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Pão, fama e outras fomes: uma leitura de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector

Bread, fame and other kinds of hunger: a reading of Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector

RESUMO

Em 1960, a Livraria Francisco Alves Editora lançou dois livros que se tornariam fundamentais para a literatura brasileira a partir de um cenário pós-modernista: Laços de família, de Clarice Lispector, e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. O objetivo deste artigo é abordar as duas obras, a despeito das diferenças de gênero literário, de estilo e das problemáticas que instauram, como manifestações de um mesmo tempo, escritas por mulheres e expressivas de uma tópica da falta, que se representa como vazio ou como fome. Considerar as obras em seu contexto de criação e publicação visa ainda a compreender aspectos da representação do autor numa época de valorização do escritor e da literatura.

PALAVRAS-CHAVE:
Clarice Lispector; Carolina Maria de Jesus; falta; representação do autor; autoria feminina

ABSTRACT

In 1960, Francisco Alves Publishing House launched two books that would become essential for Brazilian literature since a postmodernist scenery: Laços de família, by Clarice Lispector, and Quarto de despejo, by Carolina Maria de Jesus. The aim of this article is to approach the two works, despite the differences of literary genre, style and of the issues they raise, as manifestations of a common time, written by women and expressive of a topic concerning lack, which is represented as void or hunger. Considering the books in their context of creation and publication also aims at understanding aspects of the representation of the author in a time when writer and literature were highly appreciated.

KEYWORDS:
Clarice Lispector; Carolina Maria de Jesus; lack; representation of the author; female authorship

E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (Carolina de Jesus, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 37).

Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita.

(Clarice Lispector, 1994LISPECTOR, Clarice. (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994., p. 92).

As frases que servem de epígrafes a este ensaio são, respectivamente, de obras de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector, duas autoras fundantes na literatura brasileira. A primeira, ao associar a favela ao quarto de despejo - em oposição à “sala de visitas”, que é o asfalto, o centro, a cidade reconhecida como tal -, revela a consciência da reificação que a atormenta e desumaniza. Mas Carolina não se limita a sentir, ela grita. Já nos dias que sucederam o do lançamento de Quarto de despejo, o livro foi recebido como “grito de revolta”2 2 “O diário da favelada Carolina Maria de Jesus é um grito de revolta. Um retrato da fome que campeia na favela do Canindé. A linguagem é simples. Sem rebuscamento, sem figuras coruscantes. Cheia de erros. A gramática é despeitada várias vezes. Isso não importa. Carolina tinge-nos em cheio. Grita bem alto, com todas as suas forças. Não conhece meios-termos. É mulher de valor, corajosa, arrojada. Quarto de despejo é um livro forte, vibrante. Segundo Paulo Dantas, Quarto de despejo está fadado a provocar uma revolução social” (LIVROS:..., 1960b). . Por isso, a segunda epígrafe, de Clarice Lispector, soa como continuação da primeira. O que se pretende aqui é aproximar e diferenciar as autoras no que diz respeito à sua necessidade e a seu modo de gritar. Em outros termos, à sua fome de palavra.

A efeméride, em si, justifica uma aproximação: 1960 é o ano de publicação, com a diferença de menos de um mês entre uma e outra, de Quarto de despejo e Laços de família, obras que ora completam 60 anos. O conjunto de contos de Clarice encontra leitores que já a conheciam, pois até essa data ela havia publicado três romances (Perto do coração selvagem, O lustre e A cidade sitiada), contos na revista Senhor, crônicas (sob o pseudônimo de Teresa Quadros) no semanário Comício. Já o diário de Carolina surge como novidade, sendo inclusive tratado como objeto exótico pela imprensa. No entanto, para além da contemporaneidade das obras, é possível a partir delas perseguir uma concepção de literatura e de autoria, problematizar o papel da mulher e suas formas de representação literária e verificar sua participação em um discurso cultural de valorização da literatura e do escritor.

Na edição de 25 de junho de 1960 do Jornal do Brasil, uma nota na mesma seção sobre livros (“Livros: mercado interno”) anuncia o lançamento das duas obras, pela mesma editora:

[...] a Livraria Francisco Alves está agitando os meios editoriais brasileiros. Nas suas duas coleções, Alvorada e Terra forte, a editora tem lançado sistematicamente autores novos. Proximamente editará Laços de família, de Clarice Lispector, e em agosto, inaugurando nova coleção, Contrastes e Confrontos, será lançado o diário da favelada Carolina Maria de Jesus, com apresentação de Audálio Dantas, Quarto de despejo. (LIVROS:..., 1960a)3 3 Cerca de dois meses depois, a mesma seção do Jornal do Brasil (LIVROS:..., 1960b) daria a notícia do sucesso editorial do diário, pois Quarto de despejo tivera 600 exemplares vendidos só no lançamento, dia 19 de agosto, e mais de 5 mil vendidos até então (3 de setembro). .

Num sentido amplo, ambas as obras tratam de miséria - material e moral -, de relações familiares, sociais e humanas, do aprisionamento, de poder, de sexismo e da condição feminina. Num caso, a condição da mulher carioca de classe média, dona de casa que “não tem do reclamar”, uma vez que tem a seu dispor o que há de mais moderno em termos de itens de conforto, eletrodomésticos, é esposa, mãe e feliz, necessariamente4 4 “Necessariamente” porque faz parte do discurso cultural dos anos 1950 a ideia de que as facilidades do lar e a vida doméstica são a representação do homem bem-sucedido e de sua esposa. Sobretudo a propaganda irá difundir a imagem do lar “completo”: homem e esposa felizes, filhos saudáveis e conforto material. As páginas da revista Senhor, em que Clarice publicou vários dos contos presentes em Laços de família, são ricas em anúncios dessa categoria, que apregoam automóveis, eletrodomésticos, itens de decoração. A ideia de felicidade compulsória, cujo reverso é a depressão, foi abordada por Betty Friedan em The feminine mystique. A autora chamou a insatisfação (pessoal, existencial) de “o problema sem nome” (FRIEDAN, 1963 - tradução nossa). . No outro, o drama da luta pela sobrevivência da mãe solteira, catadora de papelão, que se desdobra para arrumar o pão diário para os filhos, na favela do Canindé, em São Paulo. Qualquer síntese nesse sentido corre o risco de ser redutora e enganadora. Do mesmo modo, qualquer comparação soaria arbitrária, até porque há aquilo que não se compara, ponto de vista expresso por Leah Fritz ao tratar de opressão e tirania sofridas por mulheres:

O sofrimento não pode ser medido nem comparado quantitativamente. O que é pior, o ócio forçado e o vazio que levam uma mulher “rica” à loucura e/ou ao suicídio ou o sofrimento de uma mulher pobre que mal consegue sobreviver, mas que de algum modo preserva seu espírito? Não há como medir essa diferença, mas se elas pudessem enxergar uma à outra sem as lentes da classe patriarcal, elas se reconheceriam no fato de serem ambas oprimidas, ambas miseráveis”. (FRITZ apud HOOKS, 2019HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 31)5 5 Embora Fritz se refira prioritariamente à opressão sexista, que não é abordagem adotada neste ensaio, o trecho é pertinente, bem como o são outras passagens do livro de Hooks (2019, p. 31), no que diz respeito às causas da angústia sofrida por mulheres de condições sociais distintas, sobretudo pela mulher pobre e que decorre das incertezas sobre a própria capacidade de sobreviver. .

Bell Hooks irá rebater essa opinião, afirmando que há, sim, que se “medir essa diferença”, já que ela é necessariamente criada por identidades de raça e classe. Assim, um estudo sobre as condições de produção literária dessas autoras teria de considerar essas identidades, de onde certamente emergiriam e se mensurariam diferenças incontornáveis.

No entanto, neste ensaio não se busca uma comparação entre “realidades”. A partir das duas publicações de 1960, almeja-se refletir sobre representações da escrita e de escritoras, em obras justamente tão diferentes. Se as diferenças são salientes, a começar pelos conflitos que a literatura dessas mulheres deixa transparecer e pelas circunstâncias de publicação das duas obras, também é verdade que ambas participaram de um mesmo discurso cultural de valorização da palavra escrita e da literatura. Revisitar essas obras sob essa perspectiva equivale a problematizar: a tradição da literatura de autoria feminina, a representação da mulher, especificamente da mulher que escreve, o campo literário, a necessidade de escrever e as limitações e angústias associadas a ela, as questões de poder - poder feminino, poder da palavra.

Ainda que separadas por distâncias das mais variadas espécies, a literatura de Clarice fala a Carolina e fala de Carolina ao apresentar a dona de casa que “descobre” que há pessoas que passam fome (“Amor”), ou a pigmeia vista como objeto exótico - mas detentora de um tipo de poder (“A menor mulher do mundo”). Do mesmo modo, Carolina fala a Clarice e de Clarice, sobretudo a de Laços de família, quando se apresenta como a mulher que não pode se casar, porque nenhum homem se habituaria a uma mulher que lê e acorda para escrever:

2 de junho [1958] [...]... De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que se deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 49)6 6 Na transcrição de citações de textos de Carolina Maria de Jesus foi mantida a grafia original. .

E, quando falam, falam escritoras, mulheres que, ao lado de suas ocupações e preocupações cotidianas, tomam da palavra para experimentar os limites da linguagem, para viver e sobreviver.

Da fome à fama

Na década de 1950, Clarice sentia seu tanto de exílio fora do Brasil: Maury Gurgel, seu marido, havia sido nomeado para novo cargo diplomático em Washington, em 1952. No mesmo período, isolada em seu barracão, Carolina sofria um bem distinto tipo de exílio, o da exclusão social. A marginalidade se encontra já no título da obra, metáfora que caracteriza a favela como um reduto de desumanização e reificação. Não ter o que comer, ter de sobreviver com restos de comida, muitas vezes estragada; não ter moradia digna, ter de assistir a brigas de casais descritas como grotescas e constrangedoras são causas de dor física e moral. Ainda assim, entre as saídas para catar papelão e as noites maldormidas, havia o momento de dedicação à palavra escrita. Escrever é a brecha para a individuação, a liberdade, a poesia e o sonho. Carolina tem consciência de que escreve um livro realista, mas a escritura se impõe como necessidade, e a linguagem se insurge como criadora de outras realidades:

12 de junho [1958] Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas miserias que nos rodeia. (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 58).

A escrita atua como exercício de subjetividade e como saída de emergência ou escape. Nesse sentido, não só por meio do que ela chama de “fantasia”, mas também como saída efetiva, por meio do reconhecimento. A publicação de seus escritos é antevista como forma de denúncia, ao mesmo tempo que seria o meio de deixar uma posição de quem exclusivamente vê para outra em que se pode ser vista. Ser notada, sair do anonimato, obter algum reconhecimento é dignificar-se.

O início dos relatos de Carolina se dá em 1955. Os registros de seu diário foram descobertos pelo repórter Audálio Dantas, que sobre eles fez uma reportagem, veiculada na Folha da Noite, em 1958, e em O Cruzeiro, em 1959. Em volume, o livro saiu em agosto de 1960 e, em sua terceira edição, já no mês seguinte visto que as duas primeiras haviam se esgotado, com tiragem de 50 mil exemplares. Os números impressionam: a obra de Carolina tem seu sucesso comparado, em termos comerciais, ao do romance Lolita, de Nabokov. Evidentemente, foi o ponto de virada na vida da escritora. A ele, seguiram-se reportagens, entrevistas, homenagens, convites, traduções. Só na revista Manchete, nos cinco meses que vão de agosto, mês do lançamento do livro, a dezembro de 1960, o nome de Carolina aparece em pelo menos quatro números. No Jornal do Brasil, as menções a seu nome e notícias sobre a obra são praticamente semanais, quando não diárias. Espécie de “Cinderela” das letras, até seus filhos se tornam notícia. A edição de número 487 (19/8/1961) de Manchete traz fotografias de Vera Eunice, a filha mais nova, como “hóspede número 1” do enorme e luxuoso Hotel Serrador, no Rio de Janeiro, um dos ícones dos anos dourados. Ali, ela era recebida pelos funcionários para a comemoração de sua crisma, e lhe fora reservada a “suíte das misses”. A ausência de Carolina justifica-se porque ela se encontrava em São Paulo, para o lançamento de seu segundo livro, Casa de alvenaria. Em seu diário, mais de uma vez a autora revela sua dor por não poder presentear Vera Eunice, nem mesmo com um bolo, no dia de seu aniversário. Ironicamente, na comemoração da crisma da menina, ela se encontra cercada por nove funcionários do hotel enquanto parte um bolo, sem, no entanto, contar com a presença da mãe7 7 Essa é possivelmente uma das facetas da escravização a que Carolina viria a se referir, alguns anos depois, já isolada e empobrecida novamente, ao conceder entrevista para a mesma revista. Ela falaria sobre “confusão”, “tortura mental” e do mundo interesseiro que o reverso do sucesso depusera diante de si (RICOSTI, 1973). Sobre a hospedagem de Vera Eunice, ver: Sarmento, 1961. .

A obra foi traduzida para 16 idiomas, vendida em mais de 40 países, e o diário, em que registrava privações e luta pela sobrevivência, é substituído por uma agenda movimentada. Carolina transforma-se não só em autora best-seller, mas em referência: há os que querem “tornar-se Carolina”; a própria favela do Canindé é referida como “famosa” por nela ter morado a “hoje escritora Carolina Maria de Jesus”8 8 Muitas são as ocorrências, na imprensa, que tomam Carolina como referência. Alguns poucos exemplos: “Surgiram Carolinas e Pelés”; a obra de Jorge Mautner resenhada como “coquetel de Carolina Maria de Jesus, Freud e Sartre”; determinado escritor, também marginalizado, não chega a ser “uma Carolina”. .

A saída da favela se dá pela escrita. No êxodo, Carolina deixa a fome para trás e tem a fama à frente. A atriz Ruth de Souza, que representou Carolina no palco, adverte a escritora sobre o pacto fáustico a que ela estaria submetida:

Lembre-se Dona Carolina Maria de Jesus: não se recebe nada sem dar alguma coisa em troca. A fome que você tinha lhe dava a liberdade total de ser favelada. Realizado o seu sonhado sonho de muitos anos, de sair da favela, ver seu livro publicado (que lhe deu um sucesso inesperado), você assumiu obrigações para com seu público, seu descobridor, seu editor, e ainda, o mais importante, seus filhos. [...] O sucesso exige sacrifícios e muita paciência. É claro que a realização de um ideal escraviza. As mais famosas criaturas do mundo, negros e brancos, têm a mesma escravidão que a sua. Mas elas não reclamam. (Ruth de SOUZA apud BARCELLOS, 2014BARCELLOS, Sérgio. Arquivando Carolina. In: JESUS, Carolina Maria de. Onde estaes Felicidade?. . Carolina Maria de Jesus/Dinha e Rafaella Fernandes, organizadoras. São Paulo: Me Parió Revolução, 2014., p. 115 e 116).

Paronomásticas deusas perversas, Fome e Fama foram suas companheiras. A primeira, cujo nome grego Limós se aproxima de loimós (“peste”), é filha da Discórdia. Virgílio a situa ao lado da Velhice, do Medo e da Pobreza. A segunda, cujo nome significa divulgação, revelação através da palavra ou de um sinal, é personificada como quem amplifica e divulga tudo o que ouve. Supervisiona o mundo estando cercada por Credulidade, Erro, Falsa Alegria, Terror e Falsos Boatos (BRANDÃO, 2014BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 255 e 266). O caminho trilhado vai do anonimato à superexposição, vale dizer, da falta ao excesso.

Não faltou quem explorasse a fama do “caso” Carolina. Muitas das notícias acerca de seu sucesso adotaram linguagem sensacionalista, sobretudo ao reforçarem indefectivelmente a condição de “favelada” ou “ex-favelada”. Uma resenha de outubro de 1960 trata do oportunismo de quem a promove, e a define como “um pequeno animal da palavra” (AYALA, 1960AYALA, Walmir. O diário de uma favelada. Jornal do Brasil, n. 231, 1o out. 1960, p. 7. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/10518. Acesso em: 9 fev. 2020.
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). O discurso da imprensa deixa entrever a ideia de exotismo, separando impiedosamente a autora da obra, como se fosse importante/preciso “ler Carolina”, e não sua literatura. A situação de penúria, 13 anos depois do lançamento de Quarto de despejo, é comparada com o auge de ter estampado uma página inteira da revista Time. É quase possível ver, nos leitores dos periódicos que tratavam do “pequeno animal da palavra”, as famílias lendo o jornal de domingo e se deparando com a “exótica” Pequena Flor, personagem do conto “A menor mulher do mundo”, de Laços de família. A grandeza da pigmeia de Clarice reside em seu amor cru; a de Carolina, em sua escrita crua, que tem de ser lida como palavra, e não só como vida; como fim, e não só como meio.

Laços: lassos

Laços de família é um volume de treze contos, publicados em julho de 1960, mas que vinham sendo escritos desde anos anteriores. “Amor”, “Os laços de família”, “O jantar”, “Começos de uma fortuna”, “Mistério em São Cristóvão” e “Uma galinha” compunham Alguns contos, 1952. Outros vieram a público na revista Senhor, em 1959 (“A menor mulher do mundo”, “O crime do professor de matemática” e “Feliz aniversário”) e 1960 (“A imitação da rosa” e “O búfalo”).

Os amigos Paulo Mendes Campos e Rubem Braga sempre foram entusiastas dos contos de Clarice. Fernando Sabino via neles obras de arte. A linguagem desconcertante, as situações incômodas flagradas no cotidiano mais familiar e, supostamente, conhecido, os encontros consigo mesmo, desencadeadores de prazer e dor - serão os elementos imediatamente reconhecidos como inovadores no livro da autora, que passara a década de 1950 nos Estados Unidos; voltar ao Brasil e publicar na Senhor foi uma espécie de reencontro com o público. O retorno ocorre logo após a separação de Maury Gurgel, em junho de 1959. Não foram tempos tranquilos, material e emocionalmente falando, mas a colaboração regular em Senhor, desde o primeiro número da revista, contribuiu para que Clarice se reinserisse na cena literária brasileira. A autora reconhece que conquistou em Senhor um público significativo: “Na revista Senhor, por exemplo. Todo mês publicavam uma coisa minha. Em termos de popularização talvez tenha sido muito importante” (apud GOTLIB, 1995GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995., p. 310). Ela colaboraria em outros periódicos, mas Senhor era o que havia então de mais moderno em termos de linha editorial e design gráfico, de modo que o público leitor da revista era de intelectuais, artistas, formadores de opinião, em geral. Em pouco tempo, não só a revista valoriza Clarice, como também ela valoriza a revista:

Carlos Scliar, que trabalhou com Clarice na revista, confirma a importância da passagem da escritora por lá: “A partir de 1959, na revista Senhor, ela passou a conviver conosco, no permanente interesse da nossa equipe. Em torno dela havia unanimidade. Creio que a revista teve papel importante numa espécie de relançamento, de redescoberta de Clarice para uma importante faixa de público”.(GOTLIB, 1995GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995., p. 310).

Os contos de Laços de família põem em cena, em vários momentos, a figura da mulher limitada ao papel de dona de casa. A palavra “limitação” tem estreita relação com os “laços”, no título, que evocam união sem deixar de sugerir amarras, prisão. E é exatamente esse o ponto problemático de intersecção tocado por Clarice. O laço familiar vincula, mas também constitui um “nó”, algo que amarra, dificulta. Na sua etimologia, a palavra tem relação com laço para caça (laqueus), o que remete a cilada, armadilha. Estas podem ser os vínculos familiares, propriamente ditos, mas também sua pedagogia: o aprender desde sempre o amor familiar, a necessidade de amar, perdoar, conciliar, fazer convergir. Daí que encontrar mais amor entre os animais, no zoológico, é uma cilada para quem quer aprender o ódio; mergulhar na opulência sensorial do Jardim Botânico, uma emboscada, para quem é agente e vítima da assepsia do lar - situações vividas pelas protagonistas de “O búfalo” e “Amor”, respectivamente.

Ao mesmo tempo que evocam união e limitação, os laços são também aquilo que enfeita. Como se sabe, a autora não tem pudor em desnudar o que é pura convenção, adorno que encima e amacia as relações e os lares, mas que, num exame minimamente mais profundo, revela desarmonia. É o caso do conto “Feliz aniversário”: os laços tentam manter sua aparência de enfeite, mas, quando afrouxados pelo desprezo de Anita, materializado em gesto de seu cuspir no chão, escancaram mediocridade, desalento e vazio.

Já o conto “Amor” trata do laço familiar que une e prende até o ponto de cegar, sendo a cegueira a metáfora da alienação. Paradoxalmente, é preciso ver um cego para se lembrar como se enxerga. É preciso cortar o fio, quebrar o ovo, sofrer um tranco, para sair da inércia imposta pelo cotidiano. Conhecidas, essas são imagens de ruptura presentes a partir do tranco dado pelo bonde em que Ana, a dona de casa “meio satisfeita”, se encontrava: o saco de tricô cai e se rompe; os ovos se quebram e “estar num bonde era um fio partido”9 9 A ideia de ruptura total se manifesta numa gradação crescente, pois parte da imagem da sacola e dos ovos que ruíram, passando pelo “fio partido” que era estar no bonde, até chegar a “Mas o mal estava feito”, tradução da ideia de irreversibilidade (LISPECTOR, 1991, p. 33). . O cortar, o romper, o partir remetem a laço, pois desfazer o laço ou cortar a fita é imagem simbólica de inauguração, fundação, início - ou reinício. É preciso romper com o automatismo e perder-se para então encontrar algo de si que se encontrava soterrado. O corte é perda, mas também liberdade, nauseante, vertiginosa, por implicar, em sentido sartriano, ação ou compromisso. A ruptura é perda e ganho; perda e perdição. No entanto, a despeito de toda a expectativa de irreversibilidade que se cria, algo mais poderoso que a força de ruptura se manifesta, que é a convocação feita pelo lar e pelos laços. É preciso que haja a volta, pois eles ainda existem, e exigem ser refeitos, reapertados. Esse movimento é o da volta ao lar, à rotina ou “destino de mulher”. Ligia Chiappini (2003CHIAPPINI, Ligia. Mulheres, galinhas e mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (org.). Vozes femininas: gêneros, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: 7Letras/Fundação Casa de Rui Barbosa, 2003.) considerou principalmente o conto “A galinha”, de Laços de família, para nele ver o voo desastrado da galinha como alegoria da condição feminina. Presa, limitada aos afazeres domésticos, dedicada exclusivamente ao marido e aos filhos, a mulher se arrisca na rua, tenta um “voo” para fora dos limites do lar. Lembra-se de coisas esquecidas, como se fosse uma descoberta, lembra-se da existência do mundo, de que existe quem passa fome, e de quem era ou é, para seu êxtase e sua náusea. Mas retorna e, a julgar pelo que ocorre com a galinha, transformada em almoço, é dada em sacrifício - para o bem da família.

Em Laços de família, a figura masculina aparece comumente associada à do marido, e este, à imagem daquele que protege, contém ou prende: enlaça. Em “A imitação da rosa”, Laura se protege do descontrole e da desrazão na atonia (e monotonia) de seu vestido marrom e nas obsedantes listas de dizeres e afazeres. Não bastasse, ainda conta com a proteção-controle do marido, Armando, cujo nome, além de significar “homem de armas”, ainda evoca o gerúndio de armar e, portanto, de armadilha (o laço de caça, laqueus). Em “Amor”, o marido de Ana também será aquele pronto a proteger a esposa, “afastando-a do perigo de viver” (LISPECTOR, 1991LISPECTOR, Clarice. (1960). Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991., p. 41), quando esta retorna ao lar apolíneo depois de excursionar por um mundo orgânico e dionisíaco. A portuguesa de “Devaneio e embriaguez de uma rapariga” é aquela que vai embriagada até a Praça Tiradentes: “embriagada, mas com o marido ao lado a garanti-la” (LISPECTOR, 1991, p. 20).

Vale lembrar que no título Laços de família, além da referência à união/prisão presente em “laços”, encontra-se a ideia de servidão. Se família tem a mesma origem de fâmulo, criado, do latim famulus, servo, escravo, o vínculo familiar, quando responsável pela privação da liberdade individual, transforma-se em um tipo de servidão10 10 O termo “família” é registrado, em Inocência, do Visconde de Taunay, como designador das filhas - e não dos filhos - em uma fazenda ou propriedade, o que reforça a ideia de que a mulher é aquilo que pertence, como os escravos, ou serve, como os criados: “- Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quanto via menina tomar corpo, tratei logo de casá-la. [...] ...porque os pais devem tomar isso a si para bem de suas famílias, não acha?”. “Eu estou estabelecido na Mata do Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, três machos e duas famílias, estas casadas e que me deram netos.” (TAUNAY, 1972, p. 49 e 77). Nos dois casos, o termo “famílias” é grafado em itálico e explicado em nota pelo próprio autor. .

Por outro lado, em Quarto de despejo, são escassas as ocorrências do termo “família”. Há casais, casais com filhos, mães ou pais com filhos. Longe da preocupação com uma aparência de harmonia, estão as brigas que ocorrem às vistas de todos. Existe, é claro, a “servidão” de Carolina em relação à condição degradante da vida na favela, mas não a noção de escravização no que diz respeito a uma imagem de família que prende, no sentido de impedir que ela seja “ela mesma”. Se a mulher de classe média tem no marido a figura ambígua do protetor e do limitador, quando não do opressor e, por isso, tende a ver nos laços familiares a imagem da prisão, o mesmo não costuma ocorrer com a mulher pobre. Para ela, a família acaba por ser o espaço, talvez único, de acolhimento ou pertencimento. Família adquire conceito elástico, a começar pelo fato de que, com frequência, prescinde-se do marido. É esse o caso de Carolina, que vive com seus três filhos e manifesta desprezo pela figura marital. Ela tem orgulho de sua capacidade de resolver problemas e enfrentar agruras sozinha. Trata-se de uma ausência, a de um “marido”, que em contrapartida empodera, já que a ela cabem as decisões:

8 de novembro [1958] [...]

Eu puis o colchão dentro do guarda-roupa. Piorou. Os homens da Light olhavam a minha luta. E eu pensava: para olhar eles prestam. Pensei: eu não vim ao mundo para esperar auxilios de quem quer que seja. Eu tenho vencido tantas coisas sosinha, hei de vencer isto aqui!. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 135).

A tomada de decisão tem diretamente a ver com a preocupação com a sobrevivência e o provimento dos filhos11 11 “As mulheres da classe trabalhadora têm sido obrigadas a empregar todas as suas forças em prol da sobrevivência e, de um modo geral, a assumir responsabilidades pela vida de outras pessoas. Enquanto a maior parte das mulheres ainda possui elementos dessa força dentro de si, muitas simplesmente não tiveram que desenvolvê-las por conta do conforto e da segurança econômica em que vivem. [...] Os modelos de força da classe média são predominantemente os homens, e força aqui significa normalmente poder. As mulheres da classe trabalhadora, especialmente as não brancas, raramente têm a chance de depender de alguém para tomar suas decisões e se manter. O processo de assumir o controle de suas vidas e de influenciar pessoas à sua volta lhes dá uma grande experiência em termos de tomada de decisão, e isso num sentido bem básico: o da sobrevivência. Essa tomada de decisão se torna parte daquilo que constituiu um autoconceito acerca de si mesmas” (KAREN Kollias, “Class realities: create a new power base”, apud HOOKS, 2019, p. 136). . Se a fome própria causa fraqueza e tonturas, a dos filhos leva ao desespero. As passagens mais lancinantes de Quarto de despejo são aquelas em que Carolina flerta com o suicídio, em especial quando cogita tirar, além da própria vida, a vida das crianças. A atitude exemplifica o poder - que, paradoxalmente, decorre de limitação e impotência - da tomada de decisão, inclusive sobre a vida deles. O corte dos laços que, no caso, não são só os familiares, chega ao paroxismo da interrupção do “fio que também se chama vida” (MELO NETO, 1994MELO NETO, João Cabral. Morte e vida severina (1956). Em: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 202).

Pão e palavra

Já se disse que, em Quarto de despejo, a fome é a protagonista, onipresente e determinante para o estado de espírito de Carolina. Morar num lugar insalubre e indigno deprime, mas é a fome que leva ao desespero de quem sente os sintomas da inanição e a impotência para alimentar os filhos, o que constitui a mais áspera sensação de morte. Em relação antitética com o par fome/morte, encontra-se a escrita: diária, necessária e vital. Se praticamente não há dia em que Carolina se veja às voltas com o que arranjar para si e para alimentar os filhos, também não o há em que deixe de se referir à atividade de ler ou escrever. Nesse sentido, ela faz da palavra seu alimento, “pão de cada dia”12 12 Na oração que teria sido ensinada por Jesus (Matheus, 6:9-11), pedir o pão de cada dia é, por um lado, entendido como a preocupação com a satisfação imediata das necessidades do corpo, com a sobrevivência num sentido de modéstia, frugalidade, gratidão; por outro, pode referir-se à Palavra de Deus, como aquela que alimenta o espírito. .

A palavra como alimento é encontrada tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Em Deuteronômio, 8:3, lê-se que “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”, o que é reafirmado em Mateus, 4:4, e Lucas, 4:3. A palavra como alimento para o espírito comparece nos registros de Carolina em suas menções à leitura, sendo os livros a superfluidade de sua predileção.

A palavra tem poder e é expressa não só como satisfação de uma necessidade vital, mas também como arma:

1 de junho [1958] [...]

Dia 1 de janeiro de 1958 ele [Vitor, um “valentão”] disse-me que ia quebrar-me a cara. Mas eu lhe ensinei que a é a e b é b. Ele é de ferro e eu sou de aço. Não tenho força fisica, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 48)13 13 A fala de Carolina evoca ainda a Bíblia: “Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus 4:12); “Usem o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Efésios 6:17). .

Mas é evidente que sua premência é o escrever, é o registro escrito da palavra. À medida que sai de sua mente, de sua boca e por fim de sua pena, tornando-se escrita, é que a palavra dota a autora de voz, fenômeno de que ela tem completa consciência, inclusive do alcance que essa voz pode adquirir ao representar outras vozes. Voz equivale ao “grito” da epígrafe de autoria de Clarice, o qual, uma vez emitido, faz do ser reificado e anônimo um sujeito que existe e interfere na realidade. Esse grito também se faz presente, vale lembrar, em um dos treze títulos de A hora da estrela (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.), “O direito ao grito”, sendo que, no derradeiro romance de Clarice, um narrador, que por sua vez é personagem-escritor, atua como porta-voz do grito da migrante excluída e sem voz, que é Macabéa. A “voz” ou o grito, portanto, só são “ouvidos” quando lidos, quando investidos de um lugar social, o da literatura, associado a poder. Em Quarto de despejo, Carolina prescinde de porta-voz, e sabe que a literatura se constitui como meio de sobreviver à marginalidade - outorgando-lhe individualidade e dignidade - e dela emergir.

O registro escrito da miséria implica uma reflexão sobre a linguagem que, de outro modo, dificilmente se faria. Carolina tem consciência aguda da nomeação como fator alienante. Sabe que não pode dizer “voltar para casa”, sem ter uma: “... Cheguei na favela: eu não acho geito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão” (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 47).

Mostra-se também atenta ao fato de estar escrevendo uma narrativa que, por sua vez, pressupõe a existência de leitores: “16 de outubro [de 1958] ... Vocês já sabem que eu vou carregar agua todos os dias. Agora eu vou modificar o inicio da narrativa diurna, isto é, o que ocorreu comigo durante o dia” (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 125).

A palavra tem, portanto, papel paliativo por ser desabafo solitário e alívio para a angústia, mas tem “a potência de poder” de vir a público e tornar-se voz no campo literário, o que pressupõe eternização (uma vez que é escrita) e instrumento de denúncia. As duas consequências se vislumbram nas expectativas da autora. Tanto que os políticos são alvos frequentes das críticas de Carolina. Ela desnuda todo um esquema de cooptação da população pobre para fins eleitorais, e seu posterior abandono. Revolta-se contra o descaso, a hipocrisia, a distância em relação à realidade dos mais pobres. Um dos mais criticados por ela é Juscelino Kubistchek, presidente do Brasil de 1956 a 1961, anos que, grosso modo, coincidem com os do registro do diário:

19 de maio [de 1958] - ... O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos ouvido. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 35).

20 de maio [de 1958] - ... Quando cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me:

− Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.

Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:

− É que eu tinha fé no Kubstchek.

− A senhora tinha fé e agora não tem mais?

− Não, meu filho. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 39).

1 de julho [de 1958] - [...] Depois fui catar mais papeis. Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele ainda não cortou os cabelos. Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será que ele chorou? Ou está com vontade fumar ou está com fome! Coisas tão comum aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros uniformes para os carteiros. [...]

Eu não gosto do Kubstchek. O homem que tem um nome esquisito que o povo sabe falar mas não sabe escrever. (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 78)14 14 Essa última entrada do diário deixa entrever a valorização da palavra escrita: Carolina não gosta de um presidente cujo nome “esquisito” o povo “sabe falar mas não sabe escrever”. .

O poder da palavra - de dar visibilidade à autora anônima e tirá-la, ainda que momentaneamente, da situação de penúria - é representado no campo cultural, que corrobora a trajetória de Carolina da margem ao centro. Em uma nota da seção de leitores de Manchete, sugere-se que a revista faça uma reportagem intitulada “Esses mineiros...”. O texto situa lado a lado Pelé, João Guimarães Rosa, Grande Otelo, Ivon Cury, Carolina Maria de Jesus e, entre outros mineiros, justamente Juscelino Kubitschek, como personalidades assíduas nas páginas da revista em todo o segundo semestre daquele ano (1961). Carolina passa de “ex-favelada” e crítica do presidente da república a “celebridade mineira” ao lado dele, que era então senador15 15 “Sugerindo o título acima [“Esses mineiros...”] para encabeçar uma reportagem, Osmar Muniz Pimentel e Geraldo de Souza, de São Paulo, dizem que ‘Manchete bem poderia publicar matérias sobre alguns mineiros infernais desta República’. Citam como exemplo: Pelé, Carolina Maria de Jesus, Guimarães Rosa, Ary Barroso, Teresa Souza Campos, Marechal Lott, Senador JK, Ivon Cury, Grande Otelo, Vitor Nunes Leal e muitos outros. Se os leitores prestarem atenção aos números pulicados nos últimos seis meses, encontrarão todas essas personalidades” (O LEITOR..., 1961). .

Bell Hooks (2019HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.) dá início a seu Teoria feminista definindo o que significa estar à margem: é fazer parte de um todo, estando fora do corpo principal. Ter acesso ao centro, muitas vezes nele exercer ocupações mal remuneradas, sem pertencer jamais a ele, tendo de sempre cruzar a fronteira de volta à margem. A definição vem ao encontro da alegoria da cidade como uma casa, usada por Carolina: estar na favela é fazer parte do todo, que é a casa, desde que se limitando ao “quarto de despejo”, ou seja, fora de seus espaços centrais ou valorizados, equivalentes à “sala”. Na sequência, Hooks afirma que a condição de marginalidade propicia não só um olhar de fora para dentro, mas também, no sentido contrário, de dentro para fora: vê-se a margem a partir do centro, e o olhar de mão dupla favorece a apreensão da existência de duas realidades. Mais uma vez, a definição se aplica ao caso de Carolina e sua forma de engajamento na luta pela diminuição da distância entre elas. Assim é que ela não só demonstra empatia pelo sofrimento dos moradores da Favela do Canindé, como também se mostra disposta a ser a porta-voz da situação. Trata-se de uma consciência e uma compreensão da existência do outro: “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta os que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros” (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 36).

A visão abrangente implica não só a atitude empática, como também a postura contestadora. Nas palavras de Hooks:

Nossa [das mulheres marginalizadas] sobrevivência depende de uma conscientização pública contínua da separação entre margem e centro e de um contínuo reconhecimento provado de que nós somos uma parte necessária, vital, desse todo.

Esse senso de inteireza, gravado em nossas consciências pela estrutura de nossas vidas cotidianas, haveria de nos prover de uma visão de mundo contestadora - um modo de ver desconhecido de nossos opressores - que nos sustentava, ajudando-nos em nossa luta para superar a pobreza e o desespero, fortalecendo nossa percepção de nós mesmas e nossa solidariedade. (HOOKS, 2019HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 23).

Assim é que Carolina valoriza a cidadania: vai à Assembleia “para observar os políticos” e faz questão de votar, apesar da dificuldade de se deslocar ao local de votação, e, a despeito da proibição de se levarem crianças, ela vai com Vera Eunice por não ter com quem deixá-la.

Fome, falta, vazio

Em grande parte dos contos de Laços de família, as protagonistas, mulheres de classe média, pertencem ao centro e dificilmente olham “de dentro para fora”; de fora para dentro, nunca. Pode-se dizer mesmo que seu olhar, endógeno, ocorre “de dentro para dentro”, pois orbita no espaço doméstico. A manutenção de papéis predeterminados e de uma condição de conforto tem o seu reverso na perda da identidade e na alienação de si. Por isso, o lar “moderno” não o é tanto assim, uma vez que reproduz uma ordem androcêntrica, na qual a condição da mulher é dissimétrica em relação à do marido. Em O Seminário II (O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise), Lacan (1995LACAN, Jacques. Seminário II - O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.), discorrendo sobre casamento e fidelidade a partir de Lévi-Strauss, ressalta que a mulher, ainda que numa comunidade de linhagem matriarcal, tende a subordinar-se a uma ordem androcêntrica, que faz dela o objeto de troca nas relações matrimoniais. Essa mesma ordem também se faz presente nas relações conjugais em que a paz no lar é obtida às custas do papel de mãe que a esposa assume em relação ao marido, o qual, por sua vez, assume papel de filho16 16 Nessa análise, feita por Jacques Lacan, o termo usado também é “laços”, como se vê tanto na tradução quanto no original (“liens”): “É um fato que, bem entendido, não deixou de receber corretivos de todo tipo no decurso da história, mas que nem por isto deixa de ser fundamental, e que nos permite entender em particular a posição dissimétrica da mulher nos laços amorosos, e muito especialmente em sua mais eminente forma socializada, isto é, o laço conjugal” (LACAN, 1995, p. 330). No original: “C’est un fait, et qui bien entendu, n’a pas manqué, au cours de l’histoire de recevoir toutes sortes de correctifs, mais dont le caractère fondamental, à être négligé, nous empêche de comprendre toutes sortes de choses, et en particulier la position tout à fait particulière, dissymétrique, dans les liens amoureux, et tout spécialement dans sa forme socialisée la plus éminente, à savoir le lien conjugal” (LACAN, 1954-55). .

A identificação consigo mesma, a coincidência com o “eu” será encontrada, quando não avidamente buscada, no outro, muitas vezes no espaço público, a partir de um olhar que arrisca o passo centrífugo, alarga-se e conduz a epifania, crise, náusea. Descobre-se que o que se procura ou se encontra no outro, na verdade, reside no próprio sujeito. Esse “outro” acaba por revelar-se espelho: ver o cego mostra a Ana sua cegueira. Ver o búfalo desperta na protagonista seu ódio. Ver a “clareira” deixada pelas rosas promove a acareação entre Laura e seu vertiginoso vazio. Dar-se conta da falta é o que as constitui como sujeitos, pois se trata de uma “falta de ser”: não falta de um objeto, de algo de categoria material ou passível de nomeação, mas da percepção de uma falta que leva à percepção de si17 17 “O desejo é uma relação de ser com falta. Esta falta é falta de ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém falta de ser através do que o ser existe [...]. O desejo, função central em toda experiência humana, é desejo de nada que possa ser nomeado. É, ao mesmo tempo, este desejo que se acha na origem de qualquer espécie de animação. Se o ser fosse apenas o que é, não haveria nem sequer lugar para se falar dele. O ser se põe a existir em função mesmo desta falta. É em função desta falta, na experiência de desejo, que o ser chega a um sentimento de si em relação ao ser” (LACAN, 1995, p. 280 e 281). Sobre essa tópica, ver também: Plastino, 2008. . Aí reside a importância dos momentos epifânicos de vazio, pois eles implicam enxergar uma situação de vazio interior.

A já mencionada mulher do casaco marrom, de “O búfalo”, “que só aprendera a amar, a amar, a amar” (LISPECTOR, 1991LISPECTOR, Clarice. (1960). Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991., p. 163), é um ser tão educado pelo amor que precisa “aprender” o ódio, jornada que se realiza no zoológico. Antes de encontrar o búfalo, cujos olhos serão seu espelho, ela dilui ou neutraliza o amor no vazio, representado pela brancura da “coisa branca que se espalhara dentro dela, branca como papel” (LISPECTOR, 1991, p. 166). A fome a ser saciada é falta: do outro que se é, do avesso do amor desde sempre aprendido e exercido, do desconhecido, do estranho. O desacordo em relação a si, as mentiras que se criam, a adequação às convenções são formas de deslocamento e alienação que criam o paradoxo entre estar socialmente no “centro” (representado pelos confortáveis apartamentos cariocas) e existencialmente descentrado.

Em oposição ao casaco (“O búfalo”) e ao vestido marrom (“A imitação da rosa”), ser colorida, original, exótica, ociosa, é tabu no mundo das mulheres de Laços de família. Quebrar o decoro, ousar, é esquisitice, efeito de embriaguez, loucura, senilidade, ou primitivismo, como a pigmeia de “A menor mulher do mundo”, que sem pudor se coça “onde uma pessoa não se coça”. O normal, socialmente aceito, é ser a “galinha de domingo”; ser, como Laura, a “galinha indefesa”, ou, sob a ótica do marido, “chatinha, boa e diligente, a mulher sua” (LISPECTOR, 1991LISPECTOR, Clarice. (1960). Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991., p. 54 e 67 - grifos nossos)18 18 O pronome possessivo posposto enfatiza, justamente, a ideia de posse. O diminutivo sugere um limite de aceitação, de até onde a “chatice” pode chegar, sem prejuízo da “diligência”, da ponderação, do servir. . Em outros termos, é não poder sentir falta e, conseguintemente, não poder ser quem se é.

Em contrapartida, Carolina presentifica a imagem da mulher que se assume como “exótica” ao devanear e revelar seu olhar poético: “... A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (JESUS, 2014aJESUS, Carolina Maria de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014a., p. 32) - registro de 15/5/1958. Aqui se prescinde dos estados de exceção, representados pela loucura e embriaguez, em favor de um “estado poético”, aquele que permite que a subjetividade “se permita” (BACHELARD, 1988BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 15)19 19 Para Bachelard, esse estado é o devaneio, que “poetiza” o sonhador. O “devaneio cósmico”, especialmente, é aquele que o coloca num mundo, e não numa sociedade. É possível ver esse movimento de se encontrar, por um momento, não numa sociedade (injusta, excludente), e sim num mundo, na poesia de Carolina ao querer um vestido feito “de céu”. Até as imagens empregadas por ela são de natureza “cósmica”. .

Clarice experimentou a condição de centralidade, seja como “esposa do diplomata”, tendo de cumprir formalidades, atender a compromissos e viajar por obrigação, seja como escritora consagrada. Mas sempre manteve um olhar atento ao risco de reificação escravizante. Em carta às irmãs, fala da condição de “casada com diplomata”, que a obrigava a “preencher um papel”. Anos depois, obtida a popularidade extra como cronista do Jornal do Brasil, confessa sonhar com o anonimato. Sempre intuiu a sensação de exílio existencial, desenvolvendo a consciência dos perigos dessa “centralidade”, e da necessidade de dela manter uma distância, por assim dizer, gauche (GOTLIB, 1995GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995., p. 305 e 312).

Para Carolina, a condição marginal é compulsória. A saída da margem, por um lado, nunca se deu integralmente: sempre chamada de “(ex-)favelada” e estando no limite de voltar a ela, seu caminho foi ironicamente análogo ao movimento de ida e volta de certas personagens de Laços de família, com a diferença de que estas saem para ser, enquanto Carolina “é” mesmo sem sair, no sentido de ter plena consciência do que lhe falta. Por outro lado, houve uma saída tornada possível pela escrita. Carolina pôde existir por meio da voz que instituiu para si na literatura. Como se viu, Quarto de despejo foi considerado uma “revolução”. O mesmo se pode dizer de Laços de família, em que uma nova pedagogia do olhar é posta em cena problematizando um suposto “amor feminino” incondicional. A ruptura, decisiva na economia narrativa dos contos, corresponde à quebra que se dá no nível das percepções das personagens, no revolver de camadas sedimentadas: revolução.

No ano seguinte ao da publicação de Laços de família, Clarice lançou A maçã no escuro. Dessa vez, a revista Manchete não só endossa o lugar de relevo da escritora (sua “alta e singular posição”), como também discorre sobre o preço do exemplar. O lamento é pela inacessibilidade do livro num momento em que a literatura vivia o auge de um movimento de boom, iniciado algumas décadas antes20 20 De fato, a década de 1950 havia sido profícua em publicações literárias, expansão que vinha ocorrendo desde as décadas anteriores. Desde 1930, sobretudo a partir da projeção do romance e do regionalismo, o cenário fora de “surto editorial”, expressão encontrada no ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, de Antonio Candido (1985, p. 126), e no capítulo “Os intelectuais e o Estado”, de Sérgio Miceli (2001, p. 193). . A matéria, assinada por Paulo Mendes Campos (1961CAMPOS, Paulo Mendes. A autora mais cara do ano. Manchete, n. 485, 5 de agosto de 1961, p. 42-43. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/004120/40369. Acesso em: 9 fev. 2020.
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), intitula-se “A autora mais cara do ano”. Depois de resumir parte da trajetória de Clarice até então, ele noticia a indignação do público diante do preço de A maçã no escuro, justamente quando a literatura começava a “atingir o grande público”. Segundo ele, os editores estariam “cortando o bem pela raiz”. Como desfecho, a matéria traz o que Mendes Campos chama de “um esplêndido diálogo” entre Clarice e Carolina:

− Como você escreve elegante!

− E como você escreve verdadeiro, Carolina!

Nas palavras de Campos, Clarice era fã de Carolina, e escrever “verdadeiro”, uma aspiração sua. Por outro lado, escrever “elegante” era um ideal de Carolina, como atesta a atração pelo léxico vernaculizante, forma de “literarizar” sua escrita21 21 Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2019, p. 396) analisam esse aspecto do estilo de Carolina, mostrando como ele vai na contramão da “tradição modernista”, por assim dizer. O resultado é um hibridismo do qual ela possivelmente não teria plena consciência, mas que atua como mais uma entre outras infrações promovidas por sua escrita. . Muito cedo, intuíram as potencialidades da palavra e no mesmo ano, 1977, vieram a falecer. Entre as duas pontas da vida, seguiram por caminhos muito diferentes, mas traduziram o que é se ver às voltas com a falta, sob a forma da fome e do vazio.

A crise no mercado editorial, de que Paulo Mendes Campos tratava em 1961CAMPOS, Paulo Mendes. A autora mais cara do ano. Manchete, n. 485, 5 de agosto de 1961, p. 42-43. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/004120/40369. Acesso em: 9 fev. 2020.
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, prenunciava outras. Três anos depois dar-se-ia o golpe militar, instaurando uma ditadura a impor censura e perseguições, logo prisões e tortura. Carolina não tomou parte dos movimentos populares de cultura e alfabetização, que viriam a ser desmantelados pelo governo militar, mas desbastou sozinha a senda do analfabetismo que tinha diante de si por saber que a palavra escrita e consciência andam juntas. Na edição de 7/7/64 do Correio da Manhã, um leitor escreve expondo sua dúvida, que é também uma angústia: ele tem alguns livros em casa e soube que alguns dos títulos foram proscritos pelo regime (APREENSÃO de..., 1964). Soube ainda que possuidores de tais livros foram presos pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e tachados de subversivos “pelo simples fato de terem esses livros em suas estantes”, e ele não quer correr esse risco. Entre os livros apreendidos, encontram-se Guerra e paz, A cabana do pai Tomás, Os miseráveis e ... Quarto de despejo. “Unanimidade nacional do contra” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2019LAJOLO, Marisa: ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 399), o livro de Carolina figura entre os livros proibidos. Como costuma ocorrer com aqueles cujos autores “escrevem verdadeiro”.

Referências

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  • AYALA, Walmir. O diário de uma favelada. Jornal do Brasil, n. 231, 1o out. 1960, p. 7. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/10518 Acesso em: 9 fev. 2020.
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  • LACAN, Jacques. Le moi: 1954-55. Ce document de travail a pour sources principales : - Le moi..., sur le site E.L.P. (sténotypie). - Le moi..., document au format «thèse universitaire». Disponível em: http://staferla.free.fr/S2/S2%20LE%20MOI.pdf Acesso em: 8 fev. 2020.
    » http://staferla.free.fr/S2/S2%20LE%20MOI.pdf
  • LACAN, Jacques. Seminário II - O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
  • LAJOLO, Marisa: ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
  • LISPECTOR, Clarice. (1960). Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
  • LISPECTOR, Clarice. (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
  • LISPECTOR, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
  • LIVROS: mercado interno. Jornal do Brasil, n. 148, 25 de junho de 1960, Suplemento Dominical, p. 8. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/6623 Acesso em: 8 abr. 2020.
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  • LIVROS: mercado interno. Jornal do Brasil, n. 208, 3 de setembro de 1960, Suplemento Dominical, p. 8. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/9503 Acesso em: 8 abr. 2020.
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  • MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2012.
  • MELO NETO, João Cabral. Morte e vida severina (1956). Em: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • O LEITOR em Manchete. Esses mineiros. Manchete, n. 503, 9 de dezembro de 1961. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/004120/42405 Acesso em: 8 abr. 2020.
    » http://memoria.bn.br/DocReader/004120/42405
  • PLASTINO, Gilda. O discurso da falta em Clarice Lispector: Laços de família. Osasco: Edifieo, 2008.
  • SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.
  • TAUNAY, Visconde de. (1872). Inocência. São Paulo: Editora Três, 1972.
  • 2
    Alguns trechos deste artigo foram publicados em “Os laços que unem Clarice e Carolina” (Quatro cinco um: a revista dos livros, 1o de agosto de 2020).
  • 2
    “O diário da favelada Carolina Maria de Jesus é um grito de revolta. Um retrato da fome que campeia na favela do Canindé. A linguagem é simples. Sem rebuscamento, sem figuras coruscantes. Cheia de erros. A gramática é despeitada várias vezes. Isso não importa. Carolina tinge-nos em cheio. Grita bem alto, com todas as suas forças. Não conhece meios-termos. É mulher de valor, corajosa, arrojada. Quarto de despejo é um livro forte, vibrante. Segundo Paulo Dantas, Quarto de despejo está fadado a provocar uma revolução social” (LIVROS:..., 1960b).
  • 3
    Cerca de dois meses depois, a mesma seção do Jornal do Brasil (LIVROS:..., 1960b) daria a notícia do sucesso editorial do diário, pois Quarto de despejo tivera 600 exemplares vendidos só no lançamento, dia 19 de agosto, e mais de 5 mil vendidos até então (3 de setembro).
  • 4
    “Necessariamente” porque faz parte do discurso cultural dos anos 1950 a ideia de que as facilidades do lar e a vida doméstica são a representação do homem bem-sucedido e de sua esposa. Sobretudo a propaganda irá difundir a imagem do lar “completo”: homem e esposa felizes, filhos saudáveis e conforto material. As páginas da revista Senhor, em que Clarice publicou vários dos contos presentes em Laços de família, são ricas em anúncios dessa categoria, que apregoam automóveis, eletrodomésticos, itens de decoração. A ideia de felicidade compulsória, cujo reverso é a depressão, foi abordada por Betty Friedan em The feminine mystique. A autora chamou a insatisfação (pessoal, existencial) de “o problema sem nome” (FRIEDAN, 1963 - tradução nossa).
  • 5
    Embora Fritz se refira prioritariamente à opressão sexista, que não é abordagem adotada neste ensaio, o trecho é pertinente, bem como o são outras passagens do livro de Hooks (2019, p. 31), no que diz respeito às causas da angústia sofrida por mulheres de condições sociais distintas, sobretudo pela mulher pobre e que decorre das incertezas sobre a própria capacidade de sobreviver.
  • 6
    Na transcrição de citações de textos de Carolina Maria de Jesus foi mantida a grafia original.
  • 7
    Essa é possivelmente uma das facetas da escravização a que Carolina viria a se referir, alguns anos depois, já isolada e empobrecida novamente, ao conceder entrevista para a mesma revista. Ela falaria sobre “confusão”, “tortura mental” e do mundo interesseiro que o reverso do sucesso depusera diante de si (RICOSTI, 1973). Sobre a hospedagem de Vera Eunice, ver: Sarmento, 1961.
  • 8
    Muitas são as ocorrências, na imprensa, que tomam Carolina como referência. Alguns poucos exemplos: “Surgiram Carolinas e Pelés”; a obra de Jorge Mautner resenhada como “coquetel de Carolina Maria de Jesus, Freud e Sartre”; determinado escritor, também marginalizado, não chega a ser “uma Carolina”.
  • 9
    A ideia de ruptura total se manifesta numa gradação crescente, pois parte da imagem da sacola e dos ovos que ruíram, passando pelo “fio partido” que era estar no bonde, até chegar a “Mas o mal estava feito”, tradução da ideia de irreversibilidade (LISPECTOR, 1991, p. 33).
  • 10
    O termo “família” é registrado, em Inocência, do Visconde de Taunay, como designador das filhas - e não dos filhos - em uma fazenda ou propriedade, o que reforça a ideia de que a mulher é aquilo que pertence, como os escravos, ou serve, como os criados: “- Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quanto via menina tomar corpo, tratei logo de casá-la. [...] ...porque os pais devem tomar isso a si para bem de suas famílias, não acha?”. “Eu estou estabelecido na Mata do Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, três machos e duas famílias, estas casadas e que me deram netos.” (TAUNAY, 1972, p. 49 e 77). Nos dois casos, o termo “famílias” é grafado em itálico e explicado em nota pelo próprio autor.
  • 11
    “As mulheres da classe trabalhadora têm sido obrigadas a empregar todas as suas forças em prol da sobrevivência e, de um modo geral, a assumir responsabilidades pela vida de outras pessoas. Enquanto a maior parte das mulheres ainda possui elementos dessa força dentro de si, muitas simplesmente não tiveram que desenvolvê-las por conta do conforto e da segurança econômica em que vivem. [...] Os modelos de força da classe média são predominantemente os homens, e força aqui significa normalmente poder. As mulheres da classe trabalhadora, especialmente as não brancas, raramente têm a chance de depender de alguém para tomar suas decisões e se manter. O processo de assumir o controle de suas vidas e de influenciar pessoas à sua volta lhes dá uma grande experiência em termos de tomada de decisão, e isso num sentido bem básico: o da sobrevivência. Essa tomada de decisão se torna parte daquilo que constituiu um autoconceito acerca de si mesmas” (KAREN Kollias, “Class realities: create a new power base”, apud HOOKS, 2019, p. 136).
  • 12
    Na oração que teria sido ensinada por Jesus (Matheus, 6:9-11), pedir o pão de cada dia é, por um lado, entendido como a preocupação com a satisfação imediata das necessidades do corpo, com a sobrevivência num sentido de modéstia, frugalidade, gratidão; por outro, pode referir-se à Palavra de Deus, como aquela que alimenta o espírito.
  • 13
    A fala de Carolina evoca ainda a Bíblia: Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus 4:12); “Usem o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Efésios 6:17).
  • 14
    Essa última entrada do diário deixa entrever a valorização da palavra escrita: Carolina não gosta de um presidente cujo nome “esquisito” o povo “sabe falar mas não sabe escrever”.
  • 15
    “Sugerindo o título acima [“Esses mineiros...”] para encabeçar uma reportagem, Osmar Muniz Pimentel e Geraldo de Souza, de São Paulo, dizem que ‘Manchete bem poderia publicar matérias sobre alguns mineiros infernais desta República’. Citam como exemplo: Pelé, Carolina Maria de Jesus, Guimarães Rosa, Ary Barroso, Teresa Souza Campos, Marechal Lott, Senador JK, Ivon Cury, Grande Otelo, Vitor Nunes Leal e muitos outros. Se os leitores prestarem atenção aos números pulicados nos últimos seis meses, encontrarão todas essas personalidades” (O LEITOR..., 1961).
  • 16
    Nessa análise, feita por Jacques Lacan, o termo usado também é “laços”, como se vê tanto na tradução quanto no original (“liens”): “É um fato que, bem entendido, não deixou de receber corretivos de todo tipo no decurso da história, mas que nem por isto deixa de ser fundamental, e que nos permite entender em particular a posição dissimétrica da mulher nos laços amorosos, e muito especialmente em sua mais eminente forma socializada, isto é, o laço conjugal” (LACAN, 1995, p. 330). No original: “C’est un fait, et qui bien entendu, n’a pas manqué, au cours de l’histoire de recevoir toutes sortes de correctifs, mais dont le caractère fondamental, à être négligé, nous empêche de comprendre toutes sortes de choses, et en particulier la position tout à fait particulière, dissymétrique, dans les liens amoureux, et tout spécialement dans sa forme socialisée la plus éminente, à savoir le lien conjugal” (LACAN, 1954-55).
  • 17
    “O desejo é uma relação de ser com falta. Esta falta é falta de ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém falta de ser através do que o ser existe [...]. O desejo, função central em toda experiência humana, é desejo de nada que possa ser nomeado. É, ao mesmo tempo, este desejo que se acha na origem de qualquer espécie de animação. Se o ser fosse apenas o que é, não haveria nem sequer lugar para se falar dele. O ser se põe a existir em função mesmo desta falta. É em função desta falta, na experiência de desejo, que o ser chega a um sentimento de si em relação ao ser” (LACAN, 1995, p. 280 e 281). Sobre essa tópica, ver também: Plastino, 2008.
  • 18
    O pronome possessivo posposto enfatiza, justamente, a ideia de posse. O diminutivo sugere um limite de aceitação, de até onde a “chatice” pode chegar, sem prejuízo da “diligência”, da ponderação, do servir.
  • 19
    Para Bachelard, esse estado é o devaneio, que “poetiza” o sonhador. O “devaneio cósmico”, especialmente, é aquele que o coloca num mundo, e não numa sociedade. É possível ver esse movimento de se encontrar, por um momento, não numa sociedade (injusta, excludente), e sim num mundo, na poesia de Carolina ao querer um vestido feito “de céu”. Até as imagens empregadas por ela são de natureza “cósmica”.
  • 20
    De fato, a década de 1950 havia sido profícua em publicações literárias, expansão que vinha ocorrendo desde as décadas anteriores. Desde 1930, sobretudo a partir da projeção do romance e do regionalismo, o cenário fora de “surto editorial”, expressão encontrada no ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, de Antonio Candido (1985, p. 126), e no capítulo “Os intelectuais e o Estado”, de Sérgio Miceli (2001, p. 193).
  • 21
    Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2019, p. 396) analisam esse aspecto do estilo de Carolina, mostrando como ele vai na contramão da “tradição modernista”, por assim dizer. O resultado é um hibridismo do qual ela possivelmente não teria plena consciência, mas que atua como mais uma entre outras infrações promovidas por sua escrita.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2020
  • Aceito
    25 Set 2020
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