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Contributo para traçar o perfil do público leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837-1847

Contribution for delineating the profile of the public reader of the Royal Portuguese Cabinet of Reading: 1837-1847

Resumos

Resultado de uma pesquisa que teve como objetivo identificar os critérios que propiciaram a política de seleção do acervo do Real Gabinete Português de Leitura e, a partir deles, estabelecer a Política de Seleção que foi praticada pelo Gabinete. Por uma abordagem exploratório-descritiva, utilizando características do acervo, este artigo busca delinear a figura do leitor no período de 1837-1847. Identifica ainda algumas classes de leitores e suas leituras.

Real Gabinete Português de Leitura; Rio de Janeiro; Século XIX; Emigração portuguesa; Leitores; Leitura


The objective of this research is to identify the criteria which brought forth the selection policy of the collection of Royal Portuguese Cabinet of Reading and to establish the Selection Policy used by the Cabinet. Through an exploratory-descriptive approach and utilization of the collection characteristics, this article delineates the profile of the reader in the period of 1837-1847, and also identifies some other classes of readers and their reading.

Real Gabinete Português de Leitura; Rio de Janeiro; XIX century; Portuguese emigration; Readers; Reading


ARTIGOS

Contributo para traçar o perfil do público leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837-1847* * Agradeço imensamente às professoras doutoras Tânia Bessone e Gilda Santos pelas orientações e paciente leitura deste artigo.

Contribution for delineating the profile of the public reader of the Royal Portuguese Cabinet of Reading: 1837-1847

Fabiano Cataldo Azevedo

Bacharel em biblioteconomia, bolsista PCI do Museu de Astronomia e Ciências Afins, onde integra grupo de pesquisa sobre preservação de acervos bibliográficos especiais. E-mail: fabiano@mast.br

RESUMO

Resultado de uma pesquisa que teve como objetivo identificar os critérios que propiciaram a política de seleção do acervo do Real Gabinete Português de Leitura e, a partir deles, estabelecer a Política de Seleção que foi praticada pelo Gabinete. Por uma abordagem exploratório-descritiva, utilizando características do acervo, este artigo busca delinear a figura do leitor no período de 1837-1847. Identifica ainda algumas classes de leitores e suas leituras.

Palavras-chave: Real Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro. Século XIX. Emigração portuguesa. Leitores. Leitura.

ABSTRACT

The objective of this research is to identify the criteria which brought forth the selection policy of the collection of Royal Portuguese Cabinet of Reading and to establish the Selection Policy used by the Cabinet. Through an exploratory-descriptive approach and utilization of the collection characteristics, this article delineates the profile of the reader in the period of 1837-1847, and also identifies some other classes of readers and their reading.

Keywords: Real Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro. XIX century. Portuguese emigration. Readers. Reading.

INTRODUÇÃO

Este artigo é um dos resultados produzidos por pesquisa de quatro anos sobre a história da formação do acervo do Real Gabinete Português de Leitura (RGPL), no Rio de Janeiro. A sistematização dos conceitos adveio das discussões no grupo de pesquisa Espaços e Práticas Biblioteconômicas junto à linha de pesquisa Biblioteconomia, Cultura e Sociedade1 1 Coordenado pela professora doutora Simone Weitzel, do Departamento de Biblioteconomia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. , e em conjunto com professores do Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras2 2 Sediado no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. . A pergunta "Como nasce um gabinete de leitura?" foi o motor que nos levou a principiar a pesquisa. O objeto de investigação foi o RGPL, e o problema da pesquisa identificar os critérios que propiciaram a política de seleção do acervo da instituição. O recorte temporal abrangeu os anos de 1837 a 1847, porque, pela análise da documentação compulsada, verificamos que se tratava de período-chave para formação do acervo.

No que respeita à bibliografia acerca de estudos sobre gabinetes de leitura, já nos anos de 1980 Manuela Domingos relatava a escassez de produção em Portugal. No Brasil, o tema tem figurado apenas em capítulos de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em Gabinetes de leitura da província de São Paulo: a pluralidade de um espaço esquecido: 1847-1890, Ana Luísa Martins (1990) apresentou importantes contribuições acerca da situação política e social do Rio de Janeiro da época, não faltando em seu estudo breves considerações sobre o acervo do Real Gabinete.

Já em Palácio de destinos cruzados: homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920, Ferreira (1994) tratou em breves linhas da fundação do RGPL e analisou em minúcia dados referentes ao Catálogo de 1858 para concluir que "houve ênfase nos cuidados de manutenção do acervo bibliográfico, significativo para médicos, advogados e comerciantes" (FERREIRA, 1999, p. 103). Considerou o gabinete como um "espaço de sociabilidade" que "teria sido responsável pela intensificação de laços afetivos, políticos e profissionais entre os freqüentadores" (FERREIRA, 1999, p. 103).

Em sua tese Os jardins das delícias: gabinetes literários, bibliotecas e figurações da leitura na corte imperial, Schapochnik (1999) estabeleceu conexões entre os Catálogos da Sociedade Germânica, British Subscription Library, Bibliotheca Fluminense e Real Gabinete Português de Leitura. Apresentou ainda análise do acervo do RGPL no ano de 1858 e sistematizou várias informações que se constituíram em ponto de partida para a formulação do problema de pesquisa na investigação realizada.

Se tivemos nos trabalhos supracitados um norte metodológico, a base histórica fundamental foi encontrada em grande quantidade de documentação manuscrita do acervo do RGPL. Praticamente inéditas, essas fontes compõem a "memória do Real Gabinete", tendo como documentação principal as Actas das Sessões da Directoria do Gabinete Portuguez de Leitura3 3 No total foram indexadas 1806 Atas do período de 1837 a 1937. . A essa documentação somou-se a compilação dos dados do Relatório apresentado à Assembleia da Sociedade do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro, datado de 10 de setembro de 1837. Esses documentos constituíram a espinha dorsal da pesquisa e foram exaustivamente cotejados com o objetivo de entender o processo de formação do acervo mediante os critérios de seleção. Para o estudo da maneira como o acervo evoluiu, e como reflexo da Política de Seleção do Acervo, os catálogos impressos do RGPL, tornaram-se essenciais, sobretudo os publicados em 1840, 1844 e 1846.

Foram inúmeras as considerações e resultados que obtivemos pela investigação empreendida4 4 Sugerimos como complemento para leituras sobre a maneira de formar acervos no século XIX as seguintes leituras: PEIGNOT, Gabriel. Manuel du bibliophile, ou traité du choix des livres... Dijon: chez Victor Lagier Libraire, 1828; SPOFFORD, A. R. Binding and preservation of books. In: DEPARTMENT OF THE INTERIOR. BUREAU OF EDUCATION. Public Libraries in the United States of America: their history, condition and managment. Washington: Government printing office, 1876; COUSIN, Jules. De l'organisation et d'administration des bibliothèques publiques et privées: manuel théorique & pratique du bibliothécaire. Paris, 1882. Os três livros podem ser consultados no acervo do RGPL, o segundo a título de curiosidade possui uma dedicatória de Ramiz Galvão, um dos mais ilustres diretores da Biblioteca Nacional. . Neste artigo, porém, temos o objetivo de apresentar alguns traços do perfil do leitor do RGPL. Interessa-nos, sobretudo, sua caracterização. Para delinear a "face" dessas pessoas que utilizaram o acervo, partimos do método clássico aplicado em estudos de bibliotecas particulares, qual seja, identificar características do possuidor do acervo a partir dos seus livros. No caso em questão, dadas as circunstâncias em que o RGPL foi fundado, isso é absolutamente possível. Por tal razão neste artigo restringimos ainda o período tratado para os anos de 1837-1847.

Ao perquirir passo a passo os relatos nas atas e nos relatórios, verificamos o cuidado e atenção que o grupo fundador teve ao considerar o tipo de acervo que passaria a adquirir. Além das questões ideológicas e culturais, ao estabelecer solenemente, a 10 de setembro de 1837, o parâmetro magno de aquisição de obras em língua portuguesa, pensou no público que passaria a utilizar a coleção, pois afinal uma coleção só se justifica pelo uso que se fará dela.

Há um imbricamento entre seleção do acervo e público-alvo. Demonstrando conhecimento pouco comum dessa relação, o grupo fundador do RGPL teve muita atenção nessa seara. José Marcelino da Rocha Cabral – primeiro presidente da instituição – e seus companheiros e sucessores, no período analisado, foram extremamente modernos e pioneiros no processo de formação do acervo, e, em razão disso, não foi por acaso que já no final do século XIX o RGPL era uma das principais coleções do país e se tornou um dos poucos gabinetes de leitura que progrediu. Por meio de uma abordagem exploratório-descritiva e utilizando características do acervo, tentaremos neste artigo delinear a figura do seu leitor. É objetivo, igualmente, dar ciência de uma documentação pouco consultada na instituição e procurar despertar interesse para ela.

A FUNDAÇÃO E ESTRUTURA DE FUNCIONAMENTO NOS PRIMEIROS ANOS

Na tarde de 14 de maio de 1837, "pessoas das diversas classes da emigração portugueza" (MONTÓRO, 1880, p. 402) dirigiram-se para o sobrado n. 20 da Rua Direita (hoje Primeiro de Março), casa do advogado português António José Coelho Lousada. A sessão foi presidida pelo conselheiro João Baptista Moreira, na época cônsul-geral de Portugal. Para que isso acontecesse, os maiores esforços para criação da "primeira organização portuguesa no Brasil após a Independência" (CORREIA, 1937, p. 197) foram dos emigrantes José Marcelino Cabral e Eduardo Alves Viana.

Há circunstâncias da fundação e vinda desses portugueses para o Brasil sobre as quais cabem aqui breves informações. Com a morte de dom João VI em março de 1826, a linha sucessória recaía sobre dom Pedro I.

Mas este, como imperador do Brasil,não poderia ser rei em Portugal (OLIVEIRA MARTINS, 1881). Assim, envia sua filha Dona Maria da Glória, princesa do Grã-Pará, para assumir o trono. Contudo, dom Miguel, tio dela, empreendeu uma luta para lhe usurpar o trono. De 1826 a 1834,Portugal viveu as denominadas Campanhas da Liberdade, que fragmentaram a sociedade portuguesa. Foi um período de luta sangrenta e perseguições.

Assim, "fugidos às perseguições miguelistas, muitos homens que haviam combatido pelos novos princípios da liberdade" (DIAS, 1927, p. 6) emigraram para o Rio de Janeiro. Nesse grupo estava José Marcelino da Rocha Cabral e Eduardo Alves Viana. O primeiro era advogado e chegara ao Brasil com 30 anos (DIAS, 1927, p. 6), em 1828, e aqui viera encontrar "António José Coelho Louzada, Alberto Antonio de Moraes Carvalho, Caetano Alberto Soares e outros advogados portugueses de boa nomeada que o haviam precedido na emigração" (BARROS MARTINS, 1912, p. 12). De Eduardo Viana não restam muitos detalhes biográficos; sabe-se apenas que era comerciante estabelecido na rua do Ouvidor (MONTÓRO, 1880, p. 402).

Além de sua significativa importância cultural, a cidade do Rio de Janeiro, naqueles primeiros anos da Independência, como a maior parte do Brasil, "não mais cultivava as tradições lusas, e, muito pelo contrário, procurava erradicar a influência metropolitana" (MARTINS, 1990, p. 35). O ensino da língua francesa crescia, assim como o gosto por seus autores. Restam poucas dúvidas de que o critério magno de seleção, isto é, o privilégio ao idioma português, espelhava o desejo dos fundadores do RGPL em reagir pacificamente a uma sociedade "culturalmente rendida à França e, mais que isto, apressada em trocar os arquétipos culturais lusitanos [...]" (MARTINS, 1990, p. 35). Buscaram não somente criar uma instituição de caráter associativo, mas também oferecer ao emigrado uma espécie de embaixada cultural lusitana onde poderiam dispor das publicações em sua língua vernácula.

[...] o emigrado luso que aportava no Rio de Janeiro, embora igualmente marcado por 'francesismos', ressentia-se do acanhado do meio, e estava em busca de parte de sua identidade pátria. [...] Acrescente-se que para esses homens, familiarizados com o avanço dos centros europeus, eram poucos os recintos de ilustração disponíveis no Rio de Janeiro, e mesmo assim restritos a uma elite que desfrutava dos postos de mando da administração (MARTINS, 1990, p. 36).

Estas palavras de Ana Luísa Martins representam um excelente quadro da "ambiência" da então capital do Império no primeiro quartel do século XIX. Muitos emigrantes vinham de um Portugal desejoso de implementar a leitura, mas no Rio de Janeiro encontraram poucos lugares onde poderiam usufruir o que era produzido em seu país.

Tomando como base a situação política e social na capital do Império, o discurso inaugural de José Marcelino da Rocha Cabral se torna claramente compreensível.

[...] não posso resistir ao enthusiasmo que me inspira a presença da primeira reunião de portuguezes, que tem havido no Imperio em um estabelecimento próprio, por ellles creado, no intuito da sua illustração, da illustração geral e de concorrer para restaurar a gloria litteraria da sua patria! (GPL, 1837, p. 10-11).

Essas palavras corroboram a nossa afirmação de que havia um público-alvo em mente. O gabinete, então, passaria a constituir um espaço onde esse público poderia sorver a cultura produzida em Portugal.

Após a criação na Rua Direita, nº. 20, o Gabinete teve sua primeira sede numa casa alugada à Rua São Pedro, nº. 83 (MONTÓRO, 1880, p. 402). A primeira sessão com os acionistas ocorreu em 10 de setembro de 1837 (GPL, 1837). Na época o Gabinete abria as portas às 10 horas da manhã e fechava às 12 horas, retornava às 16 horas e seguia até às 20 horas. Aos domingos e dias santos funcionava das 16 horas às 20 horas (GPL, 20 nov. 1827).

Esse foi um período de grande movimento para a composição do acervo. Martins sugere que o progresso do RGPL pode ser atestado pela publicação do seu primeiro catálogo em 1840 (MARTINS, 1990, p. 39). Oespaço desse prédio não deveria ser tão pequeno, pois que, em 18 de outubro de 1840, uma das salas foi cedida para a Sociedade Portuguesa de Beneficência realizar suas sessões (GPL, 18 out. 1840), mas, de certo, não grande o bastante para abrigar o acervo que crescia. Em 1838, possivelmente em razão disso, houve movimentos para alugar outro imóvel.

Primeiramente a diretoria negociou o aluguel de uma casa à Rua da Alfândega, nº 29, mas o negócio malogrou (GPL, 20 out., 19 nov., 3 dez. 1838). Um ano depois, novas negociações, desta vez para imóvel localizado à Rua do Ouvidor (GPL, 17 jun. 1839) – pela ausência de comentários nas atas o resultado foi idêntico ao anterior. Em 25 de novembro de 1839, a diretoria autoriza as negociações para alugar uma casa na Rua da Quitanda (GPL, 25 nov. 1839) com semelhante insucesso. Em 1841, começa a negociação para compra – e não mais aluguel – de um imóvel na Rua da Alfândega. O fato é que, provavelmente em meados do primeiro semestre de 1842, o RGPL muda-se para o nº 55 daquela rua (MONTÓRO, 1880, p. 407). Nesse endereço havia funcionado a tipografia do jornal O Despertador, de propriedade de José Marcelino da Rocha Cabral.

Carlos Montóro fornece mais detalhes acerca desse período:

[...] em 1843, quando fui pela primeira vez espectador dos trabalhos desta Instituição, estava ela estabelecida à Rua da Quitanda, 55, e já contava avultado número de volumes. [...] Os homens de mais elevada posição na colônia portuguesa, os que possuíam maior fortuna, merecimento, ou graduação científica, rivalizavam para pertencer à sua diretoria. No seio das classes ilustradas da nação brasileira, também era geral o apreço a esta instituição [...].(MONTÓRO, 1856, apud TAVARES, 1970, p. 32-33).

Com um acervo de 14 mil volumes (ALMANACK LAEMMERT 1849, p. 226), impelidos pela necessidade de expansão para os livros e para admissão de novos sócios, o Gabinete muda-se em abril de 1850 para o nº 50 da Rua dos Beneditinos (MONTÓRO, 1880, p. 407). De lá até o atual prédio em estilo manuelino da Rua Luís de Camões, inaugurado em 10 de setembro de 1887, a história do Gabinete é composta por fatos que enaltecem ainda mais a capacidade administrativa dos nobres varões (MONTÓRO, 1880, p. 402) que o criaram, pois foi do intenso e intensivo trabalho levado a termo nos dez primeiros anos que resultou toda uma linha de ação que pode ser observada nas décadas que se seguiram.

O estabelecimento do horário de funcionamento não implicou abertura do Gabinete. Ao longo do ano de 1837, e mesmo antes da solene fundação em 14 de maio, a Diretoria empenhou-se em equipar a instituição tanto de mobiliário quanto do material bibliográfico, pois desejava abrir as portas já com acervo disponível aos usuários. Em um relatório, lê-se:

instava que se mandasse subscrever, ao menos, alguns periódicos da Europa, a tempo de poderem estar aqui quando se abrisse o Estabelecimento (GPL, 1837, p.9).

O quadro 1 ilustra o fluxo dessa atividade, além de deixar evidentes as prioridades do idioma:


Por esse orçamento é possível constatar que 70% da verba, ou seja, 5,600$000 foram destinados à compra de livros. De acordo com outros detalhes que virão a seguir, "livros estrangeiros" significavam livros em outros idiomas e não simplesmente editados em outros países. Para esses foram destinados 25% do total da verba. Para os livros em português ou traduzidos a verba foi maior, isto é, 45%, o que denota a aplicação dos critérios de seleção para a formação do acervo.

Somente em 22 de janeiro de 1838 foi deliberada a abertura do Gabinete, no entanto,só para acionistas. Não foi localizada nenhuma menção à data de abertura para subscritores. A leitura dos livros e periódicos do Gabinete – como era habitual em seus congêneres – foi franqueada a ambos mediante o pagamento de quantia que variava.

De acordo com os Estatutos do Gabinete de 1841, o acionista poderia requerer a ação por si ou ser apresentado por outro. Era condição sine qua non ser português e deveria pagar a quantia de "3$000 rs. por semestre, nos mezes de Janeiro e Julho de cada anno" (GPL, 1841, p. 5).

Já os subscritores poderiam ser "pessoas de um e outro sexo, e de qualquer nacionalidade". Um subscritor para ser admitido necessitava ser proposto por um acionista e aprovado pela Diretoria e poderia subscrever "por três, seis, ou doze mezes, pagando no 1º caso 4$000rs, no 2º 7$000 e no 3º 12$000rs adiantados". Ambos deveriam "sêr bem morigerado[s] e de occupação honesta" (GPL, 1841, p. 15) e estava facultado o acesso aos livros da biblioteca e à leitura de periódicos. Note-se que o valor pago pelo acionista é inferior ao do subscritor; contudo o primeiro tinha o dever de "tomar e possuir uma ou mais acções, pagando seu valor como a Directoria determinar" (GPL, 1841, p. 15) – ainda segundo o mesmo Estatuto.

É inquestionável que o Gabinete surgiu como uma associação para reunir portugueses – na figura desses acionistas e subscritores – e representou um espaço de sociabilidade importante para esse grupo. Não se pode, entretanto, deixar de considerar que, para as primeiras gerações que o freqüentaram e o administraram, o objetivo primordial era sua função de biblioteca portuguesa na corte do Rio de Janeiro.

EM BUSCA DO PERFIL DO PÚBLICO-LEITOR DO GPL

Não obstante o estabelecimento das classes dos freqüentadores do Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro em acionistas e subscritores, algumas questões precisam ser respondidas: Qual o perfil dos leitores entre os anos de 1837 e 1847? O que liam? Liam em casa e/ou na própria instituição? Buscavam leitura de formação ou/e leitura de fruição e lazer? Quais foram os livros mais lidos?

Pela a leitura e análise das Atas e Relatórios do RGPL que tivemos oportunidade de compulsar, identificamos quatro fases que caracterizam a seleção do acervo, a saber:

Essas "fases" na realidade refletem outra variação, isto é, do público-leitor do Gabinete. Por exemplo, se num primeiro momento a seleção e aquisição de obras e a assinatura de periódicos em língua francesa não geravam problemas, em outro momento isso aconteceu, como ilustrado num relatório de 1861. Nele, o relator, além de confirmar a primazia do romance como predileção entre os leitores, afirma que havia pequeno número de acionistas que o procurava na língua original, e, diante da dificuldade de aquisição de obras traduzidas para o português, a diretoria deliberou que o correspondente na Europa passasse a comprar obras em espanhol para atender os leitores (GPL, 1874, p. 7).

Outro fator de mudança no perfil do público leitor foi a expansão da classe dos subscritores à medida que a Instituição foi se sedimentando. Prova disso é que já nos idos de 1842 "era honra no commercio pertencer-se ao Gabinete" (BARROS MARTINS, 1901, p. 26). Perquirindo as informações cotejadas nos Relatórios e Atas, verificamos que a Diretoria estava atenta a tal mudança de perfil dos usuários do acervo, pois

[...] as successivas emigrações de Portugal desde 1842, haviam trazido para o Rio de Janeiro moços com applicação á nova litteratura, que desejavam a reforma das collecções da Bibliotheca e mais alargamento do circulo de influencias que até então haviam gerido a instituição (MONTÓRO, 1880, p. 409).

A primeira fase de público-leitor é representada justamente por portugueses liberais, egressos das academias de Direito e Medicina, sobretudo de Coimbra. Carlos Malheiro Dias em discurso proferido na sessão comemorativa do 347º aniversário da morte de Camões, afirmou que

[...] destacava-se, entre os muitos emigrados que os navios à vela transportavam para o Rio de Janeiro, um grupo de antigos escolares de Coimbra, bacharéis em Direito, homens das Leis [...] (DIAS, 1927, p. 6).

Assim, para compreendermos o perfil do público do Gabinete nesses primeiros anos é imperioso voltarmos o olhar a Portugal a fim de analisar qual formação esses emigrantes tinham em seu país de origem. Afinal, foram esses portugueses "comprometidos com suas lutas íntimas de oposição aos privilégios, buscando a liberdade, e pregando a igualdade e a fraternidade" (MARTINS, 1990, p. 43), os primeiros leitores da instituição.

Em Portugal, desde o início do século XIX, já havia iniciativas para a dinamização da leitura e fixação do público leitor. Nessa seara, "a par dos textos originais proliferam as traduções de obras estrangeiras" e com o objetivo de conquistar o leitor "organizam-se colecções literárias" (RIBEIRO, 1999, p. 191). Devido ao valor dos livros, a leitura pública foi "incentivada com a criação dos gabinetes de leitura e posteriormente com o aparecimento das bibliotecas públicas e a instituição das bibliotecas populares" (RIBEIRO, 1999, p. 191). E ainda, somando-se às ações governamentais, os acadêmicos de Coimbra participaram de um processo cujo objetivo era que o "gosto da leitura se tornasse extensível a um público mais alargado" (RIBEIRO, 1999, p. 192).

Dessa maneira, em solo Conimbricense, o movimento em prol da leitura foi grande e o apoio dos jovens acadêmicos foi fundamental. Em 1821 surge a Sociedade Tradutora e Encarregada do Melhoramento da Arte de Imprimir e de Encadernar, formada por Francisco Luís Gouveia Pimenta, Leonel Tavares Cabral, Joaquim Alves Maria Sinval (bacharéis em direito), Inácio António da Fonseca Benevides, Joaquim José Fernandes (bacharéis em medicina) e João Aleixo Pais (bacharel em cânones). Ribeiro conclui que

mesmo não tendo concretizado estes objectivos, o apoio destes jovens da Universidade de Coimbra ao movimento da leitura foi significativo (RIBEIRO, 1999, p. 192).

Ainda a respeito da influência que traziam consigo, Guedes afirma que:

só a popularidade dos gabinetes de leitura em Portugal pode explicar, parece-nos, que aqueles dois portugueses [Francisco Eduardo Alves Viana e José Marcelino da Rocha Cabral] tenham escolhido aquela designação para a novel instituição (GUEDES, 1987, p. 171).

Nas obras consultadas, foram raros os textos encontrados que tratassem de modo sistemático o fluxo e características dos emigrantes das décadas de 1830 e 1840. O artigo Ler, escrever e contar na emigração oitocentista, de Jorge Fernandes Alves, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fornece alguns detalhes a respeito desse assunto. Segundo o autor:

[...] no movimento migratório que anualmente saía de Portugal, particularmente no distrito do Porto (aquele cujas características aprofundei), é possível detectar, entre 1836 e 1880, várias especialidades profissionais que só se compreendem com um apreciável nível de alfabetização, ou mesmo formação mais elevada. Desde logo os profissionais ligados ao comércio, para quem não bastavam as primeiras letras, exigindo-se-lhes a escrita comercial com os formalismos inerentes a exigirem pelo menos habilitação prática adquirida em estabelecimentos comerciais [...]. Mas os cirurgiões da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que (tal como os de Lisboa) em Portugal eram preteridos nas nomeações face aos médicos da Universidade de Coimbra, tendo portanto na emigração para o Brasil uma importante saída de profissional (ALVES, 1999, p. 294, grifo nosso).

Essas palavras contribuem para definir o perfil desses portugueses que chegaram aos portos brasileiros. Como se observa, vinham munidos de uma formação acurada e, como vimos, influenciados pelo clima cultural que Portugal, com esforço, tentava dinamizar. O autor ainda apresenta outro tipo de emigrado: médicos formados no Porto. E, além desse, o comerciante que possuía uma formação além das primeiras letras.

Continuando seu artigo, o professor Jorge Fernandes assinala que alguns dos jovens emigravam sem ter profissão. Porém, possuíam uma

[...] formação escolar que muitas vezes ultrapassava as competências primárias do saber ler, escrever e contar" e quando chegavam aqui – tomados de ambições literárias – se "dedicavam ao jornalismo ou às belas-letras, particularmente à poesia" (ALVES, 1999, p. 294).

Em estudo pioneiro sobre a história do Gabinete, Montóro já informava que "não foram só trabalhadores do Minho e da Beira que acudiram ao novo estado" (MONTÓRO, 1880, p. 401), isto é, ao Rio de Janeiro nos anos 30 do século XIX. O mesmo autor conclui sua ponderação registrando que:

[...] entre os emigrantes houve homens como os illustres jurisconsultos José Marcelino da Rocha Cabral, Antonio José Coelho Lousada, Francisco Freire de Carvalho, Tiburcio Caetano Craveiro, Caetano Alberto Soares, Bernardo Ribeiro de Carvalho, Adolpho Manoel Victorino da Costa e outros não menos honrados e distinctos, que reuniam ás virtudes civicas a vastidão do saber, as largas aspirações do espirito e fé robusta no progresso (MONTÓRO, 1880, p. 401).

Como se nota, o autor cita vários nomes do rol dos fundadores do RGPL e faz absoluta questão de ressaltar as qualidades intelectuais destes, como se observa em todo seu discurso. A citação ainda é válida porque reforça a idéia de outras classes que afluíram na emigração.

Na sua análise sobre os emigrantes vindos do norte de Portugal, Alves acredita que essa emigração "incluía um componente relativamente importante de 'letrados' cujas qualificações seriam consideradas supérfluas numa sociedade rural e rotineira" (ALVES, 1999, p. 296). Não obstante, essa mesma sociedade pregava que o imigrante deveria ter preparação escolar antes da vinda para o Brasil, para facilitar a absorção no mercado de trabalho.

A diretoria do Gabinete não descurou da necessidade do público que afluiria ao acervo. Fato revelado pelas palavras impressas no Relatório de 1837:

tractamos de reunir, quanto possivel, elementos de instrucção geral, tendo, comtudo, particularmente em vista as classes de leitores, que provavelmente há de concorrer ao Gabinete (GPL, 1841, p. 6).

Essa atenção da Diretoria poderia representar um reflexo do "grande esforço dos emigrantes portugueses no Brasil em busca da ilustração própria e alheia" (ALVES, 1999, p. 301), característica que certamente contribuiu para que anos depois o Gabinete fosse um dos motores da fundação do Liceu Literário Português. Como vimos, havia entre as falanges de emigrantes muitos jovens e não faltou atenção à formação desses também. Por estas considerações fica patente que não ousamos afirmar que o público do Gabinete era formado essencialmente de letrados. Contudo, os dados colhidos nos catálogos levam-nos a acreditar que representavam maioria.

Em breve análise nos catálogos do Gabinete observamos assinaturas de periódicos portugueses e ingleses cujo assunto era o comércio e a indústria. Houve ainda uma preocupação com obras de referência, sobretudo dicionários. Há presença maciça de romances entre os títulos mais destacados do acervo. Esses dados nos levam a confirmar o quanto José Marcelino da Rocha Cabral, João Joaquim Pestana e José de Almeida e Silva, responsáveis pela seleção do acervo, tinham em foco o público, que utilizava o acervo tanto em virtude de suas necessidades profissionais como para o lazer.

Os relatos nas Atas nos revelaram que os usuários do RGPL – no primeiro momento composto apenas por acionistas – estavam muito interessados na leitura de periódicos, sobretudo comerciais, de várias praças do Império e da Europa. Os exemplos são inúmeros, todavia, podem-se citar alguns que consideramos representativos, no que refere à formação e aos interesses dos usuários.

Em 22 de janeiro de 1838, o tesoureiro foi autorizado a assinar "hum jornal Commercial em cada huã das principais Provincias do Imperio" (GPL, 22 jan. 1838). Em maio do mesmo ano, tendo em vista problemas com a importação de algumas folhas de Lisboa, o acionista António Ferreira Brandão ofereceu para uso do Gabinete "o Periódico Nacional de que [era] assignante" (GPL, 21 maio 1838) até que a situação se normalizasse. Contudo, não eram só títulos comerciais e políticos. Em 18 de novembro de 1839, a diretoria encaminhou uma carta ao agente do Gabinete em Lisboa, Thomas José Pereira Lima, na qual, dentre outros assuntos, foi enfatizado o desejo de assinar o Archivo Theatral, e cobrava ainda os seis primeiros números do Universo Pittoresco, pois só havia recebido o número 7 (GPL, 18 nov. 1839).

A procura por notícias era muito grande entre os leitores do Gabinete. O Tesoureiro Luís Miguel Afonso declarou numa Sessão da Diretoria que os acionistas que ficaram sabendo da chegada de periódicos de Lisboa e da Inglaterra "mostravão grande desejo de ler essas folhas" (GPL, 20 nov. 1837). Outro exemplo é a cópia de uma carta transcrita no Livro do Copiador, destinada ao mesmo Thomas José Pereira, que revela aspectos desse público:

[...] enquanto a falta de periodicos pelos navios estrangeiros que os não trouxerão bem se vio que alguma coiza sobrenatural teria dado occasião a esta falta, porem a Directoria espera que Vsª alem de Corretor dos despachos em quem confiou se previna pelo meio que mais bem se lhe prorcionar afim de lhe não escapar occasião alguma taes remessas, e ainda quando hajão de sahir este porto, duas ou mais embarcações no mesmo dia, repetir em todas as remessas de periodicos, para evitar a esta administração o desgosto de dar satisfações a tantos concorrentes que no acto da chegada de navios procurão as noticias recebendo grande descontentamto quando as não alcanção, e toda a despeza extraordinaria q neste objecto fizer a Directoria lhe leva a em conta (GPL, 18 nov. 1839).

É possível supor que, dentre esses que esperavam ansiosos, estavam os leitores das folhas comerciais e os das literárias. Enquanto os primeiros buscavam as notícias atualizadas no âmbito comercial para seus negócios aqui e fora, os últimos queriam informações sobre os mais recentes impressos vindos à luz nas tipografias européias.

Outro dado que confirma a ilustração do público que concorria ao Gabinete, é o grande número de livros em francês. Parece significativo, numa época em que o índice de analfabetos tanto no Brasil quanto em Portugal era considerável, o fato de se assinarem periódicos ingleses e franceses, o que revela que os leitores eram indivíduos pertencentes a uma elite que teve educação acadêmica, ou liceal.

A exemplo de Tânia Bessone e Nelson Schapochinik, que compilaram dados referentes ao "idioma" e "assunto" no Catálogo do Real Gabinete de 1858, tomamos como universo de análise a edição de 1844. O exame dessa publicação revelou o seguinte panorama, explicitado nos quadros 3 e 4.



Embora o século XIX ainda estivesse sob a influência da língua francesa, acreditamos que a escolha desse idioma refletia as características dos usuários, para os quais não era barreira. Além disso,

as deficiências do mercado editorial luso-brasileiro e a preocupação em cobrir um amplo espectro de temas impunham, necessariamente, a aquisição de obras editadas em outro idioma (SCHAPOCHINIK, 1999, p. 122).

No que tange à relação assunto/idioma notamos que as Novellas eram compostas de 406 obras em língua portuguesa e 12 em francesa. Já em Litteratura prevaleciam o francês com 157 obras e o português com 126. Aprimazia da língua de Os Lusíadas também era vista na História, com 191, e no verbo de Voltaire, com 98 itens.

Em âmbito português, Rebelo conclui que:

[...] apesar dos objectivos sociais que algumas destas instituições [Gabinetes de Leitura] assumiam, os gabinetes eram considerados como instituições de leitura destinadas essencialmente à burguesia, pelo que dificilmente poderiam servir um público mais humilde que, embora ávido de leitura, não possuía o estatuto nem os recursos necessários para nele se poder integrar (REBELO, 2002, p. 78).

Ainda na ambiência lusitana, Ribeiro afirma que "o aluguer tornava-se apesar de tudo bem mais acessível do que a aquisição de uma obra" e destaca que mesmo assim, "nem todos os sectores sociais podiam pagar a assinatura mensal de um gabinete de leitura" (RIBEIRO, 1999, p. 195). Já no que respeita ao público leitor, a autora afirma que era restrito a uma pequena burguesia composta de intelectuais, políticos e outros letrados.

Carlos Montóro nos fornece um pouco mais de detalhes, até porque foi testemunha da época. Ao tratar da década de 40 do século XIX, ele conta que:

[...] No seio das classes ilustradas da nação brasileira, também era geral o apreço a esta instituição, e bastará apontar entre os vultos ilustres que a protegeram, o grande estadista, Ministro da Justiça na Regência de Araujo Lima, Bernardo Pereira Vasconcelos. Não era raro ver subir aquele que era alma de muitas situações políticas, as escadas, para ele tão difíceis, do estabelecimento, vir consultar as suas colecções e praticar com os empregados, dos progressos da instituição, que prezava como sua (MONTÓRO, 1856, apud TAVARES, 1977, p. 32-33).

A memória de Montóro ainda revela que não só o português, pelos idos dos anos 1840, aumentava a freqüentação no Gabinete, mas também o brasileiro. Eestes, como vimos, pertenceriam à categoria de subscritor. Observa-se que, além da busca de um status e das possibilidades simbólicas de pertencer a esse ícone da cultura lusitana, certamente havia o interesse pelas obras que já lotavam as estantes do GPL (SCHAPOCHINIK, 1999).

Houve ainda um público que passou despercebido por Barros Martins (1901, 1913); Taborda (1937) e Tavares (1977): as mulheres. Ana Luisa Martins (1999), ao tratar dos Gabinetes de Leitura em São Paulo, tece alguns comentários a respeito do público leitor feminino dessa instituição, mas, sobretudo, no Gabinete de Leitura de Sorocaba. A autora paulista verificou que "embora sócia do Gabinete e leitora em potencial, a participação da mulher naquela instituição se dava, sobretudo no âmbito social, organizando soirées", e ainda considera que "a retirada dos livros fosse por iniciativa das senhoras dos sócios, na sua maioria de tradicionais famílias sorocabanas" (MARTINS, 1999, p. 288). No caso ressaltado, ocorrem dois tipos de leitoras: a sócia e a esposa do sócio, uma com sua participação na instituição e a outra como a possível motivadora da locação do livro.

Rosa Esteves – em seu estudo pioneiro –, ao analisar o catálogo de Mlle. Férin e de Pedro Bonnardel5 5 A chamada Casa Bonnardel foi o primeiro gabinete fundado em Portugal, entre os anos de 1814-1815. O Cabinet de lecture de la Librairie Belge et Française "terá tido a sua origem, em 1839, na Rua Nova do Carmo, por Mademoiselle Férin." ESTEVES, Rosa. Gabinetes de Leitura em Portugal no séc. XIX : 1815-1853. Rev. da Universidade de Aveiro, v. I, p. 224, 1984, grifo nosso. , conjectura que "de um modo geral [...] o aluguer de livros terá servido a pequenos/médios funcionários, e/ou suas mulheres e filhas (ESTEVES, 1984, p. 234).

Manuela Domingos (1985), tanto com base nas análises propostas por Esteves quanto no estudo da iconografia da época, considera que houve um provável público feminino que alugava os livros. A mesma autora sugere que, se poucos homens sabiam ler, muito menos as mulheres. Ribeiro (1999) conclui – com base nos anúncios de jornais portugueses – que haveria um público leitor feminino.

Enfim, o fato é que alguns autores consideraram as mulheres como leitoras dos gabinetes, contudo faltou-lhes a ventura de encontrar nomes. Em nossa investigação fomos privilegiados por esses pormenores.

Na tentativa de reconstrução do público leitor do RGPL dos primeiros anos de sua fundação, localizamos nas atas dos anos 1830 a presença feminina. Os dados que compulsamos só nos permitem apresentá-los sem ousar inferências.

A primeira menção à presença de mulheres no RGPL está relatado na Ata de 29 de julho de 1839:

O Senhor Claudio Joze da Silva propôs pª Subscriptora a Senhora D. Carolina de Noronha Torrezão, e não se havendo ainda deliberado, se o secço feminino deveria ser admitido, ficou nesta parte por decidir a proposta (GPL, ACTAS, 29 jul.1839).

Essa proposta deve ter reverberado entre os presentes, uma vez que não havia precedente – a crer pelo conteúdo das atas pesquisadas. Contudo, como um aspecto revelador da disposição da diretoria, não houve pronta recusa, antes, decide ponderar em conjunto com o Conselho Deliberativo. Perscrutamos as atas do conselho, mas não houve menção à nova postulação.

Quatorze dias depois, a 15 de agosto, a diretoria coloca a questão em votação: "Pondo-se em deliberação se poderão ser admittidas a Subscrever no Gabinete, pessoas do Secço feminino, depois de algumas observacoes venceu-se que sim, por unanimidade" (GPL, ACTAS, 15 ago.1839). Assim dona Carolina de Noronha Torrezão6 6 Até o momento em que finalizamos esta pesquisa, não havíamos encontrado detalhes biográficos sobre ambos, acionista proponente e subscritora. tornou-se a primeira mulher subscritora do RGPL. Pela análise dos discursos contidos nas atas notamos que a expressão "por unanimidade" só era usada pelos relatores quando a questão em votação tinha uma conotação muito séria e digna de maior apreciação. A proposta apresentada à Diretoria merece atenção igualmente porque esta senhora poderia ter acesso aos livros através de outros subscritores ou acionistas – pois "nada nos garante que estes não emprestassem os livros dali retirados" (AUGUSTINI, 1998, p. 16). Entretanto, a senhora Noronha Torrezão preferiu ela mesma ser responsável por seus empréstimos, tornando-se subscritora.

Por essas informações e outras subseqüentes que colhemos, não há como saber se esta senhora freqüentou o Gabinete como leitora ou se ocasionalmente alugava os livros de seu interesse. Não constam ainda nas atas outros nomes de mulheres que teriam sido propostas como subscritoras. Todavia, localizamos cinco que arrolam livros emprestados. Essas listagens foram compiladas pelo "Guarda da Biblioteca", funcionário responsável por um trabalho administrativo no âmbito do acervo (GPL, 1841). Este funcionário atendia os consulentes, localizava os livros nas estantes e recebia os formulários de pedidos. Segundo as normas de uso da biblioteca, impressas no Catálogo de 1844, o sócio ou acionista desejoso de locar uma obra deveria preencher um formulário. É possível que essas listagens tenham sido compostas com base nesse formulário que deveria ficar no Gabinete até o retorno da obra (GPL, 1844).

Esses documentos de "prestação de contas" permitem uma série de abordagens e análises quanto às leituras e interesses dos sócios. Neste artigo, vamos nos ater apenas à presença de mulheres na Relação das obras fora do Gabinete com recibos dos Snrs Socios e Subscriptores na occasião do Balanço, composta por Manoel Pereira de Carvalho, em julho de 1845. Essa é a listagem mais completa, pois, além de apresentar o nome da pessoa que retirou o livro, indica o seu título – este de forma abreviada ou como era conhecido popularmente.

Por ela soubemos que a senhora Raquel Maria Cordeiro alugou o best-seller da época, Corina, da Mme. de Staël-Holstein; já dona Maria Luísa de Portugal preferiu outro sucesso de então, As aventuras de Estevão Gonçalves, de La Sage; Nina Rosa T. dos Santos retirou o 5º e 6º volumes do Cours de Litterature Française, de Villemain; dona Carolina Sergio Velloso tomou em empréstimo O Fantasma Branco. Apreferência da sra. Camille Trinocq foi pela Geographia Universal, de Adrien Balbi, e a senhora Rita Clara de Araújo, Condessa de Sarapuí, locou famoso romance daqueles dias: Nossa Sra. de Pariz, de Vitor Hugo.

A lista Obras que se acham fora com bilhetes, feita por Francisco de Paula Cunha em abril de 1842, só relaciona nomes dos sócios e o número de tombo das obras. Nela localizamos as senhoras Ana Joaquina de Oliveira e Silva e Raquel Maria Cardoso dos Santos.

Os títulos lidos por essas subscritoras confirmam preferências do período, ou seja, romances; no caso, traduzidos da língua francesa. Contudo, contrariando um pouco o tipo de leitura "prevista" para esse tipo de público, há registro de retirada de dois livros técnicos, um de geografia e outro de literatura, este na língua original.

Diante do exposto, podemos propor o quadro 5 ilustrando o público do GPL.


Barros Martins conta que a partir de 1842, quando o RGPL já estava na rua da Quitanda nº. 55, "a mocidade começou a dar-se ao estudo das lettras [...]"(BARROS MARTIS, 1901, p. 26). A mudança deve ter contribuído para o aumento dos freqüentadores. Nesta rua,na primeira metade do século XIX, funcionou o Hotel Horácio, "preferido dos artistas de teatro vindos de Lisboa" e foi o primeiro endereço dos Irmãos Laemmert, recém-chegados da Europa (GERSON, 2000, p. 78). Na rua da Quitanda ainda esteve situada a British Subscription Library.

As informações fornecidas por Barros Martins abrem para a percepção de uma nova fase do RGPL, no que tange aos seus freqüentadores. Aos poucos a instituição foi-se firmando como espaço de sociabilidade, "responsável pela intensificação de laços afetivos, políticos e profissionais entre seus freqüentadores" (FERREIRA, 1999, p. 103). Sua coleção estendeu-se a outros consulentes ávidos e desejosos do que se produzia de novo, tanto no país, como principalmente em solo europeu. Lá encontravam periódicos das principais praças da Europa e da América Latina e livros recém-lançados aqui e além-mar. O perfil do acervo nesse período é moderno e aos poucos adere ao generalista. Os selecionadores do Gabinete acompanharam as demandas de um público leitor que mudava e agregava-se àquele inicial, mas isso será discutido em outra pesquisa.

CONCLUSÃO

Pela pesquisa empreendida, podemos identificar como o perfil dos leitores estava estritamente ligado aos interesses que a colônia portuguesa no Rio de Janeiro tinha em relação ao letramento em expansão na Europa. Conforme verificado na análise do catálogo de 1844, predominava a leitura de romances. Nos periódicos os leitores buscavam, sobretudo, os anúncios ou comentários, e informes comerciais das praças de Lisboa e Porto, sem, contudo, perder de vista o mercado interno. A presença de mulheres leitoras no RGPL representou uma grande surpresa, pois não localizamos informações semelhantes em outros gabinetes no período.

A mesma falta de tempo de que hoje muito se queixam para justificar a ausência da política de seleção, também eles na época tinham (obviamente guardando as devidas proporções), pois não se dedicavam apenas aos afazeres da instituição. A maioria deles eram advogados, médicos ou comerciantes, por isso reservavam algumas horas de sua rotina de trabalho para as necessidades administrativas do Gabinete.

A elaboração de uma política de seleção do acervo, aliada ao interesse e características do leitor, foi determinante para evolução da coleção. Sem dúvida, a atenção da diretoria do Gabinete Português de Leitura nesse assunto foi gratulada ao correr dos decênios, quando a pequena biblioteca nascida na Rua Direita, nº 20, transformou-se por antonomásia na Biblioteca Portuguesa do Brasil e em metáfora de um verdadeiro "Palácio de Livro" (SCHAPOCHNIK, 1999, p. 114).

FONTES

Manuscritas

Impressas

REFERÊNCIAS

Artigo submetido em 21/10/2008 e aceito em 22/12/2008.

  • GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO [GPL]. Actas da Sessão da Diretoria 1837-1847.
  • ______. Actas da Assemblea Geral 1837-1860.
  • ______. Livro do Copiador 1837-1868.
  • ______. Obras que se acham fóra com bilhetes Abril de 1842.
  • ______ Relação das obras fora do Gabinete com recibos dos Snrs Socios e Subscriptores na occasião do Balanço Junho de 1845.
  • GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO [GPL]. Relatorio do Gabinete Portuguez de Leitura apresentado em Sessão de Assembléia Geral de 24 de fevereiro de 1861 pelo respectivo Director José Peixoto de Faria Azevedo. Rio de Janeiro: Typografia de Pinheiro & Comp., 1861.
  • ______ Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro, em sessão extraordinaria de 10 de setembro de 1837, a primeira celebrada no local do estabelecimento [...]. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa, 1837.
  • ______. Estatutos Rio de Janeiro: Typ. Americana de I. P. da Costa, 1841.
  • ______. Estatutos Rio de Janeiro: Na Typ. de J. E. S. Cabral, 1844.
  • __–____. Catalogo dos livros do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Typ. Americana de I. P. da Costa, 1840.
  • _____. Catalogo dos livros do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro seguido de um supplemento das obras entradas no Gabinete depois de começada a impressão Rio de Janeiro: Typ. Americana de I. P. da Costa, 1844.
  • DIAS, Carlos Malheiro. Discurso. In: GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA. Sessão commerativa do 347ş anniversario da Morte de Camões e do 90ş anniversario da Fundação do Gabinete Rio de Janeiro: [s.n.], 1927. p. 1-19.
  • DOMINGOS, Manuela D. O público dos Gabinetes de Leitura. In: ESTUDOS de sociologia da cultura: livros e leitures do século XIX. Lisboa: Instituto Porturguês de Ensino a Distância, Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1985. p. 135-191. (Colecção Temas de Cultura Portuguesa, n. 10).
  • ESTEVES, Rosa. Gabinetes de Leitura em Portugal no séc. XIX: 1815-1853. Revista da Universidade de Aveiro, v. 1, p. 213-235, 1984.
  • FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. Palácio de destinos cruzados: homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 240 p.
  • GERSON, Brasil. História das ruas do Rio 5. ed., rev. ampl. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000.
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  • ORTIGÃO, José Duarte Ramalho. Discurso. In: GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA DO RIO DE JANEIRO. 50ş Anniversario: 1887. Rio de Janeiro: Typ. Italia, Curvello d'Avila & C., 1888.
  • REBELO, Carlos Alberto. As instituições de leitura. In: ______. A difusão da leitura pública: as bibliotecas populares, 1870-1910. Porto: Campo das Letras, 2002. p. 69-107.
  • RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. Livros e leituras no século XIX. Revista de História das Idéias, Coimbra, v. 20, p. 187-209, 1999.
  • TABORDA, Humberto. História do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro [Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1937]
  • TAVARES, António Rodrigues. Fundamentos e actualidades do Real Gabinete Português de Leitura Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1977. Edição comemorativa do 140ş aniversário de fundação.
  • *
    Agradeço imensamente às professoras doutoras Tânia Bessone e Gilda Santos pelas orientações e paciente leitura deste artigo.
  • **
    É imprescindível esclarecer que os dados apresentados neste quadro não são absoluto conclusivos, merecem um estudo ainda mais acurado. Sua apresentação, contudo, tem o objetivo de o submeter à apreciação e às considerações de outros pesquisadores mais abalizados no tema.
  • 1
    Coordenado pela professora doutora Simone Weitzel, do Departamento de Biblioteconomia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
  • 2
    Sediado no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
  • 3
    No total foram indexadas 1806 Atas do período de 1837 a 1937.
  • 4
    Sugerimos como complemento para leituras sobre a maneira de formar acervos no século XIX as seguintes leituras: PEIGNOT, Gabriel.
    Manuel du bibliophile, ou traité du choix des livres... Dijon: chez Victor Lagier Libraire, 1828; SPOFFORD, A. R. Binding and preservation of books. In: DEPARTMENT OF THE INTERIOR. BUREAU OF EDUCATION.
    Public Libraries in the United States of America: their history, condition and managment. Washington: Government printing office, 1876; COUSIN, Jules.
    De l'organisation et d'administration des bibliothèques publiques et privées: manuel théorique & pratique du bibliothécaire. Paris, 1882. Os três livros podem ser consultados no acervo do RGPL, o segundo a título de curiosidade possui uma dedicatória de Ramiz Galvão, um dos mais ilustres diretores da Biblioteca Nacional.
  • 5
    A chamada Casa Bonnardel foi o primeiro gabinete fundado em Portugal, entre os anos de 1814-1815. O
    Cabinet de lecture de la Librairie Belge et Française "terá tido a sua origem, em 1839, na Rua Nova do Carmo, por Mademoiselle Férin." ESTEVES, Rosa. Gabinetes de Leitura em Portugal no séc. XIX : 1815-1853.
    Rev. da Universidade de Aveiro, v. I, p. 224, 1984, grifo nosso.
  • 6
    Até o momento em que finalizamos esta pesquisa, não havíamos encontrado detalhes biográficos sobre ambos, acionista proponente e subscritora.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      22 Dez 2008
    • Recebido
      21 Out 2008
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