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Três casos de inovação curricular no panorama recente (1964-1988) da Educação Médica Brasileira: subsídios de um retrospecto baseado na revisão de documentos

Three cases of curricular innovation in the recent perspective (1964-1988) of the Brazilian Medical Education: an appraisal of a retrospect based on the review of documents

Resumos

No intervalo de uma década (1966-1975), três escolas médicas - nas universidades de Brasília (UnB), São Paulo (USP) e Minas Gerais (UFMG) - estabeleceram novos currí-culos a fim de preparar médicos com potencial ampliado no trato de necessidades de saúde no cenário comunitário. As três escolas diferiam entre si no contexto geopolítico, na totalidade de recursos e na experiência de vida. Embora suas propostas tivessem traços em comum, cada qual definiu de forma peculiar os elementos da organização programática, dos enfoques estratégicos e da gestão do processo curricular, os quais se expressaram diferentemente na característica global de orientação comunitária, bem como no impacto de seus efeitos na formação dos médicos e no sistema de saúde. Este relato reúne informações documentais referenciadas e algumas ilações sobre os elementos básicos da inovação curricular e seus efeitos, nos três casos.

Inovação; Currículo; Escolas Médicas; Educação Médica


Along a decade (1966-1975), three medical schools - belonging to the University of Brasilia (UnB), University of São Paulo (USP) and University of Minas Gerais (UFMG) - established new curricula, aiming at the education of physicians with a broader capacity to deal with the health needs of the community. The three schools differed between them in their amount of resources, life experience and geopolitical factors. Although their proposals shared common features, each one peculiarly developed the elements of the program organization, the strategical approaches and the management of the curricular processes - which displayed differently in the key component of community orientation, as well as on the consequences of their outcomes on the physician education and the health system. This report brings the available documental information together and makes inferences about the basic features of the curricular innovation and its effects, in the three cases.

Organizational Innovation; Curriculum; Medical Schools; Medical Education


PESQUISA

Três casos de inovação curricular no panorama recente (1964-1988) da Educação Médica Brasileira: Subsídios de um retrospecto baseado na revisão de documentos

Three cases of curricular innovation in the recent perspective (1964-1988) of the Brazilian Medical Education: an Appraisal of a retrospect based on the review of documents

Dejano T. Sobral

Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

Endereço para correspondência ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Dejano T. Sobral Universidade de Brasília – Faculdade de Medicina Caixa Postal 04569 CEP 70910-900 – Brasília – DF E-mail: dtsobral@unb.br

RESUMO

No intervalo de uma década (1966-1975), três escolas médicas — nas universidades de Brasília (UnB), São Paulo (USP) e Minas Gerais (UFMG) — estabeleceram novos currí-culos a fim de preparar médicos com potencial ampliado no trato de necessidades de saúde no cenário comunitário. As três escolas diferiam entre si no contexto geopolítico, na totalidade de recursos e na experiência de vida. Embora suas propostas tivessem traços em comum, cada qual definiu de forma peculiar os elementos da organização programática, dos enfoques estratégicos e da gestão do processo curricular, os quais se expressaram diferentemente na característica global de orientação comunitária, bem como no impacto de seus efeitos na formação dos médicos e no sistema de saúde. Este relato reúne informações documentais referenciadas e algumas ilações sobre os elementos básicos da inovação curricular e seus efeitos, nos três casos.

Palavras-chave: Inovação; Currículo; Escolas Médicas; Educação Médica.

ABSTRACT

Along a decade (1966-1975), three medical schools — belonging to the University of Brasilia (UnB), University of São Paulo (USP) and University of Minas Gerais (UFMG) — established new curricula, aiming at the education of physicians with a broader capacity to deal with the health needs of the community. The three schools differed between them in their amount of resources, life experience and geopolitical factors. Although their proposals shared common features, each one peculiarly developed the elements of the program organization, the strategical approaches and the management of the curricular processes — which displayed differently in the key component of community orientation, as well as on the consequences of their outcomes on the physician education and the health system. This report brings the available documental information together and makes inferences about the basic features of the curricular innovation and its effects, in the three cases.

Keywords: Organizational Innovation; Curriculum; Medical Schools; Medical Education.

Introdução

Ao longo dos últimos 25 anos, várias escolas médicas brasileiras desenvolveram propostas de mudanças curriculares que resultaram em experiências concretas de formação profis-sional, ainda que transitórias, eventualmente. No entender da coordenação do Projeto EMA (Educação Médica nas Américas), um retrospecto dessas propostas, suas conotações e efeitos poderia iluminar a busca da transformação da situação atual para uma perspectiva repre-sentada pela imagem-objetivo da educação médica em suas diferentes facetas1-4.

Três das principais experiências históricas iniciadas na década 1966-1975 foram selecionadas pelo Grupo de Trabalho do Projeto EMA-Brasil – conforme memória da reunião de 28 e 29/01/1988 – e são objetos do presente relato. Representam aspectos distintos da experimentação curricular: a implantação de um curso em escola nova (na UnB); a condução de um curso experimental paralelo ao tradicional (na USP); e a vivência de reformulação curricular a partir de um curso já convencional-mente modificado (na UFMG).

A análise de documentos relativos aos três cursos, cons-tantes das referências bibliográficas, serviu de base para a apreciação. Com base nessas fontes de informação, foram reunidos os dados pertinentes aos propósitos dos cursos e seus componentes curriculares, bem como aos resultados obtidos e outros eventos significativos percebidos. Duas linhas básicas de descrição foram seguidas: a caracterização do plano curricular, tendo por base as questões propostas por Harden5, e a estimativa do impacto das propostas, considerando alguns critérios de efeitos da proposta inovadora no sistema de saúde e na formação profissional6.

O propósito deste relato é apresentar o resumo dos dados descritivos e das interpretações feitas com refe-rência às respectivas fontes de informação.

Tendo em conta a natureza das informações obtidas e a utilidade potencial de sua aplicação, o relator faz três reco-mendações para aprofundamento desses subsídios, à guisa de conclusões.

Identificação e Cenário DAS ESCOLAS

O currículo de Medicina na UnB7-10

A primeira e, talvez, a mais criativa das experiências curriculares ora revistas ocorreu na então recém-criada Brasília, onde foi organizado o quadragésimo curso de Medicina do Brasil, em 1966. A situação era de mudanças rápidas, conflitos latentes e grandes expectativas11,12.

A implantação do curso, ao longo de cinco anos, se fez paralelamente à contratação do corpo docente e à instalação da infraestrutura básica. Os fatores determinantes desse empreendimento decorriam, em parte, da própria criação da Universidade de Brasília, com novas concepções de integração, flexibilidade e modernização em seu projeto e organização7,13. Assim, as diretrizes curriculares do curso médico refletiam novas ideias sobre saúde e doença, medicina, ciência e tecno-logia, e educação médica, conforme ressaltado no plano orientador da Faculdade7.Acrescente-se que a criação do curso, em si, era uma resposta à demanda pública dentro e fora da universidade9,11,12.

Um aspecto crítico da proposta do curso foi o convênio firmado entre a Fundação Universidade de Brasília e a Fundação Hospitalar do Distrito Federal, que permitiu a utilização do recém-construído hospital da comunidade de Sobradinho – denominado sugestivamente Unidade Integrada de Saúde – como cenário único das práticas educativas e ações de medicina individual e coletiva a serem desenvolvidas pela nova Faculdade8,12.

O curso experimental da USP2,14

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, fundada em 1913 e detentora da maior soma de recursos dentre as escolas brasileiras, implantou em 1968 uma alternativa curricular ao curso convencional que possibilitava a introdução de novas concepções educativas, semelhantes àquelas propostas na UnB.

A criação do curso experimental respondia a três fatores determinantes principais (além do incentivo da iniciativa pioneira de Brasília): (a) demanda pública e governamental pela ampliação quantitativa do alunado; (b) preocupação de parte do corpo docente com a questão da modernização do ensino em termos de eficiência e produtividade; (c) possibilidade de obtenção de recursos adicionais, embora sob a bandeira da racionalização administrativa e redução dos custos. Outro aspecto importante da proposta inicial era a expansão da Faculdade no campus da cidade universitária da USP, onde iriam se localizar o pavilhão pluricurricular e o Hospital Universitário14.

O currículo da UFMG15,I6,17

A mais fundamentada das experiências de inovação curricular surgiu na tradicional Faculdade de Medicina da UFMG, que fora criada em 1911. Esta Faculdade adotara por um período experimental de dez anos (a começar de 1965) o currículo compacto de cinco anos, na perspectiva de aumentar a eficiência na formação de médicos15. O insucesso dessa experiência possibilitou, em contraposição, o início de um estudo abrangente sobre o ensino de Medicina e a proposta de revisão curricularl6,17.

Esse estudo deu origem ao processo de desenvolvimento curricular, de natureza técnico-política, que culminou com a implantação do novo currículo a partir de 1975. Os fatores determinantes estão inseridos em tal processo, em que são real-çadas as percepções de referência às necessidades sociais, da natureza dinâmica do próprio processo e de sua essência democrática no jogo decisório da instituição11,16.

Um aspecto importante da ampliação do cenário do novo currículo foi a reestruturação do hospital de ensino – o Hospital de Clínicas da UFMG – em adequação à reprogramação da prestação de serviços de atenção médica na área de Belo Hori-zonte17.

Descrição dos Elementos Curriculares

A organização curricular dos cursos enfocados –- em termos de elenco, sequência e carga horária das disciplinas – consta de vários documentos básicos, que incluem catá-logos, regimentos e relatórios, bem como de trabalhos apresentados por participantes das renovações curriculares3,9,14.

Vale observar, contudo, algumas características marcantes da formulação das novas proposições, tendo em conta as questões críticas para apreciação da renovação curricular – sugeridas por Harden5 – que são dispostas a seguir.

Necessidades percebidas quanto ao tipo de médico

As três propostas tinham em comum a redefinição, implí-cita ou explícita, da adequação da formação médica às necessidades sentidas em relação à "carga mórbida" (soma de agravos à saúde) da população de referência. Essa relação é claramente expressa na proposta da UFMG quando esta contempla a inserção do ensino no processo de atenção à saúde.

Nos três casos se presume a necessidade de uma diver-sidade de habilitações, enquanto se privilegia a formação geral do médico. Na proposta inicial da UnB, o ciclo de pós-graduação (para especialização ou iniciação acadêmica) era configurado como parte regular da formação do médico, embora a pré--especialização fosse expressamente desestimulada9. No caso da USP, o segundo ano eletivo no internato ensejava o treinamento numa grande área (básica ou profissional) por uma duração correspondente a 21% do total do curso14. Já na UFMG, o currículo de 1975 limitava a oito meses o treinamento terminal numa grande área, e a quatro meses numa subespe-cialidade16,17.

Apenas na UFMG a identificação das necessidades percebidas quanto ao perfil global do concluinte foi subsidiada por levantamento de opinião – em questionário respondido por docentes, residentes e alunos –, além da análise de estudos sobre a nosologia prevalente na região de referência17.

Propósitos e objetivos

Na UnB, o propósito global do curso era "preparar um tipo de médico capaz de desempenhar um amplo papel em prol da saúde de uma comunidade", no sentido da extensão da atuação profissional no âmbito dos fatores que alteram o equi-líbrio indivíduo-ambiente7. Em decorrência, cinco objetivos gerais foram inferidos: (1) conhecimento das condições de saúde e de doença e das medidas para seu controle; (2) formação de mentalidade científica; (3) desenvolvimento de atitudes e valores enfatizando saúde, ação na comunidade, trabalho cooperativo e enfoque multiprofissional; (4) adestra-mento em técnicas de laboratório e habilidades clínicas e cirúrgicas; (5) familiarização com as rotinas dos serviços de saúde. Algumas competências específicas chegaram a ser delineadas anos depois12,18,19.

Na USP, o propósito global do curso experimental era formar um "segundo tipo" de médico, com maior vivência de aprendizagem extra-hospitalar e habilitação no atendimento primário, em níveis individual e coletivo. Três objetivos eram ressaltados na capacitação do estudante: (1) desenvolvimento da capacidade de estudo, raciocínio e trabalho em grupo; (2) desenvolvimento de uma mentalidade médica global, no sentido de predomínio da formação geral e do enfoque psicos-somático; (3) perspectiva ampliada de opções para o exercício profissional, assegurada pelo segundo ano eletivo no inter-nato14.

O propósito global do novo processo curricular da UFMG era formar médicos aptos a obter o reconhecimento das necessidades de saúde do indivíduo e da comu-nidade, e atender às necessidades sob a forma de cuidados primários e em colaboração com o sistema de saúde regional. Essa capacitação seria expli-citada pelo conjunto de objetivos educacionais das disciplinas obrigatórias recém-criadas17.

Nos três currículos, os objetivos genéricos foram desdo-brados em componentes específicos relativos a cada programa didático. Na UFMG, houve uma compilação sistemática de obje-tivos e se procedeu a uma apreciação qualitativa, por docentes e estudantes, de sua consecução e dos fatores impeditivos16.

Conteúdo especificado

A abrangência e a profundidade das matérias a serem ministradas são descritas em fluxogramas e ementários de cada curso. Vale dizer que as indicações sobre critérios e inclusão, extensão ou profundidade dos assuntos são geralmente limi-tadas, exceto no sentido de carga horária. Em parte, isso reflete a marca referencial do currículo mínimo de Medicina – pres-crito pelo Conselho Federal de Educação, em 1969 – a que estavam sujeitos todos os cursos. Observa-se, a propósito, uma diferença apreciável entre as cargas horárias totais, nominal-mente indicadas, da UnB e UFMG (7 mil horas) e da USP (10 mil horas).

Um aspecto particular da inclusão de conteúdo consiste na ênfase dada às noções de orientação comunitária (especial-mente quanto ao nível primário de atenção à saúde) em cada currículo, conforme se observa adiante.

Organização do conteúdo

Os fluxogramas curriculares revelam semelhanças gené-ricas na organização dos três cursos, em termos da sequência temporal de ciclos que expressam a precedência da ciência básica sobre a aplicada, das áreas gerais sobre as especiais, do estudo propedêutico sobre a prática em serviço.

Na UnB, a organização curricular presumia quatro ciclos de ensino: (1) pré-profissional, desenvolvido nos Institutos de Ciências e Humanidades da universidade; (2) profissional básico ou pré-clínico, desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas; (3) profissional clínico, desenvolvido na Unidade Inte-grada de Saúde de Sobradinho (UISS) e agências afiliadas; (4) internato, desenvolvido na própria UISS ou noutro hospital credenciado da rede da Fundação Hospitalar do Distrito Federal18,19.

Na USP, o conteúdo curricular estava organizado em seis ciclos: (1) básico; (2) blocos de sistemas e aparelhos; (3) pré--clínico; (4) clínico; (5) internato rotativo; (6) internato eletivo.

Na UFMG, a seriação na organização curricular assu-miu a forma de 12 períodos, assim distribuídos: quatro no ciclo básico, ministrado no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, e oito no ciclo profissional, que incluía uma fase pro-pedêutica (dois períodos), uma fase clínica (quatro períodos) e o estágio de internato (nos dois períodos finais), desenvolvido no Hospital das Clínicas e na área rural do norte de Minas.

Por certo, os cursos apresentam várias diferenças par-ticulares quanto à situação específica de disciplinas, que po-tencialmente afetariam as percepções dos estudantes sobre o caráter da vivência curricular. Por exemplo, a iniciação clínica formal em semiologia era fixada no sétimo semestre ou período letivo na UnB, no sexto na USP e no quinto na UFMG.

Outro aspecto de variação na organização consistiu na proporção de assuntos dispostos em série de blocos intensi-vos, em contraposição à disposição em paralelo a outras disciplinas extensivamente ao longo do período letivo. Na versão inicial do currículo da UnB, até 1971, todos os progra-mas em nível profissional (isto é, do segundo ao quinto ano) eram desenvolvidos em blocos de estudo concentrado, com duração que variava entre quatro e 18 semanas8,9,12.

Estratégias educativas

Harden identificou seis alternativas estratégicas, que têm servido de foco para inovações curriculares nas últimas déca-das (Quadro 1). Elas representam po-los de escalas contínuas, sendo que o posicionamento do-cente/institucional em cada escala pode variar segundo o con-texto ou o assunto na organização curricular5.


Os três cursos em referência combinaram elementos dos enfoques inovadores em proporções variáveis em seus diver-sos ciclos. O enfoque integrado, caracterizado pela combinação de disciplinas em torno de áreas temáticas, era a tônica dos ciclos de blocos na UnB (pré-clínico profissional) e na USP, bem como dos programas de medicina integral da UFMG e da UnB. Já o enfoque de resolução de problemas foi incorporado de forma limitada nos três cursos e, principalmente, como parte do treinamento clínico. O enfoque de conteúdo eletivo, tam-bém restrito nos três cursos, tornou-se uma característica im-portante na segunda fase do currículo da UnB a partir de 197219. Por sua vez, o internato rural – um componente mar-cante do currículo da UFMG – consistia numa combinação dos enfoques de ensino baseado na comunidade e de treina-mento oportunístico. Em todos esses casos, havia uma redução implícita da centralização tradicional do processo educativo no professor, em benefício aparente da aprendizagem ativa11.

O enfoque baseado na comunidade é um dos compo-nentes estratégicos (juntamente com a articulação ensi-no-serviço e a aprendizagem baseada em problemas) associados ao processo educativo orientado para a comuni-dade. Em particular, de acordo com estudo patrocinado pela OMS, a extensão e o tipo de orientação comunitária numa es-cola podem ser descritos levando em conta cinco aspectos ca-racterísticos: (1) princípios que fundamentam as atividades da escola; (2) ênfase curricular nas concepções da orientação co-munitária; (3) componente de aprendizagem vivencial no cur-rículo; (4) extensão de envolvimento comunitário; (5) conexões organizacionais entre os sistemas de formação médica e de prestação de serviços de saúde6. As evidências documentais sobre tais aspectos sugerem que as três escolas apresentavam graus definidos e diferentes de orientação comunitária em seus processos educativos no período de implan-tação do currículo, conforme disposto no Quadro 1.

Métodos e meios de ensino

A tônica na aprendizagem ativa, comum aos três cur-sos, se expressou, entre outros aspectos, na ênfase dada aos métodos de ensino centrado no aluno, a exemplo do seminário e da discussão em grupo. Na UnB, cada turma de 16 estudantes ocupava um laboratório multidisciplinar ao longo do ciclo profissional básico, ensejando grande interação entre os alunos, além da prática Iaboratorial4,9,18.

No treinamento clínico, a aprendizagem ativa assumiu predominantemente a forma de integração trabalho-apren-dizado, em que os estudantes participavam da prestação de serviços nos diferentes cenários e modalidades do processo de atenção à saúde, cooptados pelas respectivas escolas3,9,14,19.

Avaliação dos estudantes

O realce dado ao processo avaliativo nessas experiên-cias curriculares não foi substancial. Na UnB, introduziu-se um componente formativo junto com a prática de exames perió-dicos balizados pelo elenco de objetivos de cada programa di-dático. Além disso, para contrabalançar a ênfase na aferição de conhecimentos, aliou-se também um componente de con-ceituação de atitudes e de desempenho global. Esse esforço de avaliação de desempenho, com base em objetivos prescri-tos, aparentemente foi retomado em maior escala na renovação curricular da UFMG.

Informação sobre o currículo

Na UnB, a comunicação sobre o processo curricular foi um aspecto significante. Além do informe inicial sobre as di-retrizes e processos gerais do curso, os estudantes recebiam informações sobre o plano de ensino dos programas didáticos, que especificavam objetivos, assuntos, métodos de instrução e avaliação, cronograma de atividades e referências de estudo7,19. Na UFMG, eram distribuídos livretos informativos de teor equi-valente com o propósito de orientar os estudantes. Além disso, e principalmente, houve ampla participação de alunos e docentes no processo de desenvolvimento curricular, sendo que os docentes tinham acesso a seminários de atualização didática16.

Ambiente educativo

O contexto de ensino-aprendizagem, especialmente na UFMG e na UnB, deveria propiciar o fortalecimento de caracte-rísticas de responsabilidade pelo atendimento, conscientização social e cooperação entre os estudantes, mormente por causa da interação, da provisão de atividades relevantes para a prá-tica médica e do grau potencial de coerência das diferentes atividades educativas. Nos casos da USP e da UnB, presu-mia-se que o contexto laboratorial, na formação pré-clínica, de-veria encorajar a disciplina intelectual. Infelizmente, em nenhuma das três experiências houve levantamento das per-cepções dos estudantes sobre a ambiência do aprendizado ao longo do curso e seus efeitos na mudança de atitudes e valores.

Gestão do processo curricular

Dessa proposição básica, derivam importantes questões:

– De quem é a responsabilidade pelo planejamento, im-plantação e monitoração do processo, especialmente quanto a pessoas ou comissões?

– Como inserir mudanças no processo em andamento?

– Quais são as atribuições relativas dos diferentes ele-mentos envolvidos ou representados, inclusive os estudantes?

– Como inter-relacionar os diferentes programas do curso de forma que os propósitos globais sejam alcançados?

O tratamento dado aos problemas implícitos nesses questionamentos apresentou características típicas de acordo com a instituição. Na UnB, a gestão global do processo cabia ao diretor, assessorado pelo conselho de educação médica, que incluía os supervisores de ciclo; em 1969, o papel dos colegiados foi assumido pelo conselho departamental e congregação de carreira, nos quais havia representação estu-dantil. A responsabilidade pelo ensino se concentrava em três departamentos apenas. Esse tipo de arranjo deveria favorecer uma margem mais estreita de controle, inicialmente utilizada para agilizar mudanças na implantação do currículo.

Na USP, a coordenação e orientação das atividades (do curso experimental) estavam sob a responsabilidade da comis-são de orientação didática e científica, integrada por seis ele-mentos, incluindo um representante estudantil e o coordenador geral. Esse colegiado era assessorado pelos coordenadores de áreas (indicados pelos numerosos departamentos envolvidos no curso) e tinha como instrumento executivo os coordena-dores de semestre e dos dez conjuntos de disciplinas com pro-gramação integrada. Esse tipo de arranjo administrativo favorecia maior amplitude de consulta e conferia um caráter menos personalista às decisões curriculares14.

Na UFMG, a gestão do processo curricular foi mais com-plexa. A supervisão geral coube ao colegiado do curso de Me-dicina, formado pelos docentes dos ciclos básico e profissional e pela representação estudantil. A reformulação do curso re-sultou de um longo processo desencadeado por uma equipe interprofissional que realizou levantamentos e análises, cujos dados e interpretações foram debatidos por alunos e docen-tes num seminário especialmente organizado. O informe final e as recomendações oriundas do seminário foram aceitos pelo colegiado do curso. Por delegação desse colegiado, coube a uma comissão de desenvolvimento curricular, com apoio da equipe de pesquisa, elaborar a proposta de reformulação. Essa proposta, com emendas, foi aprovada pelo colegiado do curso e endossada pela coordenação de ensino e pesquisa da UFMG. A reformulação curricular, que abrangia do 5o ao 12o período do curso, foi implantada progressivamente, já sob a supervisão de comissões de implantação designadas pelo colegiado do curso. O arranjo administrativo desenvolvido na UFMG prova-velmente promoveu uma incorporação mais sólida dos novos princípios e valores no arcabouço mental dos docentes e es-tudantes.

Resultados Evidenciados

Que progressos alcançaram as escolas na realização de seus planos inovadores? Tais informações são ainda mais difí-ceis de rastrear em virtude da infrequência de avaliação ou mo-nitoração dos eventos educativos e da insuficiência de publicações ou relatórios.

A inadequação de dados descritivos limita sobremaneira qualquer estudo avaliador, tendo em vista a complexidade, a variação dinâmica e a dependência contextual dos eventos cur-riculares pertinentes a cada escola. Ainda assim, vale a pena considerar dois tipos de efeitos relacionados aos propósitos dos novos currículos: impacto no sistema regional de saúde e impacto na formação dos médicos6,12.

No caso da UnB, os indícios do impacto da escola no sis-tema de saúde do DF são claros, embora insuficientemente documentados. No período em que Sobradinho era o cenário da atuação médico-social (1967-1979), a escola era excepcio-nalmente ativa na provisão de serviços, com participação es-tudantil, uma vez que assumiu a responsabilidade na atenção integral à saúde da população local. Esse modelo de atenção, especialmente no tocante a cuidados básicos, contribuiu para a ampliação da cobertura do sistema regional de saúde. Em-bora o convênio que permitia a operação da UISS (hospital de Sobradinho) tenha sido desfeito, a articulação com a rede de serviços teve sequência noutro convênio, que resultou, anos mais tarde, na definição do hospital de integração docen-te-assistencial (FUB-Inamps). Por certo, a escola contribuiu decisivamente para a disponibilidade de médicos na região. En-tretanto, inexistem informações sobre seu impacto eventual na melhoria da qualidade da assistência médica12.

Quanto ao impacto educativo da escola, as indicações dos concluintes de 1971 a 1975 denotam restrições na con-secução dos objetivos curriculares para substancial minoria dos estudantes12. Uma parcela restrita dos formandos havia deci-dido praticar medicina geral em pequenas localidades, e fração bem menor tinha optado por carreira em saúde pública. Entre-tanto, a preferência dos estudantes por carreiras voltadas para o atendimento de primeira linha tendia a aumentar do início para o fim do curso, na primeira década da escola20. Apesar disso, o principal impacto educativo do programa da UnB talvez te-nha sido o incentivo a projetos de mudanças noutras es-colas, a exemplo da USP e da UFRJ, entre outras14,21,22,23.

No caso da USP, não há registro de informação sobre os efeitos do curso experimental no sistema de saúde de São Paulo, exceto provavelmente na área de pediatria. Quanto ao impacto educativo, o curso experimental deixou marca no tra-dicional, após sua extinção, além de ter contribuído para o movimento de renovação curricular nos anos 197011.

No caso da UFMG, os indícios dos efeitos da escola no sistema de saúde regional são instigantes. A escola aumentou a provisão de serviços de atenção médica nos três níveis de atendimento, ressaltando-se a ampliação do atendimento de primeira linha e a participação estudantil na integração de trabalho-aprendizado. O programa de internato rural, em particular, parece representar um impacto apreciável não somente quanto à ampliação de serviços médicos básicos em áreas de-sassistidas, mas também por sua influência na opção pela prá-tica de medicina geral ou atendimento de primeira linha16.

Quanto ao impacto educativo, a escola da UFMG repre-senta um forte centro de disseminação de inovação, nos âmbitos regional e nacional, nos anos 19803. No que se refere à influência na formação profissional, inexistem infor-mações quanto à manutenção, pelos concluintes, das atitudes e práticas coerentes com os propósitos e objetivos do curso, nem dados quantitativos sobre a distribuição das opções de carreira.

Nos três casos, informações comparativas com concluin-tes de outras escolas são escassas ou inexistentes.

Discussão e Conclusões

No intervalo de dez anos (1966-1975), três escolas bem diferentes entre si iniciaram programas curriculares que ilus-tram suas concepções da forma de atender às necessidades de atenção à saúde. Os três movimentos se baseavam prin-cipalmente nestes tipos de percepções: demandas insatisfei-tas (na formação médica contemporânea), dinamização das funções das escolas, e potencialidades da reorganização cur-ricular e reorientação das estratégias educativas.

A identificação das necessidades quanto à formação do médico teve um questionamento mais elaborado na UFMG, que se firmou no princípio de resposta às necessidades de saú-de e às demandas por serviço da população regional, bem como na análise da "carga mórbida" detectada em estudos de morbidade e mortalidade. Em consequência desse processo, houve uma delimitação mais sólida de propósitos e objetivos do processo curricular, em que se estabeleceu uma prioridade para a formação do médico geral, habilitado a prestar assistên-cia em nível primário e de cunho comunitário. Em termos de reorganização de conteúdo, dois aspec-tos foram compartilhados nessas três experiências: a reorde-nação da sequência de disciplinas, especialmente no sentido de vincular temas interdisciplinares em programas conjuntos ou combinados, e a inclusão de temas de ciências de compor-tamento e de saúde coletiva em atividades de campo.

As estratégias educativas tiveram expressão na reorien-tação de múltiplas alternativas de abordagem, com ênfase – em grau variável nos três currículos – na aprendizagem ativa, na integração interdisciplinar, no cenário ambulatorial e no trei-namento oportunístico baseado no trabalho. Os enfoques pre-dominantes naturalmente conduziram ao uso de métodos de grupo pequeno e ao estudo independente, embora de forma incipiente e assistemática.

Deve-se acrescentar que em nenhuma das três expe-riências a seleção de problemas prioritários serviu para deli-mitar o conteúdo curricular, nem para ensejar o desenvolvimento de habilidades eficazes de aprendizagem au-todirigida. Entretanto, elementos do enfoque de aprendizagem baseada em problemas estavam implicitamente incorporados no "currículo em ação", na medida em que se atribuía uma participação ativa do estudante na identificação e resolução de problemas.

Numa perspectiva mais ampla, a reorientação de enfo-ques tradicionais serviu para estabelecer a extensão e as for-mas da característica global de orientação comunitária promovida por cada currículo. Em termos dos critérios que de-finem essa característica, dentre os quais sobressai a extensão em que se insere a aprendizagem centrada na comunidade, verifica-se que o potencial de orientação comunitária era mí-nimo na USP e médio na UnB e na UFMG (Quadro 2).


Os propósitos e processos embutidos na descrição dos currículos se concretizaram? Por certo, os planos escritos e suas variantes evolutivas ou retrocessivas representam a elaboração formal das intenções de seus proponentes, que coincidem par-cialmente apenas seja com o — currículo em ação" – expresso nas escalas de atividades e percepções de seus executores –, seja com o currículo diretamente vivenciado pelos estudan-tes19.

Já foi dito que as evidências documentadas do impacto dos novos currículos são de pequena monta, exceto em ter-mos da prestação direta de serviços por docentes e estudantes, e do aumento da disponibilidade de médicos. A inexistência de estudos comparativos ou prospectivos no acompanha-mento dos egressos impossibilita uma apreciação segura do significado das preferências por carreiras ou das percepções dos concluintes sobre a adoção das características objetiva-das nos respectivos cursos e suas consequências na prática médica.

Tendo em vista o histórico dos três currículos revistos, vale a pena considerar ademais os fatores requeridos para ini-ciar ou manter uma inovação na educação médica. Foram poucos os trabalhos consultados que examinaram esses aspectos da renovação curricular de forma genérica ou específica11,12,16,18,24. Esses e outros estudos na literatura internacional sugerem que a sobrevivência da inovação depende da extensão em que várias condições são observadas quanto à estrutura dos propósitos e da gestão do processo e à diferenciação organizativa da instituição6,25,26. Cinco dessas con-dições são identificadas por sua relação com os desvios ocorridos no caso da UnB:

– Compatibilidade entre objetivos inovadores e injunções da prática profissional, a exemplo da estrutura do trabalho médico20,24;

– Aceitação e entendimento dos objetivos inovadores pelos segmentos de opinião envolvidos, tanto dentro quanto fora da escola10,12;

– Compatibilidade entre os objetivos inovadores e os pla-nos de progresso profissional dos docentes10;

– Consistência na provisão de recursos apropriados ao desenvolvimento dos objetivos inovadores;

– Efetuação de monitoração sistemática para informar a instituição sobre o progresso na consecução dos objetivos fixados12.

Segundo Schreiber, são fadadas ao insucesso as reformulações educativas que não correspondem, reflexa-mente, a rearranjos efetivos na prática médica24. Nessa concepção, a ocorrência de restrições ao processo inovador apenas configura os limites das determinações estruturais da educação médica. Entretanto, inexistem estudos sistemáticos que confirmem ou infirmem tais suposições.

CONCLUSÕES

Deve ser feito um esforço para documentar (com vistas a estender e replicar) a experiência e insight obtidos pe-los grupos inovadores, talvez com a realização de workshops ou a formação de consórcios de grupos interdisciplinares.

Os fundamentos e implicações da "orientação comunitá-ria" – incluindo seus componentes de provisão direta de atendimento em nível primário, articulação ensino-serviço e participação comunitária – devem ser explicados e divul-gados junto aos segmentos de opinião, sob pontos de vista pluralistas.

Existe a necessidade de estudos avaliadores, se possível in situ, dos diferentes programas de ensino médico com base em dimensões definidas de observação e usando múltiplos critérios ou elementos de contraste nas análises e interpretações27.

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

Recebido em: 10/06/2014

Aprovado em: 31/07/2014

  • 1
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    Dejano T. Sobral
    Universidade de Brasília – Faculdade de Medicina
    Caixa Postal 04569
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      10 Jun 2014
    • Aceito
      31 Jul 2014
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