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A Verdade do Sujeito e sua Veiculação pelos Nomes

The Truth of the Subject and its Transmission through Names

RESUMO

Baseado nas formulações teóricas de Alain Badiou, e, em especial, no seu conceito de genérico, este texto procura explorar e expandir os desdobramentos que a questão da verdade possui para a psicanálise. Por ser indiscernível, a verdade, em que Lacan situou a mulher, seria o que se destacaria do processo que constitui o ser do Um. Na adjunção de uma verdade, quando então podemos falar de sujeitos, transcendências são desqualificadas, decisões sobre indecidíveis tornam-se possíveis, instituindo um processo que se operacionaliza de forma imanente, em que o trajeto, aleatório e contingente, viabiliza-se por meio do enriquecimento da língua. Nesse processo, podemos assinalar o papel do nome próprio, que teria a função de avalizar, concedendo duração, a fidelidade a uma verdade.

Palavras-chave
verdade; sujeito; nome; genérico; nome próprio

ABSTRACT

Using theoretical formulations by Alain Badiou, mainly his concept of generic, this essay is dedicated to exploring and expanding the unfolding of the matter of truth for psychoanalysis. The truth, being undiscernible, where Lacan placed the woman, would be what would stand out from the process that constitutes the being of the One. In adjunction of a truth, when we will thus be able to refer to subjects, transcendences are disqualified, decisions about non-decidable issues become possible, creating a process operated by immanent manner, where the path, random and contingent, is enabled through enrichment of the language. In this process, we can point out the role of the proper name, which would have the duty of endorsing, granting duration, the fidelity of a truth.

Keywords
truth; subject; name; generic; proper name

A Verdade é Infinita e Indiscernível

Freud localizou a verdade de um sujeito nas manifestações do inconsciente (chiste, ato falho, sonhos, sintomas), que se apresentam como um furo no bem estruturado campo da consciência. Lacan nos afirma então, que a verdade só pode ser semi-dita (Lacan, 1985Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ., p. 141), apresentando-se sempre como furo no saber. Partindo da matemática, Badiou (1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)) propôs que a unificação de um campo, quando nele conseguimos estabelecer uma consistência, é possível apenas quando dele excluímos o que se apresenta como infinito, o que aos olhos do filósofo francês, significa que dele excluímos a verdade.

“Toda verdade”, enquanto furo no saber, “é necessariamente infinita” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 259). Porém, a categoria de infinito isoladamente não é suficiente para diferenciar o verídico do verdadeiro. Tanto a veridicidade quanto a verdade podem se apresentar como infinitas. Uma veridicidade, porém, mesmo quando infinita, como, por exemplo, no enunciado “os números inteiros formam um conjunto infinito”, não se apresenta como furo no saber, deixando-se apreender pelas classificações sábias.

A verdade é aquela totalidade infinita que persiste indiscernível enquanto tal, preservando-se inapreensível pelas ferramentas do saber. Ela “não tem outra ‘propriedade’ que a de reenviar à pertença” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 267). Ou seja, a verdade é aquilo que se reenvia sempre, e exclusivamente, à pertença, não se deixando discernir como classe. Trata-se do Um indiscernível, ou do não-Um.

O discernível concerne à apresentação, ao passo que a representação, base da veridicidade, concerne ao estabelecimento das propriedades ou predicados que permitem esse discernimento, permitindo o estabelecimento de conjuntos e possibilitando classificações. Apesar de genuinamente intrincados, tratam-se de etapas diferentes. Poderíamos assim pensar em um indiscernível classificado, ou seja, a nomeação de uma classe ou conjunto em que não encontraríamos, porém, predicação suficiente que tornasse possível discernir ou separar os elementos que ela contém. Seria uma representação sem apresentação, ou uma classificação onde aquilo que permitiria separar seus elementos é indiscernível. Estaríamos, aqui, em um terreno onde os termos inclusão e exclusão são perfeitamente operativos. Nessa situação, a indiscernibilidade não se torna necessariamente um problema para o sistema, que é capaz, após nomeá-la e classificá-la como excluída, de conter o risco que ela representa para o saber. A classificação é o que sustenta todo e qualquer sistema, ferramenta em geral suficiente para se defender do excesso que nele recusa em se deixar discernir. Se quisermos realmente colocar em xeque um sistema, temos que colocar em questão sua potência classificatória. É nesse momento que Badiou resgata o que ele nomeia por acontecimento único, capaz de, por meio de um distúrbio da localização, permitir o forçamento da localização de um ilocalizável, produzindo-se como furo no campo do saber .

A verdade de um mundo, condição que estaria universalmente presente em tudo que se apresenta nele, apenas poderia ser vista enquanto totalidade por alguém que estivesse fora desse mundo. Para quem está dentro, aproximar-se dessa verdade só é possível por meio de uma fidelidade meio enigmática, em uma militância não ancorada em saberes estabelecidos, testando no território sua pertinência em relação a cada novo elemento que se apresente. A verdade de uma situação, para quem se encontra em seu interior, não pode ser experienciada de forma global, mas apenas localmente como um processo imanente, a partir da perseverança referenciada em uma fé meio enigmática, inapreensível pelo saber limitado dos habitantes da dita situação. O que faria existir esse inapresentável, por meio de uma paradoxal localização do ilocalizável, nos termos de Badiou, seria o acontecimento ou a apresentação fugaz de algo impossível a se apresentar, que deixa como resto um nome que funciona como marca de uma verdade a ser construída. Para que o processo de construção da discernibilidade de um indiscernível se desencadeie, é necessária, assim, a apresentação de um nome que venha a carrear a marca do indiscernível, tornando-se potencialmente, o mote para a exploração dessa indiscernibilidade.

Da mesma forma com que se destaca do saber, a verdade também não se vincula ao sentido. Badiou associa o sentido a uma função transcendental (p. 307). A verdade, que para ser verdade de um sujeito exige localização (mesmo que seja uma localização deslocalizada), deve dessa forma ser disjunta do sentido. Se podemos dizer que o processo de um sujeito realiza uma verdade, esta, assim como o sujeito, é consequência de um acontecimento que a faz ex-sistir como projeção, como futuro a ser descoberto, a partir de uma construção imanente. De forma alguma a existência indiscernível da verdade de um mundo qualquer libera qualquer sentido para um habitante desse mundo.

O Genérico de Badiou

Em O ser e o evento, Alain Badiou (1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)) coloca os termos genérico e indiscernível quase que comutáveis, porém pontua uma distinção importante. O indiscernível se realça pelo seu caráter negativo de subtração ao saber, ao passo que o genérico designará positivamente que o que não se deixa discernir, é na realidade, a verdade geral de uma situação, verdade de seu ser próprio, considerada como fundamento de todo saber por vir. ‘Genérico’ põe em evidência a função de verdade do indiscernível. A negação implicada em ‘indiscernível’, contudo, conserva isto de essencial _ que uma verdade é sempre o que faz furo num saber. (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 259)

Nos termos de Badiou, o genérico, ou aquilo que seria a verdade de um mundo, é aquele múltiplo que, não se deixando cernir por nenhuma predicação (não se permitindo limitar pela particularidade que separa, ou distingue, uma classe de outras), tem sempre, para não importa qual classe, um elemento que nela está incluído. Ao apresentar, para não importa qual classe, pelo menos uma investigação, ou um elemento em comum com ela, e, ao mesmo tempo, ao menos um outro elemento que pertença à particularidade oposta, o genérico não se deixa discernir por qualquer propriedade que seja. O múltiplo genérico, assim, é elemento indiscernível da situação, já que ele não se deixa predicar por nenhuma de suas dominações.

Ao entendermos o genérico como sendo a condição minimal comum a todas as particularidades, em uma acepção mais estrutural poderíamos conceber o vazio como ocupando esse lugar. Nesse caso, conceitos como acontecimento, sujeito e verdade não seriam concebíveis. O genérico de Badiou, porém, não se identifica pura e simplesmente com o vazio. Em consonância com este último, ele seria a condição passível de intersectar não importa qual dominação, por ter sempre algo em comum com cada uma delas, sem que essa identidade comum implicasse na rejeição de qualquer classe que fosse. Mas diferentemente do puro vazio, ele seria uma determinação _ uma determinação universal para o mundo da qual fizesse parte, não se restringindo a nenhuma predicação específica do universo em questão.

O genérico, assim, é aquele indiscernível que existe de forma imanente à situação. Ele é um múltiplo indiscernível de condições em que, apesar de indiscernível, não seria qualquer um, já que seria condicionado pela situação. As condições que veiculariam informações sobre o genérico, embora pertencentes à situação, não fazem nela Um, ou seja, não conseguem apresentar nada que discirna, na situação, sua suposta unidade. Ele não se apresenta como Um na situação, “ainda que ‘todas’ as condições que preencham sua ausência inicial pertençam, elas próprias à situação” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 281).

A suplementação de uma situação pelo seu genérico, forçando a apresentação de algo que nela é indiscernível, não implica a destruição global desta, mesmo que destruições pontuais possam ocorrer. Por ser imanente à situação, o genérico está submetido aos seus grandes princípios de consistência. O que era verídico anteriormente, continua verídico após o acontecimento. A suplementação do genérico indiscernível pode sustentar “enunciados verídicos suplementares” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 326), mas não implica na destruição de veridicidades anteriores. Ela atua na régua que normatiza o mundo, mas não abole sua consistência. A verdade indiscernível não se coloca em oposição às veridicidades ou ao saber, mas como distinta, em diagonal, subvertendo proximidades e valores.

A Verdade Desqualifica Transcendências

Na adjunção de uma verdade indiscernível (por meio do forçamento de sua paradoxal localização), transcendências são ausentificadas, o que redunda na reformulação da forma como a quantidade era pensável a partir do interior da situação (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 331). Essa adjunção, que se dá a partir de um acontecimento e do nome que este deixa como resto, não se coloca como algo transcendente, mesmo que se apresente como um nome suplementar na nova situação. Esse nome torna-se signo de algo que passa a existir como um indiscernível imanente, subversivo à discernibilidade da situação anterior (que só admitia a existência do que ela consegue discernir). Mas ele não se apresenta como uma nova transcendência. A novidade que carreia é a apresentação imanente do infinito ou do excesso, ao invés de fazer uso da representação (onde a apresentação se duplica, confinando o excesso ao estatuto de inclusão inapresentável). A duplicação estatal, campo da representação, confina o excesso supostamente transformado em instância exterior, o que estabiliza e dá consistência à situação, ao preço, porém, da anulação da existência de verdades e sujeitos.

O forçamento da existência do genérico, que o faz existir imanentemente como singularidade, consiste na fixação deste na forma de um valor referencial para todos os nomes que pertencem à situação. Antes esse valor poderia existir apenas como hipótese ou como conceito vazio. Na adjunção do indiscernível, este, até então inapresentável, passa a existir na situação. Trata-se do forçamento da localização paradoxal de um ilocalizável_ uma ex-sistência, nos termos de Lacan.

O Édipo e a Identificação

Em sua leitura mais difundida, entenderíamos que, no Édipo freudiano, a identificação fundante teria sua fonte em algo que existiria fora, percebido como sendo o Pai, o qual, com sua marca agora introjetada, daria inteligibilidade ao que, a partir de então, passaria a ser entendido como existindo dentro. Marcados que somos por uma concepção onto-teológica, seria o correlativo ao que, em nossa civilização ocidental, teria o estatuto de um Outro transcendente que faria Um de todo o universo e que aprendemos a nomear por Deus. Porém, a identificação em Freud não se reduz a uma mera imitação ou reconhecimento que fundaria o relacionamento entre os homens. A identificação não se produz entre dois seres distintos, mas no espaço psíquico de um único indivíduo, entre o sujeito e uma marca ou traço resultante de uma alteração de outrem (e não de outro, como comumente diríamos, “pois em psicanálise encontramos, em vez do habitual objeto, uma marca inconsciente que não permite a objetificação” (Garcia, 1994Garcia, C. (1994). Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta., p. 66)). Nesse jogo, para Freud, o que essa marca faz é barrar o ser do sujeito, fazendo-o falta a ser, ou “fazendo desse ser o que falta à marca para completar o Um do sujeito” (Garcia, 1994Garcia, C. (1994). Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta., p. 66). Na identificação em Freud não produzimos elementos idênticos a si, capazes de produzir comunidades fechadas ou completas, mas tão somente sujeitos divididos em si mesmos quanto a sua identidade. Para resgatar o Um, somente por meio de ideais. A idealização salva a relação do sujeito com um suposto outro, ocultando o que antes era divisão graças a uma sutura fictícia. A divisão, nesse caso, longe de desaparecer, “é deslocada para um lugar limítrofe, fronteira entre o que por direito pertence ao grupo e o que já não faz parte do grupo” (Garcia, 1994Garcia, C. (1994). Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta., p. 67).

No final do século XIX, o matemático Georg Cantor (1848-1918) propôs uma inscrição do infinito que se daria de forma imanente, dispensando a transcendência. Cantor, religioso como era, escreveu ao papa perguntando se sua teoria seria um sacrilégio. Ele tinha noção da reviravolta no pensamento que suas elaborações propiciavam. Um cardeal lhe respondeu que não havia problemas, que suas formulações eram apenas abstrações, e que não colocavam em questão a existência de Deus (Badiou, 2008Badiou, A. (2008). Introduction à L’être et l’événement et à Logiques des mondes. In Université Technique Nationale d’Athénes, 30 janeiro 2008. Atenas: UTN. Recuperado de http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/Athenes.htm
http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/Ath...
). Sua resposta educada desconhecia, propositalmente ou não, o poder das construções formais. Desconhecia, seguindo Lacan, que a matemática é a escrita do real.

A partir de Cantor podemos falar de um Outro que se dá de forma imanente, o que possibilitaria, por exemplo, que Lacan viesse a relativizar o Nome-do-Pai, pluralizando-o e inscrevendo-o no diminutivo. Da lei insensata, exterior a seu próprio mandamento, podemos passar a falar paradoxalmente de um exterior imanente, uma ex-sistência, ou uma localização impensável do ilocalizável infinito.

A localização do universal permite que dispensemos a transcendência. Apesar de podermos continuar a fazer uso de conceitos como o de identificação, esta não mais será pensada como uma identidade fechada, consequência da introjeção de uma alteridade externa. A identificação - e agora estamos sendo bem freudianos - não apenas será cindida, como pode ser pensada à revelia de transcendências.

“A Mulher, é a Verdade” (Lacan, 1985Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ., p. 141)

Em L’Étourdit, Lacan (1972/2003Lacan, J. (2003). O aturdito. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Obra originalmente publicada em 1972)) propõe uma retificação da posição, ou função, da mulher em relação ao homem, subvertendo a forma com que apressadamente aprendemos a ler os escritos de Freud. Não propriamente como um complemento deste (pelo menos não necessariamente, apesar de poder, como desvio, vir a ocupar esse lugar). Sua função, ou ao menos aquilo que ela suportaria, estaria mais no registro da suplência do que da complementação.

Lacan propõe um ultrapassamento da teoria do Édipo e da castração, ao deslocar a importância do pai em prol da mãe na constituição da feminilidade. Ele se utiliza da devastação da mulher que refletiria, “em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai” (Badiou, 2003/1972, p. 465). Se o homem, em sua acepção clássica, é o correlato do Um, “uma mulher é o processo de não ser o que constitui o ser do Um” (tradução do autor) .

O genérico, que Badiou cunhou com o símbolo da mulher, ♀, “não tem nenhuma propriedade particular, discernidora, separatriz. (...) No fundo, não tem mais do que a propriedade de consistir como (...) ser. Subtraído à língua, ele se contenta com seu ser” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 291). Não sendo nomeável, o ♀ não se apresenta, ou não é discernível na situação. A mulher, em sua essência, não seria nada mais do que a ausência do que quer que seja que permita sua existência como algo distinto naquele mundo da qual faz parte. Ela teria a imobilidade e a inércia do puro ser, sendo, em relação ao que existe de forma discernida, o excesso que suplementaria o que existe para que a existência deste se diluísse na indiscernibilidade do ser, ou seja, para que o que existe deixasse de existir. Para que, de puro excesso, ela se operacionalize, sem que este excesso venha a implicar na desconstituição de qualquer discernimento, é necessária uma fixação, que passaria a carrear a universalidade que teve que ser excluída para que particularidades viessem a se constituir. Esse universal, agora fixado como singularidade, tratar-se-á de uma apresentação paradoxal, pois apesar de se apresentar/existir, persistirá marcado pela indiscernibilidade.

A afirmação de Lacan (1985Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar .) no Seminário 20 de que A mulher não existe, significa, nos termos de Badiou, que ela não pertence à situação. De forma alguma significa que ela não esteja incluída, ou não faça parte da situação, mas apenas que ela não se apresenta em si. A Mulher, grifada com M maiúsculo, não é discernível ou separável como elemento. Na verdade, por não se apresentar, a ela o termo elemento não é apropriado, só lhe cabendo ser tratada como uma parte da situação que não se subsumi ao imperativo do Um, persistindo como o que restou da indiscernibilidade originária ou como aquilo que persiste como puro ser. Nesses termos, o forçamento de sua existência, ou o forçamento de sua apresentação, que é propriamente dito o passo do sujeito, trata-se de uma operação que carreia uma impossibilidade intrínseca, pois significa fazer existir na situação aquilo que lhe é inerentemente indiscernível.

Ao chamar a mulher de não-toda, Lacan propõe não entendermos essa expressão no sentido da extensão, mas em uma perspectiva intencionista. Isso é possível, segundo ele, se considerarmos esse não-todo feminino como colocando em cena a perspectiva do infinito, o que situa a mulher não propriamente como negação ou contradição, mas como existência indeterminada (Lacan, 1985Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ., p. 140). Alain Badiou (2013Badiou, A. (2013). L’immanence des vérités. In École Normale Supérieure, 03 maio 2013. Paris: ENS. Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/12-13.htm
http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/12-...
) propõe, então, uma pequena reformulação nessa proposição de Lacan, para que ela, aos olhos do filósofo francês, seja mais feliz em explicitar o que almeja. Badiou considera que, melhor do que a expressão não-toda, seria utilizarmos a expressão não-Um, pois esta realçaria que, na mulher, o que está em evidência é sua indiscernibilidade, o forçamento de sua existência implicando sempre na subversão eminentemente masculina da lógica do Um, ou da lógica predicativa.

Segundo Badiou (1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)), a ausentificação de transcendências que ocorre na adjunção do indiscernível (♀), não significa que estas transcendências deixem de remeter a algo do registro da infinitude, mas simplesmente que elas passam a concernir a uma infinitude agora mundana, depurada de uma pretensa hierarquização que as tornava inatingíveis. Nesse sentido, a apresentação do feminino (♀) tem como consequência correlata a negativação de poderes que se propunham transcendentes. Podemos entender, assim, como o casamento do obsessivo com a histérica possa ser tão profícuo em combates e disputas, posto que a existência de um implica na inexistência do outro, já que o obsessivo, como bem pontuou Freud, é a corporificação da lógica de Deus ou da transcendência.

O Nome do Acontecimento

Em um mundo estabilizado, ainda não marcado pelas consequências de um acontecimento, a parte genérica, que é indiscernível, apesar de eventualmente poder ter um nome, não existe propriamente dita ou não pertence àquele mundo. Sua pensabilidade enquanto nome não implica em uma existência real para um habitante daquela situação. A adjunção do indiscernível é consequência do forçamento de sua apresentação, fazendo-o existir, mesmo que, paradoxalmente, o saber da situação mostre-se incapaz de apreendê-lo. Esse nome do ♀ “é o nome da indiscernibilidade, não o discernimento de um indiscernível” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 300). A adjunção do indiscernível suplementa a situação não propriamente de novos elementos, mas de nomes, mesmo se aquilo à qual estes se colocam como referentes não se deixa discernir. Ela modifica a situação através do enriquecimento de sua língua, por meio da capacitação de se nomear nela hipotéticos elementos, ainda inexistentes, dessa nova e estendida situação por vir.

Porém, se o número de elementos não se altera, algumas transcendências podem ser ausentificadas, persistindo como infinitas, porém agora imanentes à situação. A desqualificação de transcendências possibilita que o excesso, antes sob contenção (posto que excluídos), possa ser decidido e desdobrado como efeito de forma imanente, enriquecendo os nomes da nova situação. Na adjunção do indiscernível não se trata, assim, de uma adjunção de elementos antes inexistentes, mas, como dissemos acima, do enriquecimento da língua da própria situação. Essa conexão última entre o indiscernível e o indecidível “é propriamente a marca de ser do Sujeito na ontologia.” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 334).

Do Nome do Acontecimento ao Nome Próprio

Recapitulando, nos termos de Alain Badiou, a intervenção faz com que do acontecimento reste um nome como marca do que desapareceu no exato instante em que aconteceu. Consecutivamente a essa nomeação interveniente teríamos a emergência de um operador, que faz a conexão entre o que restou do acontecimento e a situação, estabelecendo a regra de avaliação e proximidades que funda o procedimento genérico no interior daquele universo. O forçamento, passo propriamente dito do sujeito e que determina a suplementação de ser que é o acontecimento, é a paradoxal sustentação de um corpo subjetivado, conjunção fugaz e inapreensível desse dois disjunto, que é o nome do acontecimento e o operador de conexão. Paradoxal porque um corpo, por princípio, mesmo que seja abstrato, apresenta-se como algo unificado, portanto portador de uma objetividade. O corpo subjetivado é a existência impossível da verdade e do sujeito. Sua concepção é a única possibilidade “de uma teoria formal do sujeito onde o assento seja materialista” (Badiou, 2006Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil., p. 56, tradução do autor) .

A subjetivação é o que conecta o nome que resta como marca do acontecimento ao operador que propicia a conexão com a situação (chamado por Badiou [1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)] de “operador de conexão fiel”). Porém, essa inapreensível conjunção, inexplicável pelo saber da situação, e que exige, para sua efetuação, uma fidelidade cega, no registro mesmo da fé, estará sempre marcada pela fragilidade da disjunção. É aí que, segundo Badiou, entra em cena o nome próprio. A fixação desse processo “na ausência de significação de um nome próprio” (p. 308), fornece a sensação de garantia que o dois disjunto que é o nome do que resta do acontecimento e o operador de conexão fiel estão realmente subsumidos ao um do corpo subjetivado. Na ausência do nome próprio, o operador de conexão fiel fica sempre sob a suspeita de ser independente e, portanto, infiel ao nome do acontecimento. O nome próprio avaliza “a incorporação do acontecimento à situação no modo de um procedimento genérico” (p. 308), concedendo uma estabilidade, ou um tempo, à existência efêmera, contingente e sempre suspeita de ser infiel ao nome do acontecimento, que o sujeito é.

No exato instante em que existe, a subjetivação (intervenção mais operador de conexão fiel) não exige a identificação de um sujeito ou mesmo de um nome próprio, apesar de sua permanência pedir este último. Badiou (1995Badiou, A., & Rocha, R. (1995). Política, partido, representação e sufrágio: A polêmica entre Alain Badiou e Ronald Rocha. Belo Horizonte: Projeto. ), posteriormente, vai propor, no caso específico da política, que pensemos em uma subjetivação sem sujeito (Badiou, 1995Badiou, A., & Rocha, R. (1995). Política, partido, representação e sufrágio: A polêmica entre Alain Badiou e Ronald Rocha. Belo Horizonte: Projeto. , 121), como possibilidade de colocarmos em ação um movimento subjetivo isento de predicados ou desvios identitários. Badiou parece estar nesse momento, especificamente na política, tentando conceder à subjetivação maior mobilidade, facilitando-lhe escapar de armadilhas identitárias do nome próprio. Para Badiou (1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)), a verdade, enquanto infinita, ultrapassa, ou não se limita, às consequências dessa submissão finita a um nome próprio. Essa proposta de subjetivação sem sujeito na política seria, talvez, a tentativa de preservar ao máximo aquilo que de infinito ex-siste em toda localização (por definição, finita) de um processo de verdade. Sem esquecermos, porém, que a finitude que um sujeito pode vir a significar, é sempre uma leitura que, retroativamente, cria uma pretensa necessidade do trajeto que ele corporifica, esquecendo que esse trajeto, longe de ser reflexo de uma determinação pré-existente, é totalmente contingente e aleatório no momento em que se constitui.

O Sujeito e sua Verdade

A desqualificação de excessos transcendentes, ao imanentizá-los, possibilita decisões sobre situações antes indecidíveis. Encontraríamos aí o passo fundamental do sujeito, que, tendo como solo o indiscernível (♀), força a decisão de um indecidível, possibilitando com que excessos antes inabordáveis possam se desdobrar de forma imanente.

O sujeito não é algo prescrito na situação, prescrito no ser. Ele não apenas é totalmente contingente, como raro. Nada na situação garante sua existência, pois ele resulta de uma diagonal desta. O que se apresenta como necessidade estrutural não prescreve em si a existência de sujeitos. Se a estrutura da situação se propõe nesta no registro do necessário, como aquilo que lhe garantiria estabilidade, o sujeito, apesar de se dar de forma imanente à situação, se produz como uma diagonal desta, não estando prescrito na sua organização.

Utilizando-se do exemplo do amor, Badiou (2006Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil.) propõe que o sujeito estaria no processo que se movimenta entre o Um e o Dois. O dois, isoladamente, não é distinto da lógica do um, pois nele encontramos o Um duplicado em dois Uns. O Um continua lá, soberano, só que agora confrontado com seu oposto, este também unificado em sua própria identidade. O sujeito, para Badiou, estaria na subversão dessa lógica, em que um movimento, urgido pela verdade, transita no entre-dois, deslocando-se da lógica predicativa e situando um lugar des-localizado. O processo de uma verdade faz existir a diferença, em diagonal à clássica oposição entre duas identidades. É a própria (in)diferença, não mais encarcerada pelas identificações, que, como movimento, presentifica o poder subversivo de uma verdade.

Não sendo nem origem, nem resultado, o sujeito é uma configuração local excedentária de uma situação. O fato de o sujeito se dar localmente não significa que ele, ou sua verdade, coincidam com a experiência (apresentação). O que determina o processo de construção de uma verdade é um nome supranumerário, que, apesar de não ser transcendente, se desloca da localização. Na apresentação do sujeito, há algo além do que a pura apresentação ou do que a pura experiência. E as nomeações geradas pelo sujeito não têm, em geral, referentes na situação original. Elas designam termos “que ‘terão sido’ apresentados numa nova situação, aquela que resulta da adjunção à situação de uma verdade (indiscernível) dessa situação.” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 312)

Por ter sua existência interditada, a verdade, para Badiou, não é causa do sujeito mas seu estofo. A causa do sujeito é o acontecimento, existência efêmera e impossível, no território de uma verdade que se apresenta não propriamente como elemento, mas como claudicação das veridicidades unificadas. Este ,porém, só se torna efetivo pela nomeação, sendo que “o caráter essencial dos nomes, os nomes da língua-sujeito, se prende, ele próprio, à capacidade subjetiva de antecipar, por forçamento, o que terá sido verídico, do ponto de uma verdade suposta” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 338). O referente a que se referem esses nomes, apenas o serão “sob a hipótese de que o indiscernível já terá sido completamente descrito pelo conjunto das condições que, por outro lado, ele é” (Badiou, 1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988), p. 338).

Referências

  • Badiou, A. (1988). L’être et l’événement Paris: Seuil.
  • Badiou, A., & Rocha, R. (1995). Política, partido, representação e sufrágio: A polêmica entre Alain Badiou e Ronald Rocha Belo Horizonte: Projeto.
  • Badiou, A. (1996). O ser e o evento (Borges, M. L. X. A., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1988)
  • Badiou, A. (2006). Logiques des mondes Paris: Seuil.
  • Badiou, A. (2008). Introduction à L’être et l’événement et à Logiques des mondes. In Université Technique Nationale d’Athénes, 30 janeiro 2008 Atenas: UTN. Recuperado de http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/Athenes.htm
    » http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/Athenes.htm
  • Badiou, A. (2013). L’immanence des vérités. In École Normale Supérieure, 03 maio 2013 Paris: ENS. Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/12-13.htm
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  • Garcia, C. (1994). Psicanálise, política, lógica São Paulo: Escuta.
  • Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20 Rio de Janeiro: Jorge Zahar .
  • Lacan, J. (2003). O aturdito. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Obra originalmente publicada em 1972)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2014
  • Revisado
    11 Mar 2015
  • Aceito
    06 Abr 2015
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