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“Essa dona tão perversa”: Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e as figurações da perversão na imprensa carioca da década de 1940

“Essa dona tão perversa”: Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues and the depictions of perversion in Rio de Janeiro’s 1940’s press

RESUMO

Dos 55 poemas que compõem A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, 36 foram originalmente publicados na imprensa (1942-1945), e muitos deles fazem referência a esse veículo, quer ao tratá-lo como tema, quer ao estabelecer diálogos com outros textos nele reproduzidos. Propõe-se uma aproximação entre o poeta, a partir de “Caso do vestido”, e Nelson Rodrigues, com o folhetim Meu destino é pecar (sob o pseudônimo de Suzana Flag), ambos estampados nas páginas de O Jornal (1944). Para tanto, e respeitando a natureza distinta dos textos, realiza-se um close reading do poema e um exame do enredo e da retórica da prosa para observar como os escritores figuram o tema da perversão.

PALAVRAS-CHAVE:
Drummond de Andrade; Nelson Rodrigues; perversão; imprensa

ABSTRACT

Of the 55 poems comprising Carlos Drummond de Andrade’sA rosa do povo, 36 were originally published in the press (1942-1945), and many of them make reference to the medium in which they appeared, either by making the medium itself of one their themes or by establishing dialogues with other texts published in the periodicals they appeared. It is intended to establish an approximation between the poet, from “Caso do vestido”, and Nelson Rodrigues, with the pamphlet Meu destino é pecar (under the pseudonym of Suzana Flag) both printed on the pages of O Jornal(1944). For this, and respecting the distinct nature of the texts, it performs a close reading of the poeme, and an examination of the plot and the rhetoric of the prose, with the aim of observing how both writers depict the theme of perversion.

KEYWORDS:
Drummond de Andrade; Nelson Rodrigues; perversion; press

A primeira versão deste ensaio foi apresentada como comunicação oral no evento “Poetry, war and citizenship: the 70th anniversary of Carlos Drummond de Andrade’s A rosa do povo” (Universidade de Princeton, 2015). Agradeço aos professores Pedro Meira Monteiro, Bruno Carvalho, José Miguel Wisnik e Vagner Camilo, pelos valiosos comentários.

Chama atenção o fato de “Caso do vestido” ser um dos poemas mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade, um dos mais frequentes em antologias do poeta e em coletâneas de poesia brasileira e, ao mesmo tempo, um dos poemas menos estudados pela crítica especializada. Dois fatores parecem explicar esse sintomático olvido: um é a forma aparentemente simples - antiquada, até -, pouco hermética e pouco transgressora do poema; outro é sua estranheza, sua singularidade, sua irredutibilidade às principais linhas de força de interpretação que tradicionalmente buscaram entender A rosa do povo, em específico, a poética drummondiana, de modo mais amplo, e o Modernismo brasileiro, em última instância. Há no poema algo de resistente, um fundo oco e opaco do real que insiste em não se deixar simbolizar e onde se arma a dinâmica intricada de desejos que nele vêm à cena.

Dos 55 poemas que compõem A rosa do povo, 36 foram originalmente publicados em jornais e revistas, principalmente do Rio de Janeiro, mas também de São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza, entre 1942 e 1945. Desses periódicos, os que acolheram maior número de colaborações de Drummond foram a Revista do Brasil, o Correio da Manhã, A Manhã, o Correio Paulistano e, mais que todos, O Jornal, carro-chefe dos Diários Associados de Assis Chateaubriand no Rio de Janeiro, em que saíram “Onde há pouco falávamos” (março de 1944), “Os últimos dias” (maio de 1944), “Caso do vestido” (agosto de 1944), “Interpretação de dezembro” (dezembro de 1944), “Áporo”, “O poeta escolhe seu túmulo” e “Economia dos mares terrestres” (maio de 1945), “Indicações” (janeiro de 1945) e “Mário de Andrade desce aos infernos” (abril de 1945ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.). Esses nove poemas, publicados em O Jornal no espaço de um ano, entre março de 1944 e abril de 1945, são responsáveis por um quinto do volume textual de A rosa do povo2 2 A história de publicação dos poemas reunidos nos dez primeiros livros de poesia de Drummond está reconstituída em: Andrade, 2012. . Paralelamente, Drummond publicava no Correio da Manhã crônicas que, em 1952, seriam selecionadas e enfeixadas no livro Passeios na ilha.

Embora desde meados do século XIX a imprensa tenha florescido no Rio de Janeiro de modo exuberante, com o surgimento (e às vezes o rápido desaparecimento) de jornais e revistas com os mais diversos perfis e que atendiam às mais diversas demandas, nos anos 1940 tal fenômeno ainda operava dentro de uma geografia física e humana bastante circunscrita: o proprietário de um jornal em desgraça comprava a massa falida de um antigo concorrente e criava, assim, um terceiro diário; jornalistas migravam de uma redação para a outra; escritores enviavam suas contribuições para periódicos que competiam entre si; os mesmo repórteres encontravam-se nos mesmos bares, restaurantes e cafés, onde faziam a digestão das mesmas notícias. O Correio da Manhã, por exemplo, de Edmundo Bittencourt, era dirigido por Paulo Filho e tinha sua redação na rua Gomes Freire; A Manhã, que havia pertencido a Mário Rodrigues (pai de Nelson Rodrigues) entre 1925 e 1928, quando funcionava na rua Treze de Maio, era então dirigido por Cassiano Ricardo e ganhara sede nova, na avenida Rio Branco, onde também se situava o Jornal do Brasil, do conde Pereira Carneiro; O Globo, de Roberto Marinho, ficava a poucos passos dali, no largo da Carioca; e O Jornal, capitaneado por Freddy Chateaubriand (sobrinho do fundador dos Diários Associados), na rua do Livramento.

Quando “Caso do vestido” veio a público pela primeira vez, nas páginas de O Jornal, em 27 de agosto de 1944, o periódico encontrava-se em seu momento de maior popularidade, sendo o diário mais vendido na cidade do Rio de Janeiro. Tal fenômeno devia-se não às reportagens e crônicas ali publicadas, muito menos à confissão, entre amedrontada e amedrontadora, que uma mãe faz às filhas, no poema de Drummond; devia-se, sim, a outra voz feminina, a de Suzana Flag, que estreara ali com o folhetim Meu destino é pecar, publicado entre 17 de março e 17 de junho de 1944, ao qual se seguiu quase que imediatamente Escravas do amor, que circulou entre 25 de junho e 26 de setembro do mesmo ano. Durante o período de publicação de Meu destino é pecar, O Jornal viu sua tiragem diária aumentar de mil para 30 mil exemplares; e, quando a história finalmente chegou a termo, os editores já tinham preparada a versão em volume, que saiu pela gráfica de O Cruzeiro (também pertencente aos Diários Associados) e atingiu a incrível marca de 300 mil exemplares vendidos em um ano. No periódico, o folhetim ocupava uma página inteira, de 420 linhas - que demandavam 14 laudas datiloscritas, entregues diária e pontualmente -, e era acompanhado de uma ilustração de Enrico Bianco. Suzana Flag assinou, ainda em O Jornal, o folhetim Núpcias de fogo, em 1948; em 1946, seu relato autobiográfico intitulado Minha vida saiu na revista A Cigarra; e, em 1951, a misteriosa autora-personagem encerrou sua carreira com O homem proibido, publicado em Última Hora, de Samuel Wainer (CASTRO, 1992CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 184-186).

Considerando o circuito relativamente fechado da imprensa carioca na década de 1940, há pouco mencionado, a coincidência de tempo e de veículo entre a publicação original de “Caso do vestido” e a dos romances de Suzana Flag, e o impacto sem precedentes desses folhetins no público leitor da então capital federal, parece pouco provável que o poema não contenha, em certa medida, algum tipo de reação ao romance-folhetim, que não haja uma espécie de diálogo entre as personas femininas criadas por Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues. Era a primeira vez (e, salvo engano, a única, no caso de Drummond) que ambos os escritores adotavam uma voz feminina. Para Rodrigues, tratava-se de uma estratégia deliberada e de motivação principalmente extratextual: Berta Waldman observa que ele procurava, assim, distinguir claramente o autor “sério” de teatro - que estreara em 1941 com A mulher sem pecado e consagrara-se em 1943 com Vestido de noiva -, comprometido com a vanguarda teatral, do prosador descompromissado, que escrevia obras de entretenimento, de sabor passadista, como os folhetins de O Jornal (WALDMAN, 1997______. O império das paixões: uma leitura dos romances-folhetins de Nelson Rodrigues. Cadernos Pagu, n. 8/9. Núcleo de Estudos de Gênero, Universidade Estadual de Campinas, 1997., p. 161-162). Para Drummond, sem embargo, a razão era certamente intratextual, até mesmo porque, a despeito da adoção da voz feminina, o poema vinha assinado “C.D.A.”: tratava-se de encontrar um lugar de fala adequado para determinado discurso, de dar uma forma concreta a uma questão abstrata - a certa configuração particular das dinâmicas de desejo.

A aproximação entre Drummond e Rodrigues aqui proposta parte de uma sugestão feita en passant por José Maria Cançado (2006CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006.) em Os sapatos de Orfeu. Conta o biógrafo que, entre fins de 1944 e inícios de 1945, Drummond dedicou-se à única novela que viria a escrever, O gerente, publicada apenas em volume, no mesmo ano em que foi concluída, pela pouco conhecida Editora Horizonte, do Rio de Janeiro, e recebida com frieza pelo público e pela crítica. Diz então o crítico mineiro, sobre O gerente: “Embora tenha às vezes o timbre seco da prosa de Drummond, a narrativa é uma mistura de A vida como ela é com o apagamento grosseiro de qualquer exigência de verossimilhança, numa incursão confusa pelos procedimentos do realismo fantástico” (CANÇADO, 2006CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006., p. 187). A intuição de Cançado é certeira ao perceber na novela (ou talvez simplesmente um conto longo) traços rodriguianos, embora um exame mais atento aponte antes na direção dos folhetins assinados sob o pseudônimo de Suzana Flag do que na da série “A vida como ela é”, que teve início apenas em 1950. Há, em O gerente, pelo menos três elementos pouco encontradiços em “A vida como ela é” e, por outro lado, característicos de Meu destino é pecar: o grotesco (as deformidades físicas em Rodrigues3 3 “Em Meu destino é pecar, uma tendência ao grotesco, que se manifesta nos defeitos físicos de diversas personagens. Há, de modo geral na obra de Nelson Rodrigues, uma presença forte da doença e da deformidade física, que enfatizam o processo de degradação. A perna mecânica de Netinha, prótese, objeto substitutivo” (WALDMAN, 1997, p. 167). , a antropofagia em Drummond)4 4 O canibalismo figura já na frase de abertura do conto: “Era um homem que comia dedos de senhoras; não de senhoritas. Eis pelo menos o que se dizia dele” (ANDRADE, 1976, p. 481). , o suspense (o enredo policialesco, a onipresença de um mistério a ser resolvido, em ambos os casos) e as reviravoltas (no folhetim, verdadeiramente rocambolescas; na novela, mais sutis, porém que criam, igualmente, pontos de inflexão no desenvolvimento do enredo). Vale a pena fazer uma breve digressão a fim de perceber o escritor Nelson Rodrigues em formação, o nascimento de Suzana Flag e o surgimento dos elementos que, conforme proposto, encontrariam ressonância em “Caso do vestido”.

Segundo Ruy Castro, a introdução do jovem Nelson Rodrigues no universo da literatura deu-se por meio dos romances de folhetim europeus do século XIX: durante a infância e a puberdade, vivendo no subúrbio de Aldeia Campista, atravessava as tardes na companhia de Ponson du Terrail, Eugène Sue, Pérez Escrich, Alexandre Dumas pai; e até Dostoievski lhe chegou de forma seriada, em um Crime e castigo adaptado para folhetim. Já adolescente, morando em Copacabana, desbravou Os miseráveis e O homem que ri, de Victor Hugo, Naná e Germinal, de Zola, os Contos de Hoffman, o Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, muito Machado de Assis e, principalmente, Eça de Queiroz (CASTRO, 1992CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 40-41). Em depoimentos concedidos ao longo dos anos, Nelson afirmou diversas vezes que o seu principal repertório de leituras sempre foi no terreno do romance, e não no do teatro, criando uma imagem de si como dramaturgo praticamente autodidata, pouco educado no gênero dramático - imagem obviamente falsa, que ele mesmo desmente ao estabelecer em suas peças um rico diálogo intertextual com a tradição dramática5 5 Nas suas Memórias, por exemplo, ele declara: “Eis a verdade: - até a estreia de Vestido de noiva, eu não lera nada de teatro, nada. Ou por outra: - lera, certa vez, como já disse, Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Sempre fui, desde garoto, um leitor voracíssimo de romance. Eu me considerava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a usar a pose de quem conhece todos os autores dramáticos passados, presentes e futuros. Na verdade, sempre achei de um tédio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que tratei de me iniciar em alguns dramaturgos obrigatórios, inclusive Shakespeare” (RODRIGUES, 1993, p. 170-171). .

Na curta amostragem das leituras de Rodrigues recuperada por Castro, dois dados saltam à vista: o primeiro é a convivência íntima do futuro escritor com a literatura de folhetim e a sua consequente familiaridade com esse gênero; o segundo é o recorte por ele efetuado nos repertórios romântico e realista-naturalista, privilegiando, em um como em outro, os autores e obras em que o dado físico, a realidade social e o sentimento trágico são mais preeminentes. A combinação desses dois dados remete a um gênero de literatura que não chega a ser mencionado na amostragem recuperada por Castro, mas que com certeza não era estranho a Rodrigues: aquele que Alessandra El Far denomina, de modo abrangente, como “páginas de sensação” - romances sensacionalistas, escabrosos ou pornográficos que, por meio da ênfase na sensação e nos sentidos, tematizavam explicitamente o erotismo, comuns nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do XX (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870- 1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 114). Importados principalmente da França e de Portugal, esses “romances só para homens” foram consumidos com sofreguidão em um Rio de Janeiro onde, de acordo com o censo de 1890, a população masculina era 14% maior do que a feminina na cidade, totalizando cerca de 115 mil homens virtualmente sem par, em sua maioria, imigrantes estrangeiros, de 15 a 30 anos (EL FAR, 2004, p. 192).

Ainda que a matriz fosse estrangeira, a produção doméstica em tal gênero foi abundante e célere; tratava-se de uma literatura de consumo rápido, que tinha de renovar-se constantemente. Ainda de acordo com El Far, os títulos dessa vertente especialíssima do Naturalismo brasileiro que alcançaram maior êxito comercial foram A carne, de Júlio Ribeiro, publicado em 1888, O aborto, de Figueiredo Pimentel, de 1893, e A mulata, de Carlos Malheiro Dias, de 1896. A leitura desses livros transparece no folhetim rodriguiano não tanto nas descrições pornográficas - neste sentido, Suzana Flag é bastante discreta -, mas sim na construção dos enredos e, até, na inspiração do nome das personagens. A carne, por exemplo, contava a história de Lenita, uma moça de 22 anos que, ao perder o pai, deixou a cidade para morar na fazenda do coronel Barbosa. Perto da natureza, viu sua sexualidade desabrochar, com o vigor de algo há muito contido. Uma jovem de mesmo nome protagonizava Lenita: cenas pecaminosas do Rio de Janeiro, romance assinado por Ludoro, pseudônimo de Luiz do Rosário, redator da Folha da Tarde (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870- 1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 247-266). Ao escolher para a heroína de Meu destino é pecar o nome de Leninha e ao situar a ação igualmente em uma fazenda, onde as personagens entram em contato com o aspecto mais natural (termo que se examinará mais adiante) do seu erotismo, Nelson Rodrigues/Suzana Flag não apenas reabilita, em novo tempo e em nova chave, o “romance de sensação”, como também resgata uma estratégia da qual esse gênero fez amplo uso: nas palavras de El Far, “Para além da cópia, os romances naturalistas citavam-se uns aos outros num incessante diálogo”: uma personagem masculina de Lenita: cenas da vida pecaminosa aparecia a certa altura do romance lendo A mulata e comparando-se ao pobre amante da personagem-título; uma personagem de O aborto gastava suas noites a ler A carne, de Júlio Ribeiro; e assim em diante. Às vezes essas referências textuais geravam elos mais longos, como, por exemplo, no caso de uma personagem de A normalista, de Adolfo Caminha, que compartilha com as amigas o seu êxtase com a leitura de O primo Basílio, cuja personagem central, Luísa, sonha em ter uma vida semelhante à de A dama das camélias. “Junto com os demais aspectos dessa escola literária, citar livros que teriam inspirado a criação de sua história parecia ser quase um compromisso com a verossimilhança dos acontecimentos” (EL FAR, 2004, p. 267).

Vê-se que o escritor não navegava em águas desconhecidas quando se lançou em sua primeira aventura no universo do folhetim. Em 1944, com 32 anos, Nelson Rodrigues era já um nome reconhecido no jornalismo carioca, membro de uma das famílias mais respeitadas no meio - seu pai fora um importante editor e todos os seus irmãos se destacavam em algum ramo da imprensa. Era, também, um dramaturgo de vanguarda, responsável, na avaliação de Álvaro Lins, por fazer a Semana de Arte Moderna de 1922 finalmente chegar aos palcos, e que estava então “no teatro brasileiro como Carlos Drummond de Andrade na poesia. Isto é: numa posição excepcional e revolucionária” (LINS, 1993, p. 192). A literatura-arte, entretanto, não dava dinheiro, e foi por isso que, naquele ano, ele resolveu deixar a posição instável que tinha em O Globo para trabalhar para os Diários Associados, como redator nas revistas infantis O Guri e Detetive e como colaborador eventual naquela que era a menina dos olhos do jornalismo nacional, O Cruzeiro. Poucos dias depois de assumir o novo emprego, escutou Freddy Chateaubriand comentar, na sede carioca dos Diários Associados, que precisava comprar e mandar traduzir algum folhetim francês ou americano para publicar em O Jornal e, em um arroubo de ousadia, ofereceu-se para escrevê-lo6 6 Segundo Ruy Castro (1992, p. 184-185), “Freddy Chateaubriand olhou para ele: ‘Quem lhe disse que você sabe escrever folhetim? Teatro é uma coisa, folhetim é outra’. ‘Posso tentar’, disse Nelson. ‘Além disso, seria uma boa experiência.’ ‘Você quer fazer experiência às minhas custas?’, disse Freddy. Nelson se deu conta da gafe: ‘Eu estava brincando, Freddy. Pode confiar. Eu dou conta’”. .

Para compor Meu destino é pecar, Rodrigues teve como ponto de partida (ou de inspiração) o filme Rebecca, a mulher inesquecível, de Hitchcock, com Laurence Olivier e Joan Fontaine, lançado em 1940, que por sua vez é uma adaptação do romance homônimo de Daphne du Maurier, publicado apenas dois anos antes. A trama do folhetim gira ao redor de Leninha, logo após o seu casamento com Paulo e sua mudança para a Fazenda Santa Maria, onde vivia a família do marido. Leninha casara-se obrigada, para evitar que seu pai fosse preso, em função de uma dívida, e para obter uma perna mecânica para sua irmã de criação (filha de sua madrasta), Netinha, que fora mutilada em um acidente de bonde. Chegando à fazenda, Leninha conhece a sogra, a manipuladora D. Consuelo, e o cunhado, o irresistível Maurício. Leninha recusa-se a se entregar ao marido por ter sido forçada a desposá-lo, mas se ressente do saudosismo dele em relação à sua primeira mulher, Guida, falecida naquela mesma fazenda alguns meses antes. Ao mesmo tempo, Leninha sente-se seduzida por Maurício, que é descrito como dotado de uma beleza e de uma atratividade sem par, porém também a ele resiste, movida por seu orgulho de mulher casada. Seria impossível oferecer aqui um resumo de todas as peripécias e reviravoltas da história, que se sucedem em ritmo vertiginoso: basta assinalar que há tentativas frustradas de suicídio (por amor, é claro), personagens supostamente mortas que na verdade estão vivas, irmãs que se passam uma pela outra para seduzir o homem pelo qual ambas estão apaixonadas, e muito mais. Sobretudo, há as mais variadas formas de humilhação e de autopunição, motivadas, na maior parte das vezes, pelo orgulho. Paulo, que puxa de uma perna, e Netinha, que faz uso de uma perna mecânica, são em diversos momentos chamados de “aleijados”; e Leninha, mesmo odiando o marido e ardendo de desejo pelo cunhado, resiste a este pelo simples fato de ele achar que seria fácil conquistá-la.

Tanto na versão em folhetim quanto na versão em volume de Meu destino é pecar, cada capítulo conta com um “olho”, uma frase destacada do corpo do texto, que chama a atenção do leitor. Uma mirada por alto sobre esses “olhos” dá uma boa ideia do tom e da temperatura do romance: I - “Eu seria capaz de matá-lo? Seria capaz de matar meu marido?” II - “Aquele amor nascera sob o signo da maldição e da morte.” IV - “Eu não quis viver sem amor. Eu tinha direito ao amor.” VI - “Eu nunca beijarei minha mulher, nunca.” VIII - “Aquela foi a minha grande humilhação de mulher.” IX - “A esposa morta acabava de entrar ali.” XII - “Foi a maior humilhação que uma mulher podia sofrer.” XIV - “Eram duas mulheres e tinham o mesmo sonho de amor.” XXIX - “Qualquer mulher teria pena de mim.” (RODRIGUES, 1982RODRIGUES, Nelson. [sob o pseudônimo de Suzana Flag]. Meu destino é pecar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982., passim). Contudo, depois de uma sucessão quase infinita de reviravoltas eletrizantes, de choques da mais alta voltagem entre as personagens, a ordem se reestabelece: desejo e moral reconciliam-se, maridos e mulheres finalmente descobrem-se apaixonados uns pelos outros, e o romance se encerra com a chegada de um tão aguardado bebê, filho de Leninha e Paulo.

É possível, já agora, observar algumas semelhanças entre o folhetim e o poema. Em primeiro lugar, inexiste em ambos qualquer referência à realidade imediata, à situação histórica específica. Meu destino é pecar se passa na genérica Fazenda Santa Maria, no povoado fictício de Nevada; pelos nomes e sobrenomes, deduz-se que fique em algum lugar do interior do Brasil, e a referência aos empregados da fazenda, entre eles a “preta Naná”, esclarece que se trata de um contexto pós-escravocrata. Esse contorno esfumaçado de tempo e de espaço é comum a todos os folhetins assinados tanto por Suzana Flag quanto por Myrna (outro pseudônimo do autor) e os aproxima do ciclo teatral mítico de Nelson Rodrigues7 7 Marcos Souza (2006, p. 143) observa: “Não há em nenhum dos romances-folhetins de Flag [...] ou Myrna [...] qualquer menção a fatos de uma realidade imediata, de uma situação histórica específica. À semelhança do ciclo teatral mítico, temos que procurar aqui por detalhes para recortarmos um momento histórico particular ou associarmos a narrativa a um espaço físico peculiar, já que o elemento trabalhado com ênfase é a fabulação”. . O mesmo ocorre em “Caso do vestido”, onde não há indício algum de localização espacial ou temporal: a dicção do poema e a menção à “dona de longe” remetem a um ambiente do interior, que tanto pode ser provinciano quanto sertanejo; de resto, tudo se passa em um cenário mítico, habitado pelas figuras arquetípicas da “mãe”, das “filhas”, do “pai” e da “dona de longe”.

Em segundo lugar, as duas narrativas têm em seus núcleos dramáticos, como motor que coloca em movimento as ações das personagens e delineia a curva do enredo, cenas de humilhação. Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade não poupam nenhuma de suas personagens: a humilhação é moeda corrente nas relações que permeiam todas elas. Em Meu destino é pecar, Leninha é casada à força; Paulo, o marido, é desprezado pela mulher e diminuído pelo irmão; Maurício, o conquistador irresistível, é rechaçado pela cunhada pouco atrativa; Netinha é a “aleijada”; Lídia, a prima abandonada e enlouquecida; D. Consuelo, um arremedo de matriarca; Guida, a esposa falecida de Paulo, morre após cair em desgraça, tendo-se tornado amante do cunhado e vendo este ser-lhe roubado pela própria irmã, Evangelina; todos, sem exceção, humilham e são humilhados. Enquanto Meu destino é pecar se caracteriza pela distensão e pela profusão de personagens e peripécias, “Caso do vestido” prima pela concisão e pela economia da estrutura narrativa; ainda assim, as três personagens centrais - a “mãe”, o “pai” e a “dona de longe” - ocupam alternadamente a posição daquele que humilha e daquele que é humilhado.

Finalmente, note-se que os dois textos contêm um traço que mais tarde seria identificado como característico da poética de Nelson Rodrigues - não tanto da de Drummond - e que lhe valeria a alcunha de “anjo pornográfico”: a exposição radical ao perverso como estratégia moralizante. O desfecho, em Meu destino é pecar como em “Caso do vestido”, é redentor: as personagens passam por uma série de provações, ficam face a face com o mal, mas ao fim são recompensadas, a ordem é reestabelecida, e a autoridade das instituições é reforçada. No folhetim rodriguiano, a única personagem punida de fato é Guida, a primeira mulher de Paulo, que decide trair o marido com o cunhado (embora nem chegue a fazê-lo) e por isso é destroçada por cães ferozes; no poema drummondiano, a única condenação definitiva e irreparável é a da “dona de longe”, que cai em completa desgraça e miséria. Juliana da Silva Passos, em tese de doutorado sobre o folhetim rodriguiano, percebe, a propósito de Meu destino é pecar, a vigência de uma estrutura cuja forma mais bem-acabada encontra-se no imaginário dos contos de fada, especificamente na história de “A bela e a fera”, e em que a verdadeira face do amado só se revela à amada por meio da provação amorosa (PASSOS, 2014PASSOS, Juliana da Silva. Suzana Flag, Myrna e Nelson Rodrigues: os romances de folhetim. Tese (Doutorado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 176). O mesmo se poderia pensar em relação ao “Caso do vestido”, em que a mulher aprende a - conforme diria o Drummond do poema “Perguntas” (de Claro enigma) - “amar depois de perder”.

Além dos folhetins assinados por Suzana Flag, outro texto de Nelson Rodrigues parece ter fornecido subsídios para o imaginário poético de Carlos Drummond de Andrade (para o seu repertório de referências, temas, imagens, questões), em 1944: Vestido de noiva, peça que estreara em dezembro de 1943 e estivera em cartaz no Rio de Janeiro durante os primeiros meses do ano seguinte. É difícil imaginar que Drummond não tenha assistido àquele que foi o grande acontecimento do teatro brasileiro dos anos 1940. E é certo que ele conhecera de antemão o texto, uma vez que a companhia Os Comediantes, dirigida por Ziembinski, responsável por levar Vestido de noiva ao palco do Theatro Municipal, contava com o patrocínio do Ministério da Educação e Saúde, por ordem expressa do ministro Gustavo Capanema, cujo chefe de gabinete era o próprio Drummond8 8 Ruy Castro conta que o próprio Nelson pediu uma audiência a Drummond, em 1941, a fim de submeter o original de A mulher sem pecado ao chefe de gabinete do ministro da Educação. Segundo o biógrafo, “Drummond foi pouco mais que cauteloso sobre a peça: ‘Interessante. Muito interessante’. Sóbrio como minério de ferro, sorriu de uma frase: ‘A fidelidade devia ser uma virtude facultativa’” (CASTRO, 1992, p. 153). Já em 1943, foi Hélio de Almeida, presidente da UNE, quem fez uma cópia de Vestido de noiva chegar às mãos de Drummond, que obteve para a montagem da peça uma verba de duzentos contos de réis (CASTRO, 1992, p. 164). . Vale lembrar, ainda, que o mesmo Tomás Santa Rosa, artista icônico e multifacetado, foi o responsável pela cenografia revolucionária de Vestido de noiva e pela capa arrojada de A rosa do povo.

O impacto, se não dessas duas peças, em específico, da linguagem dramática, em geral, no Drummond de A rosa do povo pode ser percebido naquilo que Emanuel de Moraes, em seu clássico estudo de apresentação da primeira edição da obra completa do poeta itabirano, chamou de “composição de ritmo dramático” e em que se destacam, segundo ele, “A morte do leiteiro”, “Caso do vestido”, “Morte no avião” e, seria possível ainda acrescentar, “Noite na repartição”. Nas palavras de Moraes (1976, p. 23),

Não se trata, evidentemente, de “teatro puro”, conforme já foi dito a respeito de “Caso do vestido”. O que existe é apenas um processo rítmico muito próximo do dramático. Divide-se esse poema em três partes, equivalentes à divisão tríplice de uma obra dramática: prólogo, episódio e êxodo.

Se, conforme o crítico, nos casos de “A morte do leiteiro” e “Morte no avião” “não se trata, evidentemente, de ‘teatro puro’”, nos de “Noite na repartição” e “Caso do vestido” poder-se-ia objetar que a forma adotada pelo escritor é, sim, a do drama em verso: trata-se da composição de uma cena.

Em Vestido de noiva como em “Caso do vestido”, tem lugar a disputa de duas mulheres por um mesmo homem: este pertencera a uma, fora “roubado” pela outra e, finalmente, retornou à primeira, sendo a outra eliminada (física ou simbolicamente). Sobrepondo-se, assim, de maneira grosseira, as duas tramas, a “mãe” de “Caso do vestido” corresponderia à Lúcia de Vestido de noiva, e a “dona de longe”, à Alaíde, em uma inversão perfeita do foco narrativo - afinal, os três planos apresentados em Vestido de noiva são todos difrações de Alaíde, assim como as vozes do pai e da “dona de longe”, em “Caso do vestido” são mediadas pelo discurso da mãe9 9 A esse respeito, ver: Jutgla, 2005. . Não obstante a personagem masculina ocupe o vértice do triângulo amoroso na peça como no poema, nos dois casos o que está em jogo é a dinâmica entre as personagens femininas; o homem é, em ambos os textos, figura plana, pouco desenvolvida, a qual não se espera que contraponha qualquer tipo de escrúpulo ao livre fluxo do próprio desejo. Por isso, na peça e no poema, o vestido está no título e no centro da cena: ele é o objeto relacional que dá à mulher acesso ao homem (daí a disputa) e que permite que uma mulher identifique a si mesma à medida que se diferencia da outra (daí ser um vestido, uma segunda pele).

A esta altura, é importante pôr em perspectiva a influência do drama e da prosa rodriguianos sobre o Drummond de “Caso do vestido” e colocar sob exame outras duas obras com as quais o poeta conviveu intimamente naqueles anos e que parecem também ter deixado marcas no poema: as de García Lorca e Choderlos de Laclos. Ricardo Souza de Carvalho faz uma detalhada reconstituição da recepção de Lorca por parte de Drummond, não deixando de mencionar os ecos lorquianos perceptíveis nos poemas de A rosa do povo. Em outubro de 1937, Drummond publicou no Boletim de Ariel o artigo “Morte de Federico García Lorca”, evento que teve lugar no ano anterior; em 1946, publicou no Diário Carioca o poema “A Federico García Lorca” (que recolheria em Novos poemas), por ocasião do décimo aniversário da morte do poeta espanhol; além disso, nesse mesmo ano traduziu para a revista Literatura, dirigida por Astrojildo Pereira, três poemas pertencentes ao Romancero general de la Guerra de España, livro organizado e impresso pelo exército republicano e dedicado à memória de Lorca. Esses três poemas eram “Carta de noiva”, de Félix Paredes, “Romance de noite triste”, assinado por Isabel, e “Pioneira”, de José Antonio Baleotín. Em 1959, por fim, traduziria a peça Doña Rosita, la soltera o El lenguaje de las flores, para uma montagem do Teatro O Tablado, de Maria Clara Machado, publicando-a em seguida pela Agir (CARVALHO, 2007CARVALHO, Ricardo Souza de. Drummond e a Espanha: apontamentos para duas recepções. O eixo e a roda, v. 14. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3251/318>. Acesso em: 13 abr. 2015.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
)10 10 A esse respeito, ver também: Costa, 2002. .

Lorca e os demais poetas republicanos espanhóis, lidos e traduzidos por Drummond, surgem assim como mediadores fundamentais do contato do poeta brasileiro com formas tradicionais da poesia ibérica, especialmente de expressão oral, como o romance11 11 O termo é utilizado aqui como equivalente não ao espanhol novela, mas sim a romance, ou seja: “Designação usada na história da literatura portuguesa e galega para um tipo de poema épico breve, destinado ao canto, transmitido e reelaborado por tradição oral, que corresponde, no âmbito peninsular, à balada europeia, e de que se conserva um conjunto de exemplares no chamado Romanceiro” (NUNES, s. d.). , assim como com a forma dramática. A estrofe curta, de dois ou quatro versos; a métrica fluida, mais próxima da linguagem falada, como o da redondilha menor ou da redondilha maior; a alternância de vozes, imprimindo o traço dramático, e a presença nítida de um enredo, garantindo o elemento narrativo; o conflito psicológico e até mesmo trágico flagrado em um universo arcaico e doméstico; tudo isso está presente no Romancero gitano, obra-prima da lírica lorquiana, e também em “Caso do vestido”. Do teatro do mestre andaluz Drummond apreende a cena composta exclusivamente de mulheres, o peso das expectativas sociais sobre elas e o espaço do lar como arena das disputas mais violenta, de tal modo que o universo em que se situa a ação de “Caso do vestido” poderia bem ser o mesmo que aquele em que se passam Yerma, Doña Rosita e La casa de Bernarda Alba.

Quanto a Choderlos de Laclos, em 1943 Drummond dera início a uma tradução de Les liaisons dangereuses para o português, que sairia em 1947 pela Editora Globo, de Porto Alegre, na coleção Grandes Romances, dirigida por Paulo Rónai. A despeito do destino comercial exitoso do trabalho, Drummond registrou em seu diário que o realizara mesmo por prazer12 12 Diário cuidadosamente editado pelo próprio Drummond e publicado na forma de livro como O observador no escritório, onde se lê: “1944 - Agosto, 26. Ainda às voltas com a tradução de Les Liaisons Dangereuses, de Laclos, trabalho que empreendi pelo suposto prazer de traduzir, sem encomenda de editor. Que problema, escrever novamente um livro alheio! E que pretensão... Não sei o que mais padece neste jogo, se o pensamento do autor, se as palavras que o vestem. Para dizer a verdade, as traduções deviam ser proibidas, como moeda falsa” (ANDRADE, 1985, p. 15). . Segundo Cançado (2006CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006., p. 185),

Numa lista que fez em 1952, sobre os dez grandes romances da história da literatura, ele colocou As ligações perigosas, pelo menos na ordem em que aparece na lista, à frente dos outros nove (A Cartuxa de Parma, de Stendhal; A educação sentimental, de Flaubert; Em busca do tempo perdido, de Proust; Os moedeiros falsos, de Gide; David Copperfield, de Dickens; Tom Jones, de Fielding; Ulisses, de James Joyce; Guerra e paz, de Tolstói; Dom Quixote, de Cervantes).

Além da versão do texto em português, Drummond assinou ainda, na edição gaúcha da obra de Laclos, um “Posfácio do tradutor”, em que comenta:

O livro se passa todo ele numa atmosfera de laboratório em que se exercitam um homem e uma mulher condenados por sua natureza a realizar até a morte experiências de sedução. Um livro álgido, um livro triste. Vaidade e desejo sexual, eis os dois únicos elementos desse jogo, observa André Malraux: vaidade contra vaidade, vaidade contra desejo, desejo contra vaidade. (apud ASEFF, 2005ASEFF, Marlova. Drummond, tradutor de Les liaisons dangereuses. TradTerm: publicação do Centro de Interdepartamental de Tradução e Terminologia da Universidade de São Paulo, v. 11, n. 1. São Paulo, 2005, p. 189-199. Disponível em: <http:// myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/ site/images/revistas/v11n1/v11n1a10.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2015.
http:// myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/ s...
, p. 194).

Enquanto no exercício da tradução Drummond se confrontava com “experiências de sedução” em “atmosfera de laboratório” - porque conduzidas com consciência e método pela marquesa de Merteuil e pelo visconde de Valmont -, em sua produção poética ele flagrava o mesmo fenômeno, porém fora de ambiente controlado. Em “Caso do vestido”, está igualmente em jogo “vaidade contra vaidade, vaidade contra desejo, desejo contra vaidade” e - cabe acrescentar, completando a eloquente lacuna deixada pelo escritor - desejo contra desejo.

O panorama traçado até aqui teve como objetivo enxergar a gênese de “Caso do vestido” dentro dos circuitos materiais e imateriais pelos quais circulava Drummond à roda de 1944. A partir do contexto de publicação, dos temas e dos recursos formais mais evidentes do poema, procurou-se identificar, no gigantesco universo de referências - literárias e não literárias - do escritor, aquelas que parecem ter contribuído de algum modo para a sua criação. As poéticas de Nelson Rodrigues, García Lorca e Choderlos de Laclos, as linguagens do folhetim e do teatro, bem como o meio jornalístico, surgiram como elementos mais significativos. É possível, agora, adentrar o texto e observar como esses elementos se articulam.

Conforme assinalado há pouco, trata-se de uma cena: em um ambiente doméstico, as filhas perguntam à mãe a respeito de um vestido que se encontra pendurado em um prego na parede, e a mãe, vencida certa relutância inicial, lhes responde contando a história de como aquele vestido viera parar em suas mãos. Apenas mulheres, e apenas as mulheres do núcleo familiar, estão em cena e nela têm voz: a mãe e as filhas; as vozes tanto do elemento masculino (o pai), quanto do elemento externo (a “dona de longe”) são ouvidas somente através da boca da mãe13 13 O estudo da natureza da personagem masculina no poema seria matéria para um ensaio à parte, o qual teria que analisar, necessariamente, a constituição da figura paterna na mitologia poética drummondiana, bem como na biografia de Carlos Drummond de Andrade. Desde essa perspectiva, revela-se central o tema da administração, por parte do homem, da relação entre a vida conjugal e a vida extraconjugal. É interessante, a esse respeito, a observação de Cançado acerca dos boatos, em Itabira, durante a infância do poeta, sobre os diversos filhos bastardos de seu pai; entre eles, supostamente, estaria inclusive o santeiro Alfredo Duval, que Drummond mais tarde mencionaria em poemas nos quais evoca a sua história familiar. Cançado menciona, ainda, que uma das hipóteses mais fortes que justificariam a mudança do coronel Carlos de Paula Andrade, senhora e filhos, de Itabira para Belo Horizonte, em 1920, seria a do namoro de Rosa Amélia, uma das filhas do casal, com Xicado, rapaz sobre quem pairava a suspeita de que fosse, na verdade, filho bastardo do coronel (CANÇADO, 2006, p. 31). . As filhas perguntam à mãe a respeito de um objeto, o vestido no prego, porém a história narrada pela mãe pouco fala desse objeto, nem sequer o descreve; fala, antes, de uma teia de acontecimentos e relações das quais aquele objeto é, supostamente, o vestígio palpável, a reminiscência. Assim, a despeito do seu valor alegórico, o vestido desempenha uma função principalmente indiciária no poema. E o discurso da mãe, ao explicá-lo, ao reconstituir uma série de eventos a partir de um índice, ao chegar a conclusões abstratas a partir de um dado concreto, o converte em um objeto didático e se revela essencialmente pedagógico: a mãe ensina algo às filhas; ensina, por meio de um exemplo, de uma parábola, qual roupagem social elas devem adotar. É no exercício do seu papel de mãe que ela compartilha com as filhas a sua aprendizagem do papel de mulher e que lhes dá acesso à intimidade da sua vida conjugal.

A história contada pela mãe é sobre a entrada de um terceiro elemento na vida erótica do casal: de outra mulher, por quem seu marido se enamora. Como essa história é uma narrativa pedagógica dirigida também a mulheres - as filhas -, o comportamento e o desejo masculinos não são objeto de interesse nem de julgamento: a voracidade sexual do homem e o seu direito de se entregar a ela são taken for granted, daí a concisão com que a mãe se refere ao interesse do marido pela outra mulher -

Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se14 14 Todas as citações do poema são feitas aqui a partir da primeira edição de A rosa do povo (ANDRADE, 1945, p. 91-100). .

A edição crítica dos dez primeiros livros de poesia de Drummond organizada por Júlio Castañon Guimarães traz anotadas todas as variantes conhecidas do texto; a maioria absoluta das alterações é insignificante, à exceção de uma, justamente nessa passagem: na publicação do poema em O Jornal, do Rio de Janeiro, em agosto de 1944, no Diário de Pernambuco, do Recife, em setembro de 1944, bem como no datiloscrito enviado pelo poeta ao editor José Olympio em 1945, consta uma estrofe que foi suprimida já na primeira edição de A rosa do povo, assim como em todas as subsequentes, que seguem a sua lição. A versão original rezava:

Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona esquipática, cheia de joias, de coisas. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.

Essa supressão confirma a percepção, por parte do poeta, de que não era necessário justificar o interesse do pai pela “dona de longe”; descrições dela têm lugar apenas mais tarde, por ocasião dos seus dois encontros com a mãe, e são feitas a partir do ponto de vista da mãe.

A entrada desse terceiro elemento na vida do casal é motivada pelo desejo do marido, porém não ocorre sem a intervenção da mulher. Depois de fazer uma série de investidas junto à “dona de longe” e de ser rechaçado por ela, o marido dirigiu-se à mulher e

Me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Ao que a mulher aquiesceu - E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade

-, de modo que é atendendo ao pedido da mulher que a “dona de longe” acaba por se entregar ao marido. A trama que se arma, assim, não é a de uma traição, de um caso puro e simples de infidelidade, mas de contratos complexos que se estabelecem entre os três: a mulher é cúmplice do marido na conquista da “dona de longe”; a “dona de longe” é cúmplice da mulher na satisfação das vontades do marido; e o marido é cúmplice da mulher ao incluí-la na sua fantasia com a “dona de longe”.

O marido some no mundo com a “dona de longe”, deixando a mulher sozinha, com as filhas ainda no berço. As dificuldades que a mulher enfrenta, durante a ausência do marido, têm como resultado a sua decadência física:

não comia, não falava, tive uma febre terçã, [...] perdi meus dentes, meus olhos, [...] minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia.

Eis que um dia lhe aparece a “dona de longe”, “pobre, desfeita, mofina”. Tinha sido abandonada pelo marido da outra e vinha lhe pedir perdão pela humilhação que lhe infligira, oferecendo-lhe aquele vestido,

última peça de luxo que guardei como lembrança daquele dia de cobra, da maior humilhação.

O desespero em que se viu ao ser deixada pelo homem também é descrito em termos da degradação do seu corpo e da sua aparência:

no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina.

E a mulher, com visível satisfação, completa a descrição da rival:

Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim?

Mal a “dona de longe” sai da casa, já o marido retorna, como se nada tivesse acontecido, e é acolhido com naturalidade pela mulher. Ao contrário das duas, que na falta do par erótico deserotizaram o próprio corpo, ele

era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho.

Esse retrato a traços rápidos do poema permite observar pelo menos três aspectos da dinâmica do desejo em “Caso do vestido” - aspectos esses igualmente observáveis naquelas obras que serviram de caldo para a fermentação poética de Drummond à época da composição do poema. O primeiro, já mencionado, é o vínculo entre perversão e moralismo - ou, em outras palavras: a exposição da transgressão da norma como forma de fortalecimento da norma. Em “Caso do vestido”, como em Meu destino é pecar, todas as formas de manifestação do desejo não sancionadas pela moral são rigorosamente punidas ao fim: a “dona de longe” cai em decadência e desgraça, Guida é estraçalhada pelos cães do marido. Em contrapartida, aqueles que resistem à tentação e se mantêm firmemente atados às instituições sociais que visam regular o desejo são recompensados: a mãe, no poema de Drummond, recebe de volta o marido, e Leninha, no folhetim rodriguiano, é presenteada com uma transformação radical do marido, Paulo, que antes era grosseiro, distante e fisicamente repugnante, e depois revela sua face delicada, atenciosa e até sedutora15 15 Em tempo: essa “recompensa” não anula os sofrimentos vivenciados por todas as mulheres, individualmente, no poema e no folhetim; nem concilia a relação marcadamente assimétrica de poder entre homens e mulheres nas duas obras, as quais se situam, ambas, dentro de um rígido quadro de controle patriarcal. Ela representa, contudo, no interior de uma sociedade extremamente repressora da mulher, o triunfo de um modelo de comportamento feminino sobre outro: se, nesse contexto, as únicas roupagens sociais às quais a mulher tem acesso são as da “santa” ou da “puta”, a lição das duas narrativas é a de que, a longo prazo, a de “santa” é a que compensa. . Nesse sentido, ambos os textos são relatos de aprendizagens, de iniciações na vida amorosa e sexual: as personagens estão reiteradamente testando a si mesmas, testando umas às outras e testando as possibilidades de ajuste entre os seus desejos íntimos e as convenções sociais - ou, inversamente, testando as possibilidades de ajuste entre as convenções sociais e os seus desejos íntimos. De um modo ou de outro, nessa aprendizagem, a descoberta da sexualidade é também a descoberta da culpa. E o caráter educativo-moralizante, evidente na cena da mãe que conta uma fábula para as filhas, no poema, não o é menos na trama do folhetim.

O segundo aspecto é o traço masoquista que perpassa as duas obras de 1944 em tela. A respeito da rodriguiana, é mais uma vez de Berta Waldman a seguinte observação:

Nota-se nos folhetins de Nelson Rodrigues (e também em seu teatro) uma convivência abjeta de todos em torno da vontade de auto-humilhação de uma personagem. Via de regra, essa voragem da queda vincula-se ao sexo. Entretanto, tanto nos contos como nos romances ou no teatro, as cenas de teor sexual são escassas. O sexo é o “irreal-presente”. Sempre comentado, insinuado, imaginado, invocado. Mas raramente exibido. Alude-se a estupros, mas pouco se mostra a respeito. E o que se mostra não é o sexo atuante, mas, antes, seus arredores e consequências, quando remetem ao pecado. (WALDMAN, 1991WALDMAN, Berta. A cena e o cio nacional. In: REIS, Roberto (Ed.). Toward socio-criticism: selected proceedings of the conference “Luso-Brazilian Literatures, a Social-Critical Approach”. Tempe: Arizona State University, 1991, p. 77-85., p. 80).

A mesma observação poderia ser feita acerca do poema de Drummond: também aí o sexo é simultaneamente onipresente e invisível; é o motor da ação, mas é apreensível apenas em suas franjas, nas cenas ritualísticas que o antecedem e o sucedem, as quais envolvem invariavelmente a humilhação.

Em sua Apresentação de Sacher-Masoch - o frio e o cruel, Gilles Deleuze explica que o masoquista não sente prazer na dor e no sofrimento em si, ele se excita com a dor e com o sofrimento à medida que percebe essa sensação e esse sentimento como antecipações do prazer, uma vez que são eles que legitimam a chegada do prazer. O masoquista consegue, assim, por meio de um mecanismo perverso - que promove um desvio da norma social -16 16 Para uma perspectiva diacrônica e descritiva dos usos do termo “perversão” na psiquiatria, na sexologia e na psicanálise, ver: Roudinesco, 1998, p. 583-587. Para uma discussão crítica sobre os fenômenos do sadismo e do masoquismo, bem como sobre o desvio da norma como elemento integrante, e não excepcional, do funcionamento interno do sujeito, ver: Lacan, 1989, p. 55-75. , dar vazão ao desejo em meio à culpa: assim como o mártir vê o suplício do corpo como caminho para a salvação da alma, o masoquista entende a espera como garantia da chegada, enxerga a punição como permissão para o delito. Nessa equação, quanto maior a espera, o sofrimento e a humilhação, tanto mais pleno o gozo final (DELEUZE, 2001DELEUZE, Gilles. Presentación de Sacher-Masoch - lo frío y lo cruel. Traducido por Irene Agoff. Buenos Aires: Amorrortu, 2001., p. 65-67). A imagem mesma do martírio, aliás, é evocada em “Caso do vestido” e Meu destino é pecar por meio de elementos concretos: no poema, o vestido é pregado na parede como Jesus Cristo na cruz; e aí como no folhetim, são abundantes, conforme mencionado, as imagens de dilaceramento do corpo.

Este segundo aspecto, portanto, é consequência direta do primeiro: em narrativas pedagógicas, que descrevem um arco moralizante - em que há uma série de provações, mas em que no fim os viciosos são punidos e os virtuosos, recompensados - e nas quais a descoberta da sexualidade é também a descoberta da culpa, a estratégia masoquista se revela forma privilegiada de acesso ao desejo, de vivência do erotismo. Reconhecer a capacidade de agenciamento das personagens humilhadas e supliciadas em “Caso do vestido” e Meu destino é pecar e a entrada voluntária, ainda que não consciente, delas em tais dinâmicas é dar mais uma volta no parafuso e encontrar uma via de escape para a fábula moralizante.

O terceiro e último aspecto para o qual se quer chamar a atenção nesta leitura é a volatilidade do desejo e, em última instância, da percepção do real. Em Meu destino é pecar, atendendo às regras do gênero folhetinesco, as peripécias e reviravoltas se sucedem em ritmo vertiginoso e incluem múltiplas transformações de sentimentos, paixões e desejos. No espaço de poucas páginas, às vezes de poucos parágrafos, a repulsa que uma personagem sente por outra se transforma em atração, ou vice-versa. Também de modo muito rápido um objeto de atração ou de repulsa é substituído por outro, em um carrossel delirante. O mesmo acontece em “Caso do vestido”, ainda que em escala reduzida: o marido perde o interesse na mulher e se enamora pela “dona de longe”; depois, se desinteressa pela “dona de longe” e volta para a mulher; a “dona de longe”, por sua vez, de início não queria o homem, mas “ao depois amor pegou”. Nas duas obras, essas mudanças são radicais e abruptas - “Caso do vestido” e Meu destino é pecar estão, portanto, mais próximas do registro melodramático do que do trágico ou do psicológico, porque buscam retratar não a formação e a transformação gradual dos afetos e desejos, mas sim uma forma acabada, perfeita, dessas paixões.

A imaginação melodramática, de acordo com a leitura canônica de Peter Brooks, se vale de expedientes retóricos para exteriorizar os conflitos internos e lidar com eles como se fossem entidades plásticas17 17 Ângela Dias resume assim o argumento de Peter Brooks em The melodramatic imagination (New Haven and London: Yale University Press, 1976): “O caráter transgressivo do melodrama - estruturado numa retórica inflamada e alimentada pela hipérbole, pela antítese e pelo oximoro - exterioriza o conflito e lida com sentimentos e ideias como entidades plásticas, ou modelos visuais e táteis, dotando a linguagem verbal de um status ‘sígnico’ ou cênico, pelo uso de um vocabulário claro, simples e pleno de absolutos, voltado para o deciframento do texto moral do mundo” (DIAS, 2013, p. 19). A esse respeito, ver também: Nunes, 1994. . Ao deslocar, por meio da linguagem, os conflitos de dentro para fora do sujeito e ao dar forma concreta - plástica, dúctil - a sentimentos abstratos, o melodrama desloca e torna plástica, dúctil, também a percepção mesma do real por parte desses sujeitos. Já nas estrofes finais de “Caso do vestido”, a mãe diz às filhas que a presença do marido, de volta em casa, lhe dava

um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada.

Também em Meu destino é pecar, uma vez resolvido o conflito, toda a história da sua resolução é varrida para debaixo do tapete, e não incorporada à experiência presente; torna-se um objeto apartado da realidade, com contornos de sonho - como, a propósito, parecem ser sempre oníricas a movimentação e a percepção de Leninha.

A fissura que a natureza fluida do desejo cria na percepção do real está no núcleo duro de “Caso do vestido” e de Meu destino é pecar e talvez tenha encontrado sua expressão mais feliz na fala de uma personagem que não foi concebida nem por Carlos Drummond de Andrade, nem por Nelson Rodrigues, mas por um autor que teve sobre ambos enorme ascendência, Machado de Assis, quando, no conto “Noite de almirante”, a caboclinha Genoveva confessa candidamente ter descumprido a jura de amor feita ao marujo Deolindo Venta-Grande: “Quando jurei, era verdade”. O narrador machadiano comenta, pouco depois: “Vede que estamos aqui muito próximos da natureza” - como próximas da natureza estão as personagens do poema drummondiano e do folhetim rodriguiano. A mesma questão se coloca na epígrafe escolhida por Drummond para a sua novela de 1945, O gerente: “Perguntou-Lhe Pilatos: Que é a verdade?” (Evangelho segundo São João, XVIII, 38). Nenhum dos três autores respondeu a essa pergunta, com a qual o homem vem se debatendo há tanto tempo; porém mostraram que o desejo com certeza faz parte da resposta.

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  • ______. O império das paixões: uma leitura dos romances-folhetins de Nelson Rodrigues. Cadernos Pagu, n. 8/9. Núcleo de Estudos de Gênero, Universidade Estadual de Campinas, 1997.
  • 2
    A história de publicação dos poemas reunidos nos dez primeiros livros de poesia de Drummond está reconstituída em: Andrade, 2012.
  • 3
    “Em Meu destino é pecar, uma tendência ao grotesco, que se manifesta nos defeitos físicos de diversas personagens. Há, de modo geral na obra de Nelson Rodrigues, uma presença forte da doença e da deformidade física, que enfatizam o processo de degradação. A perna mecânica de Netinha, prótese, objeto substitutivo” (WALDMAN, 1997, p. 167).
  • 4
    O canibalismo figura já na frase de abertura do conto: “Era um homem que comia dedos de senhoras; não de senhoritas. Eis pelo menos o que se dizia dele” (ANDRADE, 1976, p. 481).
  • 5
    Nas suas Memórias, por exemplo, ele declara: “Eis a verdade: - até a estreia de Vestido de noiva, eu não lera nada de teatro, nada. Ou por outra: - lera, certa vez, como já disse, Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Sempre fui, desde garoto, um leitor voracíssimo de romance. Eu me considerava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a usar a pose de quem conhece todos os autores dramáticos passados, presentes e futuros. Na verdade, sempre achei de um tédio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que tratei de me iniciar em alguns dramaturgos obrigatórios, inclusive Shakespeare” (RODRIGUES, 1993, p. 170-171).
  • 6
    Segundo Ruy Castro (1992, p. 184-185), “Freddy Chateaubriand olhou para ele: ‘Quem lhe disse que você sabe escrever folhetim? Teatro é uma coisa, folhetim é outra’. ‘Posso tentar’, disse Nelson. ‘Além disso, seria uma boa experiência.’ ‘Você quer fazer experiência às minhas custas?’, disse Freddy. Nelson se deu conta da gafe: ‘Eu estava brincando, Freddy. Pode confiar. Eu dou conta’”.
  • 7
    Marcos Souza (2006, p. 143) observa: “Não há em nenhum dos romances-folhetins de Flag [...] ou Myrna [...] qualquer menção a fatos de uma realidade imediata, de uma situação histórica específica. À semelhança do ciclo teatral mítico, temos que procurar aqui por detalhes para recortarmos um momento histórico particular ou associarmos a narrativa a um espaço físico peculiar, já que o elemento trabalhado com ênfase é a fabulação”.
  • 8
    Ruy Castro conta que o próprio Nelson pediu uma audiência a Drummond, em 1941, a fim de submeter o original de A mulher sem pecado ao chefe de gabinete do ministro da Educação. Segundo o biógrafo, “Drummond foi pouco mais que cauteloso sobre a peça: ‘Interessante. Muito interessante’. Sóbrio como minério de ferro, sorriu de uma frase: ‘A fidelidade devia ser uma virtude facultativa’” (CASTRO, 1992, p. 153). Já em 1943, foi Hélio de Almeida, presidente da UNE, quem fez uma cópia de Vestido de noiva chegar às mãos de Drummond, que obteve para a montagem da peça uma verba de duzentos contos de réis (CASTRO, 1992, p. 164).
  • 9
    A esse respeito, ver: Jutgla, 2005.
  • 10
    A esse respeito, ver também: Costa, 2002.
  • 11
    O termo é utilizado aqui como equivalente não ao espanhol novela, mas sim a romance, ou seja: “Designação usada na história da literatura portuguesa e galega para um tipo de poema épico breve, destinado ao canto, transmitido e reelaborado por tradição oral, que corresponde, no âmbito peninsular, à balada europeia, e de que se conserva um conjunto de exemplares no chamado Romanceiro” (NUNES, s. d.).
  • 12
    Diário cuidadosamente editado pelo próprio Drummond e publicado na forma de livro como O observador no escritório, onde se lê: “1944 - Agosto, 26. Ainda às voltas com a tradução de Les Liaisons Dangereuses, de Laclos, trabalho que empreendi pelo suposto prazer de traduzir, sem encomenda de editor. Que problema, escrever novamente um livro alheio! E que pretensão... Não sei o que mais padece neste jogo, se o pensamento do autor, se as palavras que o vestem. Para dizer a verdade, as traduções deviam ser proibidas, como moeda falsa” (ANDRADE, 1985, p. 15).
  • 13
    O estudo da natureza da personagem masculina no poema seria matéria para um ensaio à parte, o qual teria que analisar, necessariamente, a constituição da figura paterna na mitologia poética drummondiana, bem como na biografia de Carlos Drummond de Andrade. Desde essa perspectiva, revela-se central o tema da administração, por parte do homem, da relação entre a vida conjugal e a vida extraconjugal. É interessante, a esse respeito, a observação de Cançado acerca dos boatos, em Itabira, durante a infância do poeta, sobre os diversos filhos bastardos de seu pai; entre eles, supostamente, estaria inclusive o santeiro Alfredo Duval, que Drummond mais tarde mencionaria em poemas nos quais evoca a sua história familiar. Cançado menciona, ainda, que uma das hipóteses mais fortes que justificariam a mudança do coronel Carlos de Paula Andrade, senhora e filhos, de Itabira para Belo Horizonte, em 1920, seria a do namoro de Rosa Amélia, uma das filhas do casal, com Xicado, rapaz sobre quem pairava a suspeita de que fosse, na verdade, filho bastardo do coronel (CANÇADO, 2006, p. 31).
  • 14
    Todas as citações do poema são feitas aqui a partir da primeira edição de A rosa do povo (ANDRADE, 1945, p. 91-100).
  • 15
    Em tempo: essa “recompensa” não anula os sofrimentos vivenciados por todas as mulheres, individualmente, no poema e no folhetim; nem concilia a relação marcadamente assimétrica de poder entre homens e mulheres nas duas obras, as quais se situam, ambas, dentro de um rígido quadro de controle patriarcal. Ela representa, contudo, no interior de uma sociedade extremamente repressora da mulher, o triunfo de um modelo de comportamento feminino sobre outro: se, nesse contexto, as únicas roupagens sociais às quais a mulher tem acesso são as da “santa” ou da “puta”, a lição das duas narrativas é a de que, a longo prazo, a de “santa” é a que compensa.
  • 16
    Para uma perspectiva diacrônica e descritiva dos usos do termo “perversão” na psiquiatria, na sexologia e na psicanálise, ver: Roudinesco, 1998, p. 583-587. Para uma discussão crítica sobre os fenômenos do sadismo e do masoquismo, bem como sobre o desvio da norma como elemento integrante, e não excepcional, do funcionamento interno do sujeito, ver: Lacan, 1989, p. 55-75.
  • 17
    Ângela Dias resume assim o argumento de Peter Brooks em The melodramatic imagination (New Haven and London: Yale University Press, 1976): “O caráter transgressivo do melodrama - estruturado numa retórica inflamada e alimentada pela hipérbole, pela antítese e pelo oximoro - exterioriza o conflito e lida com sentimentos e ideias como entidades plásticas, ou modelos visuais e táteis, dotando a linguagem verbal de um status ‘sígnico’ ou cênico, pelo uso de um vocabulário claro, simples e pleno de absolutos, voltado para o deciframento do texto moral do mundo” (DIAS, 2013, p. 19). A esse respeito, ver também: Nunes, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2018
  • Aceito
    01 Abr 2019
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