'gripezinha', o que agora nega. BBC News Brasil. Recuperado em 30 de julho de 2021, de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536
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).

Declarações como essas, as inúmeras aglomerações e as desastrosas ações técnicas de enfrentamento à pandemia, adotadas pelo ministério da Saúde3 3 O governo do Presidente Jair Bolsonaro está no terceiro ministro no comando da Pasta da Saúde no período da mais grave crise sanitária pandêmica vivida no país. O atual ministro é o general Eduardo Pazuello, que assumiu como ministro interino desde a saída do seu antecessor, sendo efetivado como ministro em 16 de setembro de 2020. Desde que assumiu o cargo como interino, sérias acusações recaem sobre a sua gestão; uma ação apresentada ao Supremo Tribunal Federal encaminhada à Procuradoria Geral da República o denunciava por prevaricação e improbidade administrativa em razão do apagão de dados da Covid-19 no site do Ministério da Saúde. Os dados totais da epidemia deixaram de ser divulgados no dia 05 de junho, quando o portal do Ministério da Saúde dedicado às estatísticas do coronavírus foi tirado do ar para manutenção, e o governo passou a divulgar apenas os dados de casos confirmados e mortes registradas nas 24 horas anteriores, ocultando os dados totais. (CNN Brasil, 2020). Mais recentemente, em manifestação da Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, em janeiro de 2021, atesta-se que a pasta da saúde foi informada sobre a crítica situação do esvaziamento de estoque de oxigênio em Manaus, por meio de e-mails enviados pela empresa fabricante, embora o ministro negue qualquer responsabilidade quando convocado pelo Senado a prestar contas da omissão do governo mediante o desastre sanitário, o agravamento da situação com elevado número de óbitos por asfixia em Manaus, afirmou o então ministro que não seria de competência da União tal atribuição (Agência Senado, 2021). , culminaram em diversos protocolamentos de processos de impeachment, uma denúncia à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e, no debate acadêmico e dos movimentos sociais, aprofundam-se as análises sobre uma estratégia institucional, do governo federal, de propagação do vírus (Conectas Direitos Humanos, 2021Conectas Direitos Humanos (2021). Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil. São Paulo: Boletim Direitos na Pandemia. Recuperado em 8 de fevereiro de 2021, de https://static.poder360.com.br/2021/01/boletim-direitos-na-pandemia.pdf
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).

A opção por adotar discursos negacionistas e minimizantes demonstram a irresponsabilidade institucional (e pessoal) do governo federal e do presidente da república, o qual, por meio de discursos pseudocientíficos, estimula o descaso com a pandemia, concepções e comportamentos obscurantistas e arbitrários e que estão vinculados às ideias de imunidade que fazem parte do imaginário masculino, como destacam Medrado et al. (2021)Medrado, B., Lyra, J., Nascimento, M., Beiras, A., Corrêa, A. C. P., Alvarenga, E. C., & Lima, M. L. C. (2021). Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Ciência & Saúde Coletiva, 26(1), 179-183. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020261.35122020.
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:

Não por acaso, como noticiado pela imprensa brasileira, que o presidente Jair Bolsonaro disse, em pronunciamento público, que é preciso enfrentar o problema “como homem, pô, não como moleque”, em um passeio pelo comércio de Brasília e cidades vizinhas, na manhã do dia 29/03/2020, “contrariando mais uma vez o [então] ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e autoridades médicas de todo o mundo que defendem o isolamento social contra o novo coronavírus (Medrado et al., 2021Medrado, B., Lyra, J., Nascimento, M., Beiras, A., Corrêa, A. C. P., Alvarenga, E. C., & Lima, M. L. C. (2021). Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Ciência & Saúde Coletiva, 26(1), 179-183. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020261.35122020.
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, p. 182).

A adoção de tais práticas e discursos impacta profundamente na concepção que a população tem da doença, da sua gravidade, das medidas de proteção adotadas pelo governo, pelos estados e municípios, causando uma série de reações com repercussões incalculáveis, influenciando inclusive para a existência de embates domiciliares, como demonstrado nesta pesquisa. Os embates, que se davam entre homens e mulheres, baseados nas distintas posturas que exerciam diante da possível contaminação, geraram disputas de poderes em que a desigualdade se estabelecia em muitos casos, deixando a mulher e filhos subordinados a correrem riscos de se infectar, causados pelo fato de companheiros homens optarem por não se protegerem adequadamente do vírus, pautando-se em discursos validados por pessoas da esfera pública com alto grau de influência, como o presidente do Brasil. Pudemos presenciar o efeito de tais discursos presente na realidade individual de pessoas que entrevistamos:

Ela contou que tem ocorrido muitas brigas com seu marido, ressaltou que ela tem gritado e falado palavrões para ele e comentou que não houve nenhum tipo de agressão física. Explicou que o principal motivo dos conflitos são as saídas frequentes do marido e sua preocupação com a segurança de saúde dela, do filho e da filha. (Diário de Campo, entrevista A/Alemoa, Janine).

O uso de máscaras, mesmo sendo um dos métodos mais eficientes para a prevenção à COVID-19, ainda é atravessado por fatores que dificultam seu uso, principalmente entre homens mais velhos que de alguma forma creem em sua imunidade. Porém, o mesmo acontece entre as pessoas jovens, sobremaneira entre os homens. Portanto, os marcadores de classe social, geração e gênero estão presentes e se somam a eles a pressão social em torno do não uso em decorrência à sensação de proteção por estar entre pessoas conhecidas, como evidenciam os trechos de entrevistas a seguir:

Não, eles negam né, se negaram a crer que existia algo dessa agressividade que estavam divulgando. isso [Covid-19] não assombra né, por mais que seja ruim, não assombra dessa forma, até porque as pessoas que mais correm risco, que são os mais velhos, sentem que já passaram por coisas piores, mesmo que seja ruim adoecer, saca? Meu pai não estava nem aí, a maioria dos senhores daqui do bairro não estavam nem aí também, o assombrado era eu. (Ágora, 22 anos, Alemoa, 2020).

[...] então durante as primeiras semanas da pandemia, quando nós não sabíamos ainda a proporção do que estava acontecendo os cuidados eram menores e as pessoas eram um pouco mais negligentes, relataram até momentos onde elas não se cuidavam por uma certa pressão social, como por exemplo por vergonha de usar máscara, pois ninguém no bairro estava usando e coisas desse tipo, mas isso mudou conforme o tempo passou. (Diário de campo, Braz, 23 anos, 2020).

É importante ressaltar também que a opção de não seguir os protocolos recomendados para proteção contra a COVID-19 afeta principalmente os próprios disseminadores de tais práticas; neste momento, referimo-nos aos homens, pelo fato de que as ideias vinculadas ao que foi nomeado como masculinidade hegemônica estão presentes no discurso negacionista, como a negligência com o cuidado da própria saúde, o qual, segundo Separavich & Canesqui (2013)Separavich, M. A., & Canesqui, A. M. (2013). Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica. Saúde e Sociedade, 22(2), 415-428. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000200013.
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, significa, para homens, fazer exercícios físicos e procurar pelo médico em situações extremas, o que acaba por ser um determinante no processo saúde-doença causado pela COVID-19. O relato do pesquisador Israel Júnior Borges do Nascimento, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, é concordante com essa afirmação: “os homens em geral buscam menos assistência médica do que as mulheres. Eles tardam mais e chegam nos hospitais por causa de casos mais graves” (Dias, 2020Dias, R. (2020). COVID-19 atinge principalmente mulheres, mas mata mais homens, diz UFMG. Estado de Minas Gerais. Recuperado em 01 de julho de 2021, de www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/09/09/interna_gerais,1183974/covid-19-atinge-principalmente-mulheres-mas-mata-mais-homens-ufmg.shtml
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).

As noções de invulnerabilidade masculina, de abjeção masculina ao cuidado e à prevenção são elementos que fazem parte do modelo hegemônico masculino e dificultam algumas das principais práticas para evitar a disseminação da COVID-19, que são o distanciamento físico, o uso de máscaras, a higienização das mãos e o completo isolamento em caso de apresentação de algum sintoma. Tais práticas precisam ser objeto de reflexão na medida em que colocam em risco à saúde de homens e mulheres e mais amplamente dos pactos civilizatórios e da ordem social (Medrado et al., 2021Medrado, B., Lyra, J., Nascimento, M., Beiras, A., Corrêa, A. C. P., Alvarenga, E. C., & Lima, M. L. C. (2021). Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Ciência & Saúde Coletiva, 26(1), 179-183. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020261.35122020.
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).

Algumas contribuições da e para Terapia Ocupacional Social

Entendendo que as questões relacionadas à desigualdade de gênero são oriundas da dimensão macrossocial e estão enraizadas em aspectos profundos da nossa constituição cultural enquanto sociedade brasileira, pensar nas estratégias de intervenção da Terapia Ocupacional Social frente a esses contextos é pensar em abordagens que preveem enfrentamentos culturais, principalmente, no que diz respeito à problematização de concepções sexistas amplamente reproduzidas e que causam impactos nas esferas coletivas e individuais. A ação do terapeuta ocupacional deve assim extrapolar os limites do indivíduo, pois se compreende o coletivo como aspecto central de como se estabelecem as dinâmicas sociais, dimensão que permeia o exercício profissional (Melo et al., 2020Melo, K. M. M., Malfitano, A. P. S., & Lopes, R. E. (2020). Os marcadores sociais da diferença: contribuições para a terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 1061-1071. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoarf1877.
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).

As possibilidades de intervenção aqui aventadas são reflexões sobre possíveis maneiras de terapeutas ocupacionais abordarem esse campo de ação, não tendo sido de fato colocadas em prática devido às limitações de inserção no campo no momento de realização desta pesquisa, principalmente por questões sanitárias envolvendo o risco de contágio pela COVID-19.

Ao se debruçar sobre a realidade dos territórios que fizeram parte da pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações”, que serviu como uma das bases das reflexões trazidas no presente artigo, foi possível pensar numa intervenção articulada com agentes sociais relevantes para os territórios estudados, possibilitando a utilização de espaços coletivos pré-existentes, como projetos de desenvolvimento local, que são espaços que reúnem tanto mulheres quanto jovens do território.

Existe uma multiplicidade de possibilidades de ações que poderiam ser reproduzidas levando em consideração as particularidades de cada contexto e território; pensando nos públicos presentes neste contexto, colocaremos foco nas oficinas de atividades e nas rodas de conversa, como intervenções que ampliam os repertórios de possibilidades cotidianas para a superação de barreiras que impedem a participação social (Farias & Leite Junior, 2021). A execução das oficinas de atividades se constitui como ferramenta de intervenção ativa que produz espaços de convivência que possibilitam o acesso às realidades grupais e individuais e às diversidades presentes em um espaço coletivo (Silva & Malfitano, 2021Silva, M. J., & Malfitano, A. P. S. (2021). Oficinas de atividades, dinâmicas e projetos em Terapia Ocupacional Social como estratégia para a promoção de espaços públicos. Interface, 25, 1-18. http://dx.doi.org/10.1590/interface.200055.
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).

Por meio da criação desses espaços, é possível ter uma discussão de ideias e a reflexão conjunta entre pares, potencializando o desenvolvimento de novas formas de pensar, bem como constituir leituras mais críticas em relação ao machismo e sexismo. Por meio de atividades com temas disparadores para a questão a ser trabalhada, no caso, a desigualdade de gênero, faz-se a criação de vínculos que viabilizam a troca respeitosa de ideias e experiências, essa podendo ser conduzida de forma que objetive a reformulação de ideias e a reflexão crítica acerca do tema que está sendo discutido.

Além das oficinas de atividade, outro recurso que poderia ser utilizado são as rodas de conversa, as quais, com base nas experiências de inserção no campo, mostraram-se uma ferramenta potente, que propicia não só um espaço de acolhimento, mas também de fortalecimento e união para formulação de possíveis enfrentamentos por parte de mulheres sujeitas a situações de abuso de qualquer natureza por parte de homens, viabilizando trocas e a construção de alternativas de enfrentamento e ressignificação de si próprias (Melo et al., 2014Melo, K. M. M., Menta, S. A., & Serafim, A. C. C. (2014). O Programa Bolsa Família e a questão de gênero: desafios e percepções para a atuação do terapeuta ocupacional. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(1), 205-214. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.022.
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).

Nesse contexto do trabalho com as mulheres, podemos compreender essas estratégias como espaços de cuidado de pessoas que têm sua inserção social marcada pela subordinação a grupos culturalmente e historicamente dominantes; a formulação de espaços de cuidado coletivos também deve acontecer na intenção de articular esses grupos dedicados a pensar conjuntamente estratégias de confronto às questões relativas à reprodução de violências simbólicas e concretas que acontecem no processo de dominação. Um exemplo disso, apesar de não ter tido a intenção interventiva, mas com a presença de terapeutas ocupacionais, foram as rodas de conversa com as mulheres propostas na segunda fase da pesquisa, em que se pode debater aspectos que relacionavam a prevenção ao coronavírus, refletindo sobre seus lugares, suas condições de subordinação aos maridos/companheiros e suas sobrecargas.

A leitura crítica em relação à masculinidade hegemônica é necessária para a tentativa de obter relações mais igualitárias, uma vez que ela é um dos fatores constituintes das formas pelas quais se organizam os cotidianos, reduz-se participação social e determina a maneira como homens e mulheres vivem. Dessa maneira, permite um acúmulo de conhecimento e reflexões que informam processos interventivos a fim de sanar ou reduzir os impactos desse pensamento hegemônico reproduzido em todas as escalas da sociedade, convocando terapeutas ocupacionais a refletir sobre isso e colaborar na construção de outros cotidianos baseados no respeito e na equidade.

Considerações Finais

A participação dos pesquisadores na pesquisa mais ampla permitiu capturar e aprofundar a compreensão sobre como ocorrem os atravessamentos entre as expressões de gênero, suas desigualdades e o processo de cuidado e prevenção relativos à pandemia de COVID-19. Ademais, há que se destacar alguns fatores que colaboraram para esse processo e podem ser inspiradores para outras pesquisas: integrar e tornar parte de um trabalho coletivo envolvendo distintas áreas de conhecimento e territórios, com a utilização de diferentes métodos de pesquisa, eixos temáticos e na interação entre muitas pessoas, com seus saberes e suas histórias diversas.

Mediante a inserção no campo de pesquisa e dos estudos realizados no processo de formulação deste artigo, pudemos observar a intensificação das expressões da desigualdade que atravessam a forma como se organizam as relações sociais entre homens e mulheres, principalmente as relações conjugais e familiares. Constatamos que as marcas pré-existentes do sexismo, muito prevalentes na sociedade de forma geral e especialmente no Brasil, apenas se aprofundaram diante de um cenário social crítico devido às repercussões da pandemia no cotidiano dos brasileiros.

Tornou-se evidente a agudização das condições desiguais que mulheres e homens ocupam em suas relações interpessoais; a pandemia e os processos de cuidado e prevenção da COVID-19 acarretados a ela cristalizaram as diferenças nos papéis que homens e mulheres exercem em seus cotidianos, de forma que é socialmente atribuída ao feminino a função do cuidado (individual e coletivo), enquanto o homem, de forma geral, não se responsabiliza pelo cuidado da saúde (sua e dos outros) e das responsabilidades vinculadas à vida doméstica, como o cuidado da casa e dos filhos.

A discrepância na posição social presente nas relações gera tensionamentos e agressões que permeiam os modos de vida, suscitando situações de sofrimento e interrupção da participação social das mulheres sujeitas a tais abusos, convocando a Terapia Ocupacional Social a refletir sobre a sua atuação em diferentes campos e elaborar formas de inserção profissional em situações relacionadas a processos de opressão, os quais se vinculam a concepções enraizadas no imaginário social e reproduzidas coletivamente em diferentes escalas da vida social.

Por fim, permanece o desafio, para nós terapeutas ocupacionais, embora não somente, mas todos os profissionais que estão lidando com o enfrentamento à pandemia, de criar, inventar recursos e ferramentas para fazer pensar, problematizar e possivelmente alterar convicções que colocam em risco não só a pessoa que adere a discursos negacionistas, mas todos aqueles que estão a sua volta. A análise sobre a atual conjuntura social e seu espelhamento em uma dada realidade é um pequeno passo frente a todas as dificuldades que estão postas; no entanto, não de menor valia, uma vez que transpor o imobilismo se faz urgente e necessário, como já nos alertou Paulo Freire.

Agradecimentos

Às professoras Cristiane Gonçalves Santos e Eunice Nakamura, pela coordenação do sítio de Santos, bem como aos estudantes de graduação, aos pesquisadores comunitários, docentes e colaboradores envolvidos na pesquisa.

  • 1
    Material resultado da Pesquisa “Desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19: monitoramento, análise e recomendações” e foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo pelo parecer de número 4.091.794
  • 2
    Número do parecer: 4.091.794
  • 3
    O governo do Presidente Jair Bolsonaro está no terceiro ministro no comando da Pasta da Saúde no período da mais grave crise sanitária pandêmica vivida no país. O atual ministro é o general Eduardo Pazuello, que assumiu como ministro interino desde a saída do seu antecessor, sendo efetivado como ministro em 16 de setembro de 2020. Desde que assumiu o cargo como interino, sérias acusações recaem sobre a sua gestão; uma ação apresentada ao Supremo Tribunal Federal encaminhada à Procuradoria Geral da República o denunciava por prevaricação e improbidade administrativa em razão do apagão de dados da Covid-19 no site do Ministério da Saúde. Os dados totais da epidemia deixaram de ser divulgados no dia 05 de junho, quando o portal do Ministério da Saúde dedicado às estatísticas do coronavírus foi tirado do ar para manutenção, e o governo passou a divulgar apenas os dados de casos confirmados e mortes registradas nas 24 horas anteriores, ocultando os dados totais. (CNN Brasil, 2020). Mais recentemente, em manifestação da Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, em janeiro de 2021, atesta-se que a pasta da saúde foi informada sobre a crítica situação do esvaziamento de estoque de oxigênio em Manaus, por meio de e-mails enviados pela empresa fabricante, embora o ministro negue qualquer responsabilidade quando convocado pelo Senado a prestar contas da omissão do governo mediante o desastre sanitário, o agravamento da situação com elevado número de óbitos por asfixia em Manaus, afirmou o então ministro que não seria de competência da União tal atribuição (Agência Senado, 2021Agência Senado. (2021). Pazuello afirma que não foi avisado sobre falta de oxigênio em Manaus. Recuperado em 11 de maio de 2022, de https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/02/11/pazuello-afirma-que-nao-foi-avisado-sobre-falta-de-oxigenio-em-manaus.
    https://www12.senado.leg.br/noticias/mat...
    ).
  • Como citar: Braz, L. G. O., Leite Junior, J. D., & Borba, P. L. O. (2022). Expressões de gênero no processo de cuidado e prevenção da COVID-19 durante a pandemia: reflexões da e para a terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3118. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO238931181
  • Fonte de Financiamento

    Fundação Tide Setubal, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Código 001 e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Referências

Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Ana Paula Serrata Malfitano

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2021
  • Revisado
    29 Set 2021
  • Revisado
    03 Dez 2021
  • Aceito
    03 Mar 2022
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
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