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Epifisiólise proximal do fêmur e hipotireoidismo subclínico: relato de caso

Resumos

A epifisiólise proximal do fêmur (EPF) é uma doença ortopédica prevalente na adolescência, porquanto esta coincide com o momento de maior crescimento das estruturas osteomusculares. Curiosamente, alguns pacientes apresentam esta patologia precocemente e esse desfecho converte para a possível explicação etiológica de que o escorregamento ocorreria pelo estirão de crescimento. Para esses pacientes, a gênese do escorregamento ainda não foi elucidada; todavia, as afecções endocrinológicas vêm sendo assinaladas como possíveis causas. Na tentativa de reforçar a teoria da etiologia endocrinológica e apresentar os resultados do tratamento cirúrgico para essa patologia, os autores relatam neste artigo o caso de um paciente do sexo masculino, de nove anos e três meses de idade com EPF e hipotireoidismo subclínico, diagnosticado e tratado no Hospital Universitário de nossa instituição.

Epífise Deslocada; Hipotireoidismo; Parafusos Ósseos; Criança


Proximal femoral epiphysiolysis is an orthopedic disease that is prevalent during adolescence, because this coincides with the time of greatest growth of osteomuscular structures. Curiously, some patients present this disease early, and this outcome converts to the possible etiological explanation that the slippage might occur through a growth spurt. For these patients, the genesis of the slippage has not yet been elucidated, but endocrine disorders have been noted as possible causes. In an attempt to strengthen the theory of endocrinological etiology and present the results from surgical treatment for this pathological condition, the case of a male patient aged 9 years and 3 months with proximal femoral epiphysiolysis and subclinical hypothyroidism who was diagnosed and treated at our university's teaching hospital is reported here.

Epiphyses, Slipped; Hypothyroidism; Bone Screws; Child


RELATO DE CASO

Epifisiólise proximal do fêmur e hipotireoidismo subclínico: relato de caso

Grasiele Correa de MelloI; Gabriela GrossiI; Sílvio Pereira CoelhoII

IAcadêmica do 11º semestre de Medicina da Universidade Luterana do Brasil - Canoas, RS, Brasil

IIMédico especialista em Ortopedia e Traumatologia Pediátrica; Professor Titular da Disciplina de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Luterana do Brasil - Canoas, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Grasiele Correa de Mello Av. Bento Gonçalves, 1.515, AP. 1809/A, bairro Parthenon 90650-002 - Canoas, RS, Brasil E-mail: grazyymello@hotmail.com

RESUMO

A epifisiólise proximal do fêmur (EPF) é uma doença ortopédica prevalente na adolescência, porquanto esta coincide com o momento de maior crescimento das estruturas osteomusculares. Curiosamente, alguns pacientes apresentam esta patologia precocemente e esse desfecho converte para a possível explicação etiológica de que o escorregamento ocorreria pelo estirão de crescimento. Para esses pacientes, a gênese do escorregamento ainda não foi elucidada; todavia, as afecções endocrinológicas vêm sendo assinaladas como possíveis causas. Na tentativa de reforçar a teoria da etiologia endocrinológica e apresentar os resultados do tratamento cirúrgico para essa patologia, os autores relatam neste artigo o caso de um paciente do sexo masculino, de nove anos e três meses de idade com EPF e hipotireoidismo subclínico, diagnosticado e tratado no Hospital Universitário de nossa instituição.

Descritores: Epífise Deslocada; Hipotireoidismo; Parafusos Ósseos; Criança

INTRODUÇÃO

A epifisiólise proximal do fêmur (EPF) caracteriza-se pelo deslocamento do colo em relação à cabeça femoral. O mecanismo mais provável do deslizamento crônico é a rotação da epífise sobre a metáfise, como resultado das forças de torque(1). As alterações nas estruturas anatômicas responsáveis por tais forças ocorrem habitualmente na adolescência e são responsáveis pela maior incidência da doença nesta faixa etária. Adicionalmente, distúrbios endocrinometabólicos podem promover alterações na microestrutura da fisis ao aumentarem a espessura da camada hipertrófica(2), propiciando que o escorregamento ocorra inclusive em idade precoce.

Embora seja uma doença bastante conhecida, a EPF apresenta uma baixa incidência em crianças menores de 10 anos e são raros os estudos encontrados para essa população na literatura(3).

O conceito de hipotireoidismo subclínico também vem sendo estudado ao longo das últimas décadas; no entanto, seu real significado clínico ainda é controverso. Posto que sua etiologia seja a mesma que a do hipotireoidismo clássico, seus efeitos ao organismo ainda não foram totalmente elucidados(4).

O objetivo desde trabalho foi acrescentar à literatura um caso incomum de epifisiólise envolvendo criança com hipotireoidismo subclínico, uma vez que poucos estudos abordam a intersecção destas patologias.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, com nove anos e três meses de idade, procurou o serviço de ortopedia pediátrica com queixa de dor em ambos os joelhos, acentuada após realização de atividade física na escola. Na história médica pregressa não houve registro de atraso no desenvolvimento ou patologias de base. Ao exame físico geral constatou-se sobrepeso (IMC de 26,3). Não foram encontrados caracteres sexuais secundários.

O paciente obteve 82 pontos na escala Harris para patologias do quadril. Ao exame físico ortopédico em decúbito dorsal havia atitude em rotação externa do quadril esquerdo. Ao teste de mobilidade, possuía aumento da rotação externa e limitação da rotação interna do membro inferior esquerdo. Não se observou alteração à direita.

Sinal de Trendelenburg ausente. Sem evidências de atrofia de quadríceps ou redução do comprimento do membro afetado. O exame físico neurológico foi normal. Pelo exame ortopédico sugestivo de escorregamento da cabeça do fêmur solicitamos RX AP + Lowenstein. O paciente retornou com imagem radiográfica sugestiva de epifisiólise proximal da cabeça do fêmur em varo à esquerda (Figura 1).


Procedeu-se ao rastreamento endocrinológico na tentativa de justificar a precocidade do escorregamento, já que se tratava de um paciente com sobrepeso e com história familiar de hipotireoidismo. Os resultados dos exames laboratoriais mostraram triglicerídeos de 236 (normal 150) e TSH de 7,58 (normal de 0,27 a 4,2), T4 livre dentro dos parâmetros da normalidade.

A indicação para correção cirúrgica foi através de fixação com único parafuso canulado à esquerda, incluindo pinagem profilática contralateral (Figura 2). No pós-operatório o paciente relatou grau 3 na escala analógica visual de dor. No seguimento de um ano o paciente já executa atividades físicas normalmente sem queixas de limitação funcional ou de dor e sua escala de Harris era de 95. O paciente foi encaminhado ao serviço de endocrinologia, onde segue em acompanhamento, apresentando índices de TSH normais com reposição hormonal.


DISCUSSÃO

Ainda que com etiologia incerta, a EPF parece ter um envolvimento hormonal em sua gênese. Em função disso, há uma tendência em proceder à investigação endocrinológica quando o diagnóstico é selado na infância, já que essa é uma aparição incomum antes da puberdade. Para compor a hipótese diagnóstica, foram solicitados exames de avaliação da tireoide e perfil lipídico, pois o paciente apresentava sobrepeso. Curiosamente, observou-se aumento isolado do TSH, o que sugeriu hipotireoidismo subclínico, visto que os níveis séricos de T4 estavam dentro dos parâmetros da normalidade. A literatura que discute esses achados é escassa, porém autores reforçam que alterações no TSH, mesmo que isoladas, podem ser responsáveis por anomalias na placa de crescimento(5), pois influenciam na remodelação esquelética através da interação com os receptores específicos expressos em células ósseas(6). Não foram encontrados estudos conclusivos que associassem a EPF ao hipotireoidismo subclínico em criança, embora existam alguns estudos que vinculem sua relação com o hipotireoidismo clássico.

Quanto à sintomatologia, a dor na região do quadril e/ou joelho, acompanhada ou não de claudicação do membro afetado, é a queixa mais comum dos pacientes com EPF, devendo esta ser sempre considerada no diagnóstico diferencial quando uma criança ou adolescente apresentar tal desconforto(7). Concordante com a literatura, evidenciamos que a dor foi o que motivou a procura de assistência médica e que ela, somada aos achados propedêuticos e radiológicos, nos auxiliou na hipótese diagnóstica. Não obstante, para a investigação do diagnóstico definitivo da EPF, é indispensável que, além de proceder-se a um rigoroso exame físico do quadril, deve-se decorrer ao estudo de imagem. Para o diagnóstico radiográfico da epifisiólise, utiliza-se a incidência anteroposterior da pelve nas posições neutra e de Lauenstein(8).

Relativamente à correção cirúrgica da EPF, diferentes técnicas são descritas. Sua indicação é baseada no grau e tempo do escorregamento, no grau de lesão da cartilagem e na experiência do centro envolvido, não existindo, pois, um protocolo cirúrgico definitivo. Sabe-se, todavia, que os objetivos do tratamento da EPF são, basicamente, a estimulação do fechamento da fisis, a estabilização e prevenção de novos escorregamentos e a manutenção da organização anatomofuncional das estruturas ósseas envolvidas para que não haja prejuízo no crescimento(9). Neste contexto, a fixação in situ com um parafuso é o tratamento mais utilizado para casos menos graves de escorregamento, sendo que constataram-se bons resultados para essa técnica inclusive em crianças menores de 10 anos de idade(3). Baseados na literatura e na experiência do serviço, a fixação com parafuso único canulado sem osteotomia foi o tratamento de eleição. Após o seguimento de um ano, observamos boa correção do escorregamento com melhora no exame físico. Não houve evidência de efeitos deletérios como necrose avascular ou osteocondrólise. A retirada do parafuso não foi indicada, uma vez que nosso paciente ainda encontra-se em fase de crescimento e isso poderia ocasionar a recidiva do escorregamento.

Baseados na alta incidência de acometimento contralateral, principalmente em pacientes com distúrbios endocrinológicos e na frequência aumentada de bilateralidade em pacientes menores de 10 anos(3), optou-se pela fixação profilática do quadril contralateral. Não foram observadas alterações no exame físico e no estudo radiológico após um ano da cirurgia.

Neste relato utilizamos o escore de Harris(10), por ser considerado um bom preditor do impacto das limitações do quadril. O paciente obteve um escore de 82 na consulta pré-operatória, o que denota um comprometimento leve das atividades cotidianas. Após a intervenção cirúrgica, obteve pontuação de 95, considerada excelente segundo a mesma escala, o que nos permite inferir que o tratamento cirúrgico foi eficaz sob o ponto de vista funcional e que repercutiu melhoria na qualidade de vida do paciente.

Evidencia-se uma maior preocupação da literatura com as formas de tratamento da EFP, visto que relativamente poucos resultados têm sido publicados sobre sua a gênese e mecanismos fisiopatológicos, especialmente quando ela ocorre em crianças. Apesar disso e diante das características descritas sobre o paciente apresentado e pela literatura revisada, entende-se que a etiologia endocrinológica deva ser valorizada, sobretudo através da busca por alterações subclínicas. Por tratar-se do relato de um caso, pode-se tão somente sugerir que pacientes pediátricos diagnosticados com epifisiólise do fêmur proximal tenham acrescentado a seu screening exames laboratoriais da tireoide, sendo necessários estudos com amostras maiores para afirmar que tal hipótese pode fazer parte dos caracteres etiológicos dessa patologia.

Trabalho recebido para publicação: 13/09/2011

Aceito para publicação: 25/10/2011

Os autores declaram inexistência de conflito de interesses na realização deste trabalho

Trabalho realizado no Hospital Universitário da Universidade Luterana do Brasil - Canoas, RS.

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  • 3. Atri LJ, González AOC, Aziz JJ, Castañeda LP.Slipped femoral epiphysis in children under 10 years of age. Clinical and radiologic evaluation of the surgical treatment. Acta Ortop Mex. 2009;23(4):213-6
  • 4. Biondi B, Cooper DS. The clinical significance of subclinical thyroid dysfunction. Endocr Rev. 2008;29(1):76-131.
  • 5. Sun L, Davies TF, Blair HC, Abe E, Zaidi M. TSH and bone loss. Ann N Y Acad Sci. 2006;1068:309-18.
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  • Endereço para correspondência:
    Grasiele Correa de Mello
    Av. Bento Gonçalves, 1.515, AP. 1809/A, bairro Parthenon
    90650-002 - Canoas, RS, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      13 Set 2011
    • Aceito
      25 Out 2011
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