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Uma irresistível vocação para cultivar a própria personalidade (Parte II)

An irresistible tendency to cultivate one's own personality

Resumos

Estudo da relação entre os judeus cultivados de Berlim (na figura de Rachel Varnhagen) e a cultura clássica alemã por meio da análise do papel nela representado pela idéia de "personalidade", senha da ideologia dos mandarins alemães.

Cultura clássica alemã; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemães


Study of the relationship between the cultivated jews of Berlin (represented by the figure of Rachel Varnhagen) and the German classical culture through the analysis of the role played in the latter by the idea of "personality", codeword of the German mandarins' ideology.

German classical culture; Bildung; Rachel Varnhagen; personality; German mandarins


Uma irresistível vocação para cultivar a própria personalidade (Parte II)* * A primeira parte deste artigo foi publicada no v.26 (1), 2003.

An irresistible tendency to cultivate one's own personality

Paulo Eduardo Arantes** ** Professor aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP.

RESUMO

Estudo da relação entre os judeus cultivados de Berlim (na figura de Rachel Varnhagen) e a cultura clássica alemã por meio da análise do papel nela representado pela idéia de "personalidade", senha da ideologia dos mandarins alemães.

Palavras-chave: Cultura clássica alemã; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemães.

ABSTRACT

Study of the relationship between the cultivated jews of Berlin (represented by the figure of Rachel Varnhagen) and the German classical culture through the analysis of the role played in the latter by the idea of "personality", codeword of the German mandarins' ideology.

Keywords: German classical culture; Bildung; Rachel Varnhagen; personality; German mandarins.

Assim como a idéia de civilização na França setecentista, a idéia de personalidade, na Alemanha, foi antes de tudo um conceito forjado pela intelligentsia em busca de uma fonte de distinção social; não bastava ser culto, era preciso ter uma personalidade, o que invariavelmente ocorria quando se era um Gebildete. Também como na França (feitas as ressalvas conhecidas), o modelo de tal conceito era o ethos nobre, habilmente convertido em instrumento de combate nas mãos do intelectual burguês. Kant já o equipara, contrapondo a moralidade da cultura à pose e artifício da elite dirigente. O plebeu Fichte, principal ideólogo dos Gelehrten, foi mais adiante e, em 1793, advogando junto ao público alemão a causa da Revolução Francesa, depois de diluir a presumida superioridade da nobreza hereditária na usurpação pura e simples, com o seu cortejo de violência e lisonja áulica, concluía, triunfante e com uma ponta de arrogância: doravante, "o nobre que é apenas nobre e nada mais do que isto, somente será tolerado nos círculos do respeitável estamento burguês, onde se reúnem lado a lado o universitário, o negociante e o artista, caso dê mostras de extraordinária humildade" (Rosenberg 1966, p.184). Alguns anos mais, e os escritores liberais já se vangloriavam de "serem os 'verdadeiros nobres', em contraposição aos surrados títulos de barão e quejandos que afinal podiam ser concedidos e cancelados" (Arendt, 1976, p.73). É que, nesse meio tempo, à cultura veio juntar-se a personalidade, rompendo a antiga equação entre aristocracia e nobreza: havia agora uma aristocracia do mérito, interior, pessoal (Rosenberg 1966, p.183-5; Ringer 1969, p.123). Sempre às voltas com uma nobreza que lhe barrava o acesso à carreira, à que tinha direito pelo talento, a intelligentsia burguesa preferiu o caminho da emulação e do mimetismo. "Os intelectuais alemães", nota Hannah Arendt, sublinhando o lado mais desfrutável da posição deles, "embora raramente promovessem lutas políticas em prol da classe média à qual pertenciam, travaram uma batalha amarga e, infelizmente, muito bem sucedida em prol de sua posição social" (Arendt 1976, p.72). Em 1807, num panfleto do escritor liberal Buchholz contra a nobreza podia-se ler o seguinte: "a verdadeira nobreza não pode ser dada ou tomada; pois, como a força ou o gênio, estabelece-se a si mesma e existe por si mesma" — o trecho é citado por Hannah Arendt e pode ilustrar os efeitos do feliz malentendido mencionado acima por Hauser, combinação bem dosada da alguma luta de classe amortecida pela imitação do modo de ser do grupo social e, desnecessário lembrar, muita vontade de subir na vida, uma proeza num meio de pequena mobilidade social: está visto, então, que ao lado daquelas qualidades que não podem ser dadas nem tomadas, alinha-se agora, a personalidade (o que mais se preza nas classes elevadas, a sobra civilizada de antigos privilégios, dentre eles o de pairar muito acima do mundo da produção), cultivada, vê-se logo também, mas sobretudo inata, como manda aliás a própria definição de nobreza. "Personalidade inata", eis, numa palavra, o grande achado da intelligentsia alemã, segundo Hannah Arendt, evidentemente aproveitando a deixa do Wilhelm Meister:

(...) na Alemanha, onde o conflito entre a nobreza e a classe média em ascensão nunca foi travado no campo político, o culto da personalidade tornou-se o único meio de alcançar pelo menos certa forma de emancipação social. (...) Para poderem competir com direitos e qualidades de nascimento, (os intelectuais alemães) formularam o novo conceito de 'personalidade inata', que iria obter a aprovação geral da sociedade burguesa. A 'personalidade inata', exatamente como o título de herdeiro de uma família antiga, passou a decorrer do nascimento, sem ser adquirida pelo mérito. Assim como a falta de história comum para a formação da nação havia sido artificialmente sanada pela implantação do conceito naturalista de desenvolvimento orgânico, também na esfera social supunha-se que a natureza proporcionava ao indivíduo o título que a realidade política lhe havia negado

— tudo bem pesado, arremata Hannah Arendt a propósito das "misteriosas qualidades que uma 'personalidade inata' recebia ao nascer", "eram exatamente as mesmas que os verdadeiros Junker diziam possuir" (idem, p.72-3). Concluindo o ciclo ideológico cumprido pelo argumento, caberia acrescentar que a principal dessas "misteriosas qualidades", confundindo-se aliás com o seu suporte, era justamente a Cultura, graças à qual podia o intelectual, arremedando-lhe a tradicional alegação de superioridade em nome de uma virtus abscôndita, não só rivalizar com a nobreza mas usurpar-lhe em efígie a excelência imaginária (Ringer 1969, p.87)1 1 No campo específico da dominação política, figura, no elenco das idéias conservadoras, uma dessas qualidade misteriosas, aquele elemento de imprecisão característico do tirocínio político, impermeável portanto ao espírito de geometria da burguesia, e que "só pode ser adquirido", lembrava Mannheim comentando uma observação de Burke, "através de uma longa experiência, e que em geral somente se revelava aos que por muitas gerações vinham participando da liderança política" (Mannheim 1968, p.146). Em suma, um não sei o quê a legitimar o mando aristocrático; desta esfera impalpável emana a "personalidade inata" e o seu cortejo de atributos inefáveis, cultivados ao longo de várias gerações bem-estar, privilégio e bom gosto. .

Consinta o leitor um parêntese para lembrar que uma tal superposição, tão consoladora quanto improvável, entre aristocracia e vida do espírito não é aspiração exclusiva do letrado alemão, antes acompanha, como uma metáfora do mundo desencantado, os vários ciclos da intelligentsia européia moderna, contemporâneos do desenvolvimento desigual da nova ordem capitalista. Mais particularmente, naquela imagem compensadora, a um tampo voto piedoso e instrumento na luta pela ascensão social, espelhava-se o malestar romântico (nome genuíno para a inquietação intelectual da época) diante de uma sociedade indiferente ao destino dos corações cultivados. Manda então a lógica do nosso assunto multiplicar os termos de comparação. Veja-se, por exemplo, o caso de Coleridge. É a partir do seu tempo que a idéia de cultura entra decisivamente no pensamento social inglês, ensina Raymond Williams, cuja lição voltamos a acompanhar. Em linhas gerais, explica este último, isso se deu graças à "formulação de uma idéia que traduzia valores em termos independentes de 'civilização' e, conseqüentemente, num período de mudança radical, independentes do progresso da sociedade" (Williams 1969, p.23). Atravessamos a Mancha e não obstante continuamos a respirar um inconfundível ar de família. Com efeito, são notórios os vínculos de Coleridge com o "período goetheano da literatura germânica", como dizia Stuart Mill referindo-se à peculiaridade da "escola germano-coleridgiana". Corpo estranho? Mais tarde, resenhando obra de outro germanófilo, Past and Present de Carlyle, Engels não desdenhará bater nessa tecla, afinal também lisonjeira para um herdeiro de esquerda da Bildungsbürgertum: assim, aos olhos de seus compatriotas, encharcados de empirismo e espírito prático, o talhe germânico do seu ensaísmo social — alguns consideravam sua prosa abstrusa e sua língua pouco mais do que um inglês estropiado — tornava-o um fenômeno incompreensível, "não para nós, alemães", acrescenta Engels, "que conhecemos perfeitamente as premissas do seu ponto de vista"; a par do que, Engels comprazia-se em denunciar a incapacidade da Inglaterra em produzir "pessoas cultas", embora lhe concedesse a palma do progresso em matéria de relações sociais (cf. Engels 1973, p.190 ss)2 2 A simpatia de Carlyle chega ao extremo de não se escandalizar, podemos presumir, ao contrário do que previra Schlegel no aforismo célebre em que equipara em importância histórico-mundial a Wissenschaftslehre de Fitche e o Meister de Goethe à Revolução Francesa, com tal enumeração, cifra da grandeza e da miséria dos movimentos culturais alemães, dizia o jovem Lukács; enfim, Carlyle não era daqueles que só reputam decisivas as revoluções materiais e rumorosas: "uma revolução francesa é um fenômeno; à maneira de complemento e expoente seu podemos ler numa passagem transcrita por Engels, "também um poeta como Goethe e uma literatura como a alemã são para mim um fenômeno. Na destruição do velho mundo profano ou prático pelo fogo, não podemos ver um presságio e a aurora de um novo mundo espiritual, origem, por sua vez, de novos mundos práticos, muito mais nobres e amplos?" (Engels 1973, p.210). Compreende-se o entusiasmo com que Engels apresentou o ensaio de Carlyle ao leitor alemão dos anos quarenta: além do anticapitalismo bebido na fonte da experiência de vanguarda das novas relações sociais, a compreensão alemã da Revolução como fato filosófico, o comjunto exposto no timbre carregado de presságios do Vörmarz (cf. Schlegel 1964, p.76; Lukács 1974, p.78). O comentário do primeiro Lukács prossegue nos seguintes termos: "a constatação de Schlegel, se avaliarmos corretamente a época e a circunstância, é espantosamente justa e correta. É espantoso que ele atribua tamanha importância à Revolução pois, para a vida espiritual da Alemanha, Fitche e Goethe constituíam as tendências reais e importantes da verdadeira vida; ao passo que a Revolução só podia ter uma significação muito pouco concreta" (idem). Não menos espantoso o fato de Carlyle ter dado importância à revolução silenciosa do classicismo alemão, à primeira vista algo muito longínquo na Inglaterra do cartismo, como já começava a sê-lo na Alemanha pré-48. Inútil lembrar que a experiência inglesa de Engels foi de longe muito mais decisiva do que a alemã de Carlyle, embora esta tenha sida uma das chaves do sucesso no aprendizado da primeira. . Stuart Mill por certo não chega a tanto; basta-lhe a observação de que a nova ênfase na cultura — coisa de alemão — vinha com efeito arejar a tradição utilitarista, afinal Bentham, dizia, jamais reconhecera no homem "um ser capaz de perseguir a perfeição espiritual como um fim" (Williams 1969, p.81-2). Coleridge cifrara aquela nova ênfase na palavra-chave cultivation, a qual, pela primeira vez, se usava para indicar uma condição geral, um estado ou hábito de espírito — "o valor da palavra depende, naturalmente", continua R. Williams, "da força do importante adjetivo do século dezoito, culto (cultivated)" (Williams 1971, p.76). Também aqui a trajetória não podia ser muito diferente, com a ressalva de que nesse passo está mais próxima do modelo francês de cristalização em torno de um núcleo aristocrático: "o que fora, no século dezoito, um ideal de personalidade — uma qualificação pessoal para a participação na 'sociedade polida' — tinha agora, em face da mudança radical, de ser redefinido como a condição mesma de que a sociedade, como um todo, dependia" (Williams 1969, p.82). Feito o reparo, logo voltamos ao contraponto alemão de cultura e civilização, como nesta passagem em que Coleridge, depois de sublinhar "a distinção permanente e o contraste ocasional entre cultivo (cultivation) e civilização", chama a atenção para uma "valiosíssima lição da história", a saber, "que uma nação jamais poderá ser demasiado cultivada, mas pode facilmente transformar-se numa raça supercivilizada" (apud idem) — supercivilização deplorada por Goethe, como se há de recordar; ou então, neste outro passo, onde uma reminiscência kantiana (apenas para dar um nome próprio a um repúdio que foi coletivo) deságua na aspiração máxima do neo-humanismo alemão:

em si mesma a civilização é um bem misturado e impuro, se não muito mais uma influência corruptora, antes a héctica da doença do que o frescor da saúde, e a nação que por ela se distinguir, mais adequadamente se chamaria de povo envernizado que de povo refinado, a não ser que a sua civilização se apoiasse na cultivation, isto é, no harmonioso desenvolvimento daquelas qualidades e faculdades pelas quais a humanidade se caracteriza" (apud idem, p.81).

Chegados a este ponto, deixemo-nos guiar ainda uma vez pelo comentário de Raymond Williams que, através do anti-capitalismo coleridgeano de corte germânico, manifestamente calcado no ideal de personalidade cultivada formulado nos confins da província alemã, nos conduzirá ao limiar de uma nova aristocracia, cuja missão de salvaguarda, nesta época de carência, oprimida pelas grandes transformações decorrentes as revolução industrial, consistiria em dedicar-se à general cultivation:

(...) contra o mecanicismo (outro lugar comum nos libelos anti-capitalistas da intelligentsia alemã, como veremos), a preocupação de acumular riquezas e a proposição de utilidade como a fonte dos valores, a cultivation erguia-se como idéia social diferente e mais alta. Transformou-se, em verdade, numa corte de apelação, no tribunal perante o qual pudesse ser condenada ema sociedade, cujo sistema de relações se fundava no dinheiro. Firmando-se na idéia do 'harmonioso desenvolvimento daquelas qualidade e faculdades que caracterizam nossa humanidade', essa condição geral — cultivation — podia ser considerado o mais alto estado atingível pelo homem em sociedade e por ele se iria definir e acentuar aquela 'distinção permanente e contraste ocasional' entre a cultivation e a civilização (o progresso comum da sociedade). Foi nesse espírito que Coleridge examinou a constituição do Estado e propôs que dentro dele se criasse uma classe para preservar e ampliar a cultivation" (apud idem, p.83).

Utopia de intelectual conservador3 3 Sobre o conservadorismo de Coleridge, cf. Harris 1969, cap.10. Esse conservadorismo por assim dizer "moderno" — trata-se afinal de fornecer ao industrialismo um " supplément d'âme" — concerne antes de tudo, pelo menos visto do ângulo da intelligentsia que o promove, e que é o nosso, um projeto de restruturação da Teoria em sua acepção arcaica que no limite se confunde com a própria religião alemã da Cultura, como a seu tempo veremos. , porém afinado com o seu tempo, marcado pelas sucessivas demandas de instituição de um poder espiritual leigo: no caso, a clericatura imaginada por Coleridge gravitava na mesma órbita do Gelehrter fitcheano, incluído por Carlyle no rol dos seus heróis, e daquela nova intelligentsia da qual Hegel, segundo Gramsci, fizera justamente a "aristocracia" do seu Estado substancial (Gramsci 1968, p.56)4 4 Evidentemente, voltaremos mais de uma vez a essa observação capital de Gramsci, que chegou, não por acaso, impelido pela lógica própria de sua meditação de vida inteira sobre a "via italiana". — como se vê, a imagem alemã ligeiramente fora de foco, refletida pelos ideólogos ingleses devolve-nos ao âmago de nosso assunto; mas não atalhemos o seu curso naturalmente meândrico. Alguns anos mais e o filogermânico Carlyle tornava a insistir no poder enobrecedor da cultura, chamado a constituir uma "classe literária orgânica", uma "'aristocracia espiritual', minoria altamente cultivada e responsável, preocupada com definir e sublinhar os valores mais altos que uma sociedade deve perseguir" (Williams 1969, p.102). Outro tanto e Mathew Arnold, ao subscrever as opiniões de Wilhelm von Humboldt, "um dos mais belos espíritos que já existiram", não deixa de acentuar nelas a sua tônica aristocrática, lembrando que "o nosso objetivo, na vida, é o de alcançar, por todos os modos possíveis, a perfeição individual e, a seguir, procurar criar, à nossa volta, uma aristocracia, cada vez mais numerosa, de talentos e de caracteres" (idem, p.137). A imagem utilizada por Raymond Williams para sugerir a coloração peculiar da cultivation coleridgeana, a de uma corte de apelação, retrata com fidelidade o seu caráter afirmativo; esse supremo tribunal, evocado pela idéia de uma general cultivation enquanto última instância a que recorre o sujeito ameaçado de desintegração pelo choque da Revolução Industrial, julga de acordo com critérios codificados nos primórdios da era burguesa por aquilo que Marcuse chamou, em 1937, de "cultura alternativa", quando ainda meditava nos modos de sua supressão, não da cultura, mas da sua dimensão afirmativa, que a eleva, enquanto repositório de valores espirituais e morais independentes muito acima do domínio material da civilização comandada pelas leis de mercado. A principal característica dessa cultura que tem a idade da burguesia é, portanto,

(...) a afirmação da existência de um mundo universalmente normativo, que todo homem é chamado a subscrever, que se desenvolve sem cessar ao mesmo tempo em que seu valor também não cessa de crescer, e que é fundamentalmente diferente do mundo real onde se desenrola a luta quotidiana pela vida — não obstante, cada indivíduo pode realizar por si mesmo esse universo 'interior', sem precisar mudar o que quer que seja no mundo real

- numa palavra, uma cultura assentada na sublimação, no abismo entre a dignidade dos objetos culturais e o grau zero do curso ordinário do mundo, de tal sorte que participar desse topos uranos torna-se um "ato solene e enobrecedor" (Marcuse 1970, p.110)5 5 O destino que a noção de cultura conhece nas mãos de Stuart Mill é a esse respeito, exemplar. A veleidade de reforma social da "escola germano-coleridgeana" — que aliás se nutria de sua inspiração conservadora e revivalista — cai por terra, dando lugar à "cultura dos sentimentos", ao mesmo tempo em que o inteiro domínio da cultura confunde-se com sua dimensão estética: uma "esfera isolada, ideal", comenta Raymond Williams, onde a arte figura "não só como promessa, mas como refúgio", evidentemente para os que estão convencidos da impropriedade do desejo de reforma social e que, em conseqüência, apreciam a arte "como uma cláusula salvadora num tratado infeliz" (Williams 1971, p.86-7). . Não espanta, nessas condições, que a cultura burguesa alimente, ao lado de seus propósitos democratizantes, uma concomitante aspiração ao exclusivo aristocrático. Além do mais, a cultura afirmativa é rigorosamente idealista: é Marcuse quem o diz, mas ao dizê-lo deve ter considerado supérfluo acrescentar que a cultura afirmativa confunde-se, no seu fastígio especulativo e criativo, com a própria cultura da deutscher Klassik, e que os teóricos alemães da "bela aparência" foram os primeiros a fazer valer o caráter afirmativo da cultura, manifesto, por exemplo, e não por acaso, na conduta alheada de "emigrado interior" do Gebildete:

(...) o homem culto é aquele para o qual as verdades da humanidade não são um grito de guerra mas um comportamento. Tal comportamento implica um savoir-vivre: é preciso mostrar harmonia e equilíbrio até nos mínimos atos quotidianos. A cultura deve penetrar e enobrecer o que existe, nunca pôr algo novo em seu lugar. Assim, ela eleva o indivíduo sem livrá-lo de sua humilhação real" (idem, p.118)6 6 Excusado lembrar, a propósito dessa filiação patente, que o pendant antitético da "cultura afirmativa" também se encontra na famigerada "civilização": "desde Herder, um dos traços constitutivos do conceito de cultura afirmativa reside nos valores da alma. Tais valores fazem parte da definição da cultura, por oposição à mera civilização" (Marcuse 1970, p.118). .

Vinha assim a calhar o idealismo da cultura alemã: no continente, facultava ao indivíduo bem formado conviver com a inércia ambígua de uma transição para o capitalismo, do qual ia conhecendo apenas as desvantagens, para falar como o jovem Marx; na ilha em que tal transformação se processava a todo vapor, servia de repoussoir dos espíritos mais delicados e nostálgicos. De fato, o que mais atraía, na tradição dos mandarins alemães, aquela nobre estirpe um tanto anômala de intelectuais ingleses era algo análogo à força que trazia inexoravelmente à Inglaterra, à França, à Itália, os americanos expatriados de Henry Fames, imantados pela "velha cultura européia" (Cf. Operosa 1979)7 7 Ainda voltaremos à questão mais ampla retratada por esse caso particular de emigração intelectual e que nos concerne em mais de um aspecto, como demonstra uma breve alusão de Roberto Schwarz (Schwarz 1977, p.29). . Exemplo esclarecedor dessa gravitação fora de órbita é o caso limite do inglês germanizado Houston Stewart Chamberlain — a sinistra demagogia em que sucumbiria é em grande parte fruto da conduta com que aderiu, levando-as às últimas conseqüências, às cláusulas auto-justificatórias da cultura alemã, como a frase famosa de Wagner, protocolo da cultura afirmativa, segundo a qual ser alemão é fazer algo que traz em si mesmo o seu próprio fim. Chamberlain tomou ao pé da letra o anti-capitalismo apregoado em Bayreuth. Assim explica Adorno seu destino ideológico, cujos efeitos incomparavelmente mais bárbaros suplantaram de muito o filistinismo natal de que fugira. Escapou-lhes, portanto, entre outras coisas, a conotação imperialista do narcisismo coletivo estampado, por exemplo, no clichê, que vem de longe, como sabemos, e que coteja a vontade pura dos alemães com o vil utilitarismo manchesteriano; e no entanto, pondera ainda Adorno, há mais do que um grão de verdade nesses estereótipos: com efeito,

(...) não é menos verdadeiro que a relação de troca, a extensão do caráter de mercadoria a todas as esferas, incluída a do espírito, na virada do século dezoito para o dezenove, difundira-se menos na Alemanha do que nos países capitalistas mais avançados. Tal situação conferiu, pelo menos à produção espiritual um certo poder de resistência. Ela se concebia como algo em si e não somente como um ser para outra coisa e para outros, isto é, como objeto de troca" (Adorno 1973a, p.98).

Compreende-se então que um "homem cultivado, fino, hipersensível", como fora Chamberlain no início de sua carreira, se deixasse seduzir, tal como seus compatriotas letrados perseguindo a miragem alemã de uma aristocracia do espírito, pelas vantagens intelectuais do atraso e tomasse como "uma qualidade natural imutável o que era resultado de desenvolvimentos sociais desiguais" (idem). — Fechemos o parêntese lembrando que a metáfora compensatória da aristocracia de talento e caráter também rondou o espírito dos letrados franceses nos primeiros decênios do século dezenove. Veja-se o devaneio de um Vigny, muito próximo da guilda intelectual ideada pelos cenáculos de Iena e Berlim, sonhando com um reino espiritual talhado à imagem e semelhança de um Chatterton, cuja alma reflete, por sua vez, as virtudes conjugadas da nobreza e da literatura. Sabe-se que nos seus últimos anos Vigny chegou inclusive a projetar um poema épico sobre a inteligência, faculdade mental e corpo social — há quem atribua aos românticos o mérito de ter introduzido o herói intelectual na literatura francesa (cf. Brombert 1966, de quem tomamos o exemplo de Vigny), via de regra muito pouco heróico, tímido e invariavelmente tolhido em suas veleidades de mando e energia. Vimos aliás que a mesma atmosfera ideológica em que prosperara essa irresistível identificação com a triste figura de Hamlet também levara Carlyle a celebrar no homem de letras o herói por excelência dos tempos modernos. Não admira que o anti-capitalismo conservador que então pairava no ar induzisse no aristocrata em disponibilidade o desamparo de intelectual característico do herói shakespeareano, justamente o que mais falava à imaginação dos românticos. Ora, na França sob a Restauração, uma tal conduite d'échec parecia irmanar, e no limite confundir num só ente, protagonista do romantismo gentilhomme, uma certa nobreza refratária e a franja mais avançada da intelligentsia que sobrevivera ao eclipse revolucionário e à asfixia do Império. Ao contrário do que ocorria na Alemanha, a idéia de uma aristocracia intelectual não era puramente metafórica; em linhas gerais, dava seqüência ao processo de sagração do intelectual iniciado na Idade Clássica; porém, só depois da Revolução aquela identificação pôde enfim realizar-se. Afinal, qual nobre, antes de 1789, assumiria integralmente sua condição de homem de letras? (Barbéris 1972, t.IV, p.495). Aristocratas dépossédeés, desmobilizados, Vigny, Chateaubriand, Lamartine, etc., alimentarão seu ódio do mundo moderno e burguês enveredando pela carreira das letras, a única que a nova ordem restaurada parecia lhes oferecer (idem, p.492-5). Sartre interpretou essa conversão em termos tais que, ao cabo de tortuoso trabalho de acomodação ideológica às exigências herdadas da literatura setecentista (autonomia, negatividade, déclassement, etc., são categorias sartreanas colhidas na idade de ouro da intelligentsia francesa, paradigma que, de certo modo, Sartre nunca abandonou), a arte de escrever aparecia aos olhos daqueles primeiros românticos como a atividade natural da aristocracia — e a idéia de uma literatura burguesa, vê-se logo, tornava-se um arrematado contra-senso: ninguém pode escrever a menos que seja nobre de nascimento. Mais ainda, o escritor era um superaristocrata (Sartre 1972, t.III, p.107-33)8 8 Retirava-se assim ao burguês voltaireano o direito de escrever. Somente a nobreza possui o privilégio de escrever; ou então — e aqui voltamos a deparar o raciocínio característico dos primeiros mandarins alemães — algum burguês providencialmente eleito, gentilhomme par le coeur, que tenha renegado sua classe (cf. Sartre 1972, t.III, p.110). Uma tal exceção era mais do que necessária: ela permitia que a cooptação alargasse as fileiras de uma nova classe, a boa aristocracia. "La conjoncture historique", escreve Sartre, "veut que, dans le même temps, la classe insolente qui formulait l'interdit par la plume de ses écrivains de classe soit à terre: ses interprètes, cependant, romanciers et poètes poursuivent leur trajectoire, astres solitaires et glorieux; ils semblent alors ne plus représenter qu'eux-mêmes ou, mieux encore, que l'art; ainsi leur prestigieuse carrière semble par elle-même une invite à les rejoindre au sein d'une aristocratie nouvelle dont l'origine n'est plus la naissance mais une certaine conception de l'activité littéraire. Puisque leurs oeuvres — tout en s'adaptant — aux conditions nouvelles — ne cessent pas de fonder l'essence de la littérature sur des impératifs aristocratiques (générosité, loyauté féodale, l'écrit conçu comme un don, comme une prière, solitude du mépris, stoïcisme, etc.), il suffit pour les égaler d'adopter leurs principes et, refusant systématiquement l'idéologie bourgeoise, de se faire aristocrate en écrivant pour une aristocratie défunte" (idem, p.113-4). Assim sendo, aplainava-se o terreno no qual deitariam raízes as várias corporações espirituais ideadas pelas diversas doutrinas da Idade Romântica, todas elas tributárias do clima ideológico do período, que elevava a literatura à condição de poder espiritual dos tempos modernos (cf. Bénichou 1977). . Todas essas "determinações do Espírito objetivo", como gostava de dizer Sartre, complicarão a vida ideológica da geração de Flaubert. Dentre elas, pesará sobretudo a interdição legada pelo romantismo gentilhomme: o adolescente de 1840, filho de notário ou de médico, vê-se condenado sem apelação, "burguês filho de burguês, educado na ideologia burguesa, ele pode fazer tudo, menos escrever: a Arte, dizem-lhe aqueles nobres já um tanto emurchecidos, é o seu único privilégio de casta, o que resume todos os outros" (idem, p.111). Esta "pauvre ruse", continua Sartre, assenhora-se, na forma de um imperativo estético e social, do espírito dos jovens pós-românticos: ao mesmo tempo em que, por assim dizer siderados de estesias, vão esquadrinhando as obras dos seus maiores, sentem-se excluídos delas por alguma força impalpável e onipresente, que lhes anuncia sem cessar o anátema que os paralisa: "eles não escreverão, a menos que — tarefa impossível — arranquem o coração burguês que neles palpita" (idem). Numa conjuntura bem diversa, repetia-se o mal-estar do burguês Wilhelm Meister: minha condição burguesa, lamentava este último, recusa-me o privilégio fidalgo da personalidade, cujo apelo entretanto, minha vocação de gebildete Mensch não cessa de me fazer sentir; por outro lado, o mesmo imperativo de déclassement, sem o qual não há vida intelectual, era contrariado pelo interdito, que a leitura das obras românticas ia incorporando ao "Espírito objetivo": "tu n'écriras point puisque tu n'es pas aristocrate". Seja como for, malgrado a diferença de fuso histórico, a analogia do gesto, ou do fantasma, como diria Sartre9 9 Eis como Sartre o concebe: "En 1840, le futur écrivain que sa vérité désespère, ne peut se penser qu'en termes fantasmatiques. Et le fantasme — bien qu'il n'existe, en fait, que suscite en eux, en particulier dans le mouvement d'intériorisation qu'on nomme lecture — n'a pas son origine dans des caprices subjectifs ni dans l'orgueuil de certains individus: c'est une détermination objective qui naît, comme une norme inerte, de l'opposition profonde et de la collusion superficielle d'un impératif (arrache-toi à toutes les classes, survole la société) et d'un interdit (défense aux roturiers d'écrire)" (Sartre 1972, t.III, p.113). , além de assinalar dois caminhos aparentados em que o fardo da miséria burguesa tornava-se insustentável, aproximava a fuga de Wilhelm na "bela aparência" do teatro e a "neurose objetiva" da geração flaubertiana descrita por Sartre. Noutras palavras, como na Alemanha do "período artístico", na França da geração que conheceu a reviravolta de 1848, a assim chamada aristocracia do espírito voltou a ser puramente imaginária: Sartre chamou os membros dessa elite burguesa de aristocratas selvagens, visto que ninguém os reconhecia como tais, salvo eles mesmos (idem, p.112-3). Uma tal ficção não se sustenta sem dano. Fazia parte daquela "neurose objetiva" a auto-flagelação (prática que a bem-aventurada intelligentsia setecentista desconhecia, pelo menos em tão larga escala, muito mais propensa à auto-deleitação, afinal a sua sagração andava em curso), mais precisamente "ils se méprisent sans savoir au nom de quoi". É que o herói romântico, desaparecendo, explica Sartre, deixara-lhes, como única herança, a vergonha deles mesmos, isto é, da classe em que nasceram; aquela pobre elite, continua, ao desprezar em si mesma e nos demais o burguês que trazia em si, na verdade por força do mimetismo já apontado, interiorizara o olhar de desprezo da finada aristocracia (idem, p.135). Ora, algo semelhante se dera na Alemanha de Goethe, atestando, mais uma vez, a deplorável situação da burguesia local, cujo "atraso", entretanto, prenunciava o désarroi da elite intelectual burguesa na França pós-48. Vejam-se a propósito, as observações de Hannah Arendt acerca do caráter discriminatório do conceito de "personalidade inata", cristalizado no bojo do movimento de ascensão social da intelligentsia alem㠗 e com elas retomamos o fio de nossa meada: "em sua febril tentativa de invocar algum orgulho próprio contra a arrogância de classe dos Junker, sem, contudo, ousar bater-se por liderança política, a burguesia buscou, desde o início, olhar com desprezo não tanto as classes inferiores, mas simplesmente os outros povos" (Arendt 1976, p.73). Não vem ao caso discutir a justeza da ponderação final, em que o racismo do período imperialista parece suplantar, para efeitos de política interna, o preconceito de classe. Interessa mais reparar como a burguesia alemã, engatinhando, também interiorizava o olhar de desprezo com que a aristocracia fulminava as qualidades tipicamente burguesas. Nascida em tais circunstâncias, não admira então que a noção de personalidade carregasse consigo o germe de sua própria degradação ideológica10 10 Isso é patente, para citar o exemplo mais contundente referido por Hannah Arendt, no caso da pré-história ideológica do anti-semitismo na Alemanha: "durante o período de anti-semitismo social que introduziu e preparou a descoberta do ódio aos judeus como arma política, foi o conceito da falta de 'personalidade inata' — ou da falta de tacto, da inata falta de produtividade, da inata vocação para o comércio, etc. — que distinguiu a conduta do comerciante judeu da dos seus colegas em geral" (Arendt 1976, p.73). Algo análogo ocorrerá mais tarde na França, conforme lembra Sartre. O desprezo nobre introjetado pela "pauvre ruse" herdada do romantismo gentilhomme também está na origem do anti-semitismo de um Charles Mauras, que excluirá os judeus da cultura francesa, incapazes por exemplo, de apreender a qualidade incomparável de um verso racineano por se encontrarem desprovidos justamente daquela faculdade de cuja carência padeciam igualmente os burgueses. "Plus adroite et plus hardie, (l'entreprise romantique) ne se contente point de montrer aux bourgeois des oeuvres anciennes qu'ils ne pourraient entendre; elle produit des oeuvres qui lui sont par principe inaccessibles: ce n'est pas la race qui est invoquée ici mais le sang" (Sartre 1972, t. III, p.111). .

Observemos um pouco mais de perto essa face mais sombria da idéia que então se fazia de uma "personalidade cultivada", face em que se ocultam, amortecidos, os conflitos de classe que não podiam se declarar abertamente no campo político — e à qual alude Hannah Arendt, sublinhando-lhe a vocação preconceituosa, anunciada de resto pelo tortuoso mecanismo de distinção social por introjeção da ótica dominante que se encontra em sua origem. Já aprendemos a reconhecer nessa constelação a marca registrada do país: para aqueles que estavam à margem da sociedade aristocrática, a ascensão social parecia depender exclusivamente da "personalidade", que cabia então cultivar a todo custo. No limite, uma aspiração perfeitamente filistina, adverte ainda Hannah Arendt: assim, o simples fato de que "na Alemanha a questão judaica era vista como um problema de educação, ligava-se intimamente a essa atitude e resultou no filistino educacional das classes médias — judia e não-judia" (Arendt 1975, p.93)11 11 Uma imagem paródica dessa degradação ideológica da idéia de "personalidade cultivada" encontra-se numa fantasia de E.T.A.Hoffmann, uma peça das Kreisleriana intitulada Notícias de um jovem cultivado. Depois de saudar a difusão moderna da cultura superior, o narrador, antes de transcrever a carta do seu herói, a que se resume o conto, revela a identidade do autor da mesma, um elegante rapaz festejado nos mais concorridos salões da cidade, sumidade nas coisas do espírito além de compositor inspirado e exímio virtuose do piano e do canto, sem falar nas suas prendas mundanas de homem cortês e galante: trata-se de um macaco que alguns anos de sábio cativeiro transformaram num perfeito europeu, civilizadíssimo aliás — uma espécie de Fradique Mendes avant la lettre. Não se poderia imaginar ascensão mais fulminante e radical, nem ilustrar com mais eloqüência o poder de transfiguração característico da Kultur. Na verdade um cabotino consumado cuja primeira providência consiste em renegar os de sua espécie, os mal sucedidos macacos apenas macacos, embora alguns tropeços de sua formação revelem a um olhar atento vestígios de sua primitiva condição simiesca. As confissões de Milo, tal é o nome desse fino humanista cujo mimetismo atávico facultou-lhe atinar de imediato com a estrada real de uma assimilação sui generis, estão semeados de alusões edificantes às virtudes da alta cultura: vida interior intensa, moralidade apurada, bela humanidade harmoniosa, etc. De fato, constituem um repertório entre cínico e bisonho dos mais variados e filistinos expedientes já consagrados pela tradição recente do abre-te-sésamo do reconhecimento social ao alcance de um alemão sem fortuna à procura de um lugar ao sol acanhado de uma nação que destoava no concerto europeu ocidental — a rigor uma teoria do medalhão cultural. Sabe-se que esta burlesca metamorfose hoffmanneana é uma das fontes do Relatório a uma academia de Kafka, onde um artista relata seus anos de aprendizado desde os tempos de macaco nas costas da África. O humor frio de Kafka congela a burla de Hoffmann e através da caricatura da vida de artista — literalmente um mico de circo — vai ruminando, como tantos outros de sua antiga estirpe, a triste condição de homens supérfluos dos intelectuais alemães, tradição com a qual reata ao tomar ao pé da letra sua própria definição do escritor como alguém que "vive fora da humanidade" (cf. Baioni 1970, p.174-5). . Tal destino, diria Marcuse em 1937, é o desenlace natural do próprio caráter afirmativo da cultura, enaltecido pela deutsche Klassik. Entre outras coisas, a cultura afirmativa proíbe qualquer vínculo com a esfera prática em que se desenrola o processo de vida material, considerado um pecado contra o espírito — noutras palavras, é vedada qualquer interferência entre cultura e civilização. Na verdade, lembra Marcuse, o utilitarismo nada mais é do que o avesso da cultura afirmativa, em princípio alheia ao mundo da produção: à medida, entretanto, em que se generaliza a forma-mercadoria, aquele distanciamento é reconduzido à sua verdade, que é proximidade absoluta, de sorte que a independência já é de fato sujeição à lei do valor que se impõe tanto no âmbito da produção quanto no do consumo dos "bens culturais" (Marcuse 1970, p.145). Já a expressão filistina "bem cultural" é indício seguro da consumação daquele destino. Em linhas gerais, as observações de Adorno vão na mesma direção. Também aqui, para o bem e para o mal, o termo Cultura é tomado em sua acepção alemã, onde prevalece, desde o tempo dos mandarins, o contraste que a separa do mundo subalterno em que, entregue a si mesma, a vida se reproduz, e naturalmente estendida ao conjunto da cultura burguesa, cujo caráter afirmativo os humanistas alemães teriam sido os primeiros — privilégio do "atraso" — a pôr em evidência, e na linha de frente do combate ideológico. Analogamente, Adorno assinala na sua auto-suficiência, sem qual seria inconcebível o grande surto filosófico e artístico da Idade Clássica, o princípio mesmo de sua degradação: "uma cultura que se absolutiza já se tornou semi-cultura". Numa palavra, fetichismo e filistinismo andam juntos. Neste sentido, os escritos de Wilhelm Dilthey, os quais, lembra Adorno, "mais do que quaisquer outros, tornaram o conceito de uma cultura do espírito enquanto fim em si mesma particularmente grato ao gosto da alta burguesia alemã, ao mesmo tempo em que o colocavam nas mãos dos pedagogos", são exemplares: malgrado toda a doutrina do autor, insiste Adorno, sua fraseologia característica torna aqueles escritos indiscerníveis de "certos produtos da indústria cultural no estilo de Emil Ludwig" (Adorno 1976, p.87). Ao seu modo Lukács descreve igualmente essa curva descendente ao longo da qual a crítica do filistinismo parece morder a sua própria cauda. Além da carência de um nexo orgânico próprio (lembremo-nos das declarações explícitas de Herder e Goethe), o principal obstáculo ao desenvolvimento da vida intelectual na Alemanha, recorda Lukács, foi justamente o Spiessertum, o espírito filisteu:

(...) os melhores escritores alemães viram nele o inimigo, mas raramente compreendeu-se a origem de sua força. Em nenhum lugar existiram déspotas mais mesquinhos e desprovidos de idéias do que na Alemanha, nem foi tão pequena a resistência contra a repugnante presença deles. Naturalmente, há por toda parte pequenos burgueses e filisteus; mas sempre houve alhures os temporais purificadores das revoluções e freqüentes processos de clarificação da vida pública" (Lukács 1956, p.17)12 12 A rigor essa providencial invenção da intelligentsia moderna, seu irmão inimigo, o espírito filisteu, parece encontrar-se partout et nulle part. A propósito dos "temporais revolucionários purificadores" invocados por Lukács, veja-se a opinião instável de Marx e Engels: o primeiro, em 15 de dezembro de 1848, escrevia na Nova Gazeta Renana: "todo o terrorismo francês não foi mais do que um modo plebeu de fazer frente aos inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o Spiessbürgertum"; já em 4 de setembro de 1870, Engels dizia em carta a Marx que se devia imputar o Terror de 93 não só aos "burgueses superexitados", mas também aos "pequenos-burgueses filistinos que se borravam de medo", além da escória do povo que traficava com o Terror (cf. Marx & Engels 1969, t. II, p.229). .

Mais adiante, Lukács estabelece uma partição na história desse combate secular contra o filistinismo nacional, evidentemente em favor dos clássicos, observando que a luta destes últimos contra o pequeno-burguês alemão era parte de um esforço mais amplo destinado a redimir a Alemanha "educando homens e m condições de cultivar em si mesmos e de transmitir aos outros, em meio à miséria alemã e aos efeitos degradantes da divisão capitalista do trabalho, os grandes ideais humanistas, o modelo do homem harmoniosamente desenvolvido em todos os seus aspectos" (idem, p.64). Mas ao voltar as costas à iniciativa política e social — gesto aliás sublimado no apolitismo da Kultur —, os clássicos não só renunciavam ao meio mais importante para soerguer a consciência civil de seus cidadãos amesquinhados pela inércia ambiente, como, encarecendo assim o espectro puramente afirmativo da vida cultural, preparavam o terreno em que viria se intrincheirar a ironia romântica: estreitava-se ainda mais, nota Lukács, o horizonte dessa polêmica secular da intelligentsia com o espectro do filistinismo, que de questão nacional torna-se problema cultural dissecado a frio no recinto fechado e exclusivo dos cenáculos de iniciados. Em suma — passando mais uma vez pelo lugar comum do nosso assunto — para o romântico o representante máximo do "atraso" nacional, o famigerado filisteu, simplesmente, era o homem inculto — ou se preferirmos, o contrário do burguês execrado era o artista de vanguarda. Releia-se então o juízo de Lukács já mencionado, quando mais não seja por trazer água ao moinho de Hannah Arendt:

(...) a deformação da questão revela-se sobretudo no fato de que a hiperconsciência irônica dos românticos não tem consciência do quanto pode e deve ser filisteu, no plano social e humano, o seu refinado culto filosófico e estético da individualidade soberana. A luta romântica contra o filisteu comum produz o filisteu superexcitado" (idem, p.65)13 13 Parente do "burguês superexcitado", embriagado durante o Terror com a mise em scène do patriotismo, de que falava Engels? Voltaremos à questão. Seja como for, é fato que os intelectuais alemães, acompanhando à distância os sobressaltos da Revolução Francesa, podiam partilhar, ora com entusiasmo, ora com horror, tão somente daquela exaltação desequilibrada, cujos pressupostos sociais desconheciam, circunstância que contribuía ainda mais para a índole abstrata e cerebrina de tal "excitação". .

Ainda há pouco observações convergentes autorizavam a ver no filistinismo — esse mal superior alemão — o filho natural da religião alemã da cultura. "Heine diria que o filisteu pesava, em sua balança de queijos, o gênio, a chama e o imponderável" (Marton 1982, p.32). A fórmula é reveladora — sobretudo por apresentar Heine cultuando justamente a dimensão "afirmativa" da vida do espírito, quando na verdade este já abriga nos meandros da sua finalidade sem fim a balança de mercadoria que sopesará o "valor" dos "bens culturais". Se assim é, não surpreende que a Kultur dos mandarins tenha gerado em seu seio o Bildungsphilister, o que surpreende é o espanto de Nietzsche — a rigor escândalo de mandarim — diante da geração de epígonos que acabava de batizar com aquele nome infamante14 14 Em outro estudo, examinamos de perto por razões próprias do nosso assunto alguns aspectos do caso Nietzsche, que não é, de modo algum, um caso à parte na evolução de conjunto da Ideologia Alemã, como deu a entender a recente voga nietzscheana da Ideologia Francesa. Há momentos em que não é muito fácil distinguir a "cultura filistina"da "autêntica cultura alemã" — basta reparar, para começar, no caráter cediço dessa alegação de "autenticidade". Lukács e Hannah Arendt acabam de sugerir essa promiscuidade comprometedora — segundo Marcuse e Adorno, um desfecho inerente à dimensão "afirmativa" da cultura no mundo burguês — no caso dos intelectuais românticos em luta com a incultura do meio. Lukács preferiu ver no "filisteu superexcitado" uma bifurcação apequenada, e nada fortuita, na tradição dos clássicos; muito mais drástica em seu juízo, Hannah Arendt reconduz tal filistinismo da Bildung ao âmago da intelligentsia alemã, porfiando por um lugar ao sol desde os tempos difíceis da Ilustração. Em boa parte, a tradição desse libelo mais radical remonta à esquerda hegeliana, que costumava pôr na berlinda o lado filistino de monumentos nacionais como Goethe e Hegel — uma certa propensão a reconciliar o irreconciliável: este último confunde-se com a própria malformação nacional, e aquela tendência, com a índole mesma da Kultur, talhada sob medida para sublimar a estreiteza do horizonte local. Sabe-se que Schopenhauer também não poupará o lado mais desfrutável da "filosofia universitária" encarnada enfaticamente pela ortodoxia hegeliana, "apoteose do filistinismo"; porém a conjuntura variara, e no seu zelo de patrício cultivado transparecia a sensibilidade conservadora que não podia tolerar os últimos laivos iluministas de apreço pela vida pública que ainda sobreviviam no finado hegelianismo. Por esse caminho envereda o Nietzsche das Extemporâneas, para quem o "filisteu da cultura" é antes de tudo o intelectual progressista. São etapas na trajetória do "espírito filistino" na Alemanha, contraponto indissociável do ciclo completo de sua intelligentsia (de Novalis a Heidegger, todos inventaram à sua imagem e dissemelhança um Bildungsphilister). Dentre elas caberia mencionar o inteiro período em que deu o tom — quase marca registrada nacional — o filistinismo do senhor "Biedermeyer", cujo estilo Carpeaux assim resumiu: "a vida calma e idílica da pequena burguesia nas pequenas residências e cidadezinhas da Alemanha na época da Restauração, entre a queda de Napoleão e as revoluções de 1830 e 1848. Vida sem estradas de ferro, com muita arte, música, estudos gregos e vigilante polícia política, um pitoresco idílio dos bons tempos" (Carpeaux 1980, t.V, p.1220). A imagem mesma do "atraso" com seu cortejo de pequenas "vantagens" filistinas: um certo "sentimento de resignação cansada" onde a força do senso artístico faz esquecer o peso da opressão política (cf. idem, p.1222). Filistinismo, portanto, de uma pequena-burguesia ordeira e respeitosa das autoridades constituídas, porém cultivada, metida com seus móveis, fraques azuis e crinolinas brancas, mas que ainda dominava a arte de tornar o helenismo em voga, não só uma mania pedante, mas uma "força reguladora da conduta" (cf. idem). Mais uma vez: essa vida do espírito, conformada porém intensa, encalhada no marasmo nacional, sentia-se plenamente confirmada por uma cultura, para cuja formação seu estilo social aquiescente contribuía aliás em larga escala, concebida como esfera autônoma encobrindo com o sacrossanto véu da "bela aparência" a miséria de todos os dias, que no país parecia vigorar com inércia redobrada. — Sem dúvida, Hannah Arendt acrescentaria ainda que nenhuma história da ronda comprimida pelo espectro do filistinismo, que assombrou o intelectual alemão dos primórdios da era burguesa ao apocalipse hitleriano, poderia negligenciar o cordão umbilical que desde o início o unia aos primeiros sobressaltos modernos do anti-semitismo. Depois de assinalar as razões, oriundas do filistinismo das classes médias alemãs, que tornaram, no país, a questão judaica uma questão de educação, Hannah Arendt menciona, a propósito, o caso de um autor obscuro que em 1802 publicou uma "sátira mordaz sobre a sociedade judia e a sua sede de instrução como caminho escolhido para ser acolhida pela sociedade. Os judeus eram retratados somo o reflexo da sociedade filistéia e arrivista" (Arendt 1975, p.95). Palavra de "filisteu superexcitado", diria Lukács. Com efeito, o mote foi glosado pelo poeta romântica Clemens von Brentano num panfleto encharcado de Witz e "ironia", onde o mesmo gesto depreciativo assimilava o judeu ao filisteu enquanto contrapunha a este último o antídoto da "personalidade inata" (cf. idem 1976, p.73). Essa pequena peça romântica foi redigida durante o surto nacionalista que precedeu as Guerras anti-napoleônicas ditas de libertação, de sorte que a pecha de filistinismo abarcava também os franceses (mais tarde será a vez dos prosaicos ingleses, inimigos natos da Kultur) e, por extensão, os letrados de talhe voltaireano e os demais advogados locais das lumières — àquela altura, o esforço patriótico dava novo alento ao anti-intelectualismo conservador, cujo alvo preferido, como sabemos, era o esprit da "civilização" francesa, construção derivada, como também sabemos, de um conflito de classes intra muros (cf. idem 1957, p.100). Ora, foi antes a discriminação social que aquele conflito suscitava e reproduzia, e não o anti-semitismo político, que descobriu o fantasma do judeu (cf. idem 1975, p.94). Convenhamos, então, arremataria Hannah Arendt, declaradamente hostil aos achados espirituais das classes cultivadas alemãs, o lado preconceituoso da idéia de "personalidade" vinha mesmo a calhar. . Como se vê a peste filistina alastra-se com facilidade num meio propício — que os estigmas provincianos do "atraso" tornam altamente condutor —, a ponto de contagiar os inimigos jurados do mal. Assim que se afrouxaram as peias tradicionais da sociedade estamental e a luta pelo reconhecimento social amolda-se às exigências do mercado, a chama imponderável da "personalidade cultivada" também pesará na balança de mercado do "filisteu superexcitado"15 15 E mesmo dos menos "excitados". Veja-se por exemplo, o tacto extremo com que Thomas Mann, temendo a impiedade, alude à veia diplomática de Schiller, ao elemento de cálculo que entrava na composição química do seu caráter entusiasta (cf. Mann 1956, p.8-10). . Ora, no salão de Rachel Varnhagen, reina solta e soberano esse "frenesi burguês".

O salão mundano foi uma extensão natural do cenáculo romântico. O egoísmo podia ser divino, como queria Schlegel, porém não escapava a ninguém a forte coloração mundana desse culto romântico do Eu (cf. Lukács 1974, p.86)16 16 Nos amigos de Novalis, observa ainda Lukács, confundiam-se o senso poético do ritmo e o tacto da sociabilidade (cf. Lukács 1974, p.86). . Sobravam razões no arsenal da Frühromantik que permitiam a um jovem letrado comparecer sem remorsos a uma soirée berlinense — aliás, boa parte deles amadureceram nesse terreno propício à "idealização dos vínculos sociais" (a fórmula é de Jacques Droz, Droz 1963, p.9 ss). Não é difícil imaginar o tipo de euforia que se apossava daquele conglomerado heterogêneo, que se reunia em torno de Rachel Varnhagen, ante o espetáculo da abolição, por certo fugaz como toda mascarada, das barreiras sociais (abusando um pouco de expressões e idéias colhidas no ensaio de Gilda Rocha de Mello e Souza sobre a Moda no século XIX, Mello e Souza 1976). A sociabilidade romântica — a Geselligkeit que Schleiermacher colocou no centro dos seus Discursos sobre a Religião, a eclesia dos "espíritos cultivados" (die Gebildeten) — era uma sociabilidade de exceção, como era a vida breve, toda ela disfarce e fingimento, de um serão em casa de Rachel. A "livre sociabilidade",exigida pelo pleno exercício do Witz reclamava por definição a suspensão da distância social, uma pausa na prosa do mundo desencantado sem a qual não sobrevive aquele "espírito absolutamente sociável" perseguido pelos românticos. Lembremos também que o lugar natural da conversação onde triunfa súbita a alquimia do Witz é a reunião mundana que flui como um impromptu, efêmera como todo momento de exceção. Recorde-se, por outro lado, as circunstâncias já mencionadas que condenavam Rachel ao Witz perpétuo, e que a enredavam nas malhas da conversação permanente, cujo principal efeito de fascinação consistia num certo eclipse da realidade, tal como ocorria com a introspecção provocada pelo Selbstdenken, outra mania da raciocinante dama berlinense, cujas soirées, de resto, ofereciam uma réplica exata daquele eclipse do mundo degradado de todos os dias: também aqui, desmanchando-se por um instante as linhas de demarcação entre as classes e os meios os mais heteróclitos, perdia-se o contacto com a realidade (continuamos a abusar das observações de Gilda Rocha de Mello e Souza). Acresce, alinhavando todas as razões alegadas, que ao alargar o grupo de iniciados e interromper por um breve momento aparente de fusão social o curso filistino do mundo, o salão tornava-se meio de educação sentimental (veja-se, por exemplo, os Lehrjahre do protagonista do romance Lucinde de Schlegel). Mais uma vez: para os primeiros românticos, como para os demais mandarins alemães, nada possuía valor real caso não fosse instrumento de cultura. "Tornar-se Deus, ser homem, cultivar-se (sich bilden), são expressões sinônimas", dizia Schlegel (Lukács 1974, p.84.). Daí sua imaginação irrestrita por Schleiermacher: "uma pessoa na qual o homem enquanto tal tornou-se objeto de cultura; e por isso, para mim, ele pertence a uma casta superior" (apud Ayrault 1961, t.III, p.30). Enfim, estavam todos empenhados em organizar a cultura (o programa mesmo do Idealismo, como veremos noutro lugar) e desenvolver a personalidade, imperativo que comportava uma tradução mundana imediata: era preciso cultivar-se mutuamente. Ora, ninguém mais do que Rachel punha tanto empenho nessa utopia de intelectual, máquina de guerra a serviço da "sofística da Assimilação". Tudo se passava como se na ante-câmara do seu salão estivessem gravados os versos de Goethe, cujo culto a anfitriã fora a primeira a celebrar: "Höchstes Glück der Erdenkinder / Sei nur die Persönlichkeit" — o talismã que lhe abria as portas do gueto, exigido de seus habitués como bilhete de ingresso. Todavia os versos famosos já anunciam a degradação dessa noção capital da deutsche Klassik, que já circulava nos salões de Rachel como um fetiche a pesar na balança de mercador de seus convidados17 17 Adorno reconhece nas estrofes do livro "Suleika", do Divã Oriental, um momento decisivo desse declínio, embora o poeta, por intermédio da resposta do amante Hatem, declare que sua felicidade suprema encontra-se na própria Suleika e não na sua personalidade (cf. Adorno 1973a, p.49-50). Goethe, observa Adorno, partilha o ideal de sua época, para cuja formação, aliás, contribuiu em larga medida, mas tão logo o enuncia, revoga-o em nome da natureza reprimida. — O comentário de Paulo Quintela vai na mesma direção (cf. Goethe 1958, p.369-70). . Um deles, o embaixador da Suécia, costumava dizer, justamente, que a "personalidade cultivada" era o elemento comum a amalgamar príncipes da casa reinante, diplomatas, homens de negócio, artistas, intelectuais, atores e condessas; dizia mais até, além de demonstrar que o fastígio das soirées de Rachel era contemporâneo da vulgarização daquela fórmula cunhada muito a propósito pela intelligentsia em formação, pois dava a entender que os membros daquela sociedade heteróclita faziam um uso, que espíritos mais delicados taxariam de filistino, do mais imponderável valor da cultura afirmativa: naqueles serões, ninguém valia mais ou menos do que os demais, a não ser pelo que podia lograr obter em virtude de sua "personalidade" (Arendt 1957, p.45)18 18 Para o uso corrente da fórmula "personalidade cultivada" como algo cuja evidência se impõe por si mesma, enquanto parte constitutiva da religião alemã da cultura, ver p.ex., Norbert Elias, La Civilisation des Moeurs (Elias 1973, p.36, p.48, p.69). Hans Weil, está visto, também recorre à expressão consagrada, porém num contexto mais próximo do nosso: lembra, com efeito, a contribuição decisiva dos salões berlinenses, que formavam uma espécie de " Zentrale des Geistes", para a difusão do que chamou de Bildungsethik, invocada por uma "elite do espírito" pouco à vontade numa sociedade estamental e sonhando com uma paridade ideal, indiferente às desigualdades de classe e fortuna; para tanto, contribuíram também as viagens de educação, as Erziehungsreisen, ao longo das quais o jovem principiante, " die Sich-bilden-wollenden", nobre ou plebeu afortunado, apresentado por uma fieira de cartas de recomendação, era levado de um Gebildete a outro, compondo assim uma galeria de "personalidades cultivadas" (cf. Weil 1930, p.224-5, p.262-4). . Noutras palavras, só eram admitidas pessoas "interessantes" (cf. Weil 1930, p.263). Não era o caso do infeliz conde Finckenstein, contrariando pela raiz as conjecturas de Wilhelm Meister acerca da graça inata da aristocracia. Conquanto fidalgo, num salão socialmente neutro como o de Rachel, seu título nobiliário evaporava-se como um fantasma, deixando exposta sua perfeita nulidade (Arendt 1957, p.29-30). Este tropeço de fato não comprometia a regra de ouro da personalidade a todo custo, antes exibia a verdadeira natureza de um salão na Berlim burguesa e "ilustrada" — nela, o nobre começava a perder seu status representativo, sua "personalidade pública" aos poucos refluía, confinando-o na condição estreita do simples particular (idem). Em compensação, a estrela burguesa, ainda tímida, parecia subir e os salões, justamente, "sublimavam o processo de ascensão social" (Mannheim 1974, p.112)19 19 A observação já citada é de Mannheim (Mannheim 1974, p.112). Para ilustrá-la, recorramos novamente ao estudo de Gilda Rocha Mello e Souza: no século XIX, uma reunião mundana da elite assume o caráter de um "cerimonial de iniciação, onde entram em jogo mais as qualidades pessoais de cada um que os atributos de sua classe. O vagaroso polimento das arestas efetua-se dia-a-dia nas reuniões sociais entre a derrota de hoje e o sucesso de amanhã, quando o amargo aprendizado feito de tacteios, de desânimos, de novas investidas desesperadas, acompanha a cadeia longa de provas que lhe vão sendo antepostas e cuja vitória final há de conferir ao neófito a cidadania na classe mais alta" (Mello e Souza 1950, p.82). É preciso lembrar, entretanto, que a descrição acima ajusta-se melhor ao titanismo napoleônico cós jovens ambiciosos retratados por Balzac do que às atribulações de um alemão bem formado porém resignado (embora sempre à cata de compensações simbólicas), encalhado num meio viscoso onde as carreiras dificilmente abriam-se ao talento. Não obstante, tanto na França "moderna" quanto na Alemanha "atrasada", a ascensão social dos filhos da nova ordem européia não podia dispensar as vantagens dessa desenvoltura mundana penosamente assimilada. . O traço filistino da "personalidade cultivada" encontrara ali toda latitude para impor-se de vez. A "personalidade diferençada" é um produto moderno, afirma Mannheim, escorado no lugar comum obsessivo da sociologia alemã, o contraponto entre "comunidade"e "sociedade". Nesta última, atomizada, afeta os indivíduos apenas tangencialmente, sua frouxa coesão faculta-lhes o trânsito entre vários grupos entrecruzados, de lealdades e mentalidades variáveis. Exigindo pouco dos indivíduos, ao contrário da disciplina imperante no cerimonial mundano do Antigo Regime, o salão é uma associação moderna por excelência. Compreende-se, então, que a personalidade multifacetada característica dos novos tempos tenha deparado na situação fluida, informal, improvisada dos salões, o seu habitat natural (cf. idem)20 20 Aquela dicotomia repete-se no plano das instituições mundanas. "Não é por acidente que os clubes conservadores do princípio do século XIX na Alemanha ainda retêm elementos da guilda medieval ou da etiqueta das reuniões de corte", lembra Mannheim, referindo-se, entre outras, ao Christlichdeutsche Tischgesellschaft (Mannheim 1974, p.113). Com efeito, esta associação conservadora, da qual foram banidos "as mulheres, os franceses, os filistinos e os judeus", opunha-se declaradamente à tradição mundana consagrada pelo salão de Rachel, interrompida pelo desastre de 1806, quando então, no dizer da anfitriã, o seu local de reuniões "afundou como um navio carregado com os mais elevados prazeres da vida" (cf. Arendt 1975, p.93; idem 1957, p.99-100; Droz 1966, p.136). Por volta de 1808 os salões berlinenses "já haviam sido suplantados pelas casas dos nobres burocratas e da classe média superior. O desdém dos intelectuais e aristocratas berlinenses pelos judeus da Europa oriental, na época em que foram anexados à Prússia, transferiu-se contra os judeus educados de Berlim, que conheciam muito bem" (Arendt 1975, p.94). Os salões de Henriette Herz, de Brendel Veit e sobretudo da "intragável Rachel" tornaram-se assim os alvos prediletos da reação aristocrática durante o Reformperiod que se seguiu à derrota de Iena; chegou-se mesmo a culpá-los por ela, insinuando-se que o solo pátrio fora minado por aquelas supostas "centrais do espírito", na verdade escolas da "venenosa maledicência" e da "deslealdade" (cf. Weil 1930, p.224). . Noutros termos: essa personalidade recentemente cristalizada sentia-se ali tanto mais à vontade quanto na índole mesma das reuniões mundanas da elite refletiam-se, estilizados, os traços fisionômicos da sociedade competitiva moderna21 21 Já os clubes conservadores alemães, como se viu acima, timbravam justamente em mostrar-se impermeáveis às formas características da sociedade competitiva emergente (cf. Mannheim 1974, p.113). . A igualdade formal desta última parece tornar-se efetiva apenas no mundo fictício dos salões, onde no entanto reina solta a mais desenfreada concorrência; ao ter início a mascarada, encontram-se todos em pé de igualdade: enfim, uma sociedade de mercado perfeito, cujo tipo ideal possessivo, por assim dizer, vem a ser a "personalidade inata". Nesse universo efêmero e sem passado onde se "perdem os contatos com a realidade e é difícil lembrar a posição efetiva do indivíduo" (Mello e Souza 1950, p.80), as desigualdades de classe cedem o passo às pequenas diferenças pessoais. "E como o salão, oferecendo a todos iguais oportunidades de brilho, destrói as distâncias, cada um vai se esforçar por restabelecê-las através de sinais exteriores" (idem, p.81): sejam os mais aparatosos da toilette, afinal prolongamento plástico da "personalidade", sejam os mais impalpáveis do espírito, aliás amalgamados na atmosfera festiva das reuniões sociais. Ora, justamente dos "menos bafejados pela fortuna", como o intelectual pobre e o judeu discriminado, vinha em socorro o ideal humanista da "personalidade": mas toda a arte consistia precisamente em saber fundi-la com a desenvoltura mundana. Já a própria fluidez da vida de salão, cuja ausência de prescrições contrastava com o antigo rigor hierarquizante da etiqueta da sociedade de corte, acarretava a valorização inclusive do desempenho de pormenor (mas isto era tudo) de uma "individualidade" que passava então a ser "interessante": "o espírito e os rasgos de originalidade abriam carreiras, e a capacidade de triunfar em poucos minutos era a chave do sucesso" (Mannheim 1974, p.112-3). Tais eram os preceitos tácitos dos salões de Berlim: a aristocracia ainda era o centro de gravidade, mas a atmosfera já era burguesa. Às suas portas — tal como o proprietário da força de trabalho no mercado — apresentava-se o intelectual plebeu investido do seu único bem, a "personalidade", que carecia de ser "cultivada" para entrar em circulação. Afinal não é isso o que também diz Goethe quando declara: "costuma-se criticar sem pudor a personalidade,; mas qual é enfim nossa única fonte de satisfação senão nossa cara personalidade, qualquer que ela seja?" (apud Marcuse 1970, p.139). Acresce que na vida de salão o essencial é o que se desenrola sob as vistas de um público de exceção (cf. Mello e Souza 1950, p.80-1). O brilho então era tudo — uma certa degradação filistina do belo convívio projetado por Schiller no estado estético prenunciado pelo "pequeno número dos cenáculos de elite": além do que, a desenvoltura mencionada há pouco (parente próxima dos heróis civilizadores goetheanos e do trato fidalgo tão prezado pelos intelectuais na aristocracia despojada de seu antigo poder, caso nos recordemos das observações de Adorno a respeito das frequentações aristocráticas da intelligentsia alemã) nem sempre preserva da pusilanimidade mundana que parece acompanhá-la, pois não é raro, nos salões, que submetiam os seus habitués à tirania da obrigação de agradar a qualquer preço, arranhar-se a dignidade para mostrar graça. Daí o sortilégio da conversação e o prestígio de vocação teatral — de fato encantamento burguês de consolo, ou melhor, uma variante mundana (se não a sua verdade) da palavra de ordem de Novalis acerca da romantização do mundo desencantado. Em linhas gerais, os meandros da conversação num salão oitocentista constituíam uma réplica em miniatura da sociedade de mercado (cf.Mannheim 1974, p.112). Perseguia-se — imperativo romântico — a "comunicação ilimitada e a intimidade irrestrita", com um olho posto, porém, nas perspectivas de conquista — em todos os sentidos — representadas por um colóquio oportuno (cf. Arendt 1975, p.93; e Mannheim 1974, p.112). As mesmas injunções da concorrência repontavam, estilizadas, no brilho "teatral" exigido pelo público mundano. Os serões de Rachel reuniam, justamente, uma parcela daqueles excluídos da sociedade respeitável que haviam aprendido a representar a si mesmos através da conversação semeada de Witz (cf. Arendt 1957, p.29). O Wilhelm Meister — e embutida nele a Bildungsethik dos intelectuais alemães — vinha finalmente consagrar esse dispositivo bifronte: de um lado, o ímpeto imponderável do "longo esforço de formação interior"; de outro, a par da natural sede de nomeada, os interesses materiais mobilizados pelo processo de ascensão social que se punham em cena, sublimados, na face da "personalidade cultivada" voltada para o palco do mundo22 22 Repare-se que uma tal dualidade é constitutiva do "idealismo" próprio da cultura afirmativa criticada por Marcuse em 1937. É que o suporte ideal da dimansão afirmativa da cultura vem a ser justamente a "personalidade", conforme resume Marcuse na seguinte fórmula: "harmonia privada em meio à anarquia universal" (Marcuse 1970, p.137). Vê-se logo que tal fórmula exprime a "fuga da miséria rasteira para a miséria arrebatada" característica do "idealismo aquiescente" da cultura clássica alemã (lembremos mais uma vez que a primeira expressão é de Engels e a segunda de Anatol Rosenfeld). Desenvolvida, ela descreve tanto o estilhaçamento cultural dos indivíduos em personalidades encolhidas, voltadas sobre si mesmas, próprio do capitalismo já consolidado, mais precisamente, uma ordem social que "autoriza o indivíduo a existir como pessoa na medida em que não perturba o processo de produção e deixe às forças econômicas o cuidado de integrar socialmente os homens", quanto descreve igualmente a déchéance congênita de um conceito que se confunde com a própria deutsche Klassik: "o campo concedido às realizações exteriores reduziu-se consideravelmente, enquanto o domínio do desenvolvimento interior ampliou-se largamente. A pessoa não representa mais um ponto de partida para a conquista do mundo" —logo adiante indicaremos o termo de comparação que Marcuse tem em mente ao escrever estas linhas — "mas uma linha de retirada protegida na retaguarda. Ela é, na sua interioridade, enquanto pessoa moral, o único bem que não pode ser arrancado ao indivíduo. Ela não é mais fonte de conquista, mas de renúncia" — eis o que distingue, aos olhos de Marcuse, um Leonardo da Vinci, um Maquiavel, de um Goethe; a frase seguinte pode ser tomada como uma descrição dos 'renunciantes' ( die Entsagenden) goetheana, conquanto não faça justiça às veleidades de ação e influência manifestadas, por exemplo, tanto pelo Fausto quanto pelos integrantes da utópica 'sociedade da Torre' no Meister. — "Só aquele que sabe renunciar, o homem que luta dentro dos limites previamente traçados para a sua formação interior, qualquer que seja a miséria de tal situação, só um indivíduo assim constituído representa a verdadeira personalidade" (idem, p.138-9). Na linha de frente dessa capitulação, está visto, a "bela alma" do alemão cultivado, entrincheirado na sua personalidade. Assim, até mesmo a sua definição kantiana trai a condição do intelectual alemão, e com ela, a índole original da cultura afirmativa: concebendo-a como liberdade e independência em relação ao mecanismo da natureza, recorda Marcuse, Kant simplesmente anunciava que a personalidade, foco superior do novo ideal de cultura, já não era mais senhora do seu destino, a não ser enquanto sujeito moral e espiritual (cf. idem, p.138). Em poucas palavras, de Marcuse, evidentemente: "a cultura afirmativa reproduz e sublima na sua idéia de personalidade o isolamento social e o empobrecimento dos indivíduos" (idem, p.137) — ao contrário do que pensava Wilhelm Meister nos primeiros anos do seu aprendizado. Mais uma vez: o quadro traçado por Marcuse é o da cultura burguesa à época do capitalismo moderno e no entanto a sua fisionomia própria foi que delineada numa situação de "atraso" relativo por uma intelligentsia que procurava na carapaça protetora da "personalidade cultivada" um abrigo que a consolasse da pasmaceira de um meio retrógrado. Em 1937 portanto (é preciso datar, pois mais tarde corrigirá sua opinião do "idealismo" — pois afinal é disto que se trata), Marcuse então interessado na dissolução, não da cultura, mas da sua dimensão afirmativa, mostrava já estampado na certidão de nascença daquele ponto de honra das "classes cultas" alemãs o sinete da "decadência ideológica". A idade de ouro da qual nos afasta cada vez mais o crepúsculo burguês da humanidade ocidental é a do uomo universale renascentista. Na aurora dos tempos modernos, dizia então Marcuse, "a pessoa era a fonte de todas as forças e de todas as qualidades que habilitavam o indivíduo a tomar nas mãos o seu destino e a transformar o mundo circundante segundo as suas necessidades. Quando se considerava o indivíduo uma personalidade, desejava-se mostrar com isso que, enquanto indivíduo, ele não devia nada a ninguém, isto é, nem aos seus ancestrais, nem à sua classe, nem a Deus" (idem, p.138). Lembrada tal circunstância, não se pode deixar de assinalar um curioso entrecruzamento. A matriz da periodização que baliza o roteiro de Marcuse — a trajetória de um declínio que culmina no anti-clímax do neo-humanismo alemão — remonta, sem dúvida, a Engels, e por aí, à tradição do pensamento socialista que sempre prezara aquele antigo universalismo tão avesso à limitação burguesa posterior. Ao observar, entretanto, que, durante aquele período áureo, o critério da personalidade não era nem de longe exlusivamente moral — e a seguir lastimará que, com o decorrer dos novos tempos, essa dimensão tenha suplantado as demais — mas baseado no poder, na influência e na glória, mediante as quais descortinava-se um campo de ação o mais vasto possível, Marcuse, surpreendentemente, subscreve a descrição apresentada por Burckhardt do "apogeu da cultura individual" no Renascimento italiano, na qual prepondera, com efeito, a celebração da personalidade dita dominadora ou forte (para não empregar o epíteto ainda mais horrível — e já moderno no seu filistinismo congênito — "marcante", que vez por outra escapa ao tradutor de Burckhardt), isto é, do " uomo singolare, único", desconsiderando, assim, o fato de que tal caracterização é ela mesma tributária daquele ciclo ideológico da cultura afirmativa cuja hegemonia deplora (cf. idem; cf.tb. Burckhardt 1963, vol. I, p.106, p.217). Sabe-se que na glória póstuma deste livro, obra de um pacato professor suíço, filho de uma velha família patrícia de Basiléia, abundam os mal-entendidos, a começar pelo patrocínio do culto fin-de-siècle da Renascença e o seu cortejo de condottieri e demais feras do gênio artístico. Explica-se a projeção: "o burguês de dinheiro, ansioso por uma árvore genealógica, acredita reconhecer-se nesses homens geniais que devem tudo a si mesmos" (Carpeaux 1942, p.17). Há quem veja nessa retrospecção um grão de verdade, no desfecho caricato o justo destino de um ideário que já nascera torto. Escusado lembrar que Marcuse não era bem um herdeiro da voga européia mencionada acima, a qual, aliás, deixou atrás de si trastes bem mais equívocos e ameaçadores do que simples móveis estilo Renascença que, nos palácios e velhas casas burguesas da Europa, são apenas "obstáculos à circulação e colecionadores de poeira". Seja como for, o próprio Marcuse convida ao equívoco — a menos que a tradução francesa do seu ensaio nos tenha preparado uma armadilha — quando lamenta o eclipse do "voluntarismo expansionista" do uomo universale que a ordem capitalista nascente veio, de resto, oportunamente inibir, conforme não deixaria de lembrar Hirschmann. Esse eclipse é total tão logo principia o ciclo alemão da intelligentsia européia, em cujo bojo toma forma definitiva a ideologia do caráter afirmativo da cultura, criticada por Marcuse segundo o figurino da esquerda hegeliana — questão de estilo que a seu tempo retomaremos. Nem foi tão drástico assim o corte assinalado por Marcuse, pelo menos vistas as coisas do ângulo particular da evolução de conjunto da intelligentsia moderna: por mais polifacética que fosse a personalidade do humanista italiano — não por acaso tido em altíssima conta por um autor como Burckhardt, cujo apolitismo confesso e alardeado (afinal fora um dos primeiros a modificar a imagem clássica da serenidade grega, alarmado, entre outras coisas, ante o espetáculo, que julgava premonitório, da "personalidade" sufocada pela polis) descendia em linha direta da religião weimareana da Cultura —, ela já gravitava numa órbita marcada pela ausência de influxo prático; o seu luxuoso estúdio não estava menos campato in ária do que os gabinetes calafetados pela consideração exclusiva da vida do espírito em que os neo-humanistas alemães se enclausuravam. Ainda voltaremos com vagar a esse divórcio moderno entre a "classe dos cultos" e o curso filistino do mundo. Um fato inelutável constatado por Burckhard e por ele alegado em defesa da cultura renascentista, censurada num século de semi-cultura, como o dezenove, por alhear-se do grande número; reconheça-se, a propósito, a ascendência goetheana no passo em que se compadece do destino do Tasso, o mais "artista" dos poetas italianos, padecendo nas mãos da incultura, seja a dos seus protetores, seja a do seu público introuvable (cf. Marcuse 1970, p.131; cf.tb. Löwith 1969, p.362).Se assim é, caberia recuar o nascimento da cultura afirmativa até o fim da Idade Média, do qual data, de fato, o grande divórcio referido há pouco e do qual trataremos mais adiante. Voltando: em grandes linhas, a periodização marcuseana do declínio da "personalidade" acompanha a tradição socialista de interpretação do destino truncado da "ideologia burguesa de libertação do indivíduo"; com uma ressalva: quando a Ideologia Alemã, latu sensu, entra em cena, adverte Marcuse, aquela promessa de emancipação já caducara. Sabe-se que Lukács mantém a promessa renascentista até a era de Goethe, declarando-se então a sua crise com o "fim do período artístico", ou, mais precisamente, com a derrocada européia de 1848: a partir daí, a "decadência ideológica" arranca das mãos da burguesia o ideal da "personalidade harmoniosa". Diferenças de periodização à parte, ambos conservam as linhas gerais do programa socialista esboçado por Engels: o ideal renascentista do homem harmonioso assentava na convicção de que um verdadeiro desenvolvimento das forças produtivas equivalia a um desenvolvimento das faculdades do indivíduo, de sorte que essa "grande revolução progressista da humanidade" ultrapassava o horizonte burguês em que nascera (cf. Lukács 1966, p.112-3). Diante de tal amálgama, onde a personalidade polifacética do uomo universale paleoburguês volta à tona na crista do desenvolvimento desimpedido das forças produtivas, e no qual transparecem os tropeços dos projetos positivos do socialismo, cabe lembrar a nota dissonante de Adorno induzida pela observação corrente de que nem sempre as pessoas sem inibições são as mais agradáveis e as mais livres e desaguando no repúdio do ideal socialista da personalidade: "os fantasmas em torno do homem sem inibição, transbordante de energia, criador, foram pouco a pouco invadidos pelo fetichismo da mercadoria que, na sociedade burguesa, produziu a inibição, a impotência, a esterilidade das coisas que não mudam nunca" (Adorno 1954, p.147). Dão testemunho dessa invasão, não só o episódio decadentista da "Renascença histérica" mencionado há pouco (para ficarmos apenas nos casos em que esbarramos por força de nosso argumento), mas sobretudo o vínculo sombrio entre a vocação mundana da "personalidade cultivada", assentada sobre a concorrência e a discriminação social, e as raízes mais longínquas do anti-semitismo na Alemanha moderna — são etapas de um caminho desencontrado, no qual "o conceito de personalidade paga caro o crime que cometeu: o ter nivelado a idéia de humanidade, em um indivíduo, até o plano do seu simples ser-assim e não de outro modo. Becket exemplificou esse desfecho na figura de Hamm em Fin de Partie: a personalidade como clown" (Adorno 1973, p.51). (Já o antecipara, em parte, a dúbia despersonalização encarnada por Pétrouchka, analisada por Adorno no ensaio sobre Stravinsky. Não era a primeira vez em que o sujeito ameaçado subia à cena na roupagem do clown escarnecido. Projeção de intelectual que presume sua condição o último refúgio da personalidade que faz água por todos os lados. A perícia consumada de Baudelaire em surpreender o artista na posição ingrata de um pitre, é um dos momentos decisivos desse processo de saltimbanco do Sobrinho de Rameau, e agora, as acrobacias cerebrais da existência irônico-artística do intelectual romântico). Voltemos então à opinião destoante de Adorno; numa palavra: o dogma do desdobrar-se ininterrupto de todas as possibilidades humanas não teria atravessado incólume a sua hibernação burguesa. Escusado dizer que não é esta a última palavra de Adorno sobre o assunto — muito menos o são as opiniões de Marcuse e Lukács referidas acima. São variações no interior de um pensamento que se formou à sombra do classicismo alemão e cujas razões não cabe por enquanto pesquisar, pelo menos não antes de esquadrinharmos um pouco mais a sua pré-história. A mesma passagem de Novalis também é citada e comentada por Mannheim, cuja interpretação dessa técnica romântica de pensar coincide em parte com a de H. Arendt (cf. Mannheim 1963, p.144). . As observações de Hannah Arendt acerca do filistinismo cultural da burguesia Alemã apanhavam o fenômeno, como vimos, pelo seu elo mais fraco, a "sofística da Assimilação", forjada à imagem e semelhança daquela dúbia sagração humanista do homem culto, educado e tolerante: ofuscados pelo amálgama dos salões, os judeus "ocidentalizados" deixavam-se convencer de que "nada realmente importava além da personalidade e da singularidade do caráter, talento e expressão, insubstituíveis pela ascendência social e dinheiro". É que previamente a camada ilustrada do Mittelstand já se deixara persuadir sem muito esforço — num país em que os conflitos de classe raramente alcançavam dimensão política —, que a almejada ascensão social dependia exclusivamente do desenvolvimento harmonioso da personalidade; mais precisamente, conforme a lição goetheana, dependia também da capacidade de exprimi-la: "o mais importante era saber representar o papel daquilo que a pessoa realmente pretendia ser" (Arendt 1975, p.92-3).

Dessa circunstância os intelectuais românticos tinham perfeita consciência, mobilizando-a a seu favor. Daí o cinismo peculiar do "culto romântico da personalidade", sentencia Hannah Arendt, decididamente hostil aos intelectuais alemães, traídos pelas peripécias filistinas de uma "batalha amarga e, infelizmente, muito bem sucedida em prol de sua própria posição social". Dito de maneira mais contundente: aqueles primeiros intelectuais modernos não parecem recuar diante de nada "quando está em jogo a única realidade que nem mesmo um romântico poderia dar-se ao luxo de ignorar: a realidade das posições pessoais" (idem 1976, p.71-2). Processo de intenções? Apenas o outro lado — e mais que isso — do quinhão que cabe a todos os que na "classe dos cultos" se acotovelavam na luta para abrir uma carreira ao talento. O específico, no caso alemão, concerne as singularidades da noção de "personalidade cultivada" plasmada ao longo desse ciclo de ascensão social. Delas a menos notável não é certamente a sua face mundana, igualmente idiossincrática, pois, à luz do exposto até aqui, cabe supor que a cor local da "comédia ideológica" representada num salão berlinense tutelado por uma dama judia, nas condições evocadas nas páginas anteriores, discrepava de modo significativo da atmosfera, já consolidada por longa tradição, de seus congêneres parisienses e londrinos. Não obstante, ao investir contra a intelligentsia alemã, na pessoa de seus profetas românticos, Hannah Arendt deixa na sombra aquela desenvoltura mundana pela qual suspirava, por definição, a "personalidade cultivada". O nexo tem, entretanto, seu peso de revelação; posto de lado, sobra, em última análise, o arrivismo inato dos Gebildeten, para o qual a "ilimitada idolatria romântica da personalidade" foi excelente pretexto. Dito de outro modo: para Hannah Arendt, a crença fundamental na "personalidade" como fim em si mesmo está na origem da irresponsabilidade ideológica do intelectual romântico. Caberia completar a descrição acrescentando que tal crença vem cimentar e justificar o mecanismo já descrito de "ironização das idéias". Repare-se que Hannah Arendt não atribui à Frühromantik a criação de nenhum ideário racista em particular, ou qualquer outra panacéia totalitária — mesmo o seu conservadorismo de base, por sobre ser sucedâneo de antigas veleidades republicanas, convivia muito bem com o vanguardismo estético. Dito isto, importava registrar sobretudo a grande invocação romântica, patente na estrutura vibrátil da "personalidade cultivada", mais uma atitude, toda ela pose e artifício, do que um conjunto articulado de opiniões; segundo Hannah Arendt, a invenção da "frivolidade geral do pensamento moderno", assim descrita: um certo "relativismo" responsável pela voga temporária de qualquer opinião, uma espécie de "mania" da qual nada estava a salvo, ou que a tudo "podia atingir e a tudo destrocar, desde que fossem novas e originais as maneiras de emitir novas e fascinantes opiniões" (idem). Enfim, o vezo da opinião irresponsável — expresso no único ponto de um programa sumário: "todos têm o direito de criar a sua própria ideologia", muito embora nem todos os "idiotismos" sejam mera "elocubraçãozinha", individual para usar uma expressão de Gramsci, com a qual costumavam assinalar a irrelevância social da ruminação do intelectual sem vínculo orgânico — é apanágio do letrado romântico. Uma atmosfera familiar banha o anti-intelectualismo do libelo. Lembremo-nos não só da consciência irônica descrita por Hegel planando acima de um mundo em ruínas, mas sobretudo de sua aversão — em nome da seriedade dos conteúdos "éticos" — à sofística da intelligentsia, cujo ânimo raciocinante prestava-se a todas as causas; recordem-se as observações análogas de Mannheim acerca da propensão dos românticos a ziguezaguear a serviço entre as classes e suas razões. Hannah Arendt também vai nesta direção e explica: quem se habituou a levar a sério — pelo menos durante o breve instante em que dura uma bolha de sabão — tudo o que lhe passa pela cabeça, não encontrará dificuldade em pôr seu talento às ordens do primeiro mandante ideológico que lhe encomende os serviços. Desprovido de qualquer intenção de ciência, sem nenhum corpo doutrinário definido, o intelectual romântico era um ideólogo por excelência, no sentido em que Mannheim tomava o termo: um connaisseur disposto a advogar causas alheias. Há portanto um grão de cinismo, por certo involuntário, na célebre palavra de ordem de Novalis: "o mundo deve ser romantizado". Ou melhor, deixemos o cinismo por conta da Ilustração filistina e fiquemos com a vaga promessa de grandes complicações simbólicas e sentimentais formuladas por aquele Manifesto do Romantismo. Romantizar, proclamava Novalis, consiste em "dar um sentido nobre ao vulgar, uma aparência misteriosa ao lugar comum, a dignidade do desconhecido ao conhecido" (apud idem). São artigos da poética do Öfterdingen contraposta à do Meister: como se há de recordar, naquele "Cândido dirigido contra a poesia", Novalis condenava o sacrifício de tudo o que era "romântico" ao prosaísmo de uma vida doméstica e burguesa; o espírito de Goethe, dizia, era o de um inglês às voltas com as mercadorias do seu balcão — enfim, um mundo de pequenas idéias e atividades medíocres, vê-se logo, inteiramente hostil às "personalidade distintas" (ver Lukács, 1968, p.104; MANN, 1960, p.22-4). Não cabe examinar agora o amplo espectro desse pathos da profundidade navegando à contra-corrente do mundo desencantado pela prosa do Capital e o infra-vermelho da Aufklärung — a rigor, ele se confunde com a própria trajetória da intelligentsia alemã. Basta por ora a convivência do conservadorismo dos resultados com o modernismo da "técnica" de romantização. Esta implicava a bagatelização das opiniões respeitáveis, aqueles dependiam de restauração da aura de instituições duvidosas e maltratadas pelo tempo. Em razoável medida, o vezo da interpretação em profundidade, do duplo significado, interessado em trazer à luz o infinito entranhado no finito, favorecia à estetização das relações sociais de dominação (Mannheim, 1963, p.145, n.72). Hannah Arendt afirma-o sem rodeios:

(...) um dos objetos romantizados — o povo — podia, de um momento para outro, transformar-se em Estado, em família, em nobreza ou em qualquer outro elemento que — pelo menos no começo — passasse pela cabeça de um desses intelectuais ou que, mais tarde — quando, já maduros, haviam aprendido a realidade do pão de cada dia — lhes fosse encomendado por algum freguês pagante" (Arendt, 1976, p.71).

Mutatis mutandis, este gesto se reproduzirá na segunda metade do século, quando os críticos da idéia scélérate de progresso — "quelle blague!" — não só passarão ao largo da opressão presente, como enobrecerão as suas formas passadas: enfim, coisa de professor alemão que, de tanto se opor à platitude do mundo "iluminado", desdenha o egoísmo filistino que comanda os pequenos crimes em nome da beleza que emana da sua versão monumental e por assim dizer desinteressada23 23 São observações de Horkeimer e Adorno a respeito da ambivalência da Ideologia Alemã nos primórdios da era imperialista (Adorno & Horkheimer 1974, p.252, p.105-10). Depois de assinalar que não há razões plausíveis para que se prefira o ministro ao gangster, só porque as vítimas deste último são menos numerosas, prosseguem os dois autores: "para o alemão" — e só o filisteu da cultura alimentou esse preconceito em favor da grandeza — "a beleza emana da envergadura do ato: a despeito do crepúsculo dos ídolos à sua volta, ele não pode renunciar ao hábito idealista que prefeere ver o pequeno gatuno enforcado e gostaria de transformar as expedições dos piratas imperialistas em missões históricas e universais" (idem, p.110). . Voltemos à observação de Hannah Arendt e consideremos a sua composição: de um lado, as opiniões políticas "retrógradas"(para usar um termo de época "contra-revolucionário"), fortalecidas pela "romantização" dos vínculos sociais, entrecruzamento em que se exprime a aptidão da intelligentsia romântica a justificar as apreensões e rancores das antigas classes dirigentes (cf. Droz Romantisme Allemand et l'État, ed. cit., p.228); estetismo e diletantismo político desde então andavam juntos (idem, p.51); por outro lado, já o dissemos, é preciso registrar a modernidade dessa constelação que no entanto contemplou as veleidades ideológicas da reação aristocrática: o anti-iluminismo daqueles intelectuais não os impediu, pelo contrário, de chamar as coisas pelo seu nome prosaico, daí o cinismo com que ofereciam seus serviços culturais, ajustando mecenatismo Junker e relações de mercado; a tutela das representações tradicionais falia igualmente em meio ao "diletantismo ocasionalista" com que acolhiam tudo o que lhes passava pela cabeça; também aqui as idéias voltavam a ser "des catins": a desenvoltura de suas reviravoltas submetia as opiniões a uma espécie de prova dos nove ultra-iluminista, comprovando-lhes a natureza descartável e meramente instrumental. Frivolidade geral do pensamento moderno? Pode ser; porém nem todas as suas razões são levianas. "Qualquer coisa que servisse à assim chamada produtividade do indivíduo", insiste H. Arendt, "ou seja, ao jogo totalmente arbitrário de suas 'idéias', podia tornar-se o centro de todo um modo de encarar a vida e o mundo" (Arendt 1976, p.71). Ocorre também que os motivos desse capricho não são todos arbitrários. Já topamos, em capítulo anterior, várias manifestações daquele filoneísmo condenado por H. Arendt nos intelectuais consumidos pela mania do novo. Uma contingência nada contingente do "atraso", como se viu. Novamente: a Alemanha da virada do século era palco de um notável "experimento sociológico", como dizia Mannheim, estudando o comportamento excêntrico das idéias transplantadas malgrado a defasagem de fuso histórico e social, via de regra coroado pela sua auto-dissolução, experimentada por sua vez como proeza especulativa por uma intelligentsia relativamente desarraigada por força daquele mesmo "anacronismo" próprio de um "país clássico da não contemporaneidade", como denominava Bloch uma nação que até então se mostrara incapaz de dar uma forma homogênea à razão capitalista. Dos efeitos desse descompasso dá notícia o palpite arriscado acima a propósito da combinação romântica de modernismo intelectual e estetização das formas tradicionais de dominação — não por acaso, pelo contrário, exato pendant, foram aqueles intelectuais os ideólogos dos círculos integristas que se opunham à política de modernização conservadora dos reformadores prussianos, política comandada, por seu turno, pelas injunções daquela combinação referida há pouco. Frivolidade, mania, cinismo, arbitrariedade, relativismo, e tudo o mais que de mal tenha pensado H. Arendt a respeito dos intelectuais românticos, ganha novo sentido, conferindo densidade inclusive ao que parecia mera arrogância ou simples sede de nomeada, quando referido a esse quadro de efeitos ideológicos do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. O mito da "personalidade cultivada" — onde se aninham as prendas enumeradas acima — a um tempo utopia humanista e fetiche filistino, explica-se em razoável medida quando inserido também naquele conjunto de efeitos. Este o chão histórico onde se deve procurar a chave do caráter (ou melhor, da falta do mesmo) arbitrário da "sublime insolência" entranhada na "existência irônico-artística" dos primeiros românticos. Já vimos Hegel, autor desta última fórmula pejorativa, tomá-la como manifestação daquele subjetivismo acabado, e por isso mesmo instável como uma ventoinha, característico dos períodos de "alta cultura" (Hegel 1968, § 140, p.165). Entendamos: uma tal idade de ouro da cultura é a do Iluminismo "in progress", cuja verdade, aos olhos de um humanista alemão, radica na dissolução de sólido mundo da fé e conseqüente aniquilação das representações tradicionais, que o cimentam, na vacuidade (Eitelkeit) das quais a consciência passa então a reconhecer a sua essência. É ainda Hegel quem o diz e por nossa conta podemos percorrer a vol d'oiseau os laços de família que no espírito dele unem o "cinismo ilustrado" do Sobrinho de Rameau à "bufoneria transcendental" dos irmãos Schlegel — conhecemos também a substância volátil desse parentesco: a "dialética negativa" que atravessa como um fio vermelho a "grande e lamentável" família dos intelectuais modernos. Um mundo desencantado portanto, aquele sobre o qual plana o "estado de consciência irônico" de uma intelligentsia que flutua entre as classes e brinca com as idéias. Assim, a modernidade ia chegando à Alemanha, primeiro na forma da "alta cultura" desencantada, onde brilha o arbítrio da "personalidade cultivada" e depois, no bojo do "capitalismo tardiamente avançado" (a fórmula sugestiva é de Modesto Carone). Hegel sabia muito bem que nada da Doutrina da Ciência autorizava a elevar sem mais o livre arbítrio sujeito à condição de critério da verdade, mesmo assim não hesitou em filiar a ironia professada pela vanguarda romântica à filosofia de Fichte; não é difícil compreender, entretanto, o quanto a idéia de um Eu absoluto, demiúrgico, devia seduzir uma "personalidade"às voltas com o "jogo totalmente arbitrário de suas idéias". Ainda retornaremos às razões desse amálgama. Reconheçamos por agora, recapitulando, que o arbítrio aparente que comanda a ciranda das convicções — a curva caprichosa das formas que aparecem e desaparecem, segundo Hegel, ao sabor do volúvel "ponto de vista superior da subjetividade", que só se manifesta, como vimos, nas épocas de "alta cultura" — tem o seu método, patente, já o dissemos, na regularidade com que na Alemanha, alternavam-se fervor especulativo e desencanto, com tal velocidade, aliás, ditada, como se viu, pela diferença de fuso histórico, que seus efeitos se superpunham nos espíritos mais vibráteis. Enfim, um permanente dar de ombros cuja "sublime insolência", ao enaltecer a "versatilidade infinita do intelecto culto", como diria Novalis, sublinhava de fato o pouco caso que a inércia nacional fazia das idéias — e conseqüente fiasco destas últimas. Noutros termos, ainda de Novalis: a "personalidade culta" podia muito bem "retirar-se de tudo, virar e inverter tudo", por certo "conforme quisesse", mas sobretudo conforme mandassem e permitissem injunções do "atraso" que aquele gesto de vanguarda, almejando exorcizá-las, estilizava.

Fechemos então o arco dessas conjecturas reparando que toda essa constelação de efeitos singulares alcançou sua visibilidade máxima na efêmera vida de salão na Berlim da virada do século: onde afinal brilharia com maior intensidade a "lepidez ideológica" das elites cultivadas locais senão nas suas reuniões mundanas. Disponibilidade ideológica e desenvoltura mundana andavam juntas; perseguindo a segunda, a "personalidade", que se cultivava nos salões, desaguava na primeira. Mais uma prova, acrescentaria H. Arendt, da frivolidade que os românticos legaram à tradição da intelligentsia alemã. Intolerância de "intelectual" replicaria o Thomas Mann das Considerações de um apolítico, carregando no termo infamante para um ouvido alemão educado: é preciso distinguir, reconhecendo-lhe os direitos, o "artista"do ativista das "luzes", um tipo inquietante que atende pelo nome de "intelectual" e floresceu na outra margem do Reno, o "paraíso dos intelectuais". Chamando-o "artista", entretanto, Thomas Mann retrata de fato, na forma de suprema licença poética, a "versatilidade infinita" alardeada pelo intelectual alemão (agora sem aspas) por razões que não eram propriamente estéticas como estamos vendo, embora possam redundar na estetização de sua condição de homem supérfluo. É notória a aversão de Thomas Mann por tudo o que, na vida de artista, ferindo o decoro hanseático da Bildungsbürgertum, denote apego complacente ao "virtuosismo do boêmio desenraizado" e demais formas de descarrilamento da vida do espírito: decididamente, dentre os feitos culturais que mais prezava nas "classes educadas" não se poderia incluir as excentricidades da vanguarda. Por isso mesmo é ainda mais reveladora — no caso, da persistência daquela condição intelectual mais tarde formalizada, e generalizada não sem problemas, por Mannheim — sua declarada simpatia — afinal é de "ironia" que se trata — pelo diletantismo de connaisseur daqueles homens sem convicções denominados "artistas". Basta repassar o plaidoyer manneano para reencontrarmos os traços mais salientes do caráter camaleônico de uma "personalidade culta". Principia dotando-a da bizarra faculdade de perceber simultaneamente várias imagens conflitantes do mesmo objeto, uma espécie de visão em alto-relevo análoga à da freischwebende Intelligenz, também ela capaz, por definição, de experimentar concomitantemente duas representações antitéticas da mesma coisa (Mannheim 1974, p.81). Assim sendo, a instabilidade proverbial do "artista" é própria de uma camada intersticial cuja relativa falta de amarras parece lhe assegurar o direito de "brincar com os pensamentos, de arriscar experimentos com os mais diversos pontos de vista, sem se comprometer com nenhum deles" (palavras de Strindberg adotadas por Thomas Mann, cf. Mann 1975, p.197). Àquela sorte de visão estereoscópica soma-se portanto o dom da empatia ideológica, uma singular propensão a colocar-se no lugar dos outros, mais um traço fisionômico do intelectual moderno observado por Mannheim — como vimos, de olhos postos no histrionismo do romântico alemão. Pois é desse cabotinismo peculiar que Thomas Mann advoga a causa, não faltando de resto no seu retrato do "artista" o pano de fundo da "dialética", em parte cláusula retórica, em parte, podemos supor, denominação induzida pela própria constelação histórica da sua matéria:

(...) é preciso absolutamente compreender que aquele que não está habituado a falar diretamente e sob sua própria responsabilidade, mas a deixar falar as pessoas, as coisas, alguém habituado a fazer arte, jamais leva inteiramente a sério o domínio espiritual, intelectual, pois a sua ocupação sempre consistiu em tratá-lo como um material, um brinquedo, em representar, em defender pontos de vista diversos, em se entregar a uma dialética, dando sempre razão àquele que tem a palavra. Suponhamos que um espírito assim estruturado e habituado seja levado a exprimir-se diretamente, fora da ficção, a escrever, no sentido mais estreito do termo: por um lado, ele achará intransponíveis as inibições que o penalizarão, pois, em primeiro lugar, ele não saberá mais, neste caso, como escrever, visto que não terá mais nada nem ninguém a quem fazer falar, encontrando-se assim privado de todo ponto de apoio artístico. Mas, por outro lado, justamente essas relações estranhamente frouxas com o domínio intelectual parecem fazer dele um ser sem escrúpulos, frívolo, dialético, um advogado. Não tendo o hábito de assumir a responsabilidade de suas idéias, terá dificuldades em se sentir seriamente responsável; deixar-se-á falar a si mesmo como fazia as coisas e as pessoas falarem, e, no seu foro íntimo, identificar-se-á tão pouco com esse papel quanto com os precedentes" (idem, p.197-8; sobre a concepção manneana do artista como ator, ver Rosenfeld 1969).

Um ser paralisado pela timidez especulativa — em parte por razões de ofício — e no entanto à vontade na vida de salão onde a mascarada é regra e as idéias são postiças. Uma concepção teatral da vida do espírito — somente sobre as tábuas de um palco brilha o homem culto — resumida por Hegel na fórmula pejorativa com que designava as manhas cabotinas dos novos intelectuais, "virtuosismo de uma existência irônico-artística": com efeito, quem vive de acordo com esse princípio, e cogita transformar a própria vida em obra de arte, deve vir a entender, graças às mil artimanhas da ironia, que seus atos e palavras são apenas "aparência" e que dela dispõe confiscando-lhe a seriedade em nome de sua individualidade soberana (Hegel 1971, p.54). Novamente: vida de artista — onde impera uma tradição de ofício que impõe distância e inibe a identificação, que pode ser intensa posto que superficial e efêmera — porém ditada e facilitada pela malformação da vida nacional, cujas injunções impunham justamente a "vocação" que mandava cultivar a própria personalidade aos enjeitados da boa sociedade; o símile encarnado pela relação do ator despersonalizado, ameaçado em sua identidade, com seus papéis, tem portanto nítida cor local, assim como as relações particularmente volúveis de uma "personalidade cultural" com as idéias que mobiliam o seu espírito põem método e estilo nos vínculos frouxos e inorgânicos da inteligência nacional com as classes ditas fundamentais; não admira então o apreço, dúbio é verdade, em que se tinha a desenvoltura mundana e tudo o que estetizasse os estratagemas da ascensão social: numa soirée bem sucedida, a fluidez da atmosfera de salão que consagrava a "versatilidade infinita" das "classes educadas" ali reunidas, de fato condensava com graça a sina da disponibilidade ideológica que a miséria nacional a todos condenava. Tal é o terreno natal do "virtuosismo" invocado por Schleiermacher — por exemplo, nos Discursos sobre a Religião, aliás não sem escândalo — e verberado por Hegel; caso lembrássemos que esse privilégio dos espíritos aristocráticos — virtuoses do gosto — fora alegado por Shaftesbury e incorporado por Herder à sua concepção de Bildung (Weil 1930, p.10), estaríamos, pelo exposto até aqui, acrescentando apenas mais um sinal de nascença à fisionomia histórica característica da constelação em que gravitava uma "personalidade cultivada". — Sabe-se que Humboldt foi assíduo no salão de Rachel Varnhagem. Isto não o impediu de ver com maus olhos a "singular mobilidade reflexivo-sentimental" dos seus habitués, acrobacia cerebrina para a qual contribuíra em larga medida sua propaganda "liberal" em favor do desenvolvimento pluridimensional das faculdades do indivíduo. Sua sensibilidade de homem público — à moda alem㠗 aconselhava-o, entretanto, a desconfiar daquele räsonieren desenfreado, maldisfarçado sucedâneo de uma vida prática tolhida (cf. Masini 1974, p.12-3)24 24 A referência citada pelo autor é um escrito de Humboldt sobre o século dezoito, justamente o século do räsonieren. Se quisermos, mais um indício do parentesco, ressalvadas as diferenças de fuso histórico, entre a ironia dos intelectuais românticos e o "cinismo ilustrado" da inteligência francesa setecentista. . Já deparamos igual ambivalência em Goethe — que aliás é da trajetória do conceito —, a um tempo imperdonável à doença romântica do espírito e sumo pontífice da "personalidade", "höchstes Gluck der Erdenkinder". Dá-se o mesmo com hegelianismo, salvo engano, estilização e decantação da experiência intelectual que procuramos reconstituir: de um lado, rejeição do arbitrário jogo romântico com as idéias, coisa de "intelectual", de outro lado, transfiguração da "personalidade culta" — entendamos, do ambíguo imperativo: cultivar a própria personalidade —, elevada à dignidade de operação histórico-mundial. Convenhamos, a intelligentsia romântica não ambicionava tanto; imaginar, por exemplo, que a veleidade mundana de cultivar-se reciprocamente repercutia o andamento impessoal do Espírito do Mundo. Disparate especulativo? Coisa de intelectual também, como veremos. A própria dialética — caso tenham cabimento as conjeturas alinhadas até aqui — traz estampada em sua índole bifronte aquela duplicidade observada há pouco em dois mandarins: uma face "negativa" onde se refere o movimento de báscula de uma inteligência acampada no ar; uma face "superior", especulativa, voltada para o conteúdo "ético" da vida pública, entendo-a sempre à maneira do país. Cabia então organizar o espírito de contradição dos intelectuais alemães refratários.

Notas

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  • 1
    No campo específico da dominação política, figura, no elenco das idéias conservadoras, uma dessas qualidade misteriosas, aquele elemento de imprecisão característico do tirocínio político, impermeável portanto ao espírito de geometria da burguesia, e que "só pode ser adquirido", lembrava Mannheim comentando uma observação de Burke, "através de uma longa experiência, e que em geral somente se revelava aos que por muitas gerações vinham participando da liderança política" (Mannheim 1968, p.146). Em suma, um não sei o quê a legitimar o mando aristocrático; desta esfera impalpável emana a "personalidade inata" e o seu cortejo de atributos inefáveis, cultivados ao longo de várias gerações bem-estar, privilégio e bom gosto.
  • 2
    A simpatia de Carlyle chega ao extremo de não se escandalizar, podemos presumir, ao contrário do que previra Schlegel no aforismo célebre em que equipara em importância histórico-mundial a
    Wissenschaftslehre de Fitche e o
    Meister de Goethe à Revolução Francesa, com tal enumeração, cifra da grandeza e da miséria dos movimentos culturais alemães, dizia o jovem Lukács; enfim, Carlyle não era daqueles que só reputam decisivas as revoluções materiais e rumorosas: "uma revolução francesa é um fenômeno; à maneira de complemento e expoente seu podemos ler numa passagem transcrita por Engels, "também um poeta como Goethe e uma literatura como a alemã são para mim um fenômeno. Na destruição do velho mundo profano ou prático pelo fogo, não podemos ver um presságio e a aurora de um novo mundo espiritual, origem, por sua vez, de novos mundos práticos, muito mais nobres e amplos?" (Engels 1973, p.210). Compreende-se o entusiasmo com que Engels apresentou o ensaio de Carlyle ao leitor alemão dos anos quarenta: além do anticapitalismo bebido na fonte da experiência de vanguarda das novas relações sociais, a compreensão alemã da Revolução como fato filosófico, o comjunto exposto no timbre carregado de presságios do
    Vörmarz (cf. Schlegel 1964, p.76; Lukács 1974, p.78). O comentário do primeiro Lukács prossegue nos seguintes termos: "a constatação de Schlegel, se avaliarmos corretamente a época e a circunstância, é espantosamente justa e correta. É espantoso que ele atribua tamanha importância à Revolução pois, para a vida espiritual da Alemanha, Fitche e Goethe constituíam as tendências reais e importantes da verdadeira vida; ao passo que a Revolução só podia ter uma significação muito pouco concreta" (idem). Não menos espantoso o fato de Carlyle ter dado importância à revolução silenciosa do classicismo alemão, à primeira vista algo muito longínquo na Inglaterra do cartismo, como já começava a sê-lo na Alemanha pré-48. Inútil lembrar que a experiência inglesa de Engels foi de longe muito mais decisiva do que a alemã de Carlyle, embora esta tenha sida uma das chaves do sucesso no aprendizado da primeira.
  • 3
    Sobre o conservadorismo de Coleridge, cf. Harris 1969, cap.10. Esse conservadorismo por assim dizer "moderno" — trata-se afinal de fornecer ao industrialismo um "
    supplément d'âme" — concerne antes de tudo, pelo menos visto do ângulo da
    intelligentsia que o promove, e que é o nosso, um projeto de restruturação da Teoria em sua acepção arcaica que no limite se confunde com a própria religião alemã da Cultura, como a seu tempo veremos.
  • 4
    Evidentemente, voltaremos mais de uma vez a essa observação capital de Gramsci, que chegou, não por acaso, impelido pela lógica própria de sua meditação de vida inteira sobre a "via italiana".
  • 5
    O destino que a noção de cultura conhece nas mãos de Stuart Mill é a esse respeito, exemplar. A veleidade de reforma social da "escola germano-coleridgeana" — que aliás se nutria de sua inspiração conservadora e revivalista — cai por terra, dando lugar à "cultura dos sentimentos", ao mesmo tempo em que o inteiro domínio da cultura confunde-se com sua dimensão estética: uma "esfera isolada, ideal", comenta Raymond Williams, onde a arte figura "não só como promessa, mas como refúgio", evidentemente para os que estão convencidos da impropriedade do desejo de reforma social e que, em conseqüência, apreciam a arte "como uma cláusula salvadora num tratado infeliz" (Williams 1971, p.86-7).
  • 6
    Excusado lembrar, a propósito dessa filiação patente, que o
    pendant antitético da "cultura afirmativa" também se encontra na famigerada "civilização": "desde Herder, um dos traços constitutivos do conceito de cultura afirmativa reside nos valores da alma. Tais valores fazem parte da definição da cultura, por oposição à mera civilização" (Marcuse 1970, p.118).
  • 7
    Ainda voltaremos à questão mais ampla retratada por esse caso particular de emigração intelectual e que nos concerne em mais de um aspecto, como demonstra uma breve alusão de Roberto Schwarz (Schwarz 1977, p.29).
  • 8
    Retirava-se assim ao burguês voltaireano o direito de escrever. Somente a nobreza possui o privilégio de escrever; ou então — e aqui voltamos a deparar o raciocínio característico dos primeiros mandarins alemães — algum burguês providencialmente eleito,
    gentilhomme par le coeur, que tenha renegado sua classe (cf. Sartre 1972, t.III, p.110). Uma tal exceção era mais do que necessária: ela permitia que a cooptação alargasse as fileiras de uma nova classe, a boa aristocracia. "La conjoncture historique", escreve Sartre, "veut que, dans le même temps, la classe insolente qui formulait l'interdit par la plume de ses écrivains de classe soit à terre: ses interprètes, cependant, romanciers et poètes poursuivent leur trajectoire, astres solitaires et glorieux; ils semblent alors ne plus représenter qu'eux-mêmes ou, mieux encore, que l'art; ainsi leur prestigieuse carrière semble par elle-même une invite à les rejoindre au sein d'une aristocratie nouvelle dont l'origine n'est plus la naissance mais une certaine conception de l'activité littéraire. Puisque leurs oeuvres — tout en s'adaptant — aux conditions nouvelles — ne cessent pas de fonder l'essence de la littérature sur des impératifs aristocratiques (générosité, loyauté féodale, l'écrit conçu comme un don, comme une prière, solitude du mépris, stoïcisme, etc.), il suffit pour les égaler d'adopter leurs principes et, refusant systématiquement l'idéologie bourgeoise, de
    se faire aristocrate en écrivant pour une aristocratie défunte" (idem, p.113-4). Assim sendo, aplainava-se o terreno no qual deitariam raízes as várias corporações espirituais ideadas pelas diversas doutrinas da Idade Romântica, todas elas tributárias do clima ideológico do período, que elevava a literatura à condição de poder espiritual dos tempos modernos (cf. Bénichou 1977).
  • 9
    Eis como Sartre o concebe: "En 1840, le futur écrivain que sa vérité désespère, ne peut se penser qu'en termes fantasmatiques. Et le fantasme — bien qu'il n'existe, en fait, que suscite en eux, en particulier dans le mouvement d'intériorisation qu'on nomme lecture — n'a pas son origine dans des caprices subjectifs ni dans l'orgueuil de certains individus: c'est une détermination objective qui naît, comme une norme inerte, de l'opposition profonde et de la collusion superficielle d'un impératif (arrache-toi à toutes les classes, survole la société) et d'un interdit (défense aux roturiers d'écrire)" (Sartre 1972, t.III, p.113).
  • 10
    Isso é patente, para citar o exemplo mais contundente referido por Hannah Arendt, no caso da pré-história ideológica do anti-semitismo na Alemanha: "durante o período de anti-semitismo social que introduziu e preparou a descoberta do ódio aos judeus como arma política, foi o conceito da falta de 'personalidade inata' — ou da falta de tacto, da inata falta de produtividade, da inata vocação para o comércio, etc. — que distinguiu a conduta do comerciante judeu da dos seus colegas em geral" (Arendt 1976, p.73). Algo análogo ocorrerá mais tarde na França, conforme lembra Sartre. O desprezo nobre introjetado pela
    "pauvre ruse" herdada do romantismo
    gentilhomme também está na origem do anti-semitismo de um Charles Mauras, que excluirá os judeus da cultura francesa, incapazes por exemplo, de apreender a qualidade incomparável de um verso racineano por se encontrarem desprovidos justamente daquela faculdade de cuja carência padeciam igualmente os burgueses. "Plus adroite et plus hardie, (l'entreprise romantique) ne se contente point de montrer aux bourgeois des oeuvres anciennes qu'ils ne pourraient entendre; elle produit des oeuvres qui lui sont par principe inaccessibles: ce n'est pas la race qui est invoquée ici mais le sang" (Sartre 1972, t. III, p.111).
  • 11
    Uma imagem paródica dessa degradação ideológica da idéia de "personalidade cultivada" encontra-se numa fantasia de E.T.A.Hoffmann, uma peça das
    Kreisleriana intitulada
    Notícias de um jovem cultivado. Depois de saudar a difusão moderna da cultura superior, o narrador, antes de transcrever a carta do seu herói, a que se resume o conto, revela a identidade do autor da mesma, um elegante rapaz festejado nos mais concorridos salões da cidade, sumidade nas coisas do espírito além de compositor inspirado e exímio virtuose do piano e do canto, sem falar nas suas prendas mundanas de homem cortês e galante: trata-se de um macaco que alguns anos de sábio cativeiro transformaram num perfeito europeu, civilizadíssimo aliás — uma espécie de Fradique Mendes
    avant la lettre. Não se poderia imaginar ascensão mais fulminante e radical, nem ilustrar com mais eloqüência o poder de transfiguração característico da
    Kultur. Na verdade um cabotino consumado cuja primeira providência consiste em renegar os de sua espécie, os mal sucedidos macacos apenas macacos, embora alguns tropeços de sua formação revelem a um olhar atento vestígios de sua primitiva condição simiesca. As confissões de Milo, tal é o nome desse fino humanista cujo mimetismo atávico facultou-lhe atinar de imediato com a estrada real de uma assimilação
    sui generis, estão semeados de alusões edificantes às virtudes da alta cultura: vida interior intensa, moralidade apurada, bela humanidade harmoniosa, etc. De fato, constituem um repertório entre cínico e bisonho dos mais variados e filistinos expedientes já consagrados pela tradição recente do abre-te-sésamo do reconhecimento social ao alcance de um alemão sem fortuna à procura de um lugar ao sol acanhado de uma nação que destoava no concerto europeu ocidental — a rigor uma teoria do medalhão cultural. Sabe-se que esta burlesca metamorfose hoffmanneana é uma das fontes do
    Relatório a uma academia de Kafka, onde um artista relata seus anos de aprendizado desde os tempos de macaco nas costas da África. O humor frio de Kafka congela a burla de Hoffmann e através da caricatura da vida de artista — literalmente um mico de circo — vai ruminando, como tantos outros de sua antiga estirpe, a triste condição de homens supérfluos dos intelectuais alemães, tradição com a qual reata ao tomar ao pé da letra sua própria definição do escritor como alguém que "vive fora da humanidade" (cf. Baioni 1970, p.174-5).
  • 12
    A rigor essa providencial invenção da
    intelligentsia moderna, seu irmão inimigo, o espírito filisteu, parece encontrar-se
    partout et nulle part. A propósito dos "temporais revolucionários purificadores" invocados por Lukács, veja-se a opinião instável de Marx e Engels: o primeiro, em 15 de dezembro de 1848, escrevia na
    Nova Gazeta Renana: "todo o terrorismo francês não foi mais do que um modo plebeu de fazer frente aos inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o
    Spiessbürgertum"; já em 4 de setembro de 1870, Engels dizia em carta a Marx que se devia imputar o Terror de 93 não só aos "burgueses superexitados", mas também aos "pequenos-burgueses filistinos que se borravam de medo", além da escória do povo que traficava com o Terror (cf. Marx & Engels 1969, t. II, p.229).
  • 13
    Parente do "burguês superexcitado", embriagado durante o Terror com a
    mise em scène do patriotismo, de que falava Engels? Voltaremos à questão. Seja como for, é fato que os intelectuais alemães, acompanhando à distância os sobressaltos da Revolução Francesa, podiam partilhar, ora com entusiasmo, ora com horror, tão somente daquela exaltação desequilibrada, cujos pressupostos sociais desconheciam, circunstância que contribuía ainda mais para a índole abstrata e cerebrina de tal "excitação".
  • 14
    Em outro estudo, examinamos de perto por razões próprias do nosso assunto alguns aspectos do caso Nietzsche, que não é, de modo algum, um caso à parte na evolução de conjunto da Ideologia Alemã, como deu a entender a recente voga nietzscheana da Ideologia Francesa. Há momentos em que não é muito fácil distinguir a "cultura filistina"da "autêntica cultura alemã" — basta reparar, para começar, no caráter cediço dessa alegação de "autenticidade". Lukács e Hannah Arendt acabam de sugerir essa promiscuidade comprometedora — segundo Marcuse e Adorno, um desfecho inerente à dimensão "afirmativa" da cultura no mundo burguês — no caso dos intelectuais românticos em luta com a incultura do meio. Lukács preferiu ver no "filisteu superexcitado" uma bifurcação apequenada, e nada fortuita, na tradição dos clássicos; muito mais drástica em seu juízo, Hannah Arendt reconduz tal filistinismo da
    Bildung ao âmago da
    intelligentsia alemã, porfiando por um lugar ao sol desde os tempos difíceis da Ilustração. Em boa parte, a tradição desse libelo mais radical remonta à esquerda hegeliana, que costumava pôr na berlinda o lado filistino de monumentos nacionais como Goethe e Hegel — uma certa propensão a reconciliar o irreconciliável: este último confunde-se com a própria malformação nacional, e aquela tendência, com a índole mesma da
    Kultur, talhada sob medida para sublimar a estreiteza do horizonte local. Sabe-se que Schopenhauer também não poupará o lado mais desfrutável da "filosofia universitária" encarnada enfaticamente pela ortodoxia hegeliana, "apoteose do filistinismo"; porém a conjuntura variara, e no seu zelo de patrício cultivado transparecia a sensibilidade conservadora que não podia tolerar os últimos laivos iluministas de apreço pela vida pública que ainda sobreviviam no finado hegelianismo. Por esse caminho envereda o Nietzsche das
    Extemporâneas, para quem o "filisteu da cultura" é antes de tudo o intelectual progressista. São etapas na trajetória do "espírito filistino" na Alemanha, contraponto indissociável do ciclo completo de sua
    intelligentsia (de Novalis a Heidegger, todos inventaram à sua imagem e dissemelhança um
    Bildungsphilister). Dentre elas caberia mencionar o inteiro período em que deu o tom — quase marca registrada nacional — o filistinismo do senhor "Biedermeyer", cujo estilo Carpeaux assim resumiu: "a vida calma e idílica da pequena burguesia nas pequenas residências e cidadezinhas da Alemanha na época da Restauração, entre a queda de Napoleão e as revoluções de 1830 e 1848. Vida sem estradas de ferro, com muita arte, música, estudos gregos e vigilante polícia política, um pitoresco idílio dos bons tempos" (Carpeaux 1980, t.V, p.1220). A imagem mesma do "atraso" com seu cortejo de pequenas "vantagens" filistinas: um certo "sentimento de resignação cansada" onde a força do senso artístico faz esquecer o peso da opressão política (cf. idem, p.1222). Filistinismo, portanto, de uma pequena-burguesia ordeira e respeitosa das autoridades constituídas, porém cultivada, metida com seus móveis, fraques azuis e crinolinas brancas, mas que ainda dominava a arte de tornar o helenismo em voga, não só uma mania pedante, mas uma "força reguladora da conduta" (cf. idem). Mais uma vez: essa vida do espírito, conformada porém intensa, encalhada no marasmo nacional, sentia-se plenamente confirmada por uma cultura, para cuja formação seu estilo social aquiescente contribuía aliás em larga escala, concebida como esfera autônoma encobrindo com o sacrossanto véu da "bela aparência" a miséria de todos os dias, que no país parecia vigorar com inércia redobrada. — Sem dúvida, Hannah Arendt acrescentaria ainda que nenhuma história da ronda comprimida pelo espectro do filistinismo, que assombrou o intelectual alemão dos primórdios da era burguesa ao apocalipse hitleriano, poderia negligenciar o cordão umbilical que desde o início o unia aos primeiros sobressaltos modernos do anti-semitismo. Depois de assinalar as razões, oriundas do filistinismo das classes médias alemãs, que tornaram, no país, a questão judaica uma questão de educação, Hannah Arendt menciona, a propósito, o caso de um autor obscuro que em 1802 publicou uma "sátira mordaz sobre a sociedade judia e a sua sede de instrução como caminho escolhido para ser acolhida pela sociedade. Os judeus eram retratados somo o reflexo da sociedade filistéia e arrivista" (Arendt 1975, p.95). Palavra de "filisteu superexcitado", diria Lukács. Com efeito, o mote foi glosado pelo poeta romântica Clemens von Brentano num panfleto encharcado de
    Witz e "ironia", onde o mesmo gesto depreciativo assimilava o judeu ao filisteu enquanto contrapunha a este último o antídoto da "personalidade inata" (cf. idem 1976, p.73). Essa pequena peça romântica foi redigida durante o surto nacionalista que precedeu as Guerras anti-napoleônicas ditas de libertação, de sorte que a pecha de filistinismo abarcava também os franceses (mais tarde será a vez dos prosaicos ingleses, inimigos natos da
    Kultur) e, por extensão, os letrados de talhe voltaireano e os demais advogados locais das
    lumières — àquela altura, o esforço patriótico dava novo alento ao anti-intelectualismo conservador, cujo alvo preferido, como sabemos, era o
    esprit da "civilização" francesa, construção derivada, como também sabemos, de um conflito de classes
    intra muros (cf. idem 1957, p.100). Ora, foi antes a discriminação social que aquele conflito suscitava e reproduzia, e não o anti-semitismo político, que descobriu o fantasma do judeu (cf. idem 1975, p.94). Convenhamos, então, arremataria Hannah Arendt, declaradamente hostil aos achados espirituais das classes cultivadas alemãs, o lado preconceituoso da idéia de "personalidade" vinha mesmo a calhar.
  • 15
    E mesmo dos menos "excitados". Veja-se por exemplo, o tacto extremo com que Thomas Mann, temendo a impiedade, alude à veia diplomática de Schiller, ao elemento de cálculo que entrava na composição química do seu caráter entusiasta (cf. Mann 1956, p.8-10).
  • 16
    Nos amigos de Novalis, observa ainda Lukács, confundiam-se o senso poético do ritmo e o tacto da sociabilidade (cf. Lukács 1974, p.86).
  • 17
    Adorno reconhece nas estrofes do livro "Suleika", do
    Divã Oriental, um momento decisivo desse declínio, embora o poeta, por intermédio da resposta do amante Hatem, declare que sua felicidade suprema encontra-se na própria Suleika e não na sua personalidade (cf. Adorno 1973a, p.49-50). Goethe, observa Adorno, partilha o ideal de sua época, para cuja formação, aliás, contribuiu em larga medida, mas tão logo o enuncia, revoga-o em nome da natureza reprimida. — O comentário de Paulo Quintela vai na mesma direção (cf. Goethe 1958, p.369-70).
  • 18
    Para o uso corrente da fórmula "personalidade cultivada" como algo cuja evidência se impõe por si mesma, enquanto parte constitutiva da religião alemã da cultura, ver p.ex., Norbert Elias,
    La Civilisation des Moeurs (Elias 1973, p.36, p.48, p.69). Hans Weil, está visto, também recorre à expressão consagrada, porém num contexto mais próximo do nosso: lembra, com efeito, a contribuição decisiva dos salões berlinenses, que formavam uma espécie de "
    Zentrale des Geistes", para a difusão do que chamou de
    Bildungsethik, invocada por uma "elite do espírito" pouco à vontade numa sociedade estamental e sonhando com uma paridade ideal, indiferente às desigualdades de classe e fortuna; para tanto, contribuíram também as viagens de educação, as
    Erziehungsreisen, ao longo das quais o jovem principiante, "
    die Sich-bilden-wollenden", nobre ou plebeu afortunado, apresentado por uma fieira de cartas de recomendação, era levado de um
    Gebildete a outro, compondo assim uma galeria de "personalidades cultivadas" (cf. Weil 1930, p.224-5, p.262-4).
  • 19
    A observação já citada é de Mannheim (Mannheim 1974, p.112). Para ilustrá-la, recorramos novamente ao estudo de Gilda Rocha Mello e Souza: no século XIX, uma reunião mundana da elite assume o caráter de um "cerimonial de iniciação, onde entram em jogo mais as qualidades pessoais de cada um que os atributos de sua classe. O vagaroso polimento das arestas efetua-se dia-a-dia nas reuniões sociais entre a derrota de hoje e o sucesso de amanhã, quando o amargo aprendizado feito de tacteios, de desânimos, de novas investidas desesperadas, acompanha a cadeia longa de provas que lhe vão sendo antepostas e cuja vitória final há de conferir ao neófito a cidadania na classe mais alta" (Mello e Souza 1950, p.82). É preciso lembrar, entretanto, que a descrição acima ajusta-se melhor ao titanismo napoleônico cós jovens ambiciosos retratados por Balzac do que às atribulações de um alemão bem formado porém resignado (embora sempre à cata de compensações simbólicas), encalhado num meio viscoso onde as carreiras dificilmente abriam-se ao talento. Não obstante, tanto na França "moderna" quanto na Alemanha "atrasada", a ascensão social dos filhos da nova ordem européia não podia dispensar as vantagens dessa desenvoltura mundana penosamente assimilada.
  • 20
    Aquela dicotomia repete-se no plano das instituições mundanas. "Não é por acidente que os clubes conservadores do princípio do século XIX na Alemanha ainda retêm elementos da guilda medieval ou da etiqueta das reuniões de corte", lembra Mannheim, referindo-se, entre outras, ao
    Christlichdeutsche Tischgesellschaft (Mannheim 1974, p.113). Com efeito, esta associação conservadora, da qual foram banidos "as mulheres, os franceses, os filistinos e os judeus", opunha-se declaradamente à tradição mundana consagrada pelo salão de Rachel, interrompida pelo desastre de 1806, quando então, no dizer da anfitriã, o seu local de reuniões "afundou como um navio carregado com os mais elevados prazeres da vida" (cf. Arendt 1975, p.93; idem 1957, p.99-100; Droz 1966, p.136). Por volta de 1808 os salões berlinenses "já haviam sido suplantados pelas casas dos nobres burocratas e da classe média superior. O desdém dos intelectuais e aristocratas berlinenses pelos judeus da Europa oriental, na época em que foram anexados à Prússia, transferiu-se contra os judeus educados de Berlim, que conheciam muito bem" (Arendt 1975, p.94). Os salões de Henriette Herz, de Brendel Veit e sobretudo da "intragável Rachel" tornaram-se assim os alvos prediletos da reação aristocrática durante o
    Reformperiod que se seguiu à derrota de Iena; chegou-se mesmo a culpá-los por ela, insinuando-se que o solo pátrio fora minado por aquelas supostas "centrais do espírito", na verdade escolas da "venenosa maledicência" e da "deslealdade" (cf. Weil 1930, p.224).
  • 21
    Já os clubes conservadores alemães, como se viu acima, timbravam justamente em mostrar-se impermeáveis às formas características da sociedade competitiva emergente (cf. Mannheim 1974, p.113).
  • 22
    Repare-se que uma tal dualidade é constitutiva do "idealismo" próprio da cultura afirmativa criticada por Marcuse em 1937. É que o suporte ideal da dimansão afirmativa da cultura vem a ser justamente a "personalidade", conforme resume Marcuse na seguinte fórmula: "harmonia privada em meio à anarquia universal" (Marcuse 1970, p.137). Vê-se logo que tal fórmula exprime a "fuga da miséria rasteira para a miséria arrebatada" característica do "idealismo aquiescente" da cultura clássica alemã (lembremos mais uma vez que a primeira expressão é de Engels e a segunda de Anatol Rosenfeld). Desenvolvida, ela descreve tanto o estilhaçamento cultural dos indivíduos em personalidades encolhidas, voltadas sobre si mesmas, próprio do capitalismo já consolidado, mais precisamente, uma ordem social que "autoriza o indivíduo a existir como pessoa na medida em que não perturba o processo de produção e deixe às forças econômicas o cuidado de integrar socialmente os homens", quanto descreve igualmente a
    déchéance congênita de um conceito que se confunde com a própria
    deutsche Klassik: "o campo concedido às realizações exteriores reduziu-se consideravelmente, enquanto o domínio do desenvolvimento interior ampliou-se largamente. A pessoa não representa mais um ponto de partida para a conquista do mundo" —logo adiante indicaremos o termo de comparação que Marcuse tem em mente ao escrever estas linhas — "mas uma linha de retirada protegida na retaguarda. Ela é, na sua interioridade, enquanto pessoa moral, o único bem que não pode ser arrancado ao indivíduo. Ela não é mais fonte de conquista, mas de renúncia" — eis o que distingue, aos olhos de Marcuse, um Leonardo da Vinci, um Maquiavel, de um Goethe; a frase seguinte pode ser tomada como uma descrição dos 'renunciantes' (
    die Entsagenden) goetheana, conquanto não faça justiça às veleidades de ação e influência manifestadas, por exemplo, tanto pelo Fausto quanto pelos integrantes da utópica 'sociedade da Torre' no
    Meister. — "Só aquele que sabe renunciar, o homem que luta dentro dos limites previamente traçados para a sua formação interior, qualquer que seja a miséria de tal situação, só um indivíduo assim constituído representa a verdadeira personalidade" (idem, p.138-9). Na linha de frente dessa capitulação, está visto, a "bela alma" do alemão cultivado, entrincheirado na sua personalidade. Assim, até mesmo a sua definição kantiana trai a condição do intelectual alemão, e com ela, a índole original da cultura afirmativa: concebendo-a como liberdade e independência em relação ao mecanismo da natureza, recorda Marcuse, Kant simplesmente anunciava que a personalidade, foco superior do novo ideal de cultura, já não era mais senhora do seu destino, a não ser enquanto sujeito moral e espiritual (cf. idem, p.138). Em poucas palavras, de Marcuse, evidentemente: "a cultura afirmativa reproduz e sublima na sua idéia de personalidade o isolamento social e o empobrecimento dos indivíduos" (idem, p.137) — ao contrário do que pensava Wilhelm Meister nos primeiros anos do seu aprendizado. Mais uma vez: o quadro traçado por Marcuse é o da cultura burguesa à época do capitalismo moderno e no entanto a sua fisionomia própria foi que delineada numa situação de "atraso" relativo por uma
    intelligentsia que procurava na carapaça protetora da "personalidade cultivada" um abrigo que a consolasse da pasmaceira de um meio retrógrado. Em 1937 portanto (é preciso datar, pois mais tarde corrigirá sua opinião do "idealismo" — pois afinal é disto que se trata), Marcuse então interessado na dissolução, não da cultura, mas da sua dimensão afirmativa, mostrava já estampado na certidão de nascença daquele ponto de honra das "classes cultas" alemãs o sinete da "decadência ideológica". A idade de ouro da qual nos afasta cada vez mais o crepúsculo burguês da humanidade ocidental é a do
    uomo universale renascentista. Na aurora dos tempos modernos, dizia então Marcuse, "a pessoa era a fonte de todas as forças e de todas as qualidades que habilitavam o indivíduo a tomar nas mãos o seu destino e a transformar o mundo circundante segundo as suas necessidades. Quando se considerava o indivíduo uma personalidade, desejava-se mostrar com isso que, enquanto indivíduo, ele não devia nada a ninguém, isto é, nem aos seus ancestrais, nem à sua classe, nem a Deus" (idem, p.138). Lembrada tal circunstância, não se pode deixar de assinalar um curioso entrecruzamento. A matriz da periodização que baliza o roteiro de Marcuse — a trajetória de um declínio que culmina no anti-clímax do neo-humanismo alemão — remonta, sem dúvida, a Engels, e por aí, à tradição do pensamento socialista que sempre prezara aquele antigo universalismo tão avesso à limitação burguesa posterior. Ao observar, entretanto, que, durante aquele período áureo, o critério da personalidade não era nem de longe exlusivamente moral — e a seguir lastimará que, com o decorrer dos novos tempos, essa dimensão tenha suplantado as demais — mas baseado no poder, na influência e na glória, mediante as quais descortinava-se um campo de ação o mais vasto possível, Marcuse, surpreendentemente, subscreve a descrição apresentada por Burckhardt do "apogeu da cultura individual" no Renascimento italiano, na qual prepondera, com efeito, a celebração da personalidade dita dominadora ou forte (para não empregar o epíteto ainda mais horrível — e já moderno no seu filistinismo congênito — "marcante", que vez por outra escapa ao tradutor de Burckhardt), isto é, do "
    uomo singolare, único", desconsiderando, assim, o fato de que tal caracterização é ela mesma tributária daquele ciclo ideológico da cultura afirmativa cuja hegemonia deplora (cf. idem; cf.tb. Burckhardt 1963, vol. I, p.106, p.217). Sabe-se que na glória póstuma deste livro, obra de um pacato professor suíço, filho de uma velha família patrícia de Basiléia, abundam os mal-entendidos, a começar pelo patrocínio do culto
    fin-de-siècle da Renascença e o seu cortejo de
    condottieri e demais feras do gênio artístico. Explica-se a projeção: "o burguês de dinheiro, ansioso por uma árvore genealógica, acredita reconhecer-se nesses homens geniais que devem tudo a si mesmos" (Carpeaux 1942, p.17). Há quem veja nessa retrospecção um grão de verdade, no desfecho caricato o justo destino de um ideário que já nascera torto. Escusado lembrar que Marcuse não era bem um herdeiro da voga européia mencionada acima, a qual, aliás, deixou atrás de si trastes bem mais equívocos e ameaçadores do que simples móveis estilo Renascença que, nos palácios e velhas casas burguesas da Europa, são apenas "obstáculos à circulação e colecionadores de poeira". Seja como for, o próprio Marcuse convida ao equívoco — a menos que a tradução francesa do seu ensaio nos tenha preparado uma armadilha — quando lamenta o eclipse do "voluntarismo expansionista" do
    uomo universale que a ordem capitalista nascente veio, de resto, oportunamente inibir, conforme não deixaria de lembrar Hirschmann. Esse eclipse é total tão logo principia o ciclo alemão da
    intelligentsia européia, em cujo bojo toma forma definitiva a ideologia do caráter afirmativo da cultura, criticada por Marcuse segundo o figurino da esquerda hegeliana — questão de estilo que a seu tempo retomaremos. Nem foi tão drástico assim o corte assinalado por Marcuse, pelo menos vistas as coisas do ângulo particular da evolução de conjunto da
    intelligentsia moderna: por mais polifacética que fosse a personalidade do humanista italiano — não por acaso tido em altíssima conta por um autor como Burckhardt, cujo apolitismo confesso e alardeado (afinal fora um dos primeiros a modificar a imagem clássica da serenidade grega, alarmado, entre outras coisas, ante o espetáculo, que julgava premonitório, da "personalidade" sufocada pela
    polis) descendia em linha direta da religião weimareana da Cultura —, ela já gravitava numa órbita marcada pela ausência de influxo prático; o seu luxuoso estúdio não estava menos
    campato in ária do que os gabinetes calafetados pela consideração exclusiva da vida do espírito em que os neo-humanistas alemães se enclausuravam. Ainda voltaremos com vagar a esse divórcio moderno entre a "classe dos cultos" e o curso filistino do mundo. Um fato inelutável constatado por Burckhard e por ele alegado em defesa da cultura renascentista, censurada num século de semi-cultura, como o dezenove, por alhear-se do grande número; reconheça-se, a propósito, a ascendência goetheana no passo em que se compadece do destino do Tasso, o mais "artista" dos poetas italianos, padecendo nas mãos da incultura, seja a dos seus protetores, seja a do seu público
    introuvable (cf. Marcuse 1970, p.131; cf.tb. Löwith 1969, p.362).Se assim é, caberia recuar o nascimento da cultura afirmativa até o fim da Idade Média, do qual data, de fato, o grande divórcio referido há pouco e do qual trataremos mais adiante. Voltando: em grandes linhas, a periodização marcuseana do declínio da "personalidade" acompanha a tradição socialista de interpretação do destino truncado da "ideologia burguesa de libertação do indivíduo"; com uma ressalva: quando a Ideologia Alemã,
    latu sensu, entra em cena, adverte Marcuse, aquela promessa de emancipação já caducara. Sabe-se que Lukács mantém a promessa renascentista até a era de Goethe, declarando-se então a sua crise com o "fim do período artístico", ou, mais precisamente, com a derrocada européia de 1848: a partir daí, a "decadência ideológica" arranca das mãos da burguesia o ideal da "personalidade harmoniosa". Diferenças de periodização à parte, ambos conservam as linhas gerais do programa socialista esboçado por Engels: o ideal renascentista do homem harmonioso assentava na convicção de que um verdadeiro desenvolvimento das forças produtivas equivalia a um desenvolvimento das faculdades do indivíduo, de sorte que essa "grande revolução progressista da humanidade" ultrapassava o horizonte burguês em que nascera (cf. Lukács 1966, p.112-3). Diante de tal amálgama, onde a personalidade polifacética do
    uomo universale paleoburguês volta à tona na crista do desenvolvimento desimpedido das forças produtivas, e no qual transparecem os tropeços dos projetos positivos do socialismo, cabe lembrar a nota dissonante de Adorno induzida pela observação corrente de que nem sempre as pessoas sem inibições são as mais agradáveis e as mais livres e desaguando no repúdio do ideal socialista da personalidade: "os fantasmas em torno do homem sem inibição, transbordante de energia, criador, foram pouco a pouco invadidos pelo fetichismo da mercadoria que, na sociedade burguesa, produziu a inibição, a impotência, a esterilidade das coisas que não mudam nunca" (Adorno 1954, p.147). Dão testemunho dessa invasão, não só o episódio decadentista da "Renascença histérica" mencionado há pouco (para ficarmos apenas nos casos em que esbarramos por força de nosso argumento), mas sobretudo o vínculo sombrio entre a vocação mundana da "personalidade cultivada", assentada sobre a concorrência e a discriminação social, e as raízes mais longínquas do anti-semitismo na Alemanha moderna — são etapas de um caminho desencontrado, no qual "o conceito de personalidade paga caro o crime que cometeu: o ter nivelado a idéia de humanidade, em um indivíduo, até o plano do seu simples ser-assim e não de outro modo. Becket exemplificou esse desfecho na figura de Hamm em
    Fin de Partie: a personalidade como
    clown" (Adorno 1973, p.51). (Já o antecipara, em parte, a dúbia despersonalização encarnada por Pétrouchka, analisada por Adorno no ensaio sobre Stravinsky. Não era a primeira vez em que o sujeito ameaçado subia à cena na roupagem do
    clown escarnecido. Projeção de intelectual que presume sua condição o último refúgio da personalidade que faz água por todos os lados. A perícia consumada de Baudelaire em surpreender o artista na posição ingrata de um
    pitre, é um dos momentos decisivos desse processo de saltimbanco do Sobrinho de Rameau, e agora, as acrobacias cerebrais da existência irônico-artística do intelectual romântico). Voltemos então à opinião destoante de Adorno; numa palavra: o dogma do desdobrar-se ininterrupto de todas as possibilidades humanas não teria atravessado incólume a sua hibernação burguesa. Escusado dizer que não é esta a última palavra de Adorno sobre o assunto — muito menos o são as opiniões de Marcuse e Lukács referidas acima. São variações no interior de um pensamento que se formou à sombra do classicismo alemão e cujas razões não cabe por enquanto pesquisar, pelo menos não antes de esquadrinharmos um pouco mais a sua pré-história. A mesma passagem de Novalis também é citada e comentada por Mannheim, cuja interpretação dessa
    técnica romântica de pensar coincide em parte com a de H. Arendt (cf. Mannheim 1963, p.144).
  • 23
    São observações de Horkeimer e Adorno a respeito da ambivalência da Ideologia Alemã nos primórdios da era imperialista (Adorno & Horkheimer 1974, p.252, p.105-10). Depois de assinalar que não há razões plausíveis para que se prefira o ministro ao
    gangster, só porque as vítimas deste último são menos numerosas, prosseguem os dois autores: "para o alemão" — e só o filisteu da cultura alimentou esse preconceito em favor da grandeza — "a beleza emana da envergadura do ato: a despeito do crepúsculo dos ídolos à sua volta, ele não pode renunciar ao hábito idealista que prefeere ver o pequeno gatuno enforcado e gostaria de transformar as expedições dos piratas imperialistas em missões históricas e universais" (idem, p.110).
  • 24
    A referência citada pelo autor é um escrito de Humboldt sobre o século dezoito, justamente o século do
    räsonieren. Se quisermos, mais um indício do parentesco, ressalvadas as diferenças de fuso histórico, entre a ironia dos intelectuais românticos e o "cinismo ilustrado" da inteligência francesa setecentista.
  • *
    A primeira parte deste artigo foi publicada no v.26 (1), 2003.
  • **
    Professor aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2003
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