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Comentário: Ser e temporalidade a partir de Edith Stein

Edith Stein (2006STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006.) oferece uma explicação da relação entre a existência, ou o ser da subjetividade, e o tempo, diferente da conhecida interpretação de Heidegger, como também das teses que ela aprendeu de Husserl. A frequentação dos textos da tradição, de Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo, como certamente também o exercício da sua própria reflexão sobre essas questões, lhe abriram um modo de pensar original. No artigo ora comentado, Nunes (2021NUNES, E. P. L. Consciência e temporalidade em Edith Stein: em diálogo com Heidegger. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 95-116, 2021.) reflete sobre os conceitos de ato e potência, os quais Stein aplica para a explicação do ser da subjetividade, na sua dimensão temporal, como também em outras dimensões que aqui não serão consideradas. A relação do ser finito, enquanto o ser atual incluindo potencialidades, com o ser plenamente atual que não inclui potencialidade, é interpretada no artigo como um “ser para além do tempo” do Eu. A reflexão sobre a relação entre a existência e o tempo mostra, além disso, que o sentido do ser tem raízes para além da própria subjetividade.

No presente comentário, pretendo refletir um pouco mais sobre a afirmação da autora do artigo, de que “o eu esteja, pela sua natureza e no seu papel de unificação das vivências, para além do tempo.” Essa afirmação encontra respaldo no texto de Stein (2006STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006., p. 478): “O fato de que possamos acolher em nosso ser algo intemporal [...], demonstra que nosso ser não é absolutamente temporal, que não se esgota na temporalidade.” O meu objetivo é completar, a partir do pensamento de Edith Stein, essa breve indicação da autora sobre o “para além do tempo”.

A autora traz a explicação da relação entre o tempo e a existência, tal como Edith Stein a expõe, no Ser finito e Ser eterno, servindo-se da terminologia e das intuições de H. Conrad-Martius. Segundo essa explicação, não podemos entender a existência da subjetividade a partir do tempo; ao contrário, compreendemos o tempo a partir do conceito da atualidade. Num ponto, no da atualidade, a existência se encontra com o ser, quer dizer, irrompe do nada, recebe o ser. Esse ponto da atualidade, do encontro com o ser, é o presente, o firme ponto cardeal pelo qual o tempo surge. O ser da subjetividade, o seu existir, é um movimento originário de passagem do nada ao ser, é o devir que contrasta com o nada, por um lado, e com a posse permanente do ser plenamente realizado ou plenamente atual, por outro lado; o tempo seria então o modo como a existência é, ou acontece, o modo como a subjetividade recebe o ser, surgindo ou irrompendo sempre de novo juntamente com os conteúdos vivenciados, sendo posta no ser.

A subjetividade é toda ela constituída por este contato com a plenitude do ser, ela é abertura para o evento do ser que acontece nela.2 2 Na fenomenologia, refletiu-se sobre esse evento, chamado aqui de “contato com o ser”, também a partir do conceito de doação (MARION, 1997). A atualidade, na consciência, tem a forma do ato da consciência. Mas o ser da subjetividade não se esgota no Eu e no seu ser consciente, este é apenas o “vir à cena” do encontro com a atualidade originária. O ser que irrompe sempre de novo na subjetividade, com o qual essa é presenteada, precisa do tempo, diz Stein, por não ser pura atualidade, por ser uma passagem da potencialidade à atualidade.

O momento pontual do encontro com o ser é chamado por Stein de instante. O que ocorre nele significa uma “explosão” da temporalidade (STEIN, 2006STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006., p. 477). Ou seja, o instante não é um mero ponto temporal, mas precisamente o contato do temporal com o que não é temporal, a irrupção do não temporal no tempo, que passa pela abertura da subjetividade, pelo seu acolhimento, e exige ao mesmo tempo dedicação e recolhimento, pois o que é oferecido em cada instante pode não ser oferecido novamente, e a consciência dessa unicidade do encontro dá ao tempo sua profundidade. A intensidade ou profundidade do instante ocorre na medida da apropriação do não-temporal, o qual necessita do tempo como sua conservação, porque é um excesso em relação ao momento pontual, um excesso da atualidade plena do ser em relação à atualidade limitada, finita, imbrincada com o potencial.

A atualidade do presente temporal é fugaz; ela, na verdade, não tem em si fundamento para o seu permanecer, sua conservação no tempo. O fato de que, contudo, há o tempo, sempre de novo um novo presente e uma nova dádiva de ser, experienciada como se conservando temporalmente, aponta para o ser que excede o tempo. O tempo é como a testemunha de que o ser me é dado. O ser da subjetividade é finito, precisamente por isso, por ter necessidade do tempo para chegar a ser o que é, mas também em função de outras determinações, por ser algo colocado no ser, ressalta Stein, por ter uma essência determinada e não ser tudo. Eu só posso acolher o ser de um modo determinado, como este Eu. O que me é dado, o que sou, não o posso acolher inteiramente como atualidade num ponto temporal. Por isso, a atualidade tem para a subjetividade a forma de um vir contínuo, de um escoar para o passado; o que escoa para o passado, como também o que está adiante do meu presente, não volta ao nada. O eu que sou inclui em si também o eu que fui e que serei, embora não plenamente como atualidade.

Mas o ser finito é compreensível - tem sentido - unicamente pela relação com o ser que está na origem dessa irrupção, que é a atualidade pura sem potencialidade, o ser pleno, atemporal, infinito - o ser eterno. Edith Stein, como também Husserl, Levinas e outros fenomenólogos, diferentemente de Heidegger, afirma que o finito não se compreende sem o infinito, e o ser temporal não se compreende sem o ser atemporal, eterno.

Porque a subjetividade fundamentalmente é em relação com o ser pleno eterno, ela tem sentido e implica em si o não temporal, ela é uma abertura para além do tempo. A subjetividade recebe o ser juntamente com os conteúdos, isto é, com ela, abre-se o mundo e se mostra algo da sua própria profundidade, como também ela não pode ser sem relações intersubjetivas que, de diferentes modos, determinam esta abertura. Contudo, o que a faz ser, existir, “ter tempo”, é essa relação com o ser atemporal. A finitude, e com isso a temporalidade, é uma determinação essencial da existência subjetiva, mas não é a única.

Também a consideração do ser autêntico revela, segundo Edith Stein, que a existência temporal da subjetividade não esgota o seu sentido. A plenitude do ser que é oferecida à subjetividade em cada instante, através da sua essência individual e única, cuja realização significa para a subjetividade a felicidade à qual aspira, não pode ser acolhida completamente no tempo; o ser autêntico, mesmo pensado ao modo de Heidegger, como a realização das possibilidades mais próprias que se apresentam em cada situação temporal, exige uma intensidade e recolhimento para as quais o tempo é sempre insuficiente, segundo Edith Stein.

O ser de que se trata na existência da subjetividade humana, segundo a fórmula heideggeriana, é essa plena posse de sua essência que está para além da extensão do tempo, na eternidade. Ela desponta no instante, definido como “[...] o recolhimento da extensão temporal na unidade”, “[...] o modo de ser em que está superada a diferença entre o instante e a duração” (STEIN, 2006STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006., p. 479), que dá um sentido novo à extensão do tempo. Na medida em que a subjetividade se abre e se entrega ao ser eterno, o ser temporal se enche de eternidade. O sentido autêntico da temporalidade é “[...] o modo como o finito obtém a participação no eterno.” (STEIN, 2006STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006., p. 480).

ReferênciaS

  • MARION, Jean-Luc. Étant donné. Essai dune phénoménologie de la donation. Paris: PUF, Épiméthée, 1997.
  • NUNES, E. P. L. Consciência e temporalidade em Edith Stein: em diálogo com Heidegger. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 95-116, 2021.
  • STEIN, Edith. Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Aufstiegs zum Sinn des Seins. Freiburg: Herder, 2006.
  • 2
    Na fenomenologia, refletiu-se sobre esse evento, chamado aqui de “contato com o ser”, também a partir do conceito de doação (MARION, 1997MARION, Jean-Luc. Étant donné. Essai dune phénoménologie de la donation. Paris: PUF, Épiméthée, 1997.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2020
  • Aceito
    23 Out 2020
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