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O déficit público e o crescimento da dívida mobiliária federal (1985-2018)

The public deficit and the growth of the federal securities debt (1985-2018)

RESUMO

O déficit das contas públicas é costumeiramente apontado como o principal responsável pelo aumento da dívida pública federal brasileira. No entanto, isto não é verdade. A análise realizada neste estudo, para o período de 1995 a 2018, demonstrou que o déficit nominal do Governo Central representou apenas uma parcela menor do crescimento da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Outros fatores, principalmente os relacionados às políticas monetária e cambial do Banco Central, explicam a maior parte do crescimento da DPMFi no período.

PALAVRAS-CHAVE:
DPMFi; déficit público; resultado primário; resultado nominal

ABSTRACT

The deficit of the public accounts is usually pointed out as the main responsible for the increase of the national debt. However, this is not true. The analysis done this study, for the period 1995 to 2018, showed that the Central Government nominal deficit represented only a smaller part of the growth of the Domestic Federal Public Debt (DPMFi). Other factors, mainly those related to the monetary and exchange policy of the Central Bank, explain most of the growth of the DPMFi in the period.

KEYWORDS:
DPMFi; public deficit; primary result; nominal result

INTRODUÇÃO

Umas das acusações mais recorrentes dos analistas e jornalistas econômicos, ao longo das últimas três décadas, era de que o déficit público do Governo Federal representava a principal causa do crescimento da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi).

O objetivo deste artigo é demonstrar que isto não é verdade. O déficit público não foi o principal responsável pelo crescimento da dívida interna do país no período de 1995 a 2018. Outros motivos, como as operações do Banco Central e o socorro aos bancos privados (Proer) e públicos (Proes), possuem maior representatividade no crescimento da DPMFi. Além disso, o artigo realçará que o pagamento dos juros da dívida federal significou a quase totalidade do déficit público ocorrido no período. Em termos específicos, o trabalho abordará o resultado primário e nominal do Governo Central, a relação DPMFi/PIB, e a porcentagem que o déficit nominal representou no crescimento da dívida interna em cada ano do estudo.

Assim, para cumprir os objetivos propostos, o artigo está dividido em três seções. Na primeira, estudaremos o crescimento vertiginoso da DPMFi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Verificaremos que a dívida interna do Governo Federal cresceu nominalmente entre o final de 1994 e o final de 2001. O mesmo também ocorreu na relação DPMFi/PIB. No entanto, no ano de 2002, a dívida teve uma pequena queda, tanto em termos nominais quanto em porcentagem do PIB, cujo motivo será detalhado na seção. Além disso, a primeira seção mostrará que o déficit nominal do Governo Central não foi o principal responsável pelo crescimento da DPMFi no governo FHC. Indicará que a responsabilidade estaria em operações lastrea­das em títulos públicos, muitas delas operadas pelo Banco Central, além do programa de socorro aos bancos privados e públicos.

Na segunda seção, analisaremos a elevação da DPMFi no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Embora o crescimento nominal da dívida ainda se mantenha ano após ano, a relação DPMFi/PIB ficou praticamente estável no período. Da mesma forma que na seção anterior, entenderemos que o déficit nominal do Governo Central não foi a principal causa do crescimento nominal da dívida, mas sim outros tipos de operações envolvendo títulos públicos.

Na terceira seção, trataremos do aumento da DPMFi durante o governo de Dilma Rousseff/Michel Temer (2011-2018). Ao longo do primeiro governo Dilma (2011--2014), temos, finalmente, uma queda da relação DPMFi/PIB, embora o crescimento nominal da dívida ainda ocorresse no período. Porém, nos quatro anos seguintes (2015-2018), com o ressurgimento do déficit primário e do aumento do pagamento de juros, a relação DPMFi/PIB voltou a crescer, superando a marca registrada em 2001, no governo FHC. Verificaremos que somente no período 2013-2018 o déficit nominal explicou totalmente o crescimento da dívida interna. Ao final, sublinharemos que, nos anos de 2014-2018, parte do déficit nominal foi financiado por emissões monetárias e não apenas por lançamento de novos títulos públicos.

Por fim, será apresentada a conclusão do estudo. Ressaltaremos que o crescimento da dívida interna brasileira, entre 1995 e 2012, não teve como principal causa as operações do Tesouro Nacional, responsável pelas contas públicas. Outras causas envolvendo o lançamento de títulos públicos, principalmente pelo Banco Central, determinaram a maior parte do crescimento da dívida interna. No entanto, é preciso deixar claro que o estudo não tratará especificamente das operações do Banco Central, mas somente da relação do déficit público com o crescimento da DPMFi.

DÉFICIT PÚBLICO E DPMFi NO GOVERNO FHC (1995-2002)

Conceitualmente, o déficit público do Governo Central (Governo Federal, INSS e Banco Central) ocorre quando o Resultado Nominal das contas púbicas é negativo (déficit nominal). O Resultado Nominal é a soma do Resultado Primário e dos Juros Nominais. Entende-se por Resultado Primário a diferença entre receitas e despesas do governo, excluído o pagamento de juros da dívida pública (interna e externa). Para cobrir o déficit nominal, o Tesouro Nacional emite títulos da dívida pública interna. São estes títulos que formam a Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi).

No início de 1990, o montante da DPMFi sofreu uma forte redução em função do Plano Collor. Ao confiscar os ativos financeiros depositados nos bancos brasileiros e expurgar 50% da inflação do mês de março de 1990 (que atingiu 81% pelo IGP-DI), o Plano Collor reduziu substancialmente a dívida pública.

De acordo com a Tabela 1, podemos verificar que, no final de 1994, a DPMFi somava a quantia de apenas R$ 61,8 bilhões, que, na época, representava 17,7% do PIB. Mesmo assim, este percentual de 17,7% era superestimado. Isto tinha como causa o cálculo do PIB de 1994 e a existência de duas moedas no mesmo ano (Cruzeiro Real e Real), que distorceu parte das estatísticas econômicas. Desta forma, este percentual não deve ser levado em conta, ao pé da letra, na comparação com os anos posteriores.

Tabela 1:
DPMFi fora do Banco Central (fim de período) - 1994-2002 - R$ milhões

Voltando à Tabela 1, observa-se o enorme crescimento da DPMFi durante o governo FHC. Em 1995, a dívida cresceu 75,6%, saindo de R$ 61,8 bilhões, no final de 1994, para R$ 108,5 bilhões, no final de 1995. Ou seja, em apenas um ano, a dívida pública aumentou R$ 46,7 bilhões. Durante os anos seguintes (1996-2001), o percentual de crescimento foi se reduzindo gradualmente, mas sempre ficando acima da casa dos 20% ao ano.

Em termos percentuais do PIB, a DPMFi seguiu uma trajetória ascendente até o ano de 2001. No final de 1995, a relação dívida/PIB era de 15,4%, subindo ano após ano, até chegar em 47,4% no final de 2001, demonstrando o enorme crescimento da dívida interna do Governo Central brasileiro no período. A relação DPMFi/PIB permite comparações ao longo do tempo, ao contrário do valor nominal da dívida.

Mesmo assim, o crescimento nominal da dívida interna durante o governo FHC foi assombroso: de R$ 61,8 bilhões, no final de 1994, para R$ 624,1 bilhões, no final de 2001. A dívida praticamente foi multiplicada por 10, em apenas 7 anos; um salto de 910%.

Já o ano de 2002 destoa de todo o período. Pela primeira vez, e único na história depois do Plano Real, observamos uma queda no valor da DPMFi, que fechou o ano em R$ 623,2 bilhões, uma variação nominal negativa de R$ 893 milhões (Tabela 1). Diante do crescimento da economia neste ano (13,2%, em valores correntes) e a queda nominal da DPMFi, a relação dívida/PIB recuou para 41,9%, depois de alcançar a marca de 47,4%, em 2001.

O motivo para este resultado positivo em relação à dívida pública foi o seguinte: no segundo semestre de 2002, os investidores financeiros compartilharam o medo de que um partido de esquerda poderia sair vitorioso nas eleições presidenciais. O candidato Luiz Inácio Lula da Silva tinha chances reais de ganhar as eleições. O mercado temia um calote da dívida pública, então transformou parte de seu patrimônio financeiro em ativos reais (casas, terrenos e apartamentos). As compras de imóveis cresceram 30%, no final de 2002, em relação a 2001; outros compraram dólares. Com a queda da oferta de moeda estrangeira no mercado brasileiro, a cotação média do dólar atingiu R$ 3,80 em outubro de 2002. O grande receio vinha dos investidores estrangeiros. O crédito externo praticamente foi suspenso nos meses finais do ano, e até mesmo o financiamento das exportações foi suspenso, acontecimento inédito na economia brasileira. O “medo Lula” também afetou o mercado da dívida pública. A aceitação de novos títulos públicos para substituir os títulos que estavam vencendo ficou comprometida. Diante dessa recusa, o Banco Central passou a comprar os títulos no vencimento, sem lançar novos papéis, ocasionando uma expansão da base monetária. Desta forma, não foi um superávit nominal do Governo Central que provocou a queda da dívida interna, em 2002, mas sim a recusa do mercado em comprar novos títulos públicos.

Na época, um dos principais argumentos utilizados para justificar o crescimento descomunal da DPMFi era de que o governo gastava mais do que arrecadava. Assim, o Governo Federal seria obrigado a emitir títulos públicos para pagar seu déficit fiscal, elevando a dívida pública interna. Isto só em parte era verdade. Observando a Tabela 2, verificamos que o Governo Central (Governo Federal, INSS e Banco Central) obteve resultados primários positivos em sete anos. O único déficit primário ocorreu no ano de 1997 (R$ 2,4 bilhões). Desta forma, não foi a despesa maior que a receita (déficit primário) que gerou o déficit público (conhecido como “déficit nominal”).

Tabela 2:
Resultado primário e nominal do Governo Central - 1995-2002 - R$ milhões

A Tabela 2 mostra que o déficit nominal foi causado, basicamente, pelo pagamento de juros da dívida pública. Os juros nominais tiveram um crescimento expressivo a partir de 1998: saiu do patamar de R$ 18,9 bilhões, em 1997, para um valor de R$ 50,1 bilhões, em 1998. Nos anos seguintes (1999-2002), o pagamento de juros sempre foi superior a R$ 40 bilhões por ano. Três motivos explicam o grande pagamento de juros a partir de 1998: aumento do montante da dívida pública, altos juros praticados pelo Banco Central e desvalorizações cambiais (pois parte da dívida pública era indexada ao câmbio). No período 1995-2002, 98,7% do déficit nominal foi causado pelo pagamento de juros da dívida pública.

Para pagar o déficit nominal das contas públicas, o Tesouro Nacional é obrigado a emitir títulos públicos para arrecadar recursos para este fim, ocasionando, assim, o crescimento da DPMFi. No entanto, a DPMFi teve um crescimento, entre 1995 e 2001, num valor acima do déficit nominal do Governo Central. Ou seja, a dívida interna cresceu por outros motivos, além do déficit público.

A Tabela 3 permite verificar este ponto. Entre 1995 e 2001, o déficit nominal do Governo Central sempre representou uma fração do crescimento da DPMFi. Em 1995, por exemplo, a DPMFi cresceu R$ 46,7 bilhões, enquanto o déficit nominal foi de apenas R$ 14,6 bilhões. Assim, neste ano, o déficit nominal do Governo Central representou apenas 31,2% do crescimento da dívida interna brasileira. Ou seja, outros motivos explicam o restante do crescimento da DPMFi (68,8%).

Tabela 3:
Aumento da DPMFi e sua relação com o déficit nominal - 1995-2002

Nos anos seguintes (1996-2001), o mesmo se repetiu: o déficit nominal nunca foi totalmente responsável pelo crescimento da dívida interna. Em apenas um ano, 1998, o déficit nominal superou os 50% de explicação para o crescimento da DPMFi (no caso, 66%). No primeiro governo FHC (1995-1998), o déficit nominal do Governo Central representou apenas 38,2% da elevação da dívida interna. Já no segundo governo FHC (1999-2002), a porcentagem se reduziu para 25,5%. No período 1995-2002, o déficit nominal ampliou a DPMFi somente em 31,4%. Não custa voltar a repetir que quase 100% do déficit nominal foi causado pelo pagamento de juros.

Por fim, não se pode fazer uma relação direta entre crescimento da DPMFi e os juros pagos, em cada período, em razão da existência de superávit primários. Isto ocorre porque o superávit primário, conceitualmente, serve para pagar parte dos juros nominais. Desta forma, a emissão de títulos públicos da DPMFi cobre o déficit nominal, que não é a totalidade dos juros pagos, pois uma parte dos juros foi coberta pelo superávit primário. Um exemplo ilustra a questão. No ano de 1995, os juros pagos foram de R$ 17,9 bilhões. No entanto, como tivemos superávit primário de R$ 3,3 bilhões, estes recursos pagaram parte dos juros. O restante dos juros (R$ 14,6 bilhões), que é o déficit nominal, foi coberto pela emissão de dívida.

Portanto, as acusações feitas por diversos analistas econômicos de que a DPMFi cresceu no governo FHC em função do grande déficit público é enganosa. O déficit público representou, sim, um crescimento da dívida interna, mas numa magnitude bem inferior ao crescimento da própria dívida. Ou seja, só uma parte do crescimento da DPMFi tem como causa o déficit nominal do Governo Central.

Desta forma, outros motivos, que não o déficit público, elevaram a dívida interna no período. Não é objetivo deste trabalho estudar tais motivos, mas podemos elencar os principais: 1) lançamento de títulos públicos pelo Banco Central para ajustar a liquidez do sistema bancário (compra de recursos sem demanda depositados nos bancos); 2) lançamento de títulos públicos para esterilização monetária oriunda das entradas de dólares na economia brasileira (também realizada pelo Banco Central); 3) ajustes patrimoniais e cambiais; 4) incorporação de juros no montante da própria dívida.

Os gastos com o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), de 1995, e o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), de 1996, também afetaram o crescimento da DPMFi. Seus valores foram contabilizados nas contas públicas na rubrica “ajustes patrimoniais”. O custo do Proer foi estimado em cerca de R$ 30 bilhões, entre os anos de 1995 e 2000.

Podemos entender, portanto, que boa parte do crescimento da DPMFi no governo FHC foi de responsabilidade do Banco Central (e suas operações monetárias e cambiais no mercado) e não somente do Tesouro Nacional (responsável pelas contas públicas federais).

Além disso, os juros nominais pagos pelo Tesouro Nacional, que está incluído no déficit público, têm seu montante muito influenciado pela taxa básica de juros fixada pelo Banco Central, com o objetivo de controlar a inflação. Ao manter a taxa básica de juros em patamares elevados, o Banco Central prejudicava as contas públicas pelo lado do pagamento de juros da DPMFi. Os principais beneficiários dos juros pagos pelo governo federal são os investidores do mercado financeiro, que compram os títulos públicos da DPMFi. Estes investidores também são conhecidos como “rentistas”1 1 Em seu livro de 1936, Keynes (1936, p. 255) previu a morte do rentista para um futuro próximo: “Consequentemente, eu considero o aspecto do rentier do capitalismo como sendo uma fase transitória, que desaparecerá logo que tenha desempenhado sua função. E com o desaparecimento deste aspecto muitas outras transformações deverão ocorrer. Além disso, uma grande vantagem na ordem dos acontecimentos que preconizo consiste em que a eutanásia do rentier, do investidor sem função, nada terá de repentino, mas será meramente uma continuação gradual e prolongada do que vimos observando recentemente na Grã-Bretanha, sem carecer de qualquer revolução”. A previsão de Keynes não se concretizou, nem no Brasil, nem no resto do mundo. Na verdade, os rentistas são atualmente uma das principais forças do capitalismo. Também Piketty (2014, p. 548), escrevendo no início da década de 2010, sonhava com o fim do “reino dos rentista”. .

Esta constatação de que o déficit público não é o principal culpado pelo crescimento da DPMFi no governo FHC vai contra a literatura existente, que responsabiliza o crescimento da dívida interna exclusivamente pelo déficit público. Como exemplo, temos Giambiagi et al., (2016Giambiagi, F.; Castro, L. B.; Hermann, J.; Villela, A. (Orgs.) (2016) Economia brasileira contemporânea (1945-2015). Rio de Janeiro: Elsevier., p. 172) que diz que a “situação fiscal crítica” nos anos FHC resultou em uma “dívida pública crescente”. Outro trabalho importante, Gremaud et al., (2012Gremaud, A. P.; Vasconcellos, M. A. S.; Toneto Júnior, R. (2012) Economia brasileira contemporânea. São Paulo: Atlas., p. 466), afirma que “A combinação de baixos superávits primários e elevados encargos financeiros [...] resultaram em elevados déficits operacionais e em um forte crescimento da dívida pública”. No entanto, os autores indicam também outros fatores que contribuíram para elevação da dívida pública neste período, citando, por exemplo, os ajustes patrimoniais. Por fim, Paulino (2010, p. 304) afirma que a “piora crescente das finanças públicas”, entre 1994 e 2002, representou uma “trajetória ascendente da relação dívida pública/PIB”.

Retornando à Tabela 3, observamos que o ano de 2002 foi bem atípico. Embora tenha ocorrido um déficit nominal de R$ 10 bilhões, a dívida interna teve uma redução de R$ 893 milhões. O motivo foi o “medo Lula” já discutido anteriormente. Assim, o déficit público desse ano foi pago mediante emissão monetária. Em seu Relatório Anual para o ano de 2002, o Banco Central explicou que as necessidades de financiamento do setor público (que engloba o Governo Central, Estados, Municípios e Empresas Estatais) foi realizada, entre outros, por emissão monetária: “Quanto às principais fontes de financiamento, R$ 3,4 bilhões foram originados da dívida mobiliária, R$ 14,7 bilhões decorreram de dívidas e obrigações com bancos, sobretudo elevação dos depósitos compulsórios no Banco Central, R$ 20 bilhões de emissão monetária e R$ 24,6 bilhões de financiamentos externos” (Banco Central do Brasil, 2017eBanco Central do Brasil(2017e) Boletim do Banco Central do Brasil - Relatório 2002. Disponível em:<Disponível em:http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual2002/rel2002cap4p.pdf >. Acesso em: 11 nov. 2017.
http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual...
, p. 96).

DÉFICIT PÚBLICO E DPMFi NO GOVERNO LULA (2003-2010)

O “medo Lula” ocorrido em 2002 não se concretizou. O governo do Partido dos Trabalhadores operou a dívida pública do mesmo modo que o governo FHC. Não houve calote, nem expurgo de juros. O Brasil continuou a ser o “reino dos rentistas” do mercado financeiro. No entanto, o crescimento da DPMFi no governo Lula foi de uma magnitude menor em comparação ao governo FHC. Conforme os dados da Tabela 4, a dívida interna saltou de R$ 623,2 bilhões, no final de 2002, para R$ 1.603,9 bilhões, no final de 2010, ou seja, uma elevação de 157,4%. No governo FHC, a elevação percentual tinha sido de 908,7%, em oito anos. Enquanto no governo FHC a dívida se multiplicou por dez, no governo Lula o crescimento foi de apenas 2,6 vezes.

Tabela 4:
DPMFi fora do Banco Central (fim de período) - 2002-2010 - R$ milhões

Em relação à variação percentual entre um ano e outro no governo Lula, só no ano de 2005 a dívida interna cresceu acima de 20%, enquanto no governo FHC o piso de crescimento anual foi de 20%, chegando a 75,6% em 1995.

No entanto, é quando se analisa o crescimento da DPMFi em relação ao PIB que enxergamos a diferença de comportamento da dívida interna entre os dois governos (FHC e Lula). Durante o governo FHC, a relação dívida/PIB foi crescente entre 1995 e 2001: de 15,4% para 47,4%. Somente no ano de 2002 é que a relação se reduziu para 41,9%, pelos motivos já expostos na seção anterior. Já no governo Lula, a relação dívida/PIB praticamente se manteve estável em todo o período: oscilou entre 40% e 45%, terminando o mandato, em 2010, com a relação em 41,3%, abaixo do último ano do governo FHC (41,9%, em 2002). Portanto, o governo Lula teve um desempenho bem melhor na relação dívida/PIB em comparação ao governo FHC.

Porém, este não é o foco do trabalho, mas sim evidenciar que o crescimento nominal da dívida interna não tem como causa principal o déficit público. A Tabela 5 mostra que o governo Lula obteve superávits primários expressivos nos seus oito anos. No entanto, eles foram insuficientes para cobrir as despesas com o pagamento de juros. O Banco Central, ao manter a taxa real de juros entre as maiores do mundo durante todo o período, contribui decisivamente para manter elevado o pagamento de juros e, assim, o resultado nominal das contas públicas foi sempre negativo. Nestes oito anos do governo Lula, o pagamento de juros representou 100% do déficit nominal do Governo Central.

Tabela 5:
Resultado primário e nominal do Governo Central - 2003-2010 - R$ milhões

O déficit nominal, por sua vez, exigiu que o Governo Federal emitisse títulos públicos para cobrir o desequilíbrio fiscal (provocado pelo pagamento dos juros), elevando a DPMFi. A Tabela 6 mostra o crescimento da DPMFi e sua relação com o déficit nominal em cada ano. Constatamos, como ocorreu no governo FHC, que o déficit nominal foi sempre inferior ao crescimento da dívida interna. Por exemplo, no ano de 2003, o déficit nominal foi de R$ 62,2 bilhões, mas a dívida interna subiu R$ 108,7 bilhões, valor bem acima do déficit público do ano. Ou seja, o déficit das contas públicas federais explicou apenas 57,2% do crescimento da DPMFi. Temos anos, como o de 2009, em que o déficit contribuiu com 80,4% do crescimento da dívida, mas também temos anos, como o de 2010, em que o déficit foi responsável somente por 22,3% do crescimento da dívida interna.

Tabela 6:
Aumento da DPMFi e sua relação com o déficit nominal - 2003-2010

Em suma, no primeiro governo Lula (2003-2006), o déficit público do Tesouro Nacional foi responsável por 49,3% do crescimento da dívida interna. No segundo mandato de Lula (2007-2010), a participação do déficit nominal no crescimento da dívida diminuiu. Neste período, o mesmo explicou somente 46,6% do aumento da DPMFi. Durante todo o governo Lula (2003-2010), o déficit público causou apenas 48,4% do crescimento da dívida interna, não esquecendo, porém, que os juros representaram 100% do déficit nominal.

Novamente, temos informações empíricas de que não foram as contas do Tesouro Nacional o fator de maior impacto para o crescimento da DPMFi neste período. A maior parte do crescimento da DPMFi (51,6%) foi motivada por operações já descritas na seção anterior, em que se destacam as práticas monetárias e cambiais do Banco Central.

DÉFICIT PÚBLICO E DPMFi NO GOVERNO DILMA/TEMER (2011-2018)

Apesar do governo Dilma/Temer (2011-2018) ser caracterizado como o da volta dos déficits primários do Governo Central, a taxa de crescimento da DPMFi foi inferior ao ocorrido durante o governo FHC (908,7%) e no governo Lula (157,4%). No final de 2010 a dívida interna era de R$ 1.603,8 bilhões, chegando a R$ 3.728,9 bilhões, no final de 2018, um aumento percentual de 132,5%. Somente no ano de 2015 a taxa de crescimento foi superior a 20%, sendo que em quatro anos (2012, 2013, 2014 e 2018) ela foi inferior a 10% (Tabela 7). Isto só foi possível porque parte do déficit nominal foi coberto por emissão monetária, como veremos mais à frente.

Tabela 7:
DPMFi fora do Banco Central (fim de período) - 2010-2018 - R$ milhões

O melhor resultado em relação ao crescimento da dívida interna foi verificado no período 2011-2014. Conforme a Tabela 7, a relação DPMFi/PIB foi decrescente neste período: de 41,3% do PIB, no último ano do governo Lula (2010), para 37,8% do PIB, em 2014. O principal fator para a queda não foi o crescimento do PIB e sim a baixa elevação da DPMFi neste intervalo de tempo.

No entanto, a relação dívida/PIB aumentou significativamente a partir de 2015, chegando ao recorde de 54,1% do PIB em 2018, superando o recorde alcançado em 2001 (47,4%), no governo FHC.

A explicação para este fato negativo nos anos de 2015-2018 foi a grande elevação do déficit público. A Tabela 8 mostra o resultado primário e nominal das contas do Governo Central. Os problemas fiscais apareceram nos anos de 2014 a 2018, com a volta do déficit primário. Tal fato determinou a explosão do déficit nominal a partir de 2014. Enquanto em 2013 o resultado nominal foi negativo em R$ 110,6 bilhões, no ano de 2015 o déficit nominal alcançou a soma de R$ 513,9 bilhões. Nos anos de 2016, 2017 e 2018, o déficit nominal ficou acima dos R$ 400 bilhões ao ano.

Tabela 8:
Resultado primário e nominal do Governo Central - 2011-2018 - R$ milhões

Nos anos de 2011, 2012 e 2013, o pagamento de juros foi o único causador do déficit nominal do Governo Central. Porém, no período 2014-2018, o pagamento de juros da dívida pública representou 75,3% do déficit nominal, enquanto o déficit primário determinou os outros 24,7% do resultado nominal negativo. Lembremos que no período 1998-2013 o déficit nominal teve como único determinante o pagamento de juros.

O que buscamos provar neste trabalho é que o déficit público não é o principal responsável pelo crescimento da dívida interna do Governo Federal. No governo Dilma/Temer, essa suposição ficou comprometida (Tabela 9). Nos dois primeiros anos (2011 e 2012) o déficit nominal não explicou a totalidade do crescimento da dívida, mas nos seis anos seguintes (2013 a 2018) o déficit público determinou todo o crescimento da DPMFi. Por exemplo, em 2011 o aumento da DPMFi foi de R$ 179,1 bilhões, enquanto o déficit nominal ficou em R$ 87,5 bilhões. Assim, neste ano, o déficit nominal foi responsável por somente 48,9% do crescimento da dívida interna, o restante (51,1%) tinha sua explicação em outras operações. O mesmo fato se verificou em 2012: a elevação da DPMFi foi determinada pelo déficit nominal em apenas 45,8%. Outras explicações para o aumento da dívida interna representaram 54,2% do total.

Tabela 9:
Aumento da DPMFi e sua relação com o déficit nominal - 2011-2018

No entanto, a partir de 2013, até 2018, o déficit nominal determinou a totalidade do aumento da DPMFi. Este fato deveria ser o normal: o aumento da dívida interna ter como responsável o déficit público.

O fato curioso e diferente, do período 2014-2018, foi que o déficit nominal se tornou superior ao crescimento da dívida interna, fazendo com que a relação ficasse acima de 100%. Isso significou que a outra parte do déficit nominal, que não foi coberta pela emissão de dívida pública, foi saldada via emissão monetária. Em seu Relatório Anual de 2014, o Banco Central explicou que a NFSP (Necessidade de Financiamento do Setor Público) foi coberta, entre outras formas, por emissão monetária (denominada “base monetária”): “O financiamento desse déficit ocorreu mediante expansões da dívida mobiliária, do financiamento externo líquido e das demais fontes de financiamento interno, que incluem a base monetária, neutralizadas, em parte, pela redução da dívida bancária líquida” (Banco Central do Brasil, 2017fBanco Central do Brasil(2017f) Boletim do Banco Central do Brasil - Relatório 2014. Disponível em:<Disponível em:http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual2014/rel2014cap4p.pdf >. Acesso em: 11 nov. 2017.
http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual...
, p. 62-63).

Em suma, nos anos de 2011 e 2012, o déficit público representou 47,4% do crescimento da DPMFi. Já nos anos de 2013 a 2018, o déficit público foi responsável por todo o crescimento da dívida interna do Governo Central, o que deveria ser o comum.

CONCLUSÃO

Ao longo do período de 1995 a 2018, a DPMFi deu um salto gigantesco: de R$ 61,8 bilhões, no final de 1994, para R$ 3,7 trilhões, no final de 2018. A relação dívida/PIB cresceu de 15,4%, em 1995, para 47,4%, em 2001. No final do governo Lula, em 2010, a relação estava em 41,3%, voltando a aumentar para 54,1% em 2018.

O pagamento de juros dos títulos da dívida pública, maior que o superávit primário, resultou em déficits nominais sucessivos que, por sua vez, exigiu a emissão de novos títulos públicos, ampliando a dívida interna.

No entanto, o déficit público não foi o principal responsável pelo grande crescimento da DPMFi no período analisado, como continuamente afirmam a maioria dos analistas econômicos do país. No primeiro governo FHC (1995-1998), o déficit nominal do Governo Central representou apenas 38,2% da elevação da dívida interna. Já no segundo governo FHC (1999-2002), a porcentagem se reduziu para 25,5%. Nos oito anos do governo FHC (1995-2002), o déficit nominal ampliou a DPMFi somente em 31,4%. O déficit nominal, por sua vez, teve como causa quase que exclusiva (98,7%) o pagamento de juros da dívida pública.

Também nos anos Lula, o déficit público não foi o principal culpado pela elevação da dívida interna. No primeiro governo (2003-2006), o déficit nominal do Governo Central representou 49,3% do crescimento da DPMFi. No segundo governo (2007-2010), o déficit público explicou 46,6% do aumento da dívida. Nos oito anos do governo Lula (2003-2010), o déficit das contas públicas determinou 48,4% do crescimento da DPMFi. Já os juros pagos da dívida pública representaram 100% do déficit nominal.

Ao analisar os dezesseis anos dos governos FHC e Lula (1995-2010), o déficit nominal do Governo Central significou apenas 40% da elevação da dívida interna no período. Os outros 60% do crescimento da DPMFi estão concentrados em diversos determinantes (ajustes patrimoniais e cambiais, incorporação de juros), em que se destacam as operações monetárias e cambiais do Banco Central envolvendo títulos públicos.

Este tipo de estrutura do crescimento da dívida pública modificou-se no governo Dilma/Temer (2011-2016). Enquanto nos dois primeiros anos do governo Dilma (2011-2012) o déficit público significou 47,5% do crescimento da DPMFi, nos seis anos posteriores (2013-2018) o déficit nominal passou a representar a totalidade (100%) do aumento da dívida interna.

Em resumo, o estudo demonstrou que, no período de 1995 a 2012, o déficit público não foi o principal responsável pelo crescimento da dívida interna do Governo Central. Operações outras, envolvendo o lançamento de títulos públicos, como as operações do Banco Central, determinaram a maior parte do aumento do endividamento do setor público federal. Somente no período 2013-2018 o déficit público explicou totalmente o crescimento da dívida pública interna brasileira.

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  • Piketty. T. (2014) O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca.
  • 1
    Em seu livro de 1936, Keynes (1936Keynes, J. M. (1936 [1985]) A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Abril Cultural., p. 255) previu a morte do rentista para um futuro próximo: “Consequentemente, eu considero o aspecto do rentier do capitalismo como sendo uma fase transitória, que desaparecerá logo que tenha desempenhado sua função. E com o desaparecimento deste aspecto muitas outras transformações deverão ocorrer. Além disso, uma grande vantagem na ordem dos acontecimentos que preconizo consiste em que a eutanásia do rentier, do investidor sem função, nada terá de repentino, mas será meramente uma continuação gradual e prolongada do que vimos observando recentemente na Grã-Bretanha, sem carecer de qualquer revolução”. A previsão de Keynes não se concretizou, nem no Brasil, nem no resto do mundo. Na verdade, os rentistas são atualmente uma das principais forças do capitalismo. Também Piketty (2014Piketty. T. (2014) O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 548), escrevendo no início da década de 2010, sonhava com o fim do “reino dos rentista”.
  • 2
    JEL Classification: H6; H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2018
  • Aceito
    22 Jul 2020
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