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Crítica: sacrifício tropicalista

ARTIGOS

Crítica. Sacrifício tropicalista

João Camillo Penna

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

FOLHA EXPLICA CAETANO.

de Guilherme Wisnik. São Paulo: Publifolha, 2005.

"[...] nós somos um povo talvez subdesenvolvido do ponto de vista

cultural, mas bastante desenvolvido com relação à música."

Glauber Rocha11] Rocha, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 116. [

Algo vem acontecendo nos estudos sobre a canção popular brasileira nos últimos anos. Antes a grande maioria deles consistia de leituras poético-retóricas e/ou sociológicas, que extraíam suas lições quase que exclusivamente das letras. A elas vem se somando pouco a pouco, no entanto, uma significativa massa de estudos que aliam de forma sistemática a análise do chão das notas musicais à reflexão crítica. Toda a leitura a partir daí passa a ser isomórfica: a articulação das estruturas sociais, históricas, psicológicas se dando no corpo da relação da letra com a música. Os sinais inaugurais desse novo rigor reflexivo surgem sem dúvida em São Paulo, em torno dos estudos pioneiros de José Miguel Wisnik, Lorenzo Mammì, os livros de semiologia musical de Luiz Tatit, e de Walter Garcia22] Apenas algumas referências, que não pretendem ser exaustivas: Wisnik, José Miguel. "O minuto e o milênio ou por favor, professor, uma década de cada vez" (1979), "Algumas questões de música e política no Brasil" (1987), "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (1994), "Cajuína transcendental" (1996), reimpressos em Sem receita (São Paulo: Publifolha, 2004); Mammì, Lorenzo. "João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova". Novos Estudos Cebrap, n° 34, nov. 1992; Tatit, Luiz. Semiótica da canção (letra e música). São Paulo: Escuta, 1994, e O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996, dentre outros; Garcia, Walter. Bim bom. A contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999; Mammì, Lorenzo, Nestrovski, Arthur e Tatit, Luiz. Três canções de Tom Jobim. São Paulo: CosacNaify, 2004. [. Faz parte dessa linhagem o Folha explica Caetano, de Guilherme Wisnik.

O livro recompõe a trajetória de Caetano após a reconstituição genealógica do tropicalismo levada a cabo pelo próprio em Verdade tropical, que recoloca em circulação o tema do que Guilherme chama a perspectiva "negativa", vanguardista, do movimento do final dos anos 1960. A retomada da discussão pelo viés memorialístico solicita de Guilherme por sua vez um tratamento "anacrônico" da carreira de Caetano, que a lê, por assim dizer, in medias res, "revendo" tanto o tropicalismo quanto o período que o sucede (a série de discos de 1970-1980) a partir de um motivo, que poderíamos chamar de "tema-Brasil". Seu aparecimento, desaparecimento e ressurgimento no cancioneiro de Caetano contém o mote de uma leitura continuada do Brasil, que Verdade tropical sistematizara, inscrevendo-o, conforme escreve Guilherme, "na grande tradição de intérpretes da 'formação' brasileira"33] Wisnik, G., op.cit., p. 121. [. Tudo se dá como um jogo de esconde-esconde em que se alternam o tema e a canção: a paródia tropicalista marcara o surgimento programático de uma discussão em larga escala sobre o Brasil, a que se segue, após o buraco negro da prisão e exílio (1968-1970), um período "utópico", em que essa discussão aparentemente se oculta, para ressurgir, em 1989, em Estrangeiro, e assumir novo formato em prosa memorialística com Verdade tropical (1997), mas desaparecendo da canção, já que, no ponto em que Guilherme escrevera o livro (2005), Caetano realizara apenas dois discos autorais em catorze anos44] Entre 1991 e 2005, Caetano lançou apenas dois discos autorais: Livro (1997) e Noites do Norte (2000). [. O método histórico que arma essa perspectiva tem algo de uma leitura hegeliana do tempo: cada nova figura ao mesmo tempo anulando e preservando, "suspendendo" - ao mesmo tempo retirando e elevando - os conteúdos anteriormente apresentados, segundo o procedimento ("dialético") da Aufhebung, cujo motor é precisamente a negação destruidora55] Hegel escreve o seguinte sobre o termo: "Suspender e suspenso [Aufheben und das Aufgehoben] constituem uma das mais importantes noções em filosofia. [...] Suspender tem um sentido duplo na língua: de um lado significa preservar, manter, e igualmente fazer cessar, anular. Mesmo preservar inclui um elemento negativo, nomeadamente, que algo seja removido de sua imediaticidade e portanto de uma existência que está aberta às influência externas, a fim de preservá-la. Portanto o que é suspenso é ao mesmo tempo preservado: apenas perdeu a sua imediaticidade, mas não é por isso anulado. As duas definições de suspender dadas por nós podem ser citadas como dois significados dessa palavra. Mas é certamente impressionante descobrir que uma língua veio a usar a mesma palavra com dois sentidos opostos. É uma delícia para o pensamento especulativo descobrir em uma língua palavras que têm em si um sentido especulativo; o alemão tem um número delas. O duplo sentido da palavra latina tollere [tollo; sustuli; sublatum: ao mesmo tempo, elevar e remover] (que se tornou famosa através do trocadilho ciceroneano: tollendum est Octavium) não vai tão longe; a sua determinação afirmativa significa apenas uma elevação. Algo é suspenso [aufgehoben] apenas quando se uniu com o seu oposto [...]". Hegel, G.W.F. Hegel's science of logic. Trad. A.V. Miller. Atlantic Highlands: Humanities Paperback Library, 1989, pp. 106-107 (tradução minha). [.

Os dois capítulos centrais que constituem o cerne do livro, como dois lados de uma caixa (a caixa do projeto gráfico de Julio Plaza do disco Transa?), cujo vértice consiste precisamente na prisão, e exílio londrino, focalizam respectivamente o tropicalismo e a "sublimação" dos anos 1970-1980, lidos por Guilherme a partir de uma polaridade negativo-afirmativo, a modo de um "objeto sim, objeto não": a negatividade vanguardista do tropicalismo justaposta à afirmação ontológica dos discos de 1970-1980. A periodização proposta contém cifrada uma leitura rítmica do tempo, que tem algo de uma combinação salutar e necessária da matriz hegeliana com a nietzschiana, comunicando os períodos que se sucedem em torno do tema-Brasil, em ciclos que eternamente retornam, sob o modo da repetição da diferença. Elenco aqui atabalhoadamente essas leituras iluminadoras, aberturas e fechos, efemérides em ciclos entrecruzados, interrupções e continuações de períodos em fase e defasagem, com a única finalidade de dar uma medida da quantidade de pontos de luz que Folha explica Caetano amealha. Em geral resumo-lhes a estrutura, ou desdobro o que me parece estar neles implícito, enfatizando o movimento isomórfico e rítmico da repetição da diferença. Assim, a canção "O estrangeiro" (1989) cita o mote de "Alegria, alegria" (1967) ("Sigo mais sozinho caminhando contra o vento"), indiciando ao mesmo tempo a retomada de um fio interrompido, mas acrescentando-lhe uma leitura contemporânea do amputamento das utopias dos anos 1960, que "Alegria, alegria" denotava, inscrita sob a forma de um aumento do sentimento de solidão. O contraste entre as duas canções é significativo: o alheamento leve e a marca de um deslocamento espacial da canção de 1967 são substituídos pelo índice radical de estrangeiramento no tempo ("Eu menos estrangeiro no lugar que no momento"); a independência ideológica do sujeito que canta uma marchinha simples (a "anti/outra 'Banda´" de Chico Buarque66] Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 175. [) sob uma "cama orquestral de cordas sintetizadas"77] Wisnik, G., op. cit., p. 18. [, é substituída por um "pesadelo impressionista" ("Pense Seurat e pense impressionista"), em que o sujeito isolado é aprisionado pela estrutura da canção em moto-contínuo, com a repetição obsessiva de dois acordes simples arpejados, reinscrevendo a repetição temporal inscrita na letra ("em que passara, passa, passará o raro pesadelo"). O período utópico dos anos 1970-1980, os anos "mais felizes de sua produção musical"88] Veloso, op. cit., p. 495. [, marcados pela tematização ontológica da busca do ser como "princípio de unificação das coisas" entrevisto na natureza, e pela colaboração "simbiótica" com A Outra Banda da Terra, consiste numa retomada do projeto utópico da Bossa Nova, sinalizada na música popular brasileira por "Águas de março", de Tom Jobim (1972)99] Wisnik, G., op. cit., p. 84 e ss. Ver, a respeito, o belo estudo de Artur Nestrovski sobre "Águas de março": "O samba mais bonito do mundo". In: Três canções de Tom Jobim, op. cit. [. A resolução satisfatória das contradições brasileiras "sem conflitos", como dirá Walter Garcia, pela via ascética do "santo" João Gilberto1010] Mammì, op. cit., p. 66. [, retorna nos discos de Caetano dos anos 1970-1980, mas como Eros e Narciso, "superação mitopoética dos antagonismos"1111] Wisnik, G., op. cit., p. 85. [, com o recalque e sublimação do tema-Brasil. A "promessa de felicidade" inscrita no mito é formulada ainda no vazio do exílio (em 1971) pela descoberta das virtudes do intérprete, com a execução de "Asa Branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, a "mais perfeita canção do exílio", marcando a exploração de um motivo nordestino em seu cancioneiro, importante em seu ciclo utópico, e o aprimoramento do instrumentista1212] Ibidem, pp. 36-37. [. Essa "volta ao mito", que caracterizara de modo geral o tropicalismo, acaba se cristalizando em figura na canção "Um índio", cantada por Maria Bethânia no show Doces bárbaros (1976), quando o grupo (composto por Caetano, Gil, Bethânia e Gal) revê a sua trajetória após doze anos de seu lançamento em Salvador, propondo um novo mito de matiz sebastianista - essa talvez constituindo a cifra secreta do movimento. "Saudosismo" (1968) resume a leitura tropicalista da Bossa Nova, ao paralisar e truncar a "fluência harmônica" bossanovística, repetindo os seus motivos antológicos ('A felicidade/ A felicidade... Lobo lobo lobo... Chega de saudade/ Chega de saudade"), como "disco riscado"1313] Ibidem, pp. 54-55. [, talvez isomorficamente inscrevendo o fracasso infringido pelo Golpe Militar, ao interromper o processo histórico brasileiro. A dissolução de A Outra Banda da Terra coincide com uma retomada da negatividade tropicalista agora em outra chave, que se cristalizará na parceria com Jacques Morelenbaum e numa espécie de inversão do exílio, com a internacionalização expressa em O estrangeiro, na parceria com Arto Lindsay e Peter Sherer, dos Ambitious Lovers, repetindo a de Tom Jobim e João Gilberto, nos anos 1960. É por essa época, no show Circuladô justamente, que se explicita a citação emocionada mas já exterior da bossa nova, inscrita na montagem das canções do show, sob a forma de homenagem, na interpretação de "Chega de saudade", para ele a obra-mestra da bossa nova que nunca ousara cantar até então por pudor e zelo1414] Ibidem, pp. 24-25; Veloso, op. cit., pp. 226-227. [.

No vértice do díptico, temos a prisão e o exílio, intervalo negro - negatividade em estado puro - que articula os dois lados da equação, ponto pelo qual Guilherme abre o livro, com o show Circuladô, precisamente na parte do depoimento em que Caetano retorna a esse assunto sobre o qual até então publicamente se calara, retomando o trauma pessoal e nacional da repressão do regime militar. Indicam-se aqui as marcas de uma espécie de psicanálise política, pessoal-nacional: a fala reexamina de forma lúcida a ditadura militar, descartando a interpretação de que fora um acidente extrínseco na história do Brasil (por exemplo, uma imposição dos militares), mas refletira, ao contrário, forças profundas do "ser do Brasil"1515] Wisnik, G., op. cit., p. 14. [. O que dá um sentido igualmente profundo e trágico à sua prisão e exílio, ao estabelecer um vínculo ontológico entre a rejeição do tropicalismo e o Brasil. O reexame, no entanto, aparece como maneira de introduzir a canção "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", que Roberto Carlos lhe dedicara, após encontrá-lo em Londres no exílio, e ter ficado impressionado com a sua tristeza (Caetano chorara copiosamente ao ouvir o Rei cantar "Na curva da estrada de Santos"), dedicatória que todos, inclusive os músicos presentes no show, ignoravam. A substância nacional que recalcara o tropicalismo deve ser equiparada a essa outra substância nacional, esta regeneradora e afirmativa, não menos profunda que a repressiva, representada pelo Rei Roberto Carlos - desde sempre visto como "a cara do Brasil"1616] Veloso, op. cit., p. 162. [. A revelação destabuíza um assunto recalcado desde o Golpe Militar, desfazendo o sortilégio depressivo do recalque, e contendo o embrião de uma talking cure, como possibilidade de antídoto (a fala, o choro, a canção). Daqui parte sem dúvida o mote "anacrônico" que estrutura o livro de Guilherme, ao desvelar o método psicanalítico da "posterioridade" (Nachträglichkeit; après-coup), fazendo com que o "depois" ilumine o "antes", na anamnese reconstrutiva da sua trajetória que anuncia o método que se materializará, anos depois, na necessidade narrativa de Verdade tropical.

A auto-reflexão ali sistematizada equivale a uma psicanálise pessoal e nacional, já indiciada pela retomada do tema-Brasil, desrecalcando a memória travada da "proibição" a que fora submetido o tropicalismo assim como toda uma geração, que aflorara justamente após um período consideravelmente longo de vinte anos de regime democrático. Verdade tropical se encerra com Araçá azul (1973), isto é, com o fecho do momento experimental propriamente tropicalista da trajetória de Caetano, que não deixa de ser o seu Matita Perê, contendo em forma estilhaçada o programa da repetição da utopia bossanovística dos anos 1970-1980.

O grande achado interpretativo de Folha explica Caetano, no entanto, ainda não se encontra aí, mas em uma certa leitura do tropicalismo e da obra de Caetano, com base no dispositivo, ao mesmo tempo etnográfico, sociológico e artístico, do sacrifício. Guilherme sugere o motivo aqui e ali, como que nas entrelinhas, por exemplo, ao demonstrar que na "mala de couro" que "fedia e cheirava mal" do "itinerante" que sai do campo para cidade grande, na autobiográfica "No dia em que eu vim-me embora", se inscreve o "sinal do mundo agrário, o canto do bode de uma era que termina"1717] Wisnik, G., op. cit., p. 108. [. Ou quando vê nas duas canções irmãs sobre o boi, "Aboio" e "Cantiga de boi", uma retomada do tema do bumba-meu-boi, tão estudado por Mário de Andrade, nas Danças dramáticas do Brasil, onde se formula, diga-se de passagem, de forma sistemática e inaugural, para crítica brasileira, o tema sacrificial1818] Cf. o estudo introdutório "As danças dramáticas do Brasil". In: Andrade, Mário. Danças dramáticas do Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, t. I. [. A essas referências mais óbvias se somam outras, mais essenciais. Por exemplo, a propósito da discussão sobre o happening da apresentação de "É proibido proibir", no Festival Internacional da Canção da TV Globo, no Tuca de São Paulo, em 1968, Guilherme fala da "ira santa", de "estopim catártico" e de "happening ritualístico"1919] Wisnik, G., op. cit., pp. 64 e 66, para as três expressões. [. O termo happening, utilizado por Caetano em Verdade tropical para descrever o acontecimento, provém das artes plásticas (aparece, por exemplo, nos textos de Hélio Oiticica), mas as ressonâncias sacrificiais e catárticas são acrescentadas por Guilherme. Um pouco adiante, ele falará da "exposição do corpo, da presença carnal, [...] que se expõe à devoração coletiva", relacionada, de um lado, ao projeto estético de Hélio Oiticica e Lygia Clark, isto é, à postulação de uma "arte coletiva total", que incluísse uma participação autoral do público, e associando-a a um comentário em carta do mesmo Hélio a Lygia Clark sobre a "curra" de que fora objeto Caetano na saída de um programa do Chacrinha. E por outro, ao espancamento dos atores do Teatro Oficina na temporada de Roda Viva, um dos motivos da prisão de Caetano e de Gil, conforme descobririam na segunda prisão a que foram transladados, no início de 1969, o quartel da Polícia do Exército de Deodoro, no Rio de Janeiro2020] Ibidem, pp. 66-67. [.

Depreende-se desse dispositivo, tema ou motivo, toda uma leitura do miolo essencial do tropicalismo a partir do sacrifício. Na apresentação de "É proibido proibir" no Tuca, não haveria uma exposição sacrificial do corpo de Caetano à violência da platéia em moldes que se assemelham ao do pharmakós trágico, conforme descrito por Vernant e Vidal-Naquet, no texto clássico sobre Édipo-rei2121] Vernant, Jean-Pierre e Vidal-Naquet, Pierre. "Ambigüidade e reviravolta. Sobre a Estrutura enigmática de Édipo-rei". In: Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad. Anna Lia Almeida Prado. São Paulo: Perspectiva, 2002. [? Não é algo como a estrutura anfibológica do herói/bandido, discutida pelos helenistas em Édipo, que está estampado literalmente no estandarte de Hélio Oiticica, "Seja marginal seja herói", parte do cenário da apresentação do show na boate carioca Sucata, que ocorreu após a desclassificação do FIC, e que vai determinar a calúnia difamatória do radialista Randal Juliano, e posterior prisão e exílio de Caetano e Gil, conforme Caetano começa a revelar por volta da época do show Circuladô? É nesse nó, portanto, em torno do sacrifício como encenação artística, mas não menos real, com ressonâncias histórico-políticas precisas, e sua resolução mais ou menos precária, individual e/ou política, que se amarram e deslindam os motivos da "proibição" e da perlaboração do trauma da prisão, isto é, o início da operação da talking cure de Caetano, que levará a Verdade tropical.

Adiante, no capítulo sobre o exílio, com título sugestivo, que retoma o mote do sagrado, "O corpo morto de deus vivo e desnudo", Guilherme alinhava uma série de imagens de morte, em um pequeno estudo sobre os ícones, lido sob o signo do luto abissal da morte do sujeito, que constitui como que o fecho do sistema sacrificial. Assim, ao ler o artigo de Caetano enviado para o Pasquim de novembro de 1969, Guilherme recomporá a lógica da montagem de duas fotos de capa da Revista Fatos & Fotos, uma que mostrava Caetano e Gil em Londres (a primeira publicada) e a outra do líder da organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, morto. No artigo, Caetano começara dizendo que a coisa mais feia do mundo era a própria cara vista ao espelho pela manhã, e terminara com as frases enigmáticas: "Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós"2222] Veloso, C. Alegria, alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d, pp. 47-49. [, em que, como explicaria mais tarde, "ele" se referia a Marighella. A imagem de Marighella morto é associada por Guilherme ao estandarte de Hélio Oiticica, amarrando os fios de um sistema de ícones transgressivos que giram todos em torno do mesmo tema da anfibologia sacrificial. Recompondo a série, teríamos: o herói/marginal; guerrilheiro/terrorista; nós exilados/mortos2323] Wisnik, G., op. cit., p. 33. [. Um pouco adiante, seguindo o mesmo fio, Guilherme lerá o artigo sobre o show de Jimmy Hendrix na ilha de Wight, dezoito dias antes de sua morte, em que Caetano escrevera que o "olhar [de Hendrix] quebrou o espelho", fazendo-o vaticinar que "essa era de música acabou"2424] Veloso, op. cit., p. 78. [. Hendrix, que na canção de Gil "Questão de ordem", apresentada no FIC, desempenhava um pouco o papel que D. Sebastião representava em "É proibido proibir", é ali entrevisto na antecena de sua morte. Aqui portanto se completa o sistema icônico descrito acima, no ponto mais negro da anulação do sujeito, e com a morte de mais um mito, consagrada no exílio: o espelho que vê no fundo do rosto a própria feiúra, o espelho de Hendrix que se quebra, ao morrer, assinalando o fim de uma era e o início de outra. Morte e vida. Explicita-se dessa forma o reverso do centro negro do trauma da prisão: após a transgressão da imagem tropicalista, a imagem repetida da morte, que se consuma com a morte do próprio sujeito, e a promessa de frutificação em alegria porvir.

O livro de Guilherme tem, dentre os diversos méritos aqui elencados, um significativo: continuar o trabalho de luto, iniciado por Verdade tropical, do programa negativo do tropicalismo, e sua repressão autoritária. Ali, se enfrentaram dois vértices da negatividade, duas soberanias: a vontade de poder militar, como poder de matar; e a vontade trágica tropicalista, como poder de morrer, e disso produzir a suprema alegria2525] Bataille, Georges (com Caillois, Roger). "Le pouvoir". In: Hollier, Denis (org.) Collège de sociologie. Paris: Gallimard/Folio, s/d, pp. 169-198. . Só a partir da realização desse trabalho de luto foi possível a Caetano achar o caminho de uma nova saúde artística, iniciada em 1989, com Estrangeiro, conforme demonstrou Guilherme, e como vimos acima. O livro, ao se concluir, formula uma série de perguntas deixadas em aberto, o que demonstra, quem sabe, que os dilemas colocados naquele turbulento e já longínquo final de década não chegaram a ser enfrentados.

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  • [1] Rocha, Glauber. Revolução do cinema novo São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 116.
  • [2] Apenas algumas referências, que não pretendem ser exaustivas: Wisnik, José Miguel. "O minuto e o milênio ou por favor, professor, uma década de cada vez" (1979), "Algumas questões de música e política no Brasil" (1987), "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (1994), "Cajuína transcendental" (1996), reimpressos em Sem receita (São Paulo: Publifolha, 2004); Mammì, Lorenzo. "João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova". Novos Estudos Cebrap, n° 34, nov. 1992;
  • Tatit, Luiz. Semiótica da canção (letra e música) São Paulo: Escuta, 1994,
  • e O cancionista: composição de canções no Brasil São Paulo: Edusp, 1996,
  • dentre outros; Garcia, Walter. Bim bom A contradição sem conflitos de João Gilberto São Paulo: Paz e Terra, 1999;
  • Mammì, Lorenzo, Nestrovski, Arthur e Tatit, Luiz. Três canções de Tom Jobim São Paulo: CosacNaify, 2004.
  • [5] Hegel escreve o seguinte sobre o termo: "Suspender e suspenso [Aufheben und das Aufgehoben] constituem uma das mais importantes noções em filosofia. [...] Suspender tem um sentido duplo na língua: de um lado significa preservar, manter, e igualmente fazer cessar, anular. Mesmo preservar inclui um elemento negativo, nomeadamente, que algo seja removido de sua imediaticidade e portanto de uma existência que está aberta às influência externas, a fim de preservá-la. Portanto o que é suspenso é ao mesmo tempo preservado: apenas perdeu a sua imediaticidade, mas não é por isso anulado. As duas definições de suspender dadas por nós podem ser citadas como dois significados dessa palavra. Mas é certamente impressionante descobrir que uma língua veio a usar a mesma palavra com dois sentidos opostos. É uma delícia para o pensamento especulativo descobrir em uma língua palavras que têm em si um sentido especulativo; o alemão tem um número delas. O duplo sentido da palavra latina tollere [tollo; sustuli; sublatum: ao mesmo tempo, elevar e remover] (que se tornou famosa através do trocadilho ciceroneano: tollendum est Octavium) não vai tão longe; a sua determinação afirmativa significa apenas uma elevação. Algo é suspenso [aufgehoben] apenas quando se uniu com o seu oposto [...]". Hegel, G.W.F. Hegel's science of logic. Trad. A.V. Miller. Atlantic Highlands: Humanities Paperback Library, 1989, pp. 106-107 (tradução minha).
  • [6] Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 175.
  • [18] Cf. o estudo introdutório "As danças dramáticas do Brasil". In: Andrade, Mário. Danças dramáticas do Brasil. 2Ş ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, t. I.
  • [21] Vernant, Jean-Pierre e Vidal-Naquet, Pierre. "Ambigüidade e reviravolta. Sobre a Estrutura enigmática de Édipo-rei". In: Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad. Anna Lia Almeida Prado. São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • [22] Veloso, C. Alegria, alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d, pp. 47-49.
  • [25] Bataille, Georges (com Caillois, Roger). "Le pouvoir". In: Hollier, Denis (org.) Collège de sociologie. Paris: Gallimard/Folio, s/d, pp. 169-198.
  • 1
    ] Rocha, Glauber.
    Revolução do cinema novo. São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 116.
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  • 2
    ] Apenas algumas referências, que não pretendem ser exaustivas: Wisnik, José Miguel. "O minuto e o milênio ou por favor, professor, uma década de cada vez" (1979), "Algumas questões de música e política no Brasil" (1987), "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (1994), "Cajuína transcendental" (1996), reimpressos em
    Sem receita (São Paulo: Publifolha, 2004); Mammì, Lorenzo. "João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova".
    Novos Estudos Cebrap, n° 34, nov. 1992; Tatit, Luiz.
    Semiótica da canção (letra e música). São Paulo: Escuta, 1994, e
    O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996, dentre outros; Garcia, Walter.
    Bim bom.
    A contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999; Mammì, Lorenzo, Nestrovski, Arthur e Tatit, Luiz.
    Três canções de Tom Jobim. São Paulo: CosacNaify, 2004.
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  • 3
    ] Wisnik, G., op.cit., p. 121.
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  • 4
    ] Entre 1991 e 2005, Caetano lançou apenas dois discos autorais:
    Livro (1997) e
    Noites do Norte (2000).
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  • 5
    ] Hegel escreve o seguinte sobre o termo: "
    Suspender e
    suspenso [
    Aufheben und das Aufgehoben] constituem uma das mais importantes noções em filosofia. [...]
    Suspender tem um sentido duplo na língua: de um lado significa preservar, manter, e igualmente fazer cessar, anular. Mesmo
    preservar inclui um elemento negativo, nomeadamente, que algo seja removido de sua imediaticidade e portanto de uma existência que está aberta às influência externas, a fim de preservá-la. Portanto o que é suspenso é ao mesmo tempo preservado: apenas perdeu a sua imediaticidade, mas não é por isso anulado. As duas definições de suspender dadas por nós podem ser citadas como dois
    significados dessa palavra. Mas é certamente impressionante descobrir que uma língua veio a usar a mesma palavra com dois sentidos opostos. É uma delícia para o pensamento especulativo descobrir em uma língua palavras que têm em si um sentido especulativo; o alemão tem um número delas. O duplo sentido da palavra latina
    tollere [tollo; sustuli; sublatum: ao mesmo tempo,
    elevar e
    remover] (que se tornou famosa através do trocadilho ciceroneano:
    tollendum est Octavium) não vai tão longe; a sua determinação afirmativa significa apenas uma elevação. Algo é suspenso [
    aufgehoben] apenas quando se uniu com o seu oposto [...]". Hegel, G.W.F.
    Hegel's science of logic. Trad. A.V. Miller. Atlantic Highlands: Humanities Paperback Library, 1989, pp. 106-107 (tradução minha).
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  • 6
    ] Veloso, Caetano.
    Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 175.
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  • 7
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 18.
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  • 8
    ] Veloso, op. cit., p. 495.
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  • 9
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 84 e ss. Ver, a respeito, o belo estudo de Artur Nestrovski sobre "Águas de março": "O samba mais bonito do mundo". In:
    Três canções de Tom Jobim, op. cit.
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  • 10
    ] Mammì, op. cit., p. 66.
    [
  • 11
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 85.
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  • 12
    ] Ibidem, pp. 36-37.
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  • 13
    ] Ibidem, pp. 54-55.
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  • 14
    ] Ibidem, pp. 24-25; Veloso, op. cit., pp. 226-227.
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  • 15
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 14.
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  • 16
    ] Veloso, op. cit., p. 162.
    [
  • 17
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 108.
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  • 18
    ] Cf. o estudo introdutório "As danças dramáticas do Brasil". In: Andrade, Mário.
    Danças dramáticas do Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, t. I.
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  • 19
    ] Wisnik, G., op. cit., pp. 64 e 66, para as três expressões.
    [
  • 20
    ] Ibidem, pp. 66-67.
    [
  • 21
    ] Vernant, Jean-Pierre e Vidal-Naquet, Pierre. "Ambigüidade e reviravolta. Sobre a Estrutura enigmática de
    Édipo-rei". In:
    Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad. Anna Lia Almeida Prado. São Paulo: Perspectiva, 2002.
    [
  • 22
    ] Veloso, C.
    Alegria, alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d, pp. 47-49.
    [
  • 23
    ] Wisnik, G., op. cit., p. 33.
    [
  • 24
    ] Veloso, op. cit., p. 78.
    [
  • 25
    ] Bataille, Georges (com Caillois, Roger). "Le pouvoir". In: Hollier, Denis (org.)
    Collège de sociologie. Paris: Gallimard/Folio, s/d, pp. 169-198.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Jul 2008
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