DIÁRIO DE CAMPO: SOMBREANDO BRUNO
Data: 17 de fevereiro 2013Horário do Sombreamento: 08:00 às 16:30
1 Durante a Técnica de SombreamentoO sombreamento iniciou às 8h da manhã, quando as pesquisadoras encontraram Bruno no portão principal de entrada e saída da Universidade. Mantivemo-nos na maioria do tempo acompanhando Bruno no seu lado esquerdo, sem qualquer contato físico direto. Para se locomover no campus, Bruno utilizou todo o tempo uma bengala. Bruno pega dois ônibus todos os dias para ir à universidade. Ele declara que “enfrento logo cedo a falta de acessibilidade nos transportes públicos para ter como vir assistir aula.” (relato do estudante durante o sombreamento).
1.2 Segundo Cenário: Sala de AulaAo chegar à sala de aula, Bruno foi cumprimentado por um grupo de aproximadamente seis colegas, alguns dos amigos disseram: “oi Bruno... e aí?... Como vai?”. O estudante respondeu com ânimo e iniciou uma breve conversa com eles. Ao entrar na sala, Bruno optou por sentar-se na primeira fileira de carteiras. Sentamos em uma fileira ao lado do estudante.
A aula foi expositiva sobre ginástica rítmica. A professora trouxe bola, arco, corda e fita e utilizou datashow para mostrar aos estudantes os movimentos de ginástica, mas não descreveu os movimentos que realizava durante a apresentação. Dizia: "olhem, gente, vocês têm que aprender a passar a fita
aqui
e acrescentando
isto, fazendo
desta
maneira
...". Logo após a sua exposição, a professora pareceu perceber a presença de Bruno na classe, porque ela disse ao estudante: "Bruno, amanhã na aula prática você aprenderá o que eu estou ensinando agora." (fala da professora de Ginástica Rítmica durante a técnica de sombreamento). Depois da explicação, a docente apresentou à turma um vídeo sem áudio, de um campeonato nacional de ginástica rítmica, que mostra atletas fazendo o exercício abordado na aula. As cenas mostradas no filme não foram descritas por ela ou colegas (e nem por nós que coletávamos dados como sombra). Não houve manifestação dos colegas de Bruno e nem dele com relação à inacessibilidade da aula. O estudante permaneceu calado por toda aula.
Impressões das pesquisadoras: Sentimo-nos imobilizadas por presenciar a falta de participação de Bruno, refletimos que simples atitudes poderiam facilmente ser implementadas para superar as barreiras pedagógicas daquela aula. Por exemplo, a professora de Bruno exploraria seu tato para ele sentir os aparelhos de ginástica e conhecer os movimentos; a solicitação de um colega de classe para descrever as cenas do vídeo (sem audiodescrição) apresentado na aula. De maneira geral, essas oportunidades seriam enriquecedoras para a aprendizagem de toda a turma já que explorariam mais a fundo o conteúdo da aula.
Ao final da aula, mantivemo-nos ao lado de Bruno e a professora foi conversar com ele, reforçando que nas aulas práticas na quadra de esporte apresentaria o conteúdo desta aula para ele. Neste momento, um grupo de cinco estudantes estavam se organizando para sair da sala e presenciou a professora dizer a Bruno que: "admiro muito
a entrada de pessoas com deficiência na universidade, mas a inclusão só ocorre quando a universidade está preparada.
Aqui ainda não estamos preparados. Os professores têm que tratar todos iguais e o aluno não deve usar a deficiência
para ganhar vantagens." (fala da professora de Ginástica Rítmica durante a técnica de sombreamento). A reação de Bruno foi acenar com a cabeça, sem dizer nada. Seus colegas de classe também não expressaram nenhuma reação.
Impressões das pesquisadoras: a justificativa na fala da docente nos fez crer que ela percebeu a intencionalidade da nossa ação por trás do acompanhamento de Bruno. Sua fala expressa um desabafo sobre o processo geral de ingresso de pessoas com deficiência na universidade. Recordamos que quando se refere a inclusão de pessoas com deficiência no sistema regular de ensino, a "falta de preparo da instituição, dos profissionais e docentes" é uma queixa frequente. Na experiência de Bruno, constatamos o mesmo relato.
1.3 Terceiro Cenário: Restaurante UniversitárioSaída da sala e ida ao restaurante. A duração da caminhada foi de aproximadamente 20 minutos. Nesse trajeto, algumas vezes, as calçadas eram acessíveis com piso tátil, mas muitas partes do trajeto não tinham calçadas ou estas estavam obstruídas por entulhos, buracos e desníveis.
Após a aula, sombreamos Bruno até o Restaurante Universitário, local onde, segundo ele, a "fila é sempre grande". Por ter acesso prioritário (BRASIL, 2004), ele pôde passar a fila imediatamente para se servir. Fomos pegar seu almoço no balcão do self-service. Segundo Bruno: "não há atenção dos funcionários para dizer o que têm no almoço.
É um serviço muito rápido. Se eu não for com acompanhante, a comida é colocada no prato sem que eu saiba qual o
cardápio." (fala do estudante durante a técnica de sombreamento). Neste dia, intervimos no cenário de pesquisa, ao descrever o cardápio para o estudante fazer sua escolha.
1.4 Quarto Cenário: Serviços de ApoioSaída do Restaurante e caminhada ao Núcleo de Educação Especial (NEDESP) da instituição investigada. A duração do percurso foi de 20 minutos.
Após o almoço, seguimos o mesmo percurso do começo da manhã até o portão principal da universidade, porque é nessa proximidade onde está localizado o NEDESP, lugar que Bruno precisa ir para solicitar os serviços de apoio aos estudantes cegos. Ele destacou que "necessito ir lá todos os dias, pois somente neste espaço é que tem computadores
adaptados para realizar pesquisas na internet, digitar trabalhos e responder e-mails" (fala do estudante durante a técnica de sombreamento). Neste momento, perguntamos se no laboratório de informática, que existe no próprio bloco do curso de Educação Física, tinha computadores adaptados com softwares para cegos, o estudante disse que "não! Somente aqui posso usar os computadores, lá não foi instalado o programa. Aqui é um único lugar que apoia
o cego." (fala do estudante durante a técnica de sombreamento). Em tom de desabafo, o estudante complementa "(...) porque não há adaptação de nada. Tenho que cumprir créditos extras e não sei quando tem seleção para bolsista
porque as informações estão nos murais e não há versão em Braile. O cego está alheio a tudo o que acontece aqui dentro." (fala do estudante durante a técnica de sombreamento).
No local dos serviços de apoio (o NEDESP) tinham duas funcionárias que faziam a transcrição de livros na máquina Braile. Bruno informou que a demanda de cegos é maior que o número de funcionários e equipamentos existentes, por isso, muitas vezes, recebe "o material atrasado e isso prejudica na prova; além da biblioteca central
não ter os livros que mais preciso em Braile" (fala do estudante durante a técnica de sombreamento). Por causa do serviço de apoio não ser suficiente para a transcrição dos materiais de estudo requeridos pelos docentes, a solução que o estudante encontrou foi "comprar os livros e doá-los à Fundação Dorina Nowill em São Paulo. A fundação
me manda de volta em formato Braile. Mas, têm vezes que os livros e materiais são muito caros e não tenho como
comprá-los." (fala do estudante durante a técnica de sombreamento). Neste caso, Bruno acaba não tendo acesso aos conteúdo estudados e, consequentemente, é prejudicado nas avaliações.
1.5 Quinto Cenário: Portão Principal da InstituiçãoDo NEDESP até o Portão principal de saída e entrada da instituição. Duração da caminhada: 10 minutos
Ao final do dia, nos despedimos de Bruno na entrada principal da instituição, lugar onde há sempre uma grande movimentação de estudantes. Explicamos para ele um pouco mais do objetivo desta pesquisa e agradecemos a sua contribuição. Neste momento, o estudante desabafa: "sinto que os docentes consideram um desafio trabalhar com um
aluno cego, por isso não há oportunidades para nós. É um medo de nos incluir... eu queria participar de grupos, publicar
artigos, ter um orientador, participar de eventos. Apesar de eu ser um esportista de Judô, reconhecido nacionalmente não
encontro aqui este reconhecimento. Muito ainda precisa ser feito para que a educação superior garanta o direito das pessoas
com deficiência sem eu ter que correr atrás sozinho." (fala do estudante durante a técnica de sombreamento).
2 Após a técnica de sombreamento: reflexões e feedback da pesquisa
Durante a aplicação da Técnica de sombreamento foi possível ver, sentir, e compreender a experiência cotidiana de Bruno nos espaços acadêmicos e as barreiras que encontra sistematicamente. O uso do sombreamento provocou fortes sensações, impressões e reflexões às pesquisadoras: de indignação frente à falta de transporte interno na instituição investigada, onde o estudante necessita caminhar todo dia em meio a risco de acidente ou ainda nossa percepção da postura docente inacessível na exposição dos conteúdos da aula. Inúmeras vezes, sentimos empatia por Bruno porque ao sombreá-lo nos aproximamos do seu lugar comum, sentindo dor, frustração, cansaço, raiva, etc.
Múltiplos questionamentos tomaram conta de nossas interpretações, dentre os quais: O que faríamos se não tivéssemos o direito de participar da aula? Como responderíamos à atitude da professora? Como agiríamos se fôssemos professora de Bruno? Como as aulas poderiam ser mais acessíveis? Por que os materiais necessários aos estudos de Bruno não são disponibilizados, se a universidade é pública ou por que são entregues tardiamente? Por que todo o esforço de superação deve acontecer somente por parte do estudante? Por que ainda não são vistos como “sujeitos de direitos” e há interpretação equivocada e discriminatória de que estes estudantes “usam a deficiência para ganhar privilégios”, como afirmou a professora de Bruno? Por que ainda não há efetividade da política de inclusão na educação superior, se temos uma vasta legislação de inclusão e acessibilidade no país? Essas e outras questões emergiram no campo e puderam ser analisadas à luz da literatura, no texto da dissertação de mestrado. Após organização e elaboração dos dados colhidos em formato de texto, nos encontramos com Bruno na universidade para mostrá-lo. O estudante concordou com a forma como descrevemos sua experiência e fez reflexões