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Celso Furtado, pensador global

Celso Furtado, global thinker

RESUMO

Este texto compila as ideias apresentadas no IEBinário “Celso Furtado: entre as relações internacionais e a ecologia”, ocorrido em 14 de dezembro de 2020, a convite do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP). O evento, mediado por Rosa Freire d’Aguiar Furtado, escritora, tradutora e organizadora de diversas obras de Celso Furtado, contou com a participação do professor Alexandre de Freitas Barbosa (IEB/USP), do economista ecológico Clóvis Cavalcanti, pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco, e do diplomata e historiador Rubens Ricupero. Esse encontro pode ser acessado em: https://bit.ly/3iw809N.

PALAVRAS-CHAVE:
Celso Furtado; relações internacionais; ecologia

ABSTRACT

This text compiles the ideas apresented in IEBinário “Celso Furtado: between international relations and ecology”, which took place on December 14, 2020, at the invitation of the Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP). The event, mediated by Rosa Freire d’Aguiar Furtado, writer, translator and organizer of several works by Celso Furtado, was attended by professor Alexandre de Freitas Barbosa (IEB/USP), ecological economist Clóvis Cavalcanti, emeritus researcher at the Fundação Joaquim Nabuco, and the jurist and diplomat Rubens Ricupero. This meeting can be accessed at: https://bit.ly/3iw809N.

KEYWORDS:
Celso Furtado; international relations; ecology

Nenhum outro pensador brasileiro do passado ou do presente, com exceção talvez de Caio Prado Júnior, foi tão global como Celso Furtado. Global no sentido de que, para ele, o processo histórico de desenvolvimento do Brasil, da mesma forma que qualquer processo de desenvolvimento, é sempre irredutivelmente inseparável do sistema internacional no qual se acha inserido. Não se pode sequer pensar o desenvolvimento a não ser como peça de um sistema maior, o da economia-mundo, o do conjunto das trocas econômicas de comércio, investimento, financiamento, migrações de trabalhadores, tecnologia.

Global no caso de Celso possui também uma outra acepção, a de pensamento abrangente, totalizador, envolvente, na percepção das características definidoras da evolução da economia brasileira. Há até um aparente paradoxo no destino de um intelectual que se celebrizou pela contribuição à compreensão do fenômeno regional do Nordeste, mas que, ao mesmo tempo, pensou o país dentro do contexto mais universal e abrangente possível, o da inserção do Brasil na “máquina mercante” do mundo2 2 Ver o soneto de Gregório de Matos, “Triste Bahia”: “A ti trocou-te a máquina mercante/ Que em tua larga barra tem entrado...”. .

Na longa sucessão de intelectuais que se esforçaram em entender e explicar a formação do Brasil, alguns privilegiaram os fatores internos, como Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Outros, como Celso Furtado, preferiram privilegiar os fatores internacionais, ponto no qual ele se aproxima de Caio Prado Júnior, muito mais que dos demais precursores, como se percebe, acima de tudo, em sua tese de doutoramento (RICUPERO, 2005RICUPERO, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro. Estudos Avançados, v. 19, n. 53, 2005, p. 371-377.)3 3 Originalmente o artigo “Celso Furtado e o pensamento social brasileiro” (RICUPERO, 2005) serviu de posfácio à edição mexicana da tese de doutorado de Furtado, sob o título de La economía colonial brasileña (2003). .

Tanto Caio Prado Júnior como Celso Furtado compreendiam o Brasil como peça subalterna do grande sistema do capitalismo mercantilista europeu, que estabeleceu no país, como em outras colônias tropicais, unidades de produção com mão de obra escrava, especializadas em produzir commodities tropicais para os mercados europeus. A história do Brasil é indissociável dessa precoce inserção no mundo.

Por esse motivo, ele destacava o que hoje se esqueceu: quando se diz que o caminho do desenvolvimento passa pela integração na economia e no comércio mundial, é preciso qualificar a afirmação. Não se trata de qualquer integração por si mesma porque, integrado, o Brasil sempre foi. Nosso país nasceu como uma etapa da expansão do capitalismo mercantilista europeu. Não é por acaso que somos o único país a ostentar o nome de uma commodity, o pau-brasil, primeiro produto de exportação que tivemos.

Fomos um país profundamente inserido no sistema mundial de comércio durante três séculos e meio, porque praticamente tudo o que se produzia de açúcar e, mais tarde, de ouro, diamante, cacau, borracha, café se exportava quase na íntegra. Não se poderia, portanto, imaginar um país mais inserido, mais plenamente integrado no sistema mundial de comércio do que o Brasil.

Já em meados do século XVII, Gregório de Matos podia afirmar no soneto citado: “Deste em dar tanto açúcar excelente/ Pelas drogas inúteis, que [...] aceitas do sagaz brichote”. É curioso até como a intuição poética de Gregório de Matos captava a essência do que os economistas do século XX denominariam de “desigualdade nos termos de intercâmbio”, a tendência secular de desvalorização nos preços de produtos primários em contraponto à elevação dos preços de manufaturas.

O que Celso Furtado e Caio Prado Júnior realçaram é que as mesmas forças que nos integravam no mundo nos desintegravam internamente, paradoxo que se prolonga até hoje. Os dois elementos centrais do sistema - a concentração da propriedade no latifúndio e a mão de obra escrava - constituíam poderosos fatores de desintegração social. Nada, efetivamente, desintegra mais uma sociedade do que dividi-la entre senhores e escravos, sujeitos de direito e objetos de direito; nada desintegra mais uma sociedade do que dividi-la entre poucos proprietários de terra e uma multidão de meros fornecedores de trabalho.

É essa verdade que se deduz das análises de Caio Prado e de Celso Furtado: o que importa de fato não é a integração em si, nem mesmo o grau, o volume e a intensidade de tal inserção. Como, por exemplo, no argumento frequente de que a proporção de exportações e importações no cômputo geral do produto interno bruto brasileiro é relativamente pequena (o que, aliás, costuma ser o caso em todas as economias nacionais de grande porte). O que conta em termos de transformação em profundidade da estrutura produtiva e do nível de avanço da sociedade é a qualidade não a quantidade de integração.

Coube a Celso Furtado demonstrar em suas análises históricas como a industrialização vai gradualmente romper o sistema anterior, nisso se diferenciando de Caio Prado, que valorizou menos o fenômeno. Celso assinalou, em contraste, de que maneira a industrialização pôs em marcha um movimento capaz de articular, entre si, pela primeira vez, as diversas regiões do Brasil que antes se integravam ao mundo separadamente, cada uma com seus circuitos próprios, mantendo muito pouco intercâmbio recíproco. Ao fazer isso, a industrialização lançou o processo de criação do mercado interno, responsável, por sua vez, pelo grande dinamismo do crescimento brasileiro, a fase de ouro que durou desde os anos 1930 até o fim dos anos 1970.

Em particular, os nossos 40 “anos gloriosos”, de 1940 a 1980, período em que a economia se expandiu em média 7% ao ano, em que multiplicamos por 15 o produto real e por 5 o produto per capita, apesar de coincidir com a explosão demográfica brasileira, fase em que a população aumentava a taxas demográficas perto de 3% ao ano4 4 Ver: Rogério L. Furquim Werneck, 1988. .

Ao contrário do que sucederia na China e outros países recentemente industrializados da Ásia, o processo de transformação via industrialização infelizmente saiu dos trilhos e se desvirtuou no Brasil e na América Latina. Essa perda de rumo, antes de chegar à plena maturação e realização, marca os últimos livros de Celso Furtado. Foi ele possivelmente o primeiro a detectar com precisão os impactos destrutivos que viria a ter no processo de desenvolvimento brasileiro o abandono da estratégia de integração do mercado interno. No início dos anos 1980, quando o fenômeno mal engatinhava, ele já vislumbrava em Brasil: a construção interrompida que:

[...] a partir do momento em que o motor do crescimento deixa de ser a formação do mercado interno para ser a integração com a economia internacional, os efeitos de sinergia gerados pela interdependência das distintas regiões do país desaparecem, enfraquecendo consideravelmente os vínculos de solidariedade entre elas. (FURTADO, 1992FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida.3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992., p. 32).

Em seguida, prossegue:

Em um país ainda em formação, como é o Brasil, a predominância da lógica das empresas transnacionais na ordenação das atividades econômicas conduzirá, quase necessariamente, a tensões inter-regionais, à exacerbação de rivalidades corporativas e à formação de bolsões de miséria, tudo apontando para a inviabilização do país como projeto nacional. (FURTADO, 1992FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida.3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992., p. 35).

Publicados há várias décadas, esses textos, estranhamente proféticos, soam agora muito mais atuais do que na época em que foram escritos. Naquele longínquo ano de 1982, início da crise da dívida externa, no melancólico ocaso do regime militar, apenas começavam a se esboçar de forma confusa as tendências que a poderosa inteligência analítica de Celso Furtado desvendava com absoluta lucidez.

O título Brasil: a construção interrompida antecipava o que em nossos dias se converteu em triste realidade: a desindustrialização avançada, a dependência cada vez maior das exportações de produtos primários (agora destinados sobretudo à China e a mercados asiáticos), o desemprego estrutural estacionado em taxas de mais de dois dígitos, a volta da “questão nacional” sob a forma da “guerra dos incentivos fiscais” para atrair investimentos de empresas transnacionais, a viabilidade ameaçada do projeto nacional.

Hoje mais fortes e definidos que quatro décadas atrás, esses traços bastam para confirmar a indiscutível atualidade do pensamento de Celso, sua permanente validade como luz para iluminar o Brasil problemático em que vivemos.

Como outra marca inconfundível desse pensamento, gostaria de assinalar sua notável originalidade. Antes e depois de Celso Furtado, o Brasil produziu economistas de valor, neoclássicos, liberais ortodoxos, neoliberais. Intelectuais respeitáveis como Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto de Oliveira Campos, Mário Henrique Simonsen, para citar apenas alguns dos já desaparecidos, foram todos homens de valor que trouxeram contribuições apreciáveis aos conhecimentos econômicos entre nós.

Não passaram, no entanto, e digo isso de modo objetivo, sem nenhum desdouro, de epígonos, de representantes competentes, por vezes até brilhantes, de doutrinas, de escolas de pensamento formuladas fora do Brasil e com escassa referência à nossa realidade.

Provavelmente por essa razão, esses economistas, mesmo quando alçados a cátedras de universidades estrangeiras, não tiveram repercussão e influência perceptíveis na evolução das ideias econômicas mundiais.

Celso, em contraste, se distinguiu pela inovação, pela originalidade de um pensamento profundamente pessoal, ancorado no chão da realidade brasileira e latino-americana. Graças a essa originalidade de visão é que Celso Furtado se tornou, como escrevi há tempos, o mais “globalizado” dos economistas brasileiros, no sentido daquele que sem contestação obteve, fora do Brasil, maior reconhecimento, exercendo influência muito além de nossas fronteiras.

Tornou-se assim um pensador econômico brasileiro relevante, seguramente o de maior impacto fora do Brasil, traduzido, editado e admirado em inúmeras línguas, contribuindo para formar grandes economistas em nações em desenvolvimento de estrutura comparável à nossa5 5 Até 1972, apenas em português e espanhol, tinham sido vendidos 200 mil livros de Celso Furtado, dois milhões no mundo inteiro (RICUPERO, 2005, p. 377, nota 9). .

Rivaliza nesse sentido com Raúl Prebisch, do qual foi o principal colaborador. Prebisch costumava dizer que devíamos ler e estudar com interesse as teorias vindas do Norte porque continham muita coisa de valor. Deveríamos fazê-lo, contudo, de uma perspectiva crítica a partir da realidade latino-americana, buscando distinguir nessas teorias o que poderia ser válido para nós.

Tanto Prebisch quanto Furtado deixaram-nos como principal legado o compromisso ético com um desenvolvimento genuíno capaz de retirar da miséria as massas marginalizadas e excluídas. Na primeira conferência “Raúl Prebisch” da United Nations Conference on Trade and Development (Unctad) proferida no Palais des Nations, em Genebra, em 6 de julho de 1982, após descrever seus começos como jovem economista na Argentina da Grande Depressão dos anos 1930, dizia:

Aqueles anos da grande queda viram, na América Latina, o começo de um movimento de emancipação intelectual que consistia em olhar criticamente as teorias dos centros, não em uma atitude de arrogância intelectual - essas teorias possuem grandes méritos - mas com a percepção de que elas mereciam um estudo crítico. Devo dizer que as Nações Unidas tiveram um grande papel nessa inquirição crítica que nos levou a buscar nosso próprio caminho em direção ao desenvolvimento, ao invés de copiar outros; ponderar as realidades da situação e tentar corresponder às necessidades econômicas, sociais e morais - o caminho da equidade. (PREBISH apud RICUPERO, 2004RICUPERO, Rubens. Celso, o intelectual do outro Brasil. Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2004, p. A16., p. 4 - destaque nosso).

Essas poucas linhas dizem tudo: a consciência ética e social do desenvolvimento, a indispensável referência à realidade e, sobretudo, a atitude crítica (note-se que a palavra “crítico” aparece três vezes na passagem). Com esse mesmo espírito rigoroso de exame da realidade, Prebisch constatava que os latino-americanos se tinham deixado seduzir pelos anos de prosperidade dos grandes centros, abandonando prematuramente políticas que estavam produzindo resultados, em favor da ilusão de que nosso futuro dependia somente do crescimento externo, da exploração dos mercados dos grandes centros.

Em palavras que dão a impressão de quase terem sido literalmente emprestadas às que Celso Furtado utilizava naquele mesmo ano, Prebisch lamentava que os latino-americanos tivessem permitido que se visse interrompida, nesses anos de ilusão, a busca de um caminho original e próprio para o desenvolvimento. Igualmente deplorava que o continente se houvesse acomodado ao ressurgimento das teorias neoclássicas, as mesmas que, no passado, se tinham provado incapazes de promover o desenvolvimento com equidade.

Há nesse texto de Prebisch passagens notáveis nas quais, embora descreva o que ocorria com as ditaduras militares dos anos 1970 e 1980, a sensação do leitor é que se refere com precisão profética ao que estamos vivendo hoje, a nossos impasses atuais. Assinala assim que:

Alguns países latino-americanos experimentaram os excessos do chamado liberalismo econômico, que só é viável quando se suprime o liberalismo político [...]. Em certos países, o estabelecimento do liberalismo econômico criou a necessidade, ou melhor, foi a consequência de governos repressivos que romperam o poder sindical e político dos trabalhadores, acreditando que as forças de mercado resolveriam seus principais problemas. Deixaram-se intoxicar pelas teorias convencionais. (PREBISCH, 1982PREBISCH, Raúl. The crisis of capitalism and the periphery. 1st Raúl Prebisch Lecture, Genebra, Unctad, July 1982., p. 8 - tradução nossa).

Reconhecendo a importância das forças de mercado, Prebisch salienta que, isoladamente, sem a ação corretiva e orientadora do Estado, tais forças jamais demonstraram a capacidade de resolver os problemas da exploração irresponsável dos recursos naturais, da degradação do meio ambiente, da distribuição da renda e da equidade. Referindo-se à insistência das teorias convencionais na racionalidade econômica, interpela: “Que racionalidade é essa que produziu os inúmeros males que enfrentamos no momento? Seria acaso uma racionalidade que serve em última análise aos interesses dominantes internos e externos? Há de fato aqui uma racionalidade, mas não a do ponto de vista coletivo” (PREBISCH, 1982PREBISCH, Raúl. The crisis of capitalism and the periphery. 1st Raúl Prebisch Lecture, Genebra, Unctad, July 1982., p. 8 - tradução nossa).

E conclui a conferência de maneira irretocável, tão válida hoje como 40 anos atrás:

Sustento que devemos buscar uma nova racionalidade, mas não a dos interesses hegemônicos; não a baseada meramente em objetivos econômicos e sociais e sim a baseada em objetivos eminentemente éticos [...]. Não se trata simplesmente de uma nova ordem econômica internacional, mas de uma nova ordem interna ética e social. (PREBISCH, 1982PREBISCH, Raúl. The crisis of capitalism and the periphery. 1st Raúl Prebisch Lecture, Genebra, Unctad, July 1982., p. 8 - tradução nossa).

No mesmo dia em que Celso nos deixou, escrevi um obituário para a Folha de S. Paulo (RICUPERO, 2004RICUPERO, Rubens. Celso, o intelectual do outro Brasil. Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2004, p. A16.), no qual evocava a morte, meses antes, do grande pensador italiano Norberto Bobbio. Ao noticiar na manchete da primeira página a perda de Bobbio, La Stampa, o grande cotidiano de sua cidade natal, Turim, proclamava: “Morre Bobbio, o intelectual da outra Itália”. Parafraseando o jornal italiano, poderíamos ter escrito que perdíamos Celso, o intelectual do outro Brasil.

Celso Furtado foi o intelectual do outro Brasil, no sentido de que fechou, efetivamente, o ciclo da história cultural dos que acreditaram na construção consciente da nação (surge daí o título de Brasil: a construção interrompida). A possibilidade de um projeto nacional, de pensar o destino do Brasil como uma estratégia a longo prazo, dava sentido e valor à atividade intelectual e política.

A crença na ideia de um projeto de nação, que vinha de longe, pelo menos desde a Revolução de 1930, se não de antes, não havia sido alterada pelo regime militar, pois os militares tinham sido sempre participantes ativos da coalizão dos construtores da estratégia nacional. A perda da visão de futuro, da esperança de que o Brasil de amanhã seria melhor que o do passado deu-se mais recentemente, pelo efeito cumulativo do agravamento da crise brasileira a partir de 2014.

As revelações chocantes da corrupção sistêmica em larga escala, o colapso da esperança encarnada no Partido dos Trabalhadores (PT), o golpe desfechado nas instituições políticas pela operação Lava Jato somaram-se a uma dolorosa recessão, praticamente uma depressão, em termos da gravidade do retrocesso econômico, do agravamento sem precedentes do desemprego.

Tudo isso acabou por abalar a autoconfiança dos brasileiros, a precondição indispensável para o que Prebisch chamava de “emancipação intelectual”. Nada simboliza melhor o aniquilamento da confiança em nós mesmos, do abandono da autonomia intelectual e da busca de um projeto nacional brasileiro, do que a iniciativa dos governos Temer e Bolsonaro de buscarem a adesão do país à OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, com sede em Paris. Durante muito tempo denominada justificadamente de “clube dos ricos”, a OCDE nada tem em comum com as organizações multilaterais de vocação universal como as pertencentes às Nações Unidas.

Trata-se de uma instituição plurilateral, originalmente formada pelos países participantes do Plano Marshall, que se converteu, a seguir, em entidade para promover a adoção, em escala universal, se possível, de padrões e princípios de organização econômica e financeira derivados da experiência das economias capitalistas de desenvolvimento mais avançado. Nenhuma instituição econômica é mais invasiva, mais intrusiva do que a OCDE. O país desejoso de aderir à organização deve passar por processo de exame de toda sua estrutura legal e organizativa, comprometendo-se a modificar suas leis e práticas a fim de se conformar aos ambiciosos padrões da OCDE.

É exatamente o oposto da visão da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e da Unctad, de Prebisch e Furtado, a constatação, imposta pela realidade, de que as economias subdesenvolvidas apresentam estruturas fundamentalmente diferentes das economias de capitalismo avançado, que essas estruturas somente podem ser superadas por meio de um longo e trabalhoso processo de desenvolvimento que requer o recurso a políticas não convencionais incompatíveis com os padrões impostos pela OCDE.

A adesão à OCDE, nos termos em que vem sendo negociada, exigiu já ao Brasil renunciar, sem nenhuma compensação, ao estatuto de país em desenvolvimento merecedor de tratamento especial e diferenciado no seio da Organização Mundial de Comércio (OMC). Os advogados da adesão costumam utilizar o argumento de que pertencer a essa organização garantiria a adoção de políticas econômicas e sociais sólidas e eficazes e constituiria uma espécie de imunização contra a tentação de aventuras populistas irresponsáveis.

A falta de fundamento da alegação salta aos olhos quando se lembra que a Grécia, vilipendiada na crise de 2008 como modelo acabado de políticas macroeconômicas equivocadas, é um dos países fundadores da OCDE. Isso não a salvou dos erros de que foi acusada ou da censura mais grave de que teria falsificado os dados econômicos a fim de ingressar na área do euro.

O México, integrante há mais de 25 anos, nem por isso deixou de ser uma economia subdesenvolvida. Durante a maior parte desse período, não cresceu em média a taxas superiores às do Brasil, nem atraiu mais investimentos estrangeiros diretos do que nós. Suas mazelas, inclusive sociais ou de violações de direitos humanos, não se distinguem apreciavelmente das que caracterizam outros latino-americanos. Nem o suposto selo de garantia de boas políticas atribuído à incorporação à entidade conseguiu impedir que o atual presidente mexicano adotasse políticas econômicas de cunho indisfarçavelmente populista.

Se, como se vê, os argumentos em favor da adesão à OCDE se revelam frágeis e inconsistentes, o que explicaria, portanto, o fervor com que se advoga o ingresso do país à organização? A explicação real, que diretores do Banco Central e participantes do mercado financeiro se abstêm em geral de mencionar em público, mas não escondem em privado, possui caráter mais problemático e inconfessável. A razão verdadeira é o desejo de assegurar, por meio da adesão a uma organização de padrões rígidos e invasivos, a irreversibilidade de reformas econômicas apresentadas como cientificamente recomendáveis, mas na realidade ditadas por opções ideológicas.

Trata-se do argumento de que, em país instável, sujeito a oscilações de orientação econômica, é necessário lock in as reformas, prendê-las com cadeado de maneira que não possam ser modificadas pelo Congresso ou alteradas por efeito de eleições. Em outros termos, os propugnadores da adesão revelam sua verdadeira natureza de tecnocratas autoritários e antidemocráticos, reformadores iluminados do tipo dos funcionários do despotismo “esclarecido” da época do marquês de Pombal!

O que chama especialmente a atenção entre os promotores da adesão consiste em sua invariável proveniência dos setores comprometidos com a globalização e a liberalização financeira. Não é, aliás, por acaso, que uma das principais ênfases da OCDE reside na adoção de medidas que suprimem ou constrangem de forma extrema a autonomia das autoridades nacionais na imposição de limites ou restrições aos fluxos financeiros, mesmo em circunstâncias de crises no balanço de pagamentos.

É nesse ponto que devemos retornar a Celso Furtado, à advertência que nos fazia em Brasil: a construção interrompida:

Devemos aceitar a crescente internacionalização dos circuitos monetários e financeiros, com a consequente perda de autonomia das decisões, e fazê-lo numa fase em que o protecionismo dos países centrais se reafirma? Teremos de renunciar a uma política de desenvolvimento? Que consequências sociais devemos esperar de uma prolongada redução na criação de emprego? (FURTADO, 1992FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida.3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.).

À luz do legado de Celso Furtado e de Raúl Prebisch, o tema verdadeiramente decisivo neste momento é saber de que maneira vamos decidir nossa estratégia de crescimento futuro. Vamos persistir na ilusão de que o fator dinâmico virá apenas da economia internacional? Vamos permitir que medidas impostas de fora para dentro, pela adesão à OCDE, mas refletindo o pensamento dos mesmos centros hegemônicos que hoje multiplicam as medidas protecionistas, eliminem o pouco espaço de políticas autônomas que nos resta?

Ou, ao contrário, seremos capazes de compreender que, no mundo atual, em países continentais como o Brasil, os exemplos de maior êxito de desenvolvimento econômico se deram pela harmonização de um crescimento interno dinâmico com a inserção qualitativa na economia mundial, que permita a inclusão das massas excluídas do processo de desenvolvimento, sem jamais alienar a capacidade de decisões autônomas?

Da resposta a essas questões, dependerá a retomada da construção interrompida do Brasil.

Referências

  • FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida.3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
  • FURTADO, Celso. La economía colonial brasileña. México D.F.: Universidad de la Ciudad de México, 2003.
  • MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • PREBISCH, Raúl. The crisis of capitalism and the periphery. 1st Raúl Prebisch Lecture, Genebra, Unctad, July 1982.
  • RICUPERO, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro. Estudos Avançados, v. 19, n. 53, 2005, p. 371-377.
  • RICUPERO, Rubens. Celso, o intelectual do outro Brasil. Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2004, p. A16.
  • RICUPERO, Rubens. Unctad - Passado e presente: nossos próximos quarenta anos. Economia Política Estratégica - Análise Estratégica, Instituto de Economia da Unicamp, n. 2, julho-setembro 2014, p. 3-16.
  • WERNECK, Rogério L. Furquim. A longa transição dos anos 80. Rio de Janeiro: Carta Econômica Anbid, ano VII, março 1988.
  • 2
    Ver o soneto de Gregório de Matos, “Triste Bahia”: “A ti trocou-te a máquina mercante/ Que em tua larga barra tem entrado...”.
  • 3
    Originalmente o artigo “Celso Furtado e o pensamento social brasileiro” (RICUPERO, 2005) serviu de posfácio à edição mexicana da tese de doutorado de Furtado, sob o título de La economía colonial brasileña (2003).
  • 4
    Ver: Rogério L. Furquim Werneck, 1988.
  • 5
    Até 1972, apenas em português e espanhol, tinham sido vendidos 200 mil livros de Celso Furtado, dois milhões no mundo inteiro (RICUPERO, 2005, p. 377, nota 9).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2020
  • Aceito
    26 Jan 2021
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