Acessibilidade / Reportar erro

Burnout e Qualidade de Vida em uma Residência Multiprofissional: um Estudo Longitudinal de Dois Anos

Burnout and Quality of Life on a Multi-professional Residency: a Two-Year Longitudinal Study

RESUMO

O processo de formação dos profissionais da saúde constitui um desafio a gestores e educadores devido à complexidade de estimular ao mesmo tempo habilidades profissionais, interpessoais e humanísticas do aluno. Os programas de Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) apresentam caráter de vanguarda em nosso país ao incentivarem práticas multiprofissionais ativas e participativas na atenção em saúde. Neste estudo, investigamos os níveis de estresse e qualidade de vida dos acadêmicos durante os dois anos em que se encontravam em uma RMS. O cenário de prática envolveu assistência de alta complexidade a pacientes críticos. Durante os dois anos, constatamos aumento no nível de estresse dos acadêmicos, intimamente relacionado à queda na qualidade de vida. Diversos fatores físicos e psíquicos estão vinculados aos resultados, que devem gerar discussões nos núcleos docentes estruturantes de cada residência na proposição de medidas acolhedoras aos alunos.

Educação Continuada; Educação em Saúde; Esgotamento Profissional; Qualidade de Vida; Educação Profissional em Saúde Pública; Educação Médica

ABSTRACT

The training process for health professionals constitutes a challenge for managers and educators since the procedures for stimulating professional, interpersonal, and human skills stand on a complex basis. Multi-professional Residence Programs (MRP) are somewhat cutting-edge in Brazil, based on the fact that they encourage active and participative multidisciplinary practices in health care. It was in this context that this study investigated student stress and quality of life during the two years spent on an MRP, with the practical scenario involving highly complex assistance administered to critically ill patients. Over the course of the two years, we were able to identify an increase in student stress levels, strongly related to a decrease in their quality of life. Many physical and psychological factors are linked to the results, and should generate debate within the academic structuring cores of each residence on measures which may be taken to better foster student welfare.

Continuing Education; Health Education; Professional Burnout; Quality of Life; Professional Education in Public Health; Medical Education

INTRODUÇÃO

O processo de formação dos profissionais da saúde constitui um desafio a gestores e educadores devido à complexidade de estimular ao mesmo tempo habilidades profissionais, interpessoais e humanísticas do aluno11. Secomb J. A systematic review of peer teaching and learning in clinical education. J Clin Nurs. 2008;17(6):703-16.. A assistência ao paciente constitui atividade essencial, mas a visão clássica reforça atividades isoladas que pouco contribuem para o entendimento global do caso clínico ou da situação geral de um indivíduo.

Ainda que estejam direcionadas a um mesmo usuário e muitas vezes sejam desenvolvidas no mesmo ambiente físico e social de outras profissões da área da saúde, estas atividades não configuram práticas multiprofissionais integradoras dos saberes no ensino/serviço, resultando numa assistência fragmentada e distanciada das necessidades do paciente22. Baces DS, Koerich MS, Rodrigues ACRL, Drago LC, Klock P, Erdmann AL. O que os usuários pensam e falam do Sistema Único de Saúde? Uma análise dos significados à luz da carta dos direitos do usuário. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(3):903-10.,33. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões da saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saúde Pública. 2004;20(5):1400-10.. Neste sentido, destacam-se os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), regulamentados como pós-graduação lato sensu, que buscam romper os paradigmas no processo de formação de profissionais, contribuindo para a melhoria dos serviços de saúde ofertados à população.

As RMS apresentam caráter diferenciado, uma vez que utilizam práticas ativas e participativas em serviço, tendo sempre a educação permanente como eixo pedagógico estrutural44. Rosa SD, Lopes RE. Residência Multiprofissional em Saúde e Pós-Graduação Lato Sensu no Brasil: Apontamentos Históricos. Trab Educ Saúde. 2010;7(3):479-98.. No modelo tradicional de ensino, as habilidades técnicas ganhavam grande importância, deixando em segundo plano questões éticas, morais, atitudes e habilidades de resolução de problemas. Contrastando com tal visão, as práticas educativas participativas integram a formação do profissional à realidade da comunidade, requerendo bom desenvolvimento de habilidades técnicas, comportamentais e interpessoais, além de apurado senso crítico sobre a responsabilidade social55. Olckers L, Gibbs TJ, Duncan M. Developing health science students into integrated health professionals: a practical tool for learning. BMC Medical Education, London. 2007;(7):45.,66. Christofoletti G, Fernandes JM, Martins AS, Oliveira-Junior AS, Carregaro RL, Toledo AM. Aplicabilidade de métodos ativos de aprendizagem em uma disciplina de ética em saúde. Rev Eletrônica Educ. 2014;8(2):188-97..

O governo federal vem investindo cada vez mais na criação de programas multiprofissionais77. da Motta LB, Pacheco LC. Integrating medical and health multiprofessional residencu programs: The experience in building an interprofessional curriculum for health professionals in Brazil. Educ Health. 2014;29(1):83-8.. Em 2009, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) deu início a seu programa, com o objetivo de integrar e incentivar a troca de saberes entre profissões, com qualificação do profissional para realizar trabalho em equipe voltado ao Sistema Único de Saúde.

Como a RMS da UFMS está centrada na abordagem hospitalar ao paciente crítico, o grau de exigência a que o residente está submetido é muito grande, pois, de um lado, tem-se a gravidade dos casos assistidos, nos quais o residente lida constantemente com situações de tensão e morte88. Caregnato RCA, Lautert L. O estresse da equipe multiprofissional na Sala de Cirurgia. Rev Bras Enferm. 2005; 58(5):545-550.

9. Hooper C, Craig J, Janvrin DR, Wetsel MA, Reimels E. Compassion satisfaction, burnout, and compassion fatigue among emergency nurses compared with nurses in other selected inpatient specialties. J Emerg Nurs. 2010;36(5):420-7
-1010. Shorter M, Stayt LC. Critical care nurses’ experiences of grief in an adult intensive care unit. J Adv Nurs. 2010;66(1):159-67; de outro, se encontram questões psicossociais, ambientais e familiares, que exigem equilíbrio físico e mental dos discentes88. Caregnato RCA, Lautert L. O estresse da equipe multiprofissional na Sala de Cirurgia. Rev Bras Enferm. 2005; 58(5):545-550.

9. Hooper C, Craig J, Janvrin DR, Wetsel MA, Reimels E. Compassion satisfaction, burnout, and compassion fatigue among emergency nurses compared with nurses in other selected inpatient specialties. J Emerg Nurs. 2010;36(5):420-7

10. Shorter M, Stayt LC. Critical care nurses’ experiences of grief in an adult intensive care unit. J Adv Nurs. 2010;66(1):159-67
-1111. Guido LA et al. Stressors in the nursing care delivered to potential organ donors. Rev Latino Am Enfermagem. 2009;17(6):1023-1029..

Nesta perspectiva, o cuidado à saúde do residente não deve ser negligenciado, uma vez que este, comumente, está exposto a situações de estresse. Quando há persistência do agente estressor e não resolução do evento, é comum o aparecimento da Síndrome de Burnout, entendida como uma cronificação do estresse, com consequências negativas nos níveis individual, profissional, familiar e social1212. Guido LA, Goulart CT, da Silva RM, Lopes LF, Ferreira EM. Stress and burnout among multidisciplinary residents. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(6):1064-71..

A síndrome foi reconhecida como um risco ocupacional para profissões que envolvem cuidados com saúde, educação e serviços humanos1313. Maslach CGJ. Prevention of burnout: new perspectives. Applied Preventive Psychology. 1998(7):63-74.,1414. Murofuse NT, Abranches SS, Napoleão AA. Reflexões sobre estresse e Burnout e a relação com a enfermagem. Rev. Latino Am Enfermagem. 2005;13:255-61.. É considerada pela Organização Mundial da Saúde como um problema endêmico em todo o mundo, corroborado por estudos que reportam alto nível de estresse em alunos residentes e em funcionários de hospitais1212. Guido LA, Goulart CT, da Silva RM, Lopes LF, Ferreira EM. Stress and burnout among multidisciplinary residents. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(6):1064-71.,1515. Ríos Risquez MI, Peñalver Hernández F, Godoy Fernández C. Burnout and perceived health in Critical Care nursing professionals. Enferm Intensiva. 2008;19(4):169-78.

16. Guido LA, da Silva RM, Goulart CT, Bolzan ME, Lopes LF. Burnout syndrome in multiprofessional residents of a public university. Rev Esc Enferm USP. 2012;46(6):1477-83.

17. Kang EK, Lihm HS, Kong EH. Association of intern and resident burnout with self-reported medical errors. Korean J Fam Med. 2013;34(1):36-42.
-1818. Teixeira C, Ribeiro O, Fonseca AM, Carvalho AS. Burnout in intensive care units – a consideration of the possible prevalence and frequency of new risk factors: a descriptive correlational multicentre study. BMC Anesthesiol. 2013;13(1):38..

Assim sendo, o propósito deste estudo foi investigar o nível de estresse e a qualidade de vida dos alunos residentes durante os dois anos de formação na RMS da UFMS, com a finalidade de propor melhorias para acompanhar e enfrentar os fatores estressores.

MÉTODOS

Para alcançar os objetivos, realizamos um estudo quantitativo com característica empírica e longitudinal. A população-alvo foi composta por residentes matriculados no programa de residência multiprofissional da UFMS, divididos em quatro equipes que compõem as categorias profissionais do programa: Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Nutrição e Odontologia.

Como critérios de inclusão admitiram-se alunos de todas as áreas da residência e que desejassem participar dos procedimentos avaliativos durante os dois anos de formação no referido curso. Os critérios de exclusão foram delimitados seguindo casos de afastamento do programa superior a 30 dias, desligamentos ou desistências.

O local da coleta de dados foi o Hospital Universitário localizado em Campo Grande (MS). Os residentes foram convidados a participar do estudo em sua primeira semana. Após explicação dos benefícios desta pesquisa, dos direitos dos avaliados e do respaldo ético previamente adquirido (protocolo de aprovação nº 2.206), distribuiu-se o termo de consentimento livre e esclarecido, firmado por todos os participantes.

Rotina dos residentes

Durante os dois anos em que se encontraram no programa, os alunos perfizeram uma carga horária de 60 horas semanais, distribuídas entre atividades práticas, teóricas e teórico-práticas. As atividades práticas foram concentradas no período matutino, enquanto as atividades teóricas e as teórico-práticas foram realizadas no período vespertino. Todas as atividades se concentraram em eixos transversais do programa (comuns a todas as áreas) e em eixos específicos de cada profissão.

A semana-padrão dos residentes manteve-se inalterada durante os dois anos em que os alunos cursaram a residência, tendo havido alternância apenas do cenário de prática. Enquanto no primeiro ano os alunos atuaram em setores de internação, desenvolvendo atenção aos usuários com intercorrências clínicas, cirúrgicas, urgência, emergência e doenças infectoparasitárias, no segundo ano as atividades se concentram em setores de unidades de cuidados intensivos, unidade coronariana e no centro de terapia intensiva.

Instrumento de coleta de dados

Para a coleta dos dados, foram aplicados o Inventário Maslasch de Burnout (IMB)1919. Maslach C, Jackson SE. The measurement of experienced burnout. J Ocupp Behav. 1981;2:99-113.,2020. Benevides-Pereira AMT. Burnout: o processo de adoecer pelo trabalho. In: Benevides-Pereira AMT (Ed). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem estar do trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. p.21-91. e o questionário de qualidade de vida Short Form 36 (SF36)2121. Ware JE Jr, Sherbourne CD. The MOS 36-item short-form health survey (SF-36). I. Conceptual framework and item selection. Med Care. 1992;30(6):473-83.,2222. Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol. 1999;39(3):143-50..

O IMB é formado por 22 questões, mediante as quais são atribuídos graus de intensidade que vão de “nunca” a “todos os dias”. O instrumento é composto por três subescalas: exaustão emocional, despersonalização e realização pessoal. Tais subescalas são importantes por avaliarem o estresse mental dos estudantes como alto, médio ou baixo. No caso do componente “exaustão emocional”, o nível de burnout é considerado elevado quando os valores ficam acima de 27 pontos; com valores entre 19 e 26, o nível de estresse é médio; valores abaixo de 19 correspondem a nível baixo de burnout. Quanto à “despersonalização”, pontuações superiores a 10 são consideradas níveis altos; de 6 a 9, níveis médios; e inferior a 6 indica nível baixo de estresse. Diferentemente, a “realização pessoal” funciona de forma oposta às anteriores: pontuações superiores ou iguais a 40 representam nível baixo de burnout; entre 34 e 39, nível médio; e inferiores ou iguais a 33, nível alto de estresse2121. Ware JE Jr, Sherbourne CD. The MOS 36-item short-form health survey (SF-36). I. Conceptual framework and item selection. Med Care. 1992;30(6):473-83.,2222. Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol. 1999;39(3):143-50..

Já o SF36 é um questionário composto por 36 itens, distribuídos em oito componentes: capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral da saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental. Neste instrumento, o indivíduo recebe um escore de 0 a 100 em cada categoria, sendo que 0 representa o pior índice e 100 o melhor. Tanto o IMB quanto o SF36 foram aplicados em quatro momentos: início do primeiro ano, final do primeiro ano, início do segundo ano e final do segundo ano.

Na análise dos dados, utilizamos a estatística descritiva (média e erro-padrão) para caracterizar os achados e a estatística inferencial para comparar resultados entre grupos e momentos. A análise múltipla de variâncias para medidas repetidas (Anova de dois fatores) foi aplicada com o objetivo de observar o comportamento do IMB e SF36 nos sujeitos, agrupando os subtópicos de cada instrumento. Análises univariadas foram realizadas por meio do teste de análise de variâncias para medidas repetidas (Anova de dois fatores), associado ao pós-teste de Tukey.

Em todas as análises, admitiu-se o nível de significância em 5%, sob um intervalo de confiança de 95%. A verificação do tamanho do efeito de cada análise foi realizada por meio do eta ao quadrado parcial (η2ρ) e do poder estatístico dos testes.

RESULTADOS

Esta pesquisa investigou o índice de burnout e a qualidade de vida dos 18 residentes matriculados no programa multiprofissional em saúde da UFMS, distribuídos em profissionais das áreas de Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Nutrição e Odontologia.

Os escores médios obtidos pelos sujeitos em relação ao índice de burnout estão presentes na Figura 1. Como se pode observar pelo padrão médio dos grupos, a subescala “exaustão emocional” passou de um nível de burnout baixo para moderado e chegando próximo ao limite alto de estresse no final do segundo ano da residência. O componente “despersonalização”, por sua vez, pouco variou, ficando os escores médios dos sujeitos sempre na faixa classificatória intermediária. O item “realização pessoal” sofreu alguma variação, passando da faixa classificatória de estresse médio no começo do primeiro ano para estresse alto no final do curso.

FIGURA 1
Comportamento dos subescores de burnout em residentes ao longo de dois anos de acompanhamento, Campo Grande, 2014

O teste de análise múltipla de variâncias evidenciou diferença significativa quanto aos sinais de burnout nos estudantes, potencializado ao longo dos dois anos de residência (p = 0,004; η2ρ = 0,247; poder do teste: 95,41%). Análises univariadas indicaram aumento significativo no índice de exaustão emocional (p = 0,001; η2ρ = 0,661; poder do teste: 99,99%) e piora no índice de realização pessoal (p = 0,030; η2ρ = 0,277; poder do teste: 70,95%) dos alunos. Conforme analisado anteriormente, não houve diferença quanto ao escore de despersonalização durante os dois anos de avaliação dos discentes (p = 0,238; η2ρ = 0,238; poder do teste: 34,93%).

Os valores de qualidade de vida dos residentes encontram-se na Tabela 1. A análise conjunta de todos os componentes mensurados pelo SF36 aponta uma piora progressiva do índice de qualidade de vida dos alunos (p = 0,011; η2ρ = 0,429; poder do teste: 98,05%). Análises univariadas indicam piora de escore nos seguintes itens: aspectos físicos (p = 0,001; η2ρ = 0,525; poder do teste: 99,44%); dor (p = 0,001; η2ρ = 0,432; poder do teste: 95,62%); vitalidade (p = 0,001; η2ρ = 0,328; poder do teste: 98,68%); e saúde mental (p = 0,012; η2ρ = 0,247; poder do teste: 81,83%). Não houve alteração significativa nos componentes capacidade funcional (p = 0,170; η2ρ = 0,167; poder do teste: 41,56%), estado geral de saúde (p = 0,107; η2ρ = 0,199; poder do teste: 50,32%), aspectos sociais (p = 0,206; η2ρ = 0,153; poder do teste: 37,83%) e aspectos emocionais (p = 0,054; η2ρ = 0,243; poder do teste: 62,38%).

TABELA 1
Comportamento dos componentes de qualidade de vida em residentes ao longo de dois anos de acompanhamento, Campo Grande, 2014

Analisando possível diferença entre os escores de burnout e qualidade de vida entre os residentes das diversas áreas profissionais, o teste de análise múltipla de variâncias não apontou diferença entre o IMB (p = 0,821; η2ρ = 0,252; poder do teste: 66,17%) e o SF36 (p = 0,676; η2ρ = 0,90; poder do teste: 98,87%). Assim, é possível identificar que o padrão observado foi comum a todas as áreas profissionais. Análises univariadas reforçam este achado, por também apontarem semelhança significativa entre grupos para todos os componentes de burnout e qualidade de vida avaliados (p > 0,05 em todas as comparações).

DISCUSSÃO

Por meio desta pesquisa investigamos o índice de burnout e qualidade de vida dos residentes, e vislumbramos piora ao longo de dois anos do curso. Alterações no nível de estresse e qualidade de vida já foram constatadas em pesquisas prévias, reforçando os achados aqui obtidos1212. Guido LA, Goulart CT, da Silva RM, Lopes LF, Ferreira EM. Stress and burnout among multidisciplinary residents. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(6):1064-71.,1616. Guido LA, da Silva RM, Goulart CT, Bolzan ME, Lopes LF. Burnout syndrome in multiprofessional residents of a public university. Rev Esc Enferm USP. 2012;46(6):1477-83.,1717. Kang EK, Lihm HS, Kong EH. Association of intern and resident burnout with self-reported medical errors. Korean J Fam Med. 2013;34(1):36-42.. Entender os fatores desencadeadores de estresse é essencial para prevenir tais situações e potencializar a assistência e o aprendizado do residente.

A sobrecarga observada nos residentes pode ser explicada em parte pelo perfil dos alunos, usualmente recém-graduados e com pouca experiência assistencial2323. Lourencao LG, Moscardini AC, Soler ZASG. Health and quality of life of medical residents. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(1):81-91.. A transição acadêmico-profissional, com a natural insegurança frente às mudanças, pode ter interferido nos índices de saúde dos residentes. No entanto, caso a experiência profissional fosse o único fator atrelado ao nível de estresse e ao declínio da qualidade de vida dos acadêmicos, a tendência seria observarmos uma melhora em ambas as variáveis ao longo do tempo de experiência na residência – fato que não ocorreu. Assim, outros fatores devem ter exercido influência, como detalhado a seguir.

O medo de cometer erros, bem como crescentes cobranças e responsabilidades impostas aos residentes são fatores comumente associados aos níveis de estresse e exaustão emocional2424. Zare MH, Ahmadi B, Akbari Sari A, Arab M, Movahed-Kor E. Quality of Working Life on Residents Working in Hospitals. Iranian J Publ Health. 2012;41(9):78-83.. Diferentemente dos atendimentos realizados na graduação, onde o docente permanece em contato direto com o aluno, o residente nem sempre se vê próximo ao professor no cenário de prática2323. Lourencao LG, Moscardini AC, Soler ZASG. Health and quality of life of medical residents. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(1):81-91.,2525. Campbell J, Prochazka AV, Yamashita T, Gopal R. Predictors of Persistent Burnout in Internal Medicine Residents: A Prospective Cohort Study. Acad Med. 2010;85(10):1630-4.. Muitas vezes, esta situação é sanada pela figura do preceptor – usualmente o profissional do serviço –, que possibilita acesso mais próximo ao acadêmico. Mesmo assim, é importante reconhecer que o preceptor fica sobrecarregado, esbarrando ao mesmo tempo com a corresponsabilização sobre os alunos e as suas diversas atribuições profissionais, muitas vezes deixando o discente sozinho no cenário de prática e aumentando a insegurança do aluno.

Diante de situações corriqueiras de estresse e tensão, é natural que o profissional se volte unicamente para si e utilize recursos de isolamento como forma de enfrentar a dificuldade, potencializando o sentimento de frustração2626. Trindade LL, Lautert L, Beck CLC. Mecanismos de enfrentamento utilizados por trabalhadores esgotados e não esgotados da estratégia de saúde da família. Rev Latino Am Enfermagem. 2009;17(5):607-612.. Entre as consequências físicas associadas à insatisfação e ao estresse crescente é comum identificarmos somatizações álgicas com uma direta influência na qualidade de vida do residente. A literatura já demonstrou presença de fadiga muscular e aumento do risco de aparecimento de complicações osteomioarticulares relacionadas ao trabalho – fruto, muitas vezes, de esforços excessivos e posturas inadequadas associadas a abalos psicológicos2727. Souza D’Avila L, Fraga Sousa GA, Sampaio F. Prevalência de desordens musculoesqueléticas relacionadas ao trabalho em fisioterapeutas da Rede Hospitalar SUS-BH. Rev Bras Fisioter. 2005;9(2):219-225.

28. Magnago TSBS, Lisboa MTL, Souza IEO, Moreira MC. Distúrbios musculo-esqueléticos em trabalhadores de enfermagem: associação com condições de trabalho. Rev Bras Enferm. 2007;60(6):701-5.

29. Freitas-Swerts FCT, Robazzi MLCC. The effects of compensatory workplace exercises to reduce work-related stress and musculoskeletal pain. Rev Latino Am Enfermagem. 2014;22(4):629-36.
-3030. Freitas AR, Carneseca EC, Paiva CE, Paiva BSR. Impact of a physical activity program on the anxiety, depression, occupational stress and burnout syndrome of nursing professionals. Rev Latino Am Enfermagem. 2014;22(2):332-6 ..

Ainda devemos considerar que o nível crescente de estresse e o declínio de qualidade de vida podem estar sendo influenciados por incertezas frente ao futuro3131. Christofoletti G, Trelha CS, Galera RM, Feracin MA. Síndrome de burnout em acadêmicos de fisioterapia. Fisioter Pesq. 2007;14(2):35-9.. A abertura exponencial de cursos da área da saúde tem gerado uma concorrência cada vez mais acirrada entre profissionais, e a finalização da residência vislumbra uma nova demanda de inserção no mercado de trabalho3232. Haddad AE, Morita MC, Pierantoni CR, Brenelli SL, Passarella T, Campos FE. Undergraduate programs for health professionals in Brazil: an analysis from 1991 to 2008. Rev Saude Publica. 2010;44(3):383-91.. Este dado é corroborado por pesquisas prévias3333. Silva MCM, Gomes ARS. Stress ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com médicos e enfermeiros portugueses. Estud Psicol. 2009;14(3):239-48.,3434. França FM, Ferrari R, Ferrari DC, Alves ED. Burnout e os aspectos laborais na equipe de enfermagem de dois hospitais de médio porte. Rev Latino Am Enfermagem.2012;20(5):961-70., que compararam níveis de estresse de profissionais com situações mais estáveis na carreira (efetivos no trabalho) frente a profissionais em situações contratuais mais instáveis (contratos temporários).

Outro fator que pode estar vinculado ao desgaste físico e mental dos alunos é a carga horária de trabalho, estipulada em nosso programa em cinco dias semanais e plantões nos finais de semana. A carga horária extensiva e o turno de trabalho integral com ritmo acelerado e jornadas longas, associadas a poucas pausas para o descanso e refeições, são comuns em muitas residências, podendo afetar a saúde dos discentes3535. Rocha MCP, Martino MMF. O estresse e qualidade de sono do enfermeiro nos diferentes turnos hospitalares. Rev Esc Enferm USP. 2010;44(2):280-6.. É importante destacar que o vínculo de trabalho de cada residência deve obedecer aos aspectos normativos do Ministério da Educação, que sentenciam a necessidade de cumprimento de uma carga horária extensa, sendo 80% de atividades práticas e 20% de atividades teóricas77. da Motta LB, Pacheco LC. Integrating medical and health multiprofessional residencu programs: The experience in building an interprofessional curriculum for health professionals in Brazil. Educ Health. 2014;29(1):83-8.. Uma proposta para amenizar essa problemática está na redução da carga horária para os residentes, fato que já ocorre em diversos países2525. Campbell J, Prochazka AV, Yamashita T, Gopal R. Predictors of Persistent Burnout in Internal Medicine Residents: A Prospective Cohort Study. Acad Med. 2010;85(10):1630-4.,3636. Blum AB, Shea S, Czeisler CA, Landrigan CP, Leape L. Implementing the 2009 Institute of Medicine recommendations on resident physician work hours, supervision, and safety. Nat Sci Sleep. 2011;3:47-85..

Diante dos achados obtidos em nosso estudo, vale refletir sobre as funções dos programas de RMS em nosso país. De um lado, é notório que eles potencializam os atendimentos à população brasileira nos diversos cenários e níveis de atenção à saúde – melhorando os serviços vinculados ao Sistema Único de Saúde. De outro, no entanto, é de grande interesse que o aluno não seja caracterizado como “tocador de serviço”, uma vez que a formação em serviço denota um conjunto de atividades de ensino mediado por tutores e preceptores – não restrito aos atendimentos em si. Um terceiro ponto que não pode ser negligenciado vincula-se à função da residência de servir de estratégia para introduzir novas formas de organizações coletivas em saúde, demonstrando flexibilidade e participação ativa de toda a equipe no cuidado à população. Esta é, portanto, uma estratégia de educação permanente em saúde que busca promover mudanças no modelo assistencial ainda hegemônico na saúde pública do nosso país, questionando a realidade de maneira reflexiva e desenvolvendo alterações práticas que operem “realidades vivas”3737. Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccim RB. Educación Permanente en Salud: una estrategia para intervenir en la micropolítica del trabajo en salud. Salud Colectiva. 2006;2(2):147-160..

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos neste estudo reforçam achados previamente identificados na literatura, nos quais residentes apresentam nível de estresse crescente e comprometimento da qualidade de vida.

Inseguranças pessoais e profissionais demonstram estar vinculadas aos resultados identificados nesta pesquisa, cabendo aos núcleos docentes estruturantes de cada instituição identificar os agentes estressores e propor meios acolhedores aos alunos.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Capes e ao CNPq.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Secomb J. A systematic review of peer teaching and learning in clinical education. J Clin Nurs. 2008;17(6):703-16.
  • 2
    Baces DS, Koerich MS, Rodrigues ACRL, Drago LC, Klock P, Erdmann AL. O que os usuários pensam e falam do Sistema Único de Saúde? Uma análise dos significados à luz da carta dos direitos do usuário. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(3):903-10.
  • 3
    Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões da saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saúde Pública. 2004;20(5):1400-10.
  • 4
    Rosa SD, Lopes RE. Residência Multiprofissional em Saúde e Pós-Graduação Lato Sensu no Brasil: Apontamentos Históricos. Trab Educ Saúde. 2010;7(3):479-98.
  • 5
    Olckers L, Gibbs TJ, Duncan M. Developing health science students into integrated health professionals: a practical tool for learning. BMC Medical Education, London. 2007;(7):45.
  • 6
    Christofoletti G, Fernandes JM, Martins AS, Oliveira-Junior AS, Carregaro RL, Toledo AM. Aplicabilidade de métodos ativos de aprendizagem em uma disciplina de ética em saúde. Rev Eletrônica Educ. 2014;8(2):188-97.
  • 7
    da Motta LB, Pacheco LC. Integrating medical and health multiprofessional residencu programs: The experience in building an interprofessional curriculum for health professionals in Brazil. Educ Health. 2014;29(1):83-8.
  • 8
    Caregnato RCA, Lautert L. O estresse da equipe multiprofissional na Sala de Cirurgia. Rev Bras Enferm. 2005; 58(5):545-550.
  • 9
    Hooper C, Craig J, Janvrin DR, Wetsel MA, Reimels E. Compassion satisfaction, burnout, and compassion fatigue among emergency nurses compared with nurses in other selected inpatient specialties. J Emerg Nurs. 2010;36(5):420-7
  • 10
    Shorter M, Stayt LC. Critical care nurses’ experiences of grief in an adult intensive care unit. J Adv Nurs. 2010;66(1):159-67
  • 11
    Guido LA et al. Stressors in the nursing care delivered to potential organ donors. Rev Latino Am Enfermagem. 2009;17(6):1023-1029.
  • 12
    Guido LA, Goulart CT, da Silva RM, Lopes LF, Ferreira EM. Stress and burnout among multidisciplinary residents. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(6):1064-71.
  • 13
    Maslach CGJ. Prevention of burnout: new perspectives. Applied Preventive Psychology. 1998(7):63-74.
  • 14
    Murofuse NT, Abranches SS, Napoleão AA. Reflexões sobre estresse e Burnout e a relação com a enfermagem. Rev. Latino Am Enfermagem. 2005;13:255-61.
  • 15
    Ríos Risquez MI, Peñalver Hernández F, Godoy Fernández C. Burnout and perceived health in Critical Care nursing professionals. Enferm Intensiva. 2008;19(4):169-78.
  • 16
    Guido LA, da Silva RM, Goulart CT, Bolzan ME, Lopes LF. Burnout syndrome in multiprofessional residents of a public university. Rev Esc Enferm USP. 2012;46(6):1477-83.
  • 17
    Kang EK, Lihm HS, Kong EH. Association of intern and resident burnout with self-reported medical errors. Korean J Fam Med. 2013;34(1):36-42.
  • 18
    Teixeira C, Ribeiro O, Fonseca AM, Carvalho AS. Burnout in intensive care units – a consideration of the possible prevalence and frequency of new risk factors: a descriptive correlational multicentre study. BMC Anesthesiol. 2013;13(1):38.
  • 19
    Maslach C, Jackson SE. The measurement of experienced burnout. J Ocupp Behav. 1981;2:99-113.
  • 20
    Benevides-Pereira AMT. Burnout: o processo de adoecer pelo trabalho. In: Benevides-Pereira AMT (Ed). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem estar do trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. p.21-91.
  • 21
    Ware JE Jr, Sherbourne CD. The MOS 36-item short-form health survey (SF-36). I. Conceptual framework and item selection. Med Care. 1992;30(6):473-83.
  • 22
    Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol. 1999;39(3):143-50.
  • 23
    Lourencao LG, Moscardini AC, Soler ZASG. Health and quality of life of medical residents. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(1):81-91.
  • 24
    Zare MH, Ahmadi B, Akbari Sari A, Arab M, Movahed-Kor E. Quality of Working Life on Residents Working in Hospitals. Iranian J Publ Health. 2012;41(9):78-83.
  • 25
    Campbell J, Prochazka AV, Yamashita T, Gopal R. Predictors of Persistent Burnout in Internal Medicine Residents: A Prospective Cohort Study. Acad Med. 2010;85(10):1630-4.
  • 26
    Trindade LL, Lautert L, Beck CLC. Mecanismos de enfrentamento utilizados por trabalhadores esgotados e não esgotados da estratégia de saúde da família. Rev Latino Am Enfermagem. 2009;17(5):607-612.
  • 27
    Souza D’Avila L, Fraga Sousa GA, Sampaio F. Prevalência de desordens musculoesqueléticas relacionadas ao trabalho em fisioterapeutas da Rede Hospitalar SUS-BH. Rev Bras Fisioter. 2005;9(2):219-225.
  • 28
    Magnago TSBS, Lisboa MTL, Souza IEO, Moreira MC. Distúrbios musculo-esqueléticos em trabalhadores de enfermagem: associação com condições de trabalho. Rev Bras Enferm. 2007;60(6):701-5.
  • 29
    Freitas-Swerts FCT, Robazzi MLCC. The effects of compensatory workplace exercises to reduce work-related stress and musculoskeletal pain. Rev Latino Am Enfermagem. 2014;22(4):629-36.
  • 30
    Freitas AR, Carneseca EC, Paiva CE, Paiva BSR. Impact of a physical activity program on the anxiety, depression, occupational stress and burnout syndrome of nursing professionals. Rev Latino Am Enfermagem. 2014;22(2):332-6 .
  • 31
    Christofoletti G, Trelha CS, Galera RM, Feracin MA. Síndrome de burnout em acadêmicos de fisioterapia. Fisioter Pesq. 2007;14(2):35-9.
  • 32
    Haddad AE, Morita MC, Pierantoni CR, Brenelli SL, Passarella T, Campos FE. Undergraduate programs for health professionals in Brazil: an analysis from 1991 to 2008. Rev Saude Publica. 2010;44(3):383-91.
  • 33
    Silva MCM, Gomes ARS. Stress ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com médicos e enfermeiros portugueses. Estud Psicol. 2009;14(3):239-48.
  • 34
    França FM, Ferrari R, Ferrari DC, Alves ED. Burnout e os aspectos laborais na equipe de enfermagem de dois hospitais de médio porte. Rev Latino Am Enfermagem.2012;20(5):961-70.
  • 35
    Rocha MCP, Martino MMF. O estresse e qualidade de sono do enfermeiro nos diferentes turnos hospitalares. Rev Esc Enferm USP. 2010;44(2):280-6.
  • 36
    Blum AB, Shea S, Czeisler CA, Landrigan CP, Leape L. Implementing the 2009 Institute of Medicine recommendations on resident physician work hours, supervision, and safety. Nat Sci Sleep. 2011;3:47-85.
  • 37
    Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccim RB. Educación Permanente en Salud: una estrategia para intervenir en la micropolítica del trabajo en salud. Salud Colectiva. 2006;2(2):147-160.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2015
  • Revisado
    29 Jul 2015
  • Aceito
    14 Mar 2016
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com