Acessibilidade / Reportar erro

A Formação-Intervenção na Atenção Primária: uma Aposta Pedagógica na Educação Médica

Training-Intervention in Primary Care, a Pedagogical Gamble on Medical Education

RESUMO

A implantação do Sistema Único de Saúde e o reconhecimento da atenção primária à saúde (APS) como reorientadora do modelo de atenção à saúde trouxeram consigo a necessidade de novos processos de formação que incorporassem o ensinar e o aprender aos processos cotidianos de trabalho. Apresentamos um relato de experiência de implementação dos módulos de Fundamentos da Atenção Básica I e II (FABS I e FABS II), oferecidos aos estudantes de uma universidade pública do Nordeste brasileiro. Com uma estrutura fundamentada em módulos, adota-se o modelo tutorial como orientação pedagógica e parte-se do pressuposto da longitudinalidade, assegurando um contato contínuo e consistente do estudante com os temas abordados e com os serviços de APS e os demais nós que compõem a rede de saúde. Encontros semestrais potencializam a consolidação da relação ensino-serviço, propiciando a permanente avaliação dos processos vivenciados nas Unidades de Saúde, numa perspectiva reflexiva, histórica, crítica e transformadora. O primeiro módulo representa uma introdução teórico-prática à APS, e o segundo, situado no eixo de desenvolvimento profissional e compromisso social, aprofunda as noções teórico-práticas sobre a APS e a atuação do médico nesse contexto. Após cada tutoria, os estudantes vivenciam, nos encontros com e nas Unidades de Saúde da Família, os temas abordados e sua relação com o território e com aqueles que nele habitam e trabalham. No contexto das graduações em saúde, a inserção dos alunos no cotidiano da atenção primária é fundamental, considerando a indissociabilidade entre teoria e prática, a roda enquanto método democrático nas tutorias e a oferta e demanda dos temas em discussão coletiva. Ampliamos a análise sobre o papel do professor-apoiador, numa dupla tarefa de apoio aos alunos e à rede de atenção envolvida no processo formação-intervenção. A valorização da integração ensino-serviço-comunidade contribui para a formação de profissionais para o sistema de saúde e implica a defesa de diretrizes para legitimidade e sustentabilidade da atenção primária.

Educação Médica; Educação Superior; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

The implementation of the Unified Health System and the recognition of primary health care as a reorientation of the health care model have brought about the need for new training processes that incorporate teaching and learning into work processes. We present an experience report on the implementation of the Basic Care Fundamentals I and II modules (FABS I and FABS II), offered to students of a public university in the northeast of Brazil. With a module-based structure, the tutorial model is adopted as a pedagogical orientation and starts from the longitudinal presupposition, ensuring the student maintains continuous and consistent contact with the topics addressed and with the PHC services and the other nodes that make up the health network. Bi-annual meetings strengthen the consolidation of the teaching-service relationship, providing a permanent evaluation of the processes experienced in the Health Units, in a reflective, historical, critical and transformative perspective. The first module represents a theoretical-practical introduction to PHC and the second module, focused on professional development and social commitment, deepens the theoretical-practical notions about PHC and the physician’s performance in this context. After each tutorial, the students experience, in the meetings with and from within the Family Health Units, the topics addressed and their relationship with the territory and with those who live and work there. In the context of undergraduate health training, involving students in the daily primary care routine is fundamental, considering the inseparable nature of theory and practice, the conversation circle as a democratic method in tutoring, and the supply and demand of the themes in collective discussion. We broadened our analysis of the role of the teacher-supporter, as a dual function to support both student and care network involved in the training-intervention process. The enhancement of the teaching-service-community integration contributes to the training of professionals for the country’s health system and implies the defense of political guidelines for the legitimacy and sustainability of primary care.

Medical Education; Education, Higher; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

O conceito de saúde envolve múltiplas e amplas dimensões, compreendendo aspectos sociopolíticos, econômicos, industriais e históricos. Mais que isso, diante dessa sua complexidade e do reconhecimento da cidadania como requisito essencial à superação da realidade socioeconômica e sanitária, percebe-se a necessidade de uma reflexão acerca da formação em saúde11 Biscarde DGS, Pereira-Santos M, Silva LB. Formação em saúde, extensão universitária e Sistema Único de Saúde (SUS): conexões necessárias entre conhecimento e intervenção centradas na realidade e repercussões no processo formativo. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(48): 177-186.,22 Carvalho YM, Ceccim RB. Formação e educação em saúde: aprendizados com a Saúde Coletiva. In: Campos GWS et al. (Org). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. p. 137-171..

A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e o fortalecimento da atenção primária como reorientadora do modelo de atenção à saúde no País trouxeram novas práticas de gestão e cuidado para assegurar o direito universal e solidário à saúde. Regido por novos princípios e diretrizes, o sistema de saúde passou a exigir a proposição e organização de novos processos de formação, uma vez que “a formação é inseparável dos processos de mudanças”33 Passos E, Carvalho YM. A formação para o SUS abrindo caminhos para a produção do comum. Saúde Soc. 2015, 24(Supl 1): 92-101.:96 .

Esse cenário foi fortalecido pelas Diretrizes Curriculares em Saúde (DCNs) de 2001, que propuseram inovações curriculares para a construção de novas concepções nas instituições de ensino44 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface comun. saúde educ. 2011; 15(37): 589-599.. Desde então, as instituições de ensino superior têm construído projetos político-pedagógicos que contemplam, além do conhecimento técnico-científico, o compromisso com a cidadania e com os sujeitos e coletividades, direcionados às necessidades de saúde da população11 Biscarde DGS, Pereira-Santos M, Silva LB. Formação em saúde, extensão universitária e Sistema Único de Saúde (SUS): conexões necessárias entre conhecimento e intervenção centradas na realidade e repercussões no processo formativo. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(48): 177-186..

A formação das profissões em saúde ocorre a partir das possibilidades abertas pelo campo sanitário55 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) 2018; 22(Supl. 2):1739-49.. Continua sendo uma preocupação permanente dos atores sociais, das instituições formadoras e dos profissionais de diversos campos de fazer-saber. Os debates, muitas vezes, referem-se à distância entre a teoria e a prática do cotidiano do trabalho nos serviços de saúde66 Vasconcelos MFF, Nicolotti CA, Silva JF,Pereira SMLR. Entre políticas (EPS - Educação Permanente em Saúde e PNH - Política Nacional de Humanização): por um modo de formar no/para o Sistema Único de Saúde (SUS). Interface comun. saúde educ. 2016; 20(59): 981-991.. Trata-se da necessidade de uma educação que compõe e não segrega, conjugando os espaços da formação e do trabalho55 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) 2018; 22(Supl. 2):1739-49..

Esse processo de trabalho e os aspectos do cotidiano dos serviços de saúde, com seus modos de fazer a atenção e a gestão, são aspectos essenciais à construção de uma formação que supere os desafios para a consolidação do SUS e de seu princípio de integralidade, promovendo mudanças nas práticas de saúde e dos sujeitos a elas relacionados77 Heckert A, Neves C. Modos de formar. Modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Ministério da Saúde. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010..

As instituições de ensino superior têm buscado incluir, em seus projetos pedagógicos, a flexibilidade, a interdisciplinaridade, a contextualização, a relação teórico-prática e o respeito aos valores éticos, estéticos e políticos88 Scherer ZAP, Scherer EA. Identificação dos pilares da educação na disciplina integralidade no cuidado à saúde. Rev Esc Enferm USP 2012; 46(4):985-93. Isto significa que é preciso desenvolver novas formas não somente de ensinar, mas também de aprender, convivendo com outras possibilidades, atores e seus modos de vida singulares99 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(49): 313-324.. Uma compreensão da formação como intervenção, como proposto por Heckert e Neves77 Heckert A, Neves C. Modos de formar. Modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Ministério da Saúde. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010., resultado da interação entre produção de conhecimento, práticas de atenção e gestão, produção de saúde e de sujeitos. O que requer, segundo os autores, que se compreenda a formação como “atitude transdisciplinar”, com “novas sensibilidades, dizibilidades e visibilidades que expressam a multivetorialização, nas quais estão envolvidas as práticas concretas de cuidado e gestão em saúde”77 Heckert A, Neves C. Modos de formar. Modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Ministério da Saúde. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.:55 .

É preciso, portanto, incorporar o ensinar e o aprender aos processos cotidianos de trabalho e aos “problemas/fazeres/saberes” que surgem e dinamizam os modos de gerir e produzir saúde. Ações de formação devem, portanto, se envolver e funcionar no cotidiano dos serviços e redes de saúde66 Vasconcelos MFF, Nicolotti CA, Silva JF,Pereira SMLR. Entre políticas (EPS - Educação Permanente em Saúde e PNH - Política Nacional de Humanização): por um modo de formar no/para o Sistema Único de Saúde (SUS). Interface comun. saúde educ. 2016; 20(59): 981-991.. Isto significa, na multiplicidade do território e complexidade da atenção primária, colocar a formação “à disposição do exercício de apreender com e no mundo do trabalho, enquanto um campo essencialmente micropolítico”. O processo de formação nos convida a vivenciar “o cuidar, durante o ato do trabalho”99 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(49): 313-324.:317 .

Articular, como no quadrilátero da formação1010 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis (Rio J.). 2004; 14(1): 41-65., ensino, atenção, gestão e participação para a construção do conhecimento e para a promoção de uma formação profissional em saúde crítica, reflexiva, propositiva e solidária.

E a atenção primária é, potencialmente, espaço de formação, lócus de atuação de sujeitos singulares e territórios vivos. Com base em tais elementos, este artigo descreve a experiência de dois módulos que buscam aproximar a formação do curso de Medicina das necessidades e do cotidiano das Unidades de Saúde da atenção primária, numa perspectiva de refletir sobre seu potencial na caminhada e no processo de formação dos sujeitos envolvidos.

Os caminhos entre a universidade e o cotidiano das equipes

O presente trabalho consiste numa descrição da experiência de implementação dos módulos de Fundamentos da Atenção Básica I e II (FABS I e FABS II), oferecidos aos estudantes do terceiro e quarto semestres, respectivamente, do curso de Medicina, campus Recife, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e que estimulam, desde cedo, o acompanhamento longitudinal da integração ensino-serviço.

O relato de experiência é um recurso dos estudos descritivos que possibilita uma reflexão sobre um ou mais fenômenos relacionados a uma vivência profissional de interesse da comunidade científica1111 Cavalcante BLL, Lima UTS. Relato de experiência de uma estudante de Enfermagem em um consultório especializado em tratamento de feridas. J. nurs. health. 2012; 1(2): 94-103..

No contexto das Diretrizes Curriculares, o atual projeto político-pedagógico do curso de Medicina da UFPE busca, ao olhar para o futuro, respeitar as diferenças, usar novos cenários de práticas e romper paradigmas, contribuindo para a formação de um novo profissional, articulado no projeto de construção de uma sociedade mais justa, solidária e mais humana1212 Universidade Federal de Pernambuco. Projeto político pedagógico do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003. Disponível em: <https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado-ccs/projeto-pedagogico>. Acesso em: 13 dez 2017.
https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado...
.

Com uma estrutura fundamentada em módulos, o novo formato, entre tantos benefícios, potencializa a expansão de práticas em serviços de saúde e facilita a implementação de uma integração progressiva de disciplinas1212 Universidade Federal de Pernambuco. Projeto político pedagógico do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003. Disponível em: <https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado-ccs/projeto-pedagogico>. Acesso em: 13 dez 2017.
https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado...
.

Os módulos de FABS I e II adotam o modelo tutorial como orientação pedagógica e partem do pressuposto da longitudinalidade, com carga horária semanal de quatro a oito horas, durante um ano do curso, de modo a assegurar um contato contínuo e consistente do estudante com os temas abordados e com os serviços de atenção primária e os demais nós que compõem a rede de saúde.

O uso do sistema de tutoria, enquanto modalidade de ensino, aprendizagem e apoio nos módulos, teve início em 2006, quando as avaliações se tornaram periódicas, com a participação de professores, estudantes, monitores, residentes de Medicina de Família e Comunidade e preceptores da rede de saúde.

O exercício da tutoria possibilita criar espaços de reflexão, aproximando professores e estudantes, reconhecendo o aluno como “sujeito da prática e foco da ação educacional”1313 Santana CS, Kebbe LM, de Carlo MMRP, Carretta RYD, Elui VMC. Reflexões sobre a prática de tutoria com estudantes de terapia ocupacional. Trab. Educ. Saúde 2009; 7(1): 167-182.:168 . Isto porque é fundamental estimular uma formação centrada na articulação de diferentes saberes, conhecimentos e aprendizados no território da vivência do aluno, partindo dele como sujeito do próprio processo de formação99 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(49): 313-324..

O planejamento e a implementação das ações formativas, o uso de metodologias ativas, estratégias de ensino, aprendizagem e avaliação são processos importantes para o desenvolvimento de competências dos futuros profissionais de saúde1414 Costa MV, Peduzzi M, Freire Filho JR, Silva CBG. Educação interprofissional em saúde. Natal: SEDIS-UFRN: 2018., para que possam aprender a aprender, o, que para Delors1515 Delors J. Educação: um tesouro a descobrir, relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Unesco, 2010., representa aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

No caminho para a construção dos módulos, as equipes preceptoras também contribuem ativamente com o monitoramento dos objetivos, formas de avaliação e propostas de formação. Encontros semestrais potencializam a consolidação da relação ensino-serviço, propiciando a permanente avaliação dos processos vivenciados nas Unidades de Saúde, numa perspectiva reflexiva, histórica, crítica e transformadora.

Como resultado, os tutores atualizam o mapa mental de cada módulo (Figura 1) e o planejamento para cada tutoria, organizando, para cada momento de aprendizagem, o tema a ser abordado, os objetivos, o conteúdo, a estratégia a ser adotada, as competências a serem desenvolvidas, os cenários envolvidos, a metodologia a ser utilizada, os recursos necessários, os métodos de avaliação e as parcerias envolvidas (Quadro 1).

FIGURA 1
Mapa mental – Fundamentos da Atenção Básica I

QUADRO 1
Modelo de planejamento de tutoria

Os módulos e sua organização

Os módulos de Fundamentos da Atenção Básica I e II (FABS I e FABS II) são oferecidos aos estudantes do terceiro e quarto semestres, respectivamente, do curso de Medicina de uma universidade pública do Estado de Pernambuco.

O primeiro módulo representa uma introdução teórico-prática à APS no contexto familiar e de comunidade, tendo por base os princípios do SUS e com os objetivos de: apresentar a prática da APS no processo de construção e efetivação do SUS no Brasil; definir o processo de territorialização na APS, como unidade de intervenção de políticas públicas, em essencial a APS, e a utilização de suas informações para a produção de cuidado individual e coletivo; intervir no processo saúde-doença tendo a família como foco da APS inserida em sua comunidade e território e sua participação na produção do cuidado individual e coletivo; apresentar a integralidade em saúde como princípio fundamental do SUS e da APS; introduzir as bases pedagógicas da educação popular como ferramenta fundamental na APS; e compreender os princípios do Processo de Saúde e Trabalho, incorporando a categoria trabalho como objeto de intervenção da atenção à saúde no âmbito da atenção primária.

O módulo de Fundamentos da Atenção Básica II, situado no eixo de desenvolvimento profissional e compromisso social, aprofunda as noções teórico-práticas sobre a atenção primária à saúde e a atuação do médico neste contexto. Procura articular saberes e práticas da Saúde Coletiva aos conhecimentos, habilidades e atitudes desenvolvidas no atual momento do processo de formação do médico, integrando as competências clínicas e as de gestão do cuidado, bem como promovendo a aquisição de habilidades para o desenvolvimento de atividades de Saúde Coletiva.

Após cada tutoria, os estudantes vivenciam, nos encontros com e nas Unidades de Saúde da Família, os temas abordados e sua relação com o território e com aqueles que nele habitam e trabalham. Cenários de aprendizagem que são transversais às demandas sociais1616 Macêdo MCS, Romano RAT, Henriques RLM, Pinheiro R. Cenários de aprendizagem: interseção entre os mundos do trabalho e da formação. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA (Org.). Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco; 2006. p. 229-50. estimulam uma leitura crítica do cotidiano e funcionam77 Heckert A, Neves C. Modos de formar. Modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Ministério da Saúde. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. como ferramentas essenciais de intervenção nas ações que produzem a saúde.

Cada tema ofertado em discussão nos encontros de tutoria é traduzido com base na realidade concreta vivenciada pelos estudantes no contato horizontal prolongado com o mesmo docente e o mesmo serviço na rede de atenção. Nos primeiros seis meses, são discutidos e vivenciados temas como os fundamentos da atenção primária, abordagem da família, vínculo terapêutico e responsabilização, territorialização em saúde, educação em saúde, integralidade, saúde/ambiente e trabalho.

Nos seis meses seguintes, a indissociabilidade entre clínica, gestão e saúde coletiva é traduzida na necessidade de construção teórica e prática do Projeto Terapêutico Singular. São ofertados temas em discussão nas tutorias e vivência na prática, como Clínica Ampliada e seus dispositivos, redes de atenção, trabalho em equipe e diagnóstico compartilhado, equipe de referência e apoio especializado matricial, responsabilização e vínculo terapêutico, acesso/acolhimento com avaliação de vulnerabilidade, modelos de atenção e gestão na saúde.

No contexto das graduações em saúde, ainda com forte referencial positivista e centrado no modelo biomédico, a inserção dos alunos no cotidiano da atenção primária é fundamental. Partindo desse pressuposto, os módulos apostam no acompanhamento de grupos de estudantes nesse cenário, com efeitos pedagógicos e assistenciais, interferindo no modelo de atenção e gestão.

Todos os docentes envolvidos precisam estar presentes durante o ano de acompanhamento dos estudantes e ser capazes de atuar neste tipo de ensino, considerando a indissociabilidade entre teoria e prática, a roda enquanto método democrático nas tutorias, a oferta e demanda dos temas em discussão coletiva. O contato horizontal e prolongado do docente com as equipes da rede, de maneira a valorizar o vínculo e o planejamento conjunto das atividades, também é um resultado pedagógico considerado fundamental, valorizando a rede básica na produção do ensino-pesquisa-extensão em parceria com a universidade.

Do ponto de vista assistencial, e não menos pedagógico, a aposta na Rede de Atenção Primária como coordenadora da rede de atenção tem sido uma defesa ético-política. O ensino da Saúde Coletiva e Clínicas no território, articulando a rede a partir da APS, tem sido um compromisso com o SUS enquanto sistema nacional. Na prática, trata-se de apoiar docentes, alunos e preceptores para que esta rede constitua um campo de investigação e produção de conhecimento, envolvendo os parceiros do território, incluindo as equipes de apoio matricial à Estratégia de Saúde da Família.

São cinco diretrizes disparadas/defendidas por meio das atividades de formação-intervenção na atenção primária: garantia de acesso e acolhimento com avaliação de vulnerabilidade; integração em rede; cogestão e democracia institucional; clínica ampliada e compartilhada; ampliação da Saúde Coletiva.

O modelo de atenção e gestão defendido na rede de saúde depende também da capacidade da universidade de compreender sua implicação com o SUS. Cabe também às escolas médicas a defesa de diretrizes pedagógicas e assistenciais de maneira a garantir sua responsabilidade sanitária e política.

Novos cenários de formação

Ampliamos a análise sobre o papel do professor-apoiador, numa dupla tarefa de apoio aos alunos e à rede de atenção envolvida no processo formação-intervenção.

Compreendemos o apoio, com base em Campos1717 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo; Huncitec; 2000. 236p., como uma postura metodológica que busca reformular os métodos tradicionais de gestão e de relações entre sujeitos. Um modo de funcionar que interfira na produção social e subjetiva dos alunos, docentes/tutores, preceptores/equipes envolvidas, como a coprodução singular do processo saúde/doença/intervenção; a construção de autonomia não como conceito absoluto, sempre em rede e relativo, em gradientes, coeficientes; uma metodologia para lidar com relações interpessoais de modo construtivo e dialético, aplicado às práticas profissionais da saúde; a construção ativa de espaços coletivos, objetivando interferir no contexto e contribuir para ampliação da capacidade de análise, de agir sobre a realidade e tomar decisões; funcionar utilizando as dimensões do conhecimento/técnica, do poder e dos afetos quando utilizamos a ação em saúde e a ação educativa como prática social, que acontece entre sujeitos, ainda que com distintos graus de conhecimento e poder.

As ações são disparadas na rede básica existente, não apostando em modelos ideais, mas de maneira a apoiar:

  1. A organização do acolhimento de modo a promover a ampliação do acesso, compreendendo a atenção básica como coordenadora das ações no território e, a partir dela, a definição de prioridades para ordenamento da rede, eliminando filas e organizando o atendimento com base na avaliação de vulnerabilidade;

  2. A reorganização do trabalho em equipe a partir do apoio institucional, valorizando os saberes e práticas dos diferentes profissionais e ampliando a capacidade de resolver problemas no território, com apoio matricial quando necessário;

  3. O fortalecimento das redes de saúde e articulações ensino-serviço, ampliando a capacidade conjunta de soluções e construções de políticas e intervenções intersetoriais;

  4. O fortalecimento da Clínica Ampliada e Compartilhada, ampliando também as ações de Saúde Coletiva no território, com ofertas/demandas de temas relevantes, construção de projetos terapêuticos singulares e projetos de saúde coletiva, práticas de educação em saúde e outras atividades em parceria;

  5. A ampliação dos espaços de escuta para usuários e equipes no cotidiano do trabalho, fortalecendo a participação e ampliando a capacidade de análise dos problemas;

  6. A inclusão da dimensão subjetiva nas práticas de apoio e discussão de caso, incluindo a saúde mental como campo de saber e prática essencial na atenção básica;

  7. A ampliação da capacidade das equipes na análise do seu próprio cotidiano do trabalho, incorporando a prática de planejamento conjunto com contribuição e participação da universidade1818 Coelho BP. A reformulação da Clínica e gestão na saúde: subjetividade,política e invenção de práticas. 1. ed. São Paulo-SP: Editora Hucitec, 2015. v. 1. 194p ..

Considerando a elaboração de projetos de Saúde Coletiva e Projetos Terapêuticos Singulares como modo de inserção-intervenção conjunta dos alunos e das equipes da atenção primária diante dos processos saúde-doença, como diretriz pedagógica e assistencial, o apoio institucional se produz enquanto uma filosofia da prática na relação entre todos os envolvidos nos processos educativos e de produção de saúde. Um duplo sentido de interferência/implicação com a rede na produção da Clínica e da Saúde Coletiva na atenção primária, bem como interferindo na formação por meio de relações radicalmente democráticas no processo de aprendizagem.

A elaboração de projetos singulares individuais e coletivos traz um sentido de intervenção longitudinal em equipe, análise das dimensões sociais e subjetivas, além da biológica na prática clínica – intervir no território vivo ocupado por pessoas reais, romper o fazer da vigilância em saúde pautada na regra, na norma, e valer-se mais da educação em saúde, promoção e prevenção.

As etapas de elaboração de um plano terapêutico ou projeto de saúde não são lineares, nem obedecem necessariamente a etapas sucessivas, como diagnóstico, objetivos, metas, responsáveis e avaliações, porque, às vezes, a realidade subverte essas etapas. Também não é necessária uma construção teórica tão profunda a ponto de inviabilizar a intervenção compartilhada no cotidiano enquanto as equipes realizam suas tarefas.

A produção dos projetos terapêuticos e de saúde coletiva busca desestabilizar o contexto biomédico e positivista da formação médica tradicional, bem como interferir no modelo de atenção básica para além da atenção programática ou produção em série de consultas, por meio da Clínica Ampliada e centrada na relação entre sujeitos.

Para que essa reformulação teórico-política e metodológica aconteça, é necessária a divulgação e/ou contratação clara de responsabilidades da universidade com a rede pública mediante contrato, convênio, projetos de integração, entre outros, e, ainda, a formação de professores e preceptores em atenção primária à saúde, respeitando-se as realidades territoriais e diretrizes/princípios da APS. Ainda é necessário romper com a desintegração entre Clínica e Saúde Coletiva, individual e coletivo, objetivo e subjetivo, como se fosse impossível a construção de sínteses.

Aposta-se aqui na existência de pactos/fluxos claros, contratados entre instituições e legitimados nos colegiados específicos sobre ensino-serviço, de maneira a permitir a existência de projetos a longo prazo nas universidades e no SUS.

Tem sido um desafio traduzir, em modos de funcionar na prática educativa e na prática de saúde à luz da cogestão, as diretrizes de equidade, integralidade e transdisciplinaridade. Aliada às diretrizes para organização das redes de atenção e à ênfase na atenção básica, há uma recomendação genérica de que a formação médica busque uma variação de cenários para o ensino prático.

Se nossa aposta é que a atenção primária à saúde tem capacidade de resolver problemas, se aceitamos que as intervenções no território são de grande complexidade e se acrescentamos que grande parte da população vive em situação de vulnerabilidade, teremos claras evidências técnicas e éticas de que nossa escola médica deve formar um profissional competente para intervir nessa realidade1919 Campos GWS. Papel da rede de atenção básica em saúde na formação médica – diretrizes. Cadernos ABEM 2007; 3: 1-6..

A avaliação dos estudantes é processual e busca cumprir suas funções formativa, somativa e informativa, ou seja, subsidia o estímulo ao aprendizado, orienta a tomada de decisão e contribui para a qualidade do currículo – uma avaliação programática que valoriza a avaliação do aprendizado, como sugere Trocon2020 Trocon LEA. Estruturação de Sistemas para Avaliação Programática do Estudante de Medicina. Revista Brasileira de Educação Médica Brasileira de Educação Médica 2016; 40 (1): 30-42..

Assim como Miguel et al.2121 Miguel EA, Albiero ALM, Alves RN, Bicudo AM. Trajetória e implementação de disciplina interprofissional para cursos da área de Saúde. Interface Comunicação, Saúde e Educação 2018; 22(Supl. 2): 1763-76.:1770 , trata-se de uma avaliação integral, que aborda os domínios cognitivo e psicomotor. O primeiro revela “o desenvolvimento e o progresso na aprendizagem”, e o segundo observa “o desenvolvimento de habilidades e aspectos práticos relacionados à formação dos estudantes”, como participação colaborativa; adequação às normas; comunicação adequada; iniciativa, liderança; busca de informação; avaliação crítica da literatura e raciocínio profissional.

Na formação da saúde e no ensino da Medicina, a combinação entre teoria e prática voltadas ao campo da Saúde Coletiva precisa ser desenvolvida precocemente, além de que o próprio ensino da Clínica necessita de novos cenários, apostando na rede integrada de saúde. Partir da constituição do ensino em Saúde Coletiva na inserção longitudinal na rede requer a valorização da atenção primária e sua retaguarda de serviços matriciais com capacidade para resolver problemas, incluindo o hospital universitário como rede de apoio matricial e em relação articulada e solidária.

Isto significa apostar em diretrizes pedagógicas e assistenciais, favorecendo uma abordagem ampliada e singular de cada caso, o que qualificaria a formação teórica sobre diretrizes diversas e uma prática centrada no sujeito. Entrar em contato com essa complexidade, com a obrigação de trabalhar em equipe e em rede, de fazer acompanhamento longitudinal possibilita que o estudante se aproprie de competências essenciais ao exercício da profissão e que equipes da atenção primária ampliem sua capacidade de resolver problemas no território e em rede. Isso implica reconhecer que os problemas que o SUS deve resolver são problemas também para as universidades e escolas médicas.

O fortalecimento da integração ensino-serviço-comunidade

Escolher a formação-intervenção como processo de aprendizagem exige um conjunto de questões que dizem respeito às relações entre universidade pública e rede de saúde, entre subjetividade e gestão dos processos formativos. Ao mesmo tempo, representa a possibilidade de novas práticas para implementar processos de mudança na formação em saúde e avanços na democratização da universidade e no SUS, os limites e potencialidades dos instrumentais teórico-metodológicos disponíveis para favorecer tais processos.

Se não valorizarmos a integração ensino-serviço-comunidade, não formaremos médicos com competências e habilidades para o exercício dessa função essencial ao sistema e à saúde dos brasileiros. Isso implica também a defesa de diretrizes macro e micropolíticas para legitimidade e sustentabilidade da atenção primária, assim como feito há 40 anos, na Conferência de Alma-Ata, com capacidade para resolver problemas individuais e coletivos na diversidade e complexidade dos territórios no País.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Biscarde DGS, Pereira-Santos M, Silva LB. Formação em saúde, extensão universitária e Sistema Único de Saúde (SUS): conexões necessárias entre conhecimento e intervenção centradas na realidade e repercussões no processo formativo. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(48): 177-186.
  • 2
    Carvalho YM, Ceccim RB. Formação e educação em saúde: aprendizados com a Saúde Coletiva. In: Campos GWS et al. (Org). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. p. 137-171.
  • 3
    Passos E, Carvalho YM. A formação para o SUS abrindo caminhos para a produção do comum. Saúde Soc. 2015, 24(Supl 1): 92-101.
  • 4
    Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface comun. saúde educ. 2011; 15(37): 589-599.
  • 5
    Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) 2018; 22(Supl. 2):1739-49.
  • 6
    Vasconcelos MFF, Nicolotti CA, Silva JF,Pereira SMLR. Entre políticas (EPS - Educação Permanente em Saúde e PNH - Política Nacional de Humanização): por um modo de formar no/para o Sistema Único de Saúde (SUS). Interface comun. saúde educ. 2016; 20(59): 981-991.
  • 7
    Heckert A, Neves C. Modos de formar. Modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Ministério da Saúde. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.
  • 8
    Scherer ZAP, Scherer EA. Identificação dos pilares da educação na disciplina integralidade no cuidado à saúde. Rev Esc Enferm USP 2012; 46(4):985-93
  • 9
    Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface comun. saúde educ. 2014; 18(49): 313-324.
  • 10
    Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis (Rio J.). 2004; 14(1): 41-65.
  • 11
    Cavalcante BLL, Lima UTS. Relato de experiência de uma estudante de Enfermagem em um consultório especializado em tratamento de feridas. J. nurs. health. 2012; 1(2): 94-103.
  • 12
    Universidade Federal de Pernambuco. Projeto político pedagógico do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003. Disponível em: <https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado-ccs/projeto-pedagogico> Acesso em: 13 dez 2017.
    » https://www.ufpe.br/medicina-bacharelado-ccs/projeto-pedagogico>
  • 13
    Santana CS, Kebbe LM, de Carlo MMRP, Carretta RYD, Elui VMC. Reflexões sobre a prática de tutoria com estudantes de terapia ocupacional. Trab. Educ. Saúde 2009; 7(1): 167-182.
  • 14
    Costa MV, Peduzzi M, Freire Filho JR, Silva CBG. Educação interprofissional em saúde. Natal: SEDIS-UFRN: 2018.
  • 15
    Delors J. Educação: um tesouro a descobrir, relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Unesco, 2010.
  • 16
    Macêdo MCS, Romano RAT, Henriques RLM, Pinheiro R. Cenários de aprendizagem: interseção entre os mundos do trabalho e da formação. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA (Org.). Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco; 2006. p. 229-50.
  • 17
    Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo; Huncitec; 2000. 236p.
  • 18
    Coelho BP. A reformulação da Clínica e gestão na saúde: subjetividade,política e invenção de práticas. 1. ed. São Paulo-SP: Editora Hucitec, 2015. v. 1. 194p .
  • 19
    Campos GWS. Papel da rede de atenção básica em saúde na formação médica – diretrizes. Cadernos ABEM 2007; 3: 1-6.
  • 20
    Trocon LEA. Estruturação de Sistemas para Avaliação Programática do Estudante de Medicina. Revista Brasileira de Educação Médica Brasileira de Educação Médica 2016; 40 (1): 30-42.
  • 21
    Miguel EA, Albiero ALM, Alves RN, Bicudo AM. Trajetória e implementação de disciplina interprofissional para cursos da área de Saúde. Interface Comunicação, Saúde e Educação 2018; 22(Supl. 2): 1763-76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2019
  • Aceito
    20 Maio 2019
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com