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Conteúdo sobre drogas em jogos para dispositivos móveis

RESUMO

Objetivo

Analisar o conteúdo sobre drogas de jogos para dispositivos móveis.

Método

Estudo exploratório de abordagem qualitativa. Tomaram-se por referência a crítica da saúde coletiva ao ideário da educação proibicionista e os fundamentos da educação emancipatória na área de drogas. A partir de critérios de inclusão e exclusão, selecionaram-se jogos sobre drogas em loja virtual. Procedeu-se à análise de conteúdo, com apoio de modelo interpretativo específico para jogos digitais usado para identificar as mensagens textuais e procedimentais nos jogos.

Resultados

Dezenove jogos foram analisados. A maioria deles reitera posições proibicionistas e cumpre o papel de transmitir informações prescritivas e normativas, assumindo o objetivo de disciplinar comportamentos de risco. Essa evidente limitação demonstra uma importante contradição, a de que os jogos são estratégias de linguagem contemporânea, com conteúdos desatualizados e pouco científicos.

Conclusão

Apesar do potencial das ferramentas virtuais, os jogos analisados estão marcados por intensa simplificação a respeito do fenômeno do consumo de drogas e estimulam a rapidez de respostas pré-programadas, que não extrapolam a memorização e o condicionamento. Persiste a necessidade de atualização científica e incorporação de conteúdos educativos críticos na área.

Jogos Recreativos; Aplicativos Móveis; Usuários de Drogas; Redução do Dano; Educação em Saúde; Enfermagem em Saúde Pública

ABSTRACT

Objective

To analyze drug content in games for mobile devices.

Method

An exploratory study implementing a qualitative approach. The collective health critical perspective was taken in relation to the ideology of prohibitionist education and the foundations of emancipatory education in the area of drugs. Games about drugs were selected in a virtual store based on inclusion and exclusion criteria. Content analysis was performed with the support of an interpretative model specific to digital games used to identify textual and procedural messages in games.

Results

Nineteen (19) games were analyzed. Most of them reiterate prohibitionist positions and play the role of transmitting prescriptive and normative information, assuming the objective of disciplining risk behaviors. This evident limitation demonstrates an important contradiction that games are strategies of contemporary language, with outdated and unscientific content.

Conclusion

Despite the potential of virtual tools, the analyzed games are marked by intense simplification regarding the phenomenon of drug use and stimulate fast preprogrammed responses that do not go beyond memorization and conditioning. A need for scientific updates and incorporation of critical educational content persists in the area.

Games, Recreational; Mobile Applications; Drug Users; Harm Reduction; Health Education; Public Health Nursing

RESUMEN

Objetivo

Contenido acerca de drogas en juegos para dispositivos móviles.

Método

Estudio exploratorio de abordaje cualitativo. Se tomaron por referencia la crítica de la salud colectiva al ideario de la educación prohibicionista y los fundamentos de la educación emancipadora en el área de las drogas. Mediante criterios de inclusión y exclusión, se seleccionaron juegos sobre drogas en tienda virtual. Se procedió al análisis de contenido, con apoyo de modelo interpretativo específico para juegos digitales utilizado para identificar los mensajes textuales y de procedimiento en los juegos.

Resultados

Diecinueve juegos fueron analizados. La mayoría de ellos reitera planteamientos prohibicionistas y cumple el papel de transmitir informaciones prescriptivas y normativas, asumiendo el objetivo de disciplinar comportamientos de riesgo. Esa evidente limitación demuestra una importante contradicción, la de que los juegos son estrategias de lenguaje contemporáneo, con contenidos desactualizados y poco científicos.

Conclusión

Pese al potencial de las herramientas virtuales, los juegos analizados están marcados por intensa simplificación con respecto al fenómeno del consumo de drogas y estimulan la rapidez de respuestas pre-programadas, que no extrapolan la memorización y el condicionamiento. Persiste la necesidad de actualización científica e incorporación de contenidos educativos críticos en el área.

Juegos Recreacionales; Aplicaciones Móviles; Consumidores de Drogas; Reducción del Daño; Educación en Salud; Enfermería de Salud Pública

INTRODUÇÃO

O termo jogos aplicados(11. Vasconcellos MS, Carvalho FG, Araujo IS. O jogo como prática de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018.) se refere a jogos projetados e usados em uma determinada sociedade para abordar de forma divertida questões que urgem na contemporaneidade. Observa-se necessidade premente de que se conduzam análises criteriosas do que tem sido proposto como iniciativas educativas na forma de jogos, particularmente, na área da saúde e no contexto dos jogos digitais para dispositivos móveis, face a sua enorme quantidade e capacidade de mobilizar interesse.

Não é novidade o uso de jogos na saúde pública(22. Edwards EA, Lumsden J, Rivas C, Steed L, Edwards LA, Thiyagarajanl A, et al. Gamification for health promotion: systematic review of behaviour change techniques in smartphone apps. BMJ Open [Internet]. 2016[cited 2017 Dec 3];6(10):e012447. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5073629/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
). É necessário, todavia, ter cuidado com o fascínio ingênuo pela tecnologia. Os jogos são reconhecidos como ferramentas de fácil distribuição e potencialmente efetivas para a educação em saúde(33. Damasceno EF, Nardi PA, Silva AKA, Lopes LFB, Fernandes AM. A Serious Game as a strategy for health promotion in combating drug misuse. J Bras Tele. 2016;4(2):237-45.). Estudo aponta que os profissionais escolhem jogos para uso na prática pedagógica de forma intuitiva e não priorizam a avaliação das características educativas(44. Vilarinho LRG, Leite MP. Avaliação de jogos eletrônicos para uso na prática pedagógica: ultrapassando a escolha baseada no bom senso. RENOTE. 2015;13(1):1-11.).

Uma revisão sistemática(55. Haskins B, Lesperance D, Gibbons P, Boudreaux ED. A systematic review of smartphone applications for smoking cessation. Transl Behav Med. 2017;7(2):292-9.), que investigou os aplicativos para dispositivos móveis voltados à cessação de tabaco sugeridos pelas principais lojas virtuais, mostrou que apenas dois (4%) tinham algum suporte científico.

Do ponto de vista científico, a educação sobre drogas, na perspectiva da saúde coletiva, propõe discutir a explicação do consumo de substâncias psicoativas com base em suas raízes sociais, bem como a construção de respostas políticas a serem tomadas coletivamente, o que se conforma como processo educativo emancipatório, e não disciplinador(66. Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Harm reduction: analysis of the concepts that guide practices in Brazil. Physis. 2010;20(3):995-1015.-77. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf. Soc. 2013;4(2):38-54.).

Esta investigação partiu do pressuposto de que jogos aplicados possuem vantagens em relação à unidirecionalidade de ferramentas educativas tradicionais, uma vez que eles têm retórica procedimental(88. Bogost I. Persuasive games: the expressive power of videogames. Cambridge: MIT Press; 2010.), ou seja, valem-se da persuasão, conforme operada pelas regras do jogo. Em outras palavras, os jogos não veiculam apenas mensagens textuais e gráficas, mas articulam conteúdos em vários formatos, que compõem um sistema de regras que, por sua vez, orienta relações virtuais criadas de forma intencional e em ambiente lúdico.

Revisões sistemáticas recentes(99. Grundy QH, Wang Z, Bero LA. Challenges in assessing mobile health app quality: a systematic review of prevalent and innovative methods. Am J Prev Med. 2016;51(6):1051-9.-1010. McKay FH, Cheng C, Wright A, Shill J, Stephens H, Uccellini M. Evaluating mobile phone applications for health behaviour change: a systematic review. J Telemed Telecare. 2018;24(1):22-30. DOI: 10.1177/1357633X16673538
https://doi.org/10.1177/1357633X16673538...
) sobre métodos adequados para análise científica de aplicativos para dispositivos móveis mostram que avaliar aplicativos em saúde ainda é um desafio, não sendo possível recomendar abordagem única. Assim, diversas recomendações provenientes dessas sínteses foram levadas em consideração nesta pesquisa, especialmente a de aprofundar a análise para além da descrição dos aplicativos.

O objetivo desta investigação é analisar jogos para dispositivos móveis que abordem a temática das drogas (álcool, tabaco, esteroides e/ou drogas ilegais). A finalidade do estudo é, portanto, apoiar profissionais de saúde, desenvolvedores de tecnologias e usuários de jogos para dar respostas à problemática relacionada ao consumo de drogas a partir da explicação e das propostas educativas forjadas no campo da saúde coletiva.

MÉTODO

TIPO DO ESTUDO

Estudo exploratório de abordagem qualitativa.

COLETA DE DADOS

Os jogos foram obtidos por conveniência, no Google Play Store, uma loja virtual para dispositivos do sistema operacional Android. A amostra foi composta de aplicativos disponíveis gratuitamente no Brasil. Ressalta-se que a disponibilidade comercial de aplicativos difere entre os países de acordo com a regulamentação nacional.

O Google Play Store permite algumas especificações de categorias de pesquisa e subcategorias. Este estudo escolheu aplicativos como categoria e jogos como subcategoria. Ao usar a “barra de busca”, os resultados foram selecionados de um conjunto de palavras-chave em inglês ( drugs , marijuana , smoke , alcohol , tobacco , cocaine , steroid e educative ). Finalmente, a aba “semelhante” foi usada para identificar outros aplicativos com base no resultado das buscas iniciais.

Em outubro de 2017, 235 aplicativos foram inicialmente identificados na fonte. O critério de inclusão dos jogos digitais foi: jogos que apresentavam em sua descrição na loja virtual a abordagem do tema drogas. Para este estudo não foram considerados jogos os aplicativos que ofereciam papéis de parede com imagens de drogas; que estimavam os níveis de álcool; que ensinavam como fazer coquetéis; ou que estimavam a quantidade de dinheiro economizado na abstinência de drogas. Por esse motivo, 189 aplicativos foram excluídos da análise. Por fim, excluíram-se também os jogos que apresentavam como foco o comércio ilegal de drogas, do ponto de vista do traficante. No total, 19 jogos sobre drogas foram selecionados para a análise e foram identificados com a letra J, seguido do seu número.

Quadro 1
– Jogos selecionados para análise.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

Realizou-se análise temática de conteúdo(1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.), desdobrada em pré-análise, codificação e interpretação. A etapa de pré-análise compreendeu a experimentação do jogo por parte dos revisores, ou seja, o contato direto com o material. Para isso, os jogos foram experimentados, acessando-se todos os seus níveis. Durante a etapa de codificação, os investigadores buscaram recortar os jogos em unidades de registro relevantes. As informações foram registradas em planilha por dois revisores, especialistas na área de drogas e da saúde coletiva. Finalmente, realizou-se a classificação a partir das categorias teóricas descritas por Consalvo e Dutton(1212. Consalvo M, Dutton N. Game analysis: developing a methodological toolkit for the qualitative study of games. Game Studies [Internet]. 2006 [cited 2017 Dec 3];6(1). Available from: http://gamestudies.org/0601/articles/consalvo_dutton
http://gamestudies.org/0601/articles/con...
) para identificar o conteúdo nos jogos. Nesse sentido, os jogos podem ser entendidos como “textos” interpretáveis. O “texto” de um jogo digital tem quatro elementos: inventário de objetos (itens coletados, criados, comprados, etc.); interface (interação do jogador com o sistema do jogo, feedback , avatares, etc.); mapa de interação (ação ou diálogo com personagens e outros jogadores); e gameplay (modo como se dá a experiência do jogo). Depois da categorização dos dados, foi realizada a interpretação das mensagens sobre drogas, tomando a saúde coletiva(1313. Soares CB, Santos VE, Campos CMS, Lachtim SAF, Campos FC. Representations of everyday life: a proposal for capturing social values from the Marxist perspective of knowledge production. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2017 Dec 3]; 45(n.spe2):1753-57. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342011000800020&lng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) como referencial de análise crítica.

RESULTADOS

Os jogos não apresentam teorias, recursos de avaliação de aprendizagem, nem explicam seus objetivos educacionais e conteúdos explicitamente. Nesse sentido, a intencionalidade do game designer pode ser inferida apenas pela retórica no jogo.

Os dados coletados serão apresentados a seguir conforme o modelo interpretativo adotado para jogos digitais: inventário de objetos; interface; mapa de interação; e gameplay (1212. Consalvo M, Dutton N. Game analysis: developing a methodological toolkit for the qualitative study of games. Game Studies [Internet]. 2006 [cited 2017 Dec 3];6(1). Available from: http://gamestudies.org/0601/articles/consalvo_dutton
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).

INVENTÁRIO DE OBJETOS

Partindo do inventário de objetos como elemento de referência, é possível identificar que seis (31%) dos 19 jogos se referem exclusivamente a substâncias legais (J7, J8, J13, J14, J15 e J19): medicamentos, cigarros e álcool. A maioria (68%) inclui itens que representam drogas ilícitas: LSD, cocaína, heroína, crack e ‒ a droga mais citada ‒ maconha.

Um único jogo apresenta a droga como mercadoria (J17). Esse destaca processos de criminalização, de produção e de circulação, dando visibilidade aos aspectos sociais que determinam a diversidade envolvida no consumo de substâncias. No entanto, o objetivo final do jogo é induzir os indivíduos a comprar maconha da empresa criada pelo jogador. Este objetivo evidencia a perspectiva liberal, do livre mercado, que reitera o potencial mercadológico da droga. A retórica procedimental do jogo é articulada com mensagens textuais a favor da legalização.

Apenas três jogos (15%) têm itens em seu inventário de objetos que podem estar relacionados à redução de danos, como o vaporizador de maconha (J17), a garrafa de água (J16) e a bolha de ar (J14). Nesses casos, o personagem do jogador (avatar) evita os efeitos nocivos da combustão da droga ou reduz os efeitos das substâncias quando ele compra um vaporizador, bebe água ou respira ar limpo, respectivamente.

A análise dos elementos interligados evidencia dissonâncias na condução pretendida, como na mensagem veiculada pelo jogo J11, de que o jogador deve evitar o consumo de esteroides para fins estéticos, mas é encorajado a coletar todos os suplementos alimentares que conseguir, assim como pegar peso sem descanso. Uma dieta inadequada e a falta de descanso são contraindicações básicas para o objetivo de ganho de hipertrofia de forma saudável e alternativo ao uso de esteroides.

INTERFACE

No que diz respeito à interface dos jogos, é possível verificar que alguns tentam criar empatia por meio do avatar, permitindo que os usuários escolham seu gênero (J2, J3 e J18), nome (J3 e J10), roupas, sapatos, cor de pele e do cabelo (J14). Nenhum jogo apresentou a dinâmica social ou a classe social dos personagens (avatar) que usam drogas.

Nem todos recomendam público-alvo específico, mas alguns desenvolvedores descrevem os jogos como sendo voltados para trabalhadores (J12), motoristas (J7), crianças (J11) ou adolescentes (J2, J3, J4, J5, J6, J9, J10, J13 e J18). Mais da metade dos jogos analisados (52%) são voltados para os jovens.

Quatro jogos (21%) oferecem feedback , com reforço positivo ou negativo, por meio dos quais o ganho de habilidades é esperado (J2, J4, J5 e J16). O fornecimento contínuo de mensagens de reforço é o elemento que orienta os jogadores no ambiente virtual. Mensagens simples como “Boa escolha” e “Bom trabalho” aparecem quando os jogadores avançam. Outras formas de reforço positivo também podem ser encontradas, como ganhar pontos (J1, J7 e J15), obter tesouros (J8), receber cumprimentos do pai (J6), receber medalhas (J9 e J13), troféus (J15) e desenvolver habilidades ou características do avatar (J19). As recompensas e a progressão no jogo reforçam em geral a mensagem negativa quando relacionadas ao uso de drogas. A dependência química e a morte são apresentadas como consequências inevitáveis do consumo de drogas em dois (10%) jogos (J1 e J16). Mesmo sem representar um evento trágico, os outros jogos não legitimam nenhuma possibilidade de interação agradável ou positiva com drogas, exceto o jogo J17, no qual é possível ficar rico e receber prêmios vendendo maconha de boa qualidade em países que legalizaram esse comércio.

Um jogo em forma de quiz propõe perguntas sobre o ambiente, a companhia e a procedência da substância que o usuário planeja utilizar. Essas perguntas, segundo o próprio jogo, visam produzir autorreflexão antes do consumo de drogas (J10).

Em geral, os jogos não abordam os usuários de drogas como sujeitos de direitos. Apenas o jogo J12, que assume a forma de um jogo de tabuleiro, aborda os direitos trabalhistas de usuários de drogas.

MAPA DE INTERAÇÃO

A interação entre usuários/personagens/coletividade externa é limitada. Apenas dois jogos (10%) podem ser jogados por mais de um usuário ao mesmo tempo (J12 e J18), e a única interação possível entre os jogadores está restrita à competição entre eles.

Quatro jogos (21%) incentivam o jogador a compartilhar mensagens predefinidas pelo jogo em redes sociais (J3, J9, J17 e J18). Outra forma de interação externa é a disponibilização de contato de redes locais de proteção e prevenção, observada em apenas um jogo (J9).

Nenhuma rede social interna foi identificada ( chats , murais ou fóruns de usuários). A existência de rede indicaria a possibilidade de interação direta entre os jogadores. Alguns jogos permitem que o avatar interaja com outros personagens, são eles: traficante e colegas (J6), amigos (J3), cientista (J14), clientes (J17) e transeuntes (J9). Os diálogos são fixos (J14 e J17), com duas (J3) ou poucas escolhas (J6 e J9), que levam o avatar a aceitar alguma droga ou não experimentar nenhuma.

Entre os 19 jogos analisados, oito (42%) apresentavam as drogas como obstáculos inanimados que precisavam ser evitados ou dos quais se devia desviar (J1, J2, J5, J7, J8, J14, J16 e J19). Quatro (21%) atribuíam características humanas às drogas (J4, J8, J11 e J13), conferindo-lhes personagens ou representações com intencionalidade hostil, apresentados como inimigos ou vilões. Nesse caso, os jogadores assumiam o papel de vítimas da droga. Assim, os jogadores deviam fugir das drogas para se salvar.

O antropomorfismo nesses jogos é um recurso usado para transmitir mensagens e valores inerentes à guerra às drogas. As habilidades conferidas à representação virtual das drogas favorecem aspectos farmacológicos associados aos possíveis danos de seu consumo. Por exemplo, a embriaguez ao volante é representada pelo aumento do tempo de reação e redução da visibilidade (J3 e J7).

GAMEPLAY

Em geral, a abertura inicial dos jogos apresenta situações simples e de rápida apreensão que introduzem o jogo, com exceção do J17, que propõe a interação em diferentes cenários simultaneamente. Nele, o jogador deve administrar o dispensário em uma clínica de maconha medicinal e influenciar outros países a legalizar a maconha por meio de empresários e de políticos.

Os jogos podem apresentar registros de performance , vida, tempos, recordes e pontuações. Os comandos não exigem grande habilidade, mas podem apresentar curva de complexidade em progressão, como no “ beast mode ” (J19), quando a velocidade do jogo aumenta muito.

O pano de fundo dos jogos pode retratar o corpo humano (J1 e J14) (10%), lugares comuns, como a escola, a boate, o ambiente doméstico, a rua e o trabalho (J2, J3, J5, J6, J7, J9, J15, J18 e J19) (47%), ou lugares fantasiosos e imaginários (J4, J8, J10, J11, J12, J13 e J18) (36%).

Sobre a dimensão lúdica, dois jogos citam estudos próprios que suportam seu potencial lúdico e resultados (J2 e J7). Todavia, a experiência do jogador é orientada para uma única direção correta na interação virtual, o que parece limitar em grande medida a experiência lúdica.

A retórica textual, quando existe, está relacionada aos riscos e efeitos do uso de drogas, à exceção de dois jogos (10%) incluídos nesta revisão (J17 e J10). Algumas informações pragmáticas podem ser identificadas nos jogos, o que em nada contribui para compreender o processo social do consumo problemático de drogas. Ressalta-se que muitas declarações, excessivamente negativas, são feitas sem referências.

Apenas quatro (21%) jogos aplicados (J3, J7, J10 e J13) não apresentam como missão a abstinência, o que sugere que o consumo de droga está quase sempre associado a consequências perigosas para o indivíduo e para a sociedade. Portanto, as mensagens privilegiam informações contra a experimentação de drogas e proclamam a necessidade precoce de gerenciamento e vigilância sobre o comportamento.

DISCUSSÃO

A guerra às drogas é uma política ineficaz e intolerante(1414. Canoletti B, Soares CB. Drug consumption programs in Brazil: analysis of the scientific production from 1991 to 2001. 2005;9(16):115-29.-1515. Hart C. Viewing addiction as a brain disease promotes social injustice. Nat Hum Behav [Internet]. 2017 [cited 2017 Dec 3]:0055. Available from: https://www.nature.com/articles/s41562-017-0055
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). O relatório Public Health and International Drug Policy (1616. Csete J, Kamarulzaman A, Kazatchkine M, Altice F, Balicki M, Buxton J, et al. Public health and international drug policy. Lancet 2016;387(10026):1427-80.), desenvolvido por comissão constituída pela Lancet e Universidade Johns Hopkins, responsabiliza a política de guerra pelo aumento da violência, transmissão de doenças, discriminação, dor física desnecessária e diminuição dos direitos à saúde. Ademais, a guerra às drogas contribui negativamente para o processo educativo. A construção dos materiais de apoio que deveriam facilitar o processo de educação sobre drogas levam a práticas educativas prescritivas e alarmantes que mistificam ainda mais o uso de drogas(1717. Cardoso BS, Paixão IR, Soares CB, Coelho HV. Materiais educativos sobre drogas: uma análise qualitativa. Saúde Transf Soc. 2013;4(2):149-56.).

O jogo J17 expressa posição social antagônica à posição conservadora de reforço à guerra contra as drogas e ao proibicionismo. Ele assume posição liberal que reitera o potencial de mercado das drogas. As posições – liberal e conservadora – também são criticadas pela saúde coletiva(77. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf. Soc. 2013;4(2):38-54.).

O discurso liberal, que nega ou minimiza os desgastes e os constrangimentos sociais relacionados ao consumo de drogas, não facilita a compreensão do problema, tampouco contribui para o desenvolvimento de ações que respondam às necessidades em saúde de usuários de drogas(77. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf. Soc. 2013;4(2):38-54.).

Em outro sentido, as políticas e os programas de redução de danos melhoraram dramaticamente aspectos da saúde anteriormente ignorados em populações marginalizadas(1818. Roe G. Harm reduction as paradigm: is better than bad good enough? The origins of harm reduction. Crit Public Health. 2005;15(3):243-50.). Sem dúvida, oferecem mediação aos problemas imediatos. Outrossim, observa-se que há necessidade de uma análise que reconheça o processo social do problema droga e uma ação politicamente ativa que permita a perspectiva de soluções reais e de longo prazo para a crescente dificuldade imposta à sociedade pelo uso de drogas(1818. Roe G. Harm reduction as paradigm: is better than bad good enough? The origins of harm reduction. Crit Public Health. 2005;15(3):243-50.), superando, portanto, uma abordagem de redução de danos apenas “pragmática”(55. Haskins B, Lesperance D, Gibbons P, Boudreaux ED. A systematic review of smartphone applications for smoking cessation. Transl Behav Med. 2017;7(2):292-9.-66. Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Harm reduction: analysis of the concepts that guide practices in Brazil. Physis. 2010;20(3):995-1015.).

A análise dos jogos não revelou nenhuma posição relacionada à perspectiva crítica de educação sobre drogas. Pelo contrário, os conteúdos identificados na maioria dos jogos partem do conceito de risco para estabelecer advertências preventivistas. Nesse caso, o público-alvo privilegiado são os jovens, considerados naturalmente vulneráveis.

Apesar das estratégias de construção de um elo empático entre jogador e personagem, a maioria dos jogos não favorece a empatia dos jogadores com os usuários de drogas, e sim reforça o estigma de quem consome drogas ilícitas, o que vai na contramão da redução de danos advogada pela saúde coletiva(77. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transf. Soc. 2013;4(2):38-54.).

Alguns jogos têm como dispositivo retórico procedimental a corrida. É o caso de J2, J5, J15 e J19. Nesses casos, as decisões devem ser tomadas de forma aligeirada, em plena corrida. Isso parece representar bem a pressa na “sociedade do cansaço”(1919. Han BC. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes; 2015.), onde a condição humana se concretiza em um corpo exausto-e-correndo.

A maior parte dos jogos foi desenvolvida para direcionar a experiência do jogador para uma forma “certa” de interagir com o ambiente virtual, o que representa subutilização do potencial participativo e livre do jogo(2020. Sicart M. Against procedurality. Game Studies [Internet]. 2012 [cited 2018 Aug 5];11(3). Available from: http://gamestudies.org/1103/articles/sicart_ap/
http://gamestudies.org/1103/articles/sic...
). Afinal, os jogos digitais são mais do que meio de transmissão de conteúdo. Eles podem reunir pessoas, ganhando sentido como espaço de diálogo, podem produzir reflexão e estimular a participação política(1414. Canoletti B, Soares CB. Drug consumption programs in Brazil: analysis of the scientific production from 1991 to 2001. 2005;9(16):115-29.).

Os jogos digitais podem incluir inúmeras formas de interação(11. Vasconcellos MS, Carvalho FG, Araujo IS. O jogo como prática de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018.) entre usuários e entre usuários e game designer , o que possibilitaria o compartilhamento de experiências e contextos de uso de drogas em diferentes grupos sociais, estabelecendo elos com a realidade concreta e permitindo reflexão crítica sobre o consumo de drogas. Por consequência, jogar aumentaria a possibilidade de repercussões e redução de danos fora do mundo virtual.

Essa participação criativa e o pensamento autêntico nos jogos analisados não foram privilegiados. Não há estímulo à exposição e à crítica de convicções preconceituosas e errôneas. Assim, os jogos desempenham papel restrito e bastante questionável, já que se limitam a transmitir informações muito parciais, quase sempre sobre os malefícios causados pelas drogas, além de outros aspectos negativos. Os objetivos são de disciplinar o comportamento e gerar pânico social, com incentivo a respostas pré-programadas.

Essa evidente limitação dos jogos que abordam a temática das drogas demonstra importante contradição, a de que, embora os jogos sejam estratégias de linguagem tecnológica contemporânea, apresentam conteúdos desatualizados e pouco científicos.

Os resultados analisados parecem ser consistentes com as críticas à educação hegemônica sobre drogas. Outros estudos são necessários para apoiar o desenvolvimento de uma nova geração de jogos aplicados na área de drogas, em especial estudos que deem visibilidade ao momento do consumo dos jogos, ou seja, o ponto de vista dos jogadores.

Esta análise tem limitações, pois alguns critérios de rigor usados em revisões da literatura científica não puderam ser aplicados no contexto de lojas de aplicativos comerciais, como busca exaustiva e lógicas booleanas.

CONCLUSÃO

Apesar do potencial das ferramentas virtuais, os jogos analisados estão marcados por intensa simplificação da questão, com uma comunicação prescritiva e normativa que veicula mensagens com abordagem genérica, estimulando a rapidez de respostas pré-programadas e não extrapolando, assim, a memorização.

Os jogos sobre drogas poderiam ajudar a entender como essas substâncias se relacionam com a estrutura e as dinâmicas sociais atuais, expondo a determinação social que está na base do consumo problemático de drogas, promovendo em especial um espaço seguro para a aprendizagem. Todavia, nenhuma reflexão crítica sobre o consumo de drogas foi observada. Nesse sentido, os jogos analisados não parecem capazes de fomentar reflexões sobre os perfis epidemiológicos dos grupos sociais e as necessidades em saúde.

Desenvolver jogos com temáticas e objetivos relacionados à saúde é tarefa complexa que envolve conhecimentos específicos e técnicos. É possível estrategicamente se beneficiar dos jogos analisados e outros jogos comerciais para sensibilizar, problematizar ou transmitir informações úteis, como direitos, princípios do SUS e reflexões sobre riscos e redução de danos, desde que integrados a outras estratégias que promovam encontro, vínculo e crítica entre jogadores.

Por fim, os potenciais e as limitações dos jogos resultantes deste estudo devem ser tomados em consideração para o desenvolvimento de novos jogos aplicados com abordagem crítica.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2018
  • Aceito
    21 Fev 2019
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