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Crescimento intra-uterino retardado: aspectos atuais

Fetal growth retardation; Diagnosis; Therapy

Crescimento intra-uterino retardado; Diagnóstico; Terapia

Artigo de Revisão

Crescimento intra-uterino retardado: aspectos atuais

S.M.A. Ragonesi, A.M. Bertini, L. Camano

Disciplina de Obstetrícia do Departamento de Tocoginecologia, Universidade Federal de São Paulo — Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

UNITERMOS: Crescimento intra-uterino retardado. Diagnóstico. Terapia.

KEY WORDS: Fetal growth retardation. Diagnosis. Therapy.

Para compreendermos os exatos mecanismos que conduzem ao crescimento intra-uterino inadequado, devemos nos reportar à embriologia e desenvolvimento normais do concepto. Os avanços tecnológicos adquiridos nas últimas décadas permitiram a melhor compreensão do início da vida na espécie humana, documentando-se desde o exato momento da rotura folicular, liberando o óvulo envolto por células protetoras e nutritivas da coroa radiata, até sua captação pela tuba uterina e assédio pelos espermatozóides, a caminho da fertilização.

Unidos genomas materno e paterno, inicia-se a formação de um novo indivíduo, com progressiva divisão celular e, concomitantemente, migração para a cavidade uterina, onde o ovo irá nidar e desenvolver.

Após quatro semanas da concepção, o diminuto embrião humano — que mede cerca de 1cm de comprimento — apresenta coração e fígado desproporcionalmente grandes em relação ao corpo, enquanto a placenta encontra-se em processo de formação. Com seis semanas, o embrião já apresenta o esboço humano e prossegue a instalação da circulação materno-fetal.

Aos três meses, os órgãos e sistemas do concepto começam a se interligar, constituindo período crítico no desenvolvimento cerebral e dos órgãos sensoriais. O crescimento fetal prossegue até quarenta semanas, sendo os dois últimos meses decisivos para seu ganho ponderal — cerca de 200g a cada semana. Ao nascimento, o cérebro humano comporta centenas de bilhões de células nervosas, acreditando-se que na vida extra-uterina não ocorra mais multiplicação neuronal.

Os estudos atuais vão mais além, responsabilizando os agravos ocorridos intra-útero e durante a infância por doenças do adulto, em particular as cardiovasculares, endócrinas e pulmonares.

Não é difícil inferir que qualquer injúria ao crescimento e desenvolvimento fetais possa resultar em danos irreversíveis, o que denota a importância da patologia designada crescimento intra-uterino retardado (CIUR).

Até a década de 40, consideravam-se prematuros todos os recém-nascidos de baixo peso. Em 1947, Mc Burney1 observou que alguns deles eram pequenos em decorrência de um crescimento intra-uterino inadequado e não por nascerem precocemente.

Cerca de quinze anos após, a Organização Mundial de Saúde desvinculou os conceitos de baixo peso ao nascer e prematuridade, passando a relacioná-los à idade gestacional. Consagrou-se, então, a existência de uma nova entidade nosológica, denominada CIUR.

Battaglia & Lubchenco2, na Universidade de Colorado (EUA), elaboraram curva relacionando o peso ao nascimento com a idade da gravidez. Para esses autores, neonatos que se encontravam abaixo do percentil 10 eram considerados pequenos para a idade gestacional. Este constitui o clássico e amplamente conhecido conceito de CIUR.

No entanto, com a melhor compreensão dos mecanismos envolvidos no crescimento e desenvolvimento intra-uterinos, bem como das adaptações fetais diante de agravos a estes processos, há tendência atual em se alterar o conceito de CIUR, passando este termo a significar um processo patológico capaz de modificar o potencial de crescimento do concepto, em que o desvio das medidas antropométricas constitui apenas um sintoma3. Por outro lado, o termo pequeno para a idade gestacional diz respeito meramente ao feto ou neonato que se encontra abaixo de uma medida de referência, pré-definida de peso ou comprimento para determinada idade gestacional4.

Com esta conceituação mais ampla podemos nos deparar com infantes PIG absolutamente normais e que não sofreram retarde de crescimento (são os pequenos constitucionais). Por outro lado, alguns conceptos classificados como adequados para a idade gestacional podem ter tido uma desaceleração em seu crescimento, o que configura quadro patológico e, portanto, maior risco perinatal.

Com relação à incidência de CIUR, é bastante variável, dependente da população avaliada, dos critérios de definição empregados e dos métodos propedêuticos disponíveis, girando entre 2,0% e 10,0%. Em nosso serviço, na Escola Paulista de Medicina, é de 6,8%5.

Há dois tipos de CIUR:

- Tipo I, em que o concepto apresenta CIUR simétrico, proporcionado, cujas causas são intrínsecas (anomalias congênitas) e extrínsecas (infecções pré-natais e casos de desnutrição materna intensa, desde o início da gestação). Constitui cerca de 20,0% dos casos de CIUR e é, sem dúvida, de pior prognóstico, embora alguns mais favoráveis se relacionem a fatores constitucionais. O tratamento intra-útero, na maioria das vezes, como se pode depreender, é praticamente inexistente.

Em geral, para o tipo I, simétrico, harmônico, não há tratamento. Constitui, portanto, o grupo de pior prognóstico, com mortalidade perinatal elevada, apresentando, em caso de sobrevida, seqüelas neurológicas de maior gravidade que as dos assimétricos.

- Tipo II, representado pelo concepto assimétrico, desproporcionado, cujo perímetro cefálico é normal ou pouco menor que o de infantes hígidos, enquanto que a medida da circunferência abdominal é nitidamente abaixo do esperado. Neste grupo, o fator determinante do CIUR intervém tardiamente e mecanismos de adaptação da circulação fetal são acionados no sentido de poupar órgãos mais nobres, como o cérebro e o miocárdio, em detrimento das vísceras, da musculatura esquelética e do tecido celular subcutâneo. O tipo II engloba 80,0% dos casos de CIUR. A hipertensão arterial e a desnutrição materna, no final da gestação, são causas responsáveis pelo CIUR assimétrico, seguidas pela gemelidade e por entidades maternas ocasionadoras de diminuição da oxigenção do espaço interviloso, como as cardiopatias cianóticas, as colagenoses, as anemias severas, o diabetes melito grave, além das grandes altitudes.

Nos casos tipo II, assimétrico, desarmônico, a conduta expectante restringir-se-á às condições materno-fetais e de maturidade. Em situações maternas adversas (hipertensão não controlável, hemorragia grave) e fetais (anoxia), e também na vigência de maturidade do concepto, é impositiva a antecipção do parto.

Quanto à etiologia, das causas conhecidas, sem dúvida, a hipertensão arterial materna destaca-se como a principal, embora ainda existam grandes dificuldades em se determinar os diferentes tipos de hipertensão durante o ciclo gravídico-puerperal. Neste sentido, Lin et al.6 destacaram que é a hipertensão arterial persistente, independente de sua etiologia, a responsável pelo prejuízo ao crescimento fetal. Acrescente-se, contudo, que a etiologia da hipertensão relaciona-se com o prognóstico perinatal. Assim, a sobreposição da moléstia hipertensiva específica da gravidez à hipertensão arterial de base é que origina os distúrbios mais graves ao crescimento fetal.

Com relação ao estado nutricional, é bem conhecida sua influência sobre o peso de nascimento. O concepto desnutrido é depletado tanto de nutrientes essenciais, como de alguns específicos, particularmente o ferro e o ácido fólico7.

Existem várias outras patologias maternas que podem interferir no crescimento fetal: as cardiopatias gravemente descompensadas ou cianóticas; o diabetes melito com vasculopatia universal ou na concomitância de malformações; as doenças renais crônicas, as auto-imunes (principalmente o lúpus eritematoso sistêmico) e as anemias severas. Também figuram como causa de CIUR as anomalias de placenta e anexos, além de drogas de uso terapêutico, como os anticonvulsivantes.

Os defeitos congênitos também determinam crescimento intra-uterino inadequado, destacando-se as cromossomopatias, os defeitos do tubo neural, alguns tipos de anomalias cardíacas e várias síndromes dismórficas8.

Classicamente, as infecções pré-natais são citadas como responsáveis por cerca de 10% dos casos de CIUR, sendo as principais a toxoplasmose, a rubéola e a citomegalia9.

Além das causas enumeradas, é mister ressaltar que, em 30% a 40% dos casos, a etiologia permanece indefinida10.

Em estudo em que analisamos as principais causas maternas e fetais de CIUR, em 154 casos assistidos na Escola Paulista de Medicina5, observamos que a hipertensão arterial esteve presente em 39,0%, seguida de tabagismo (29,2%), ganho ponderal materno insuficiente (26,2%), malformações (7,1%) e infecções congênitas (3,2%).

A fisiopatogenia no CIUR relaciona-se com as alterações de disponibilidade, transporte e utilização do substrato, podendo ocorrer três situações distintas: fornecimento materno-placentário diminuído; potencial fetal prejudicado; ambos comprometidos.

A intensidade e extensão do acometimento do neonato dependem da época de instalação do agravo e do grau de hipóxia experimentado intra-útero. No que concerne especificamente ao transporte placentário, sabe-se que a gravidez provê mecanismos de adaptação fisiológica da circulação, tanto em nível sistêmico (com aumento do débito cardíaco e vasodilatação periférica) como útero-placentário (queda da resistência vascular, funcionado como shunt materno-fetal).

Na placenta humana que é do tipo hemocorial, as trocas gasosas e nutritivas ocorrem no espaço interviloso, e que apenas as paredes vascular e do vilo corial interpõem-se entre circulações materna e do nascituro.

Durante o processo de placentação normal, no primeiro e início do segundo trimestres, ocorrem as duas ondas de migração trofoblástica, com o citotrofoblasto periférico invadindo e destruindo a camada músculo-elástica, respectivamente, das porções decidual e miometrial das artérias espiraladas. Estas alterações estruturais proporcionam, destarte, um circuito de baixa resistência.

Acredita-se que, na placentação anormal, a segunda onda de migração trofoblástica não ocorra, remanescendo, desta forma, a porção miometrial das artérias espiraladas sensível a agentes vasopressores locais e sistêmicos, o que determina elevada resistência ao fluxo11. Além disso, no CIUR idiopático, existe redução do número de vilosidades terciárias formadas.

Outro mecanismo fisiopatogênico evocado é o desequilíbrio no balanço das prostaglandinas, com aumento relativo do tromboxano A2 (potente vasoconstritor e promotor da agregabilidade plaquetária), em detrimento das prostaciclinas, resultando em múltiplas tromboses placentárias.

Estudos mais recentes vêm demonstrando a existência de fenômenos auto-imunes, com a presença de anticorpos contra antígenos placentários, trofoblásticos, do líquido amniótico e de linfócitos.

Portanto, a má adaptação circulatória na gravidez, com placentação anormal e desequilíbrio no balanço das prostaglandinas, conduz à vasoconstrição e múltiplos infartos e tromboses útero-placentárias, com redução do fluxo sanguíneo que determina crescimento intra-uterino retardado.

O diagnóstico dessa patologia é realizado pela congregação de dados clínicos e de propedêutica subsidiária. Dentre os primeiros, destaca-se a avaliação da altura uterina em relação à idade gestacional. Uma desaceleração ou queda em seu crescimento levam à suspeita de CIUR, sendo este elemento de aparecimento tardio. Outro dado clínico é o ganho ponderal da gestante, que, se prolongadamente reduzido ou insuficiente durante o terceiro trimestre, pode conduzir à hipótese de inadequado suprimento fetal.

Numerosos métodos propedêuticos, como a dosagem de elementos do líquido amniótico12 e exames bioquímicos maternos, já foram propostos, porém nenhum se mostrou eficiente na rotina, até o momento.

A ultra-sonografia é um dos exames mais importantes no CIUR, pois, além de permitir sua identificação, possibilita acompanhar a velocidade de crescimento daquele feto e avaliar a vitalidade13.

Por meio de dados de biometria, particularmente medidas seriadas do diâmetro biparietal, estimativa do peso e relações entre circunferência cefálica e abdominal, comprimento do fêmur e circunferência abdominal, podemos não só detectar o inadequado crescimento intra-uterino como, também, suspeitar do seu tipo (simétrico ou assimétrico)14.

Outro parâmetro de extrema importância é a avaliação quantitativa do líquido amniótico. Como veremos com mais pormenores, a hipóxia determina uma redistribuição do fluxo sanguíneo fetal, ocorrendo vasoconstrição na arteríola aferente renal e conseqüente redução da filtração glomerular e do débito urinário, o que determina a oligoidramnia. Assim, o cálculo do débito urinário, marcada e comprovadamente reduzido em conceptos portadores de retarde, é elemento ultra-sonográfico mais precoce que a redução do líquido amniótico, e, segundo Wladimiroff15, possui forte correlação com o grau de hipóxia intra-uterina.

Quanto à aceleração da maturidade placentária, seu valor é mais evidente quando há, concomitantemente, redução do líquido amniótico. Não obstante, o encontro de placenta grau III antes da 36a semana constitui importante sinal de alerta para o insuficiente crescimento fetal16.

O advento da dopplervelocimetria tem permitido o melhor entendimento da hemodinâmica materno-placentária e fetal, quer em situações normais ou patológicas. Constitui método não-invasivo, de fácil execução, inócuo e de pronta repetição. Mediante cálculo da velocidade do fluxo sanguíneo, podemos inferir o grau de resistência existente nos diversos compartimentos — materno (artérias ilíaca interna e uterina), placentário (artérias arqueadas) e fetal (vasos umbilicais, aorta descendente, carótida interna, cerebral e renal).

No CIUR, observa-se um aumento progressivo da resistência vascular uterina e umbilical, representada, no Doppler, por queda da velocidade do fluxo sanguíneo durante a diástole. É o elemento diagnóstico mais precoce do inadequado crescimento fetal17. Em situações extremas, pode ser detectado fluxo diastólico final aproximadamente igual a zero ou, até mesmo, fluxo reverso.

Na circulação fetal, a dopplervelocimetria documenta claramente a centralização do fluxo sanguíneo, pela queda na resistência das artérias carótida interna e cerebral média18 e aumento da resistência vascular em nível de artéria renal.

Outra arma propedêutica que dispomos na atualidade, porém com precisas indicações por tratar-se de método invasivo e não completamente isento de riscos, é a funiculocentese. Mediante a coleta de amostras sanguíneas fetais, é possível a realização da cariotipagem, confirmando ou não as cromossomopatias, quando há suspeita desta etiologia. Além disso, permite a análise gasimétrica19, com avaliação da oxigenação e do equilíbrio ácido-básico fetais, estudo hematimétrico, metabólico e sorológico, em casos de infecções congênitas.

O feto dispõe de sensíveis e precisos mecanismos de compensação à hipóxia. A estimulação de quimiorreceptores desencadeia resposta dos sistemas simpático e parassimpático, promovendo vasoconstrição periférica e vasodilatação em nível cerebral, cardíaco e supra-renal — é o denominado fenômeno da "centralização da circulação fetal" ou "efeito protetor cerebral", em que o sofrimento crônico é dito "compensado".

Não obstante, esse mecanismo determina alguns prejuízos graves ao concepto, naqueles órgãos em que há redução do fluxo sanguíneo. Assim, no fígado, ocorrem alterações globais da função hepatocelular, com prejuízo na produção de enzimas e cofatores, imprescindíveis para o adequado metabolismo e síntese protéica. Em nível intestinal, essa isquemia pode resultar em complicação extremamente grave, denominada enterocolite necrotizante, enquanto nos rins existe decréscimo do número de néfrons formados e, dependente do grau de severidade do retarde, a alteração pode ser irreversível.

A análise gasimétrica, por meio da funiculocentese, permitiu a construção de curvas de normalidade da pressão parcial de oxigênio (pO2) nos diferentes compartimentos — interviloso, artéria e veia umbilicais.

Estudo semelhante em fetos com crescimento retardado revelou que grande parte deles encontra-se hipóxica e que o grau de hipóxia se relaciona à acidose, hipercapnia e hiperlactinemia20.

Diante da redução na oferta de oxigênio, o feto lança mão de mecanismos metabólicos que tentam compensar a hipóxia, como o aumento da eritropoiese.

A hemopoiese no embrião e feto pode ser dividida em três fases, conforme o principal órgão produtor: mesoblástico (saco vitelino), hepático e mielóide. Os eritroblastos são liberados na circulação apenas nos sítios extramedulares, com sua contagem no sangue periférico medida indireta de avaliação da eritropoiese extramedular.

Durante gravidez normal, ocorre diminuição exponencial na contagem eritroblástica e, concomitantemente, aumento da concentração de eritrócitos e hemoglobina, indicando queda progressiva na eritropoiese hepática e elevação da medular. Este pode representar mecanismo compensatório para a redução na pO2 do sangue venoso umbilical, ou seja, a quantidade de eritrócitos e hemoglobina aumenta e a concentração de oxigênio é mantida.

Na vigência de hipóxia fetal grave, existe aumento na eritropoiese hepática21, elevando-se a contagem eritroblástica, que, por sua vez, se relaciona fortemente à elevação da eritropoietina. É possível que a infiltração do fígado pelo tecido eritropoiético seja fator etiopatogênico nas disfunções hepáticas detectadas em fetos com CIUR, determinando distúrbios no metabolismo de carboidratos, gorduras e aminoácidos.

Esses fetos apresentam, também, leucopenia com redução da contagem de neutrófilos, linfócitos e monócitos, além de trombocitopenia, que, por sua vez, se correlaciona significativamente com o grau de hipoxemia, acidose e retarde de crescimento.

Quanto ao metabolismo glicídico, sabe-se que o transporte de glicose pela placenta é realizado por difusão facilitada, e que sua captação para a veia umbilical está diretamente relacionada à concentração materna e ao gradiente transplacentário.

Estudos comparativos das concentrações médias de glicose entre fetos normais e aqueles hipóxicos, portadores de CIUR, revelaram níveis inferiores no último grupo. Esse achado comprovou que a hipoglicemia observada no período neonatal não é, necessariamente, de origem pós-natal22. Tal distúrbio metabólico pode decorrer da má perfusão uteroplacentária, com redução da transferência de glicose e oxigênio. Outra possibilidade para explicar a baixa glicemia fetal seria a hipóxia, com a exaltação do metabolismo anaeróbico para obtenção de energia.

Sabe-se que durante a gravidez ocorre diminuição exponencial na concentração plasmática de triglicerídios do concepto, refletindo sua incorporação progressiva no tecido adiposo, que, no termo, representa 16,0% do peso corpóreo total.

Nos fetos hipóxicos, detecta-se hipertrigliceridemia23, provavelmente resultante de dois mecanismos:

— o primeiro, determinado pela lipólise. Embora as necessidades energéticas do nascituro sejam supridas pela oxidação da glicose, é possível que, em vigência de hipóxia e hipoglicemia, ocorra mobilização das gorduras para o fornecimento de substrato energético alternativo. Os elevados níveis de ácidos graxos não esterificados circulantes podem exercer uma ação poupadora de glicose que ficaria disponível para o metabolismo cerebral. Aqueles ácidos graxos livres não empregados nessa oxidação seriam convertidos, em nível hepático, determinando aumento da trigliceridemia;

— o segundo mecanismo responsável pela hipertrigliceridemia é a lipogênese. Há a menor utilização dos triglicerídios pelo tecido adiposo devido, entre outros fatores, à hipoinsulinemia e redução da lipoproteína lipase, presente em conceptos com CIUR.

À semelhança do que ocorre nas crianças com sídrome de Kwashiorkor, a relação de aminoácidos não essenciais e essenciais do feto desnutrido está elevada24. Tal fato foi apurado pela observação do aumento do quociente entre glicina e valina, alteração que se relaciona fortemente com o grau de hipóxia fetal. As altas concentrações de glicina, aminoácido não essencial, ocorrem em razão de sua não-utilização na gliconeogênese, oxidação ou síntese de proteína, durante a hipoxemia. Por outro lado, a baixa concentração de valina pode decorrer do reduzido suprimento ao espaço interviloso ou da diminuição do transporte ativo por meio da placenta, em conseqüência da hipóxia.

Várias outras alterações metabólicas vêm sendo investigadas no CIUR. Sabe-se, atualmente, que esses fetos apresentam osteopenia, devido à redução do transporte de cálcio, estímulo à paratiróide fetal e aumento da reabsorção óssea. Também foram encontradas alterações hipofisárias, com baixos níveis de ACTH e maior concentração plasmática de cortisol que a observada em conceptos adequados para a idade gestacional; e resposta simpatoadrenal à hipóxia, com elevação dos níveis de noradrenalina, além de alterações dos hormônios tiroidianos.

Apesar de todo o avanço propedêutico, na prática diária, observa-se que persistem os baixos percentuais diagnósticos de CIUR no período antenatal. Em nosso estudo5, ao analisarmos a época do diagnóstico, segundo a freqüência e o local de assistência pré-natal, notamos que essa identificação foi tardia, realizada mais assiduamente no período pós-natal. Assim, em apenas 48,4% das gestantes seguidas no pré-natal da Escola Paulista de Medicina, o reconhecimento do agravo fetal ocorreu antes do nascimento. Esse diagnóstico antenatal foi menos eficiente naquelas pacientes oriundas de outros serviços (31,1%) ou nas que não realizaram acompanhamento pré-natal (12,5%).

Já foram descritas inúmeras tentativas de tratamento intra-uterino do crescimento fetal retardado como o repouso no leito e a infusão de nutrientes por diversas vias (oral, parenteral, intra-amniótica, transcervical, por cateter instalado por meio de cordocentese). Ressaltamos, também, o uso de drogas vasodilatadoras placentárias25, o transplante de medula óssea, o DNA produtor do hormônio de crescimento e a placenta artificial (à semelhança de um sistema hemodialítico). Todas, porém, apresentaram resultados bastante controversos, sendo o motivo de tal insucesso relacionado ao fato de não se atuar no que realmente é limitante, ou seja, a insuficiência vascular útero-placentária.

A única terapêutica que, em estudos preliminares, apresentou efeitos benéficos foi a hiperoxigenação materna. Estudos em animais e humanos demonstraram que essa medida, em fetos hipoxêmicos, restitui a freqüência dos movimentos respiratórios ao normal25.

Em casos de CIUR severo, no segundo trimestre, com alteração da dopplervelocimetria da circulação fetal e hipóxia, confirmada pela gasimetria, a hiperoxigenação materna pode beneficiar o concepto, elevando a pressão parcial de O2, previnindo o óbito intra-uterino e, desta forma, permitindo o adiamento do parto até o feto atingir viabilidade. Também ocorre redução do metabolismo anaeróbico da glicose, com reversão da acidose, do estado de hipoglicemia e das alterações lipídicas e dos aminoácidos, detectadas no feto hipoxêmico. Outrossim, há melhora da perfusão visceral, com menor risco de lesão funcional. Nicolaides et al.26 orientaram a administração contínua de O2 umidificado, 9 litros/minuto, numa concentração de 55,0%, através de máscara facial.

Enquanto prosseguem as investigações do tratamento intra-uterino, podemos subdividir a conduta atual de acordo com o tipo de CIUR:

— tipo I, após pesquisa imediata e exclusão de malformações incompatíveis com a vida, naqueles casos em que a etiologia é definida, deve-se ministrar o tratamento específico;

— tipo II, a conduta é expectante na ausência de maturidade e preservação de certa vitalidade fetal, instituindo-se a terapêutica das intercorrências maternas. Posto que o processo de crescimento intra-uterino retardado é progressivo e irreversível, uma vez atingida a maturidade ou quando houver grau mais importante de comprometimento do bem-estar do concepto, adota-se conduta ativa com resolução da gravidez. Elemento propedêutico que auxilia sobremaneira a condução desses casos é a amniocentese, com realização das clássicas provas de maturidade e vitalidade do líquido amniótico.

A via de parturição depende da intensidade de acometimento do concepto, das condições obstétricas maternas e dos métodos propedêuticos disponíveis para a adequada monitoragem da oxigenação fetal, durante o trabalho de parto. Esses motivos justificam a elevada freqüência de cesáreas, também observada em nossa casuística5 (aproximadamente 60%).

Quanto ao prognóstico perinatal, é bastante ominoso, associando-se à elevada freqüência de prematuridade e todas as intercorrências que dela advêm. Em nosso estudo5, observamos 40,3% de prematuros, com cerca da metade abaixo de 34 semanas.

A morbidade também é elevada, com ocorrência de asfixia, aspiração de mecônio, distúrbios respiratórios, metabólicos, hemorrágicos e infecciosos. Nos 154 casos ocorridos na Escola Paulista de Medicina5, detectamos 16,0% de asfixia, 13,3% de síndrome do desconforto respiratório (achado surpreendente, pois contraria o clássico conceito de que a hipóxia intra-uterina crônica conduz à aceleração da maturidade pulmonar), 42,7% de hipoglicemia, 17,3% de hipocalcemia, 9,3% de hemorragia intracraniana e 6,7% de septicemia.

Alguns grupos de pesquisa têm preconizado a profilaxia do CIUR com o emprego dos inibidores das protaglandinas27, particularmente do tromboxano A2, com o objetivo de melhorar a vasoconstrição e prevenir a ocorrência de tromboses. No entanto, a comprovação científica desses benefícios depende, ainda, de estudos multicêntricos.

Concluindo, cabe a nós, obstetras, como membros da equipe de assistência perinatal, concentrar esforços para que cada vez menos entreguemos, às unidades neonatais de terapia intensiva, recém-nascidos que, além de graves complicações perinatais, poderão ter seu futuro desenvolvimento físico, neuropsicomotor e intelectual comprometidos. Para isso, devemos prosseguir as investigações em busca de melhor entendimento dessa complexa patologia que é o CIUR.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1997
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