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Desigualdades sociais na América Latina: outros olhares, outras perguntas

RESENHAS

Fábio Lopes Alves1 1 . Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: fabiobidu@hotmail.com

de José Rogério Lopes e Jose Luiz Bica de Mélo (orgs). Desigualdades sociais na América Latina: outros olhares, outras perguntas (São Leopoldo : Oikos Editora, 2010)

Velha temática. Novos olhares. Assim podemos definir o livro Desigualdades sociais na América Latina: outros olhares, outras perguntas que, com auxílio financeiro da Capes, foi lançado em novembro de 2010, pela Oikos Editora. O leitor que está habituado a associar desigualdade à falta de renda não pode deixar de consultar esse livro, mas sabendo que ele irá tirá-lo de sua "zona de conforto". Afinal, um dos potenciais da obra é não limitar a discussão da desigualdade somente pela perspectiva da renda. O leitor que se interessa por livros que tratam das diversas faces da desigualdade, do mesmo modo, não pode deixar de conferir a publicação, pois os novos olhares e as novas perguntas, amarrados ao rigor teórico e metodológico efetuados pelos autores, trarão significativa contribuição ao conhecimento existente da temática. São, por essas e outras razões, perceptíveis somente com a própria leitura do livro, que a obra não pode faltar em uma biblioteca de Ciências Sociais, bem como no acervo de pesquisadores da desigualdade.

O livro organizado por José Rogério Lopes e José Luiz Bica de Mélo, contém nove capítulos, escritos por conferencistas do II Simpósio Nacional Desigualdades, Direitos e Políticas Públicas, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

É fascinante como os autores, partindo de um olhar desde o Cone Sul e da região Andina da América do Sul, relacionam a temática da desigualdade com democracia, cidadania, movimentos sociais, racismo, meio ambiente, direitos sociais entre outros. O prazer da leitura se dá pela maneira como cada capítulo está, de certa forma, amarrado aos demais pela ótica da desigualdade. Uma das características da obra é a pluralidade teórica e metodológica presente nos textos e o rigor que os autores seguem, ao propor novos olhares e novos questionamentos. É por esses novos olhares e novos questionamentos que, ao final da leitura de cada capítulo, torna-se necessária uma pausa para reflexão e, principalmente, digestão das análises tratadas. Afinal, cada texto se constitui, por si só, numa aula de Ciências Sociais, cujo conteúdo são as diversas faces da desigualdade na América Latina.

Desse modo, o objetivo desta resenha consiste em apresentar que "outros olhares" sobre a questão da desigualdade são esses, presentes ao longo dos nove capítulos do livro. Afinal, o grupo de autores se propõe, justamente, a olhar de modo diferenciado para a temática, com novas perguntas.

Apesar do livro não se encontrar organizado por seções, para fins didáticos irei apresentar os textos em três blocos. Inicialmente, ressalto em alguns textos o convite que os autores fazem para novas reflexões metodológicas quando o assunto é desigualdade. Em seguida, apresento os textos que se valem de dados estatísticos para mensurar algumas formas de desigualdade. Por fim, destaco o potencial interdisciplinar do livro, ao mostrar como alguns autores se empenham em relacionar o tema da desigualdade com meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

Novos olhares para compreensão das desigualdades: interfaces teóricas e metodológicas

No texto Pobreza e desigualdade na agenda das políticas públicas, a presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, Celi Scalon, traz importantes considerações e prescrições metodológicas sobre como o campo das Políticas Públicas deve ser tratado no âmbito das Ciências Sociais. A autora faz um balanço sobre o espaço ocupado por essa área nas Ciências Sociais para, em seguida, articular os conceitos de políticas públicas com desigualdade e pobreza. Scalon desfaz algumas confusões em torno dessa temática de pesquisa e aponta para os riscos que trabalhos puramente normativos e prescritivos podem oferecer. Não obstante, a socióloga se preocupa em apontar caminhos para que tais riscos sejam evitados. Dialogando com a teoria de Jonh Rawls, analisa a pobreza e a desigualdade como problemas políticos. A partir de Amartya Sen, enfatiza a necessidade da não redução do conceito de pobreza à noção de desigualdade de renda. Por fim, fundamentada em Robert Putnam, revela que a escolaridade não deve ser vista como a solução mágica para as ampliações das oportunidades, bem como criação de uma sociedade mais igualitária.

Nessa linha de interpretação metodológica, o antropólogo José Rogério Lopes em Territorialidades urbanas, desigualdades e espaços de coexistência, ao examinar os desafios urbanos e as dinâmicas de exclusão, traz em seu texto um olhar diferenciado sobre as desigualdades. Lopes se vale de etnografias para discutir a subjetividade do "não-dito" e do que é "dito" por quem pesquisa.Ressalta que explorar outras modalidades de levantamento de dados torna-se necessário, pois os trabalhos sobre desigualdade "mostram como somos pobres em nossos procedimentos de análise, sobretudo quando privilegiamos as estatísticas" (LOPES, 2010, p. 101). Portanto, o olhar inovador desse texto está justamente em não negar a importância das estatísticas, mas ao mesmo tempo, apontar para a contribuição que os trabalhos de campo podem oferecer aos estudiosos da temática.

Aliando a importância do trabalho de campo para os estudos sobre desigualdade e o relacionando com as políticas de superação do racismo, Rita de Cássia Fazzi, no capítulo Direito à igualdade: democracia racial e racismo no Brasil, retoma o tema da miscigenação racial pela ótica de autores consagrados como Gilberto Freyre, Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, entre outros. A partir dessa base teórica situa o debate sobre racismo no Brasil e interpreta as diversas faces do preconceito racial, bem como seu modo de exercício entre crianças de sete a nove anos. O diferencial do texto está na capacidade de, diante da tarefa nada fácil que é, para uma adulta que pesquisa crianças, adentrar no universo infantil e captar os diferentes códigos de preconceito racial. Acresce-se ainda, a contribuição da autora ao oferecer subsídios metodológicos de como fazer trabalho de campo com crianças.

O sociólogo uruguaio Carlos Gadea, no capítulo Dimensões analíticas para compreender as ações coletivas na atualidade, reforça os novos olhares metodológicos presentes ao longo do livro. Ressalta a necessidade de o pesquisador, ao discutir as dinâmicas dos movimentos sociais, demarcar e descrever o "lugar do seu olhar". Desse modo, enfatiza e propõe novas reflexões diante do deslocamento temático que houve nos últimos dez anos, de modo que "a sociologia dos movimentos sociais, tal qual vinha se desenvolvendo analítica e tematicamente, teve uma silenciosa retirada no âmbito acadêmico nacional" (2010, p. 42).

A mensuração de algumas faces da desigualdade

A cientista política uruguaia Constanza Moreira, no texto Democracia, cultura política y desigualdad em América Latina: uma vison desde El Cono Sur, após efetuar amplo debate sobre a atuação dos partidos de esquerda no Cone Sul, analisa o impacto redistributivo dos governos de esquerda. Fundamentada em uma sólida base de dados estatísticos e conceituais, analisa e mensura algumas políticas de transferências de renda em países como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Ao se questionar qual o impacto de programas como bolsa família e outros programas similares na América Latina sobre a dinâmica da pobreza e desigualdade, a autora, amparada em amplo referencial teórico, conclui: um terço da redução da desigualdade pode ser explicado por programas dessa natureza.

Ainda se valendo de dados estatísticos para mensurar algumas faces da desigualdade, através do texto Cidade planejada versus cidade corrompida: aspectos da desigualdade e da vida urbana, Leandro Roberto Neves focaliza seu olhar no estado de Roraima. A investigação aponta para o significativo número de migrantes no estado, o baixo nível de educação da população, a expressiva quantidade de pessoas que chegam ao estado para trabalhar, sobretudo, no setor público. No entanto, a perspicácia do olhar do autor nesse texto está em revelar que há um fluxo contínuo de saída dos trabalhadores para outros estados em função da dificuldade de adaptação, distância geográfica, dificuldades de transportes, custo de vida, entre outros. Por fim, ao longo do texto é defendida a tese dos sujeitos em trânsito em função das representações apontarem para o constante sentimento de não-lugar e o intenso desejo de saída do local por boa parte dos entrevistados.

Desigualdade meio ambiente e desenvolvimento sustentável

O cientista político boliviano Hugo Mansilla, no texto Desigualdad, medio ambiente y desarrollo sostenible en el área andina de América Latina: un esbozo interpretativo provisório, partindo do princípio que a destruição do ecossistema não afeta todos os setores sociais de modo igual, toma três áreas geográficas diferenciadas no âmbito andino e analisa as conexões entre crises ecológicas e desigualdade social. Ressalta as nítidas desvantagens das populações subalternas, por terem sido as mais afetadas pelos danos ambientais. Ao tecer importantes críticas sobre o imaginário popular, o autor defende a necessidade de maiores reflexões políticas filosóficas em torno da dialética da desigualdade social e desenvolvimento ecológico.

No capítulo Desigualdades, capital social e desdobramentos dos conflitos socioambientais, Aloísio Ruscheinsky imprime importante contribuição às Ciências Sociais ao analisar a dinâmica da gestão ambiental relacionando-a com a questão das desigualdades. Merece destaque, nesse texto, a maneira como o autor se apropria da teoria e o manejo que faz dela frente à empiria dos conflitos socioambientais. Dito de outro modo, vale a pena conferir como as noções de campo e capital social, formuladas inicialmente por Pierre Bourdieu, são utilizadas para interpretar a capacidade de ação dos atores sociais no campo da gestão ambiental. Sem dúvida, é um trabalho que deixa importante contribuição para novas reflexões sobre modos de vida sustentáveis, contribuindo com seu olhar inovador para um melhor entendimento das desigualdades, educação ambiental, gestão ambiental, conflitos socioambientais, entre outros.

Ainda no contexto dessa discussão ambiental, há o texto Natureza, culturas, poderes, onde o sociólogo Jose Luiz Bica de Mélo tece importantes reflexões sobre a sociedade e a natureza de nosso tempo. A discussão, fundamentada em amplas referências sociológicas e antropológicas, apresenta resultados de uma pesquisa conduzida pelo autor, que analisa os discursos dos empresários agrícolas do setor de produção de arroz no sul do Brasil e os usos sociais das águas na produção de arroz, além de fazer ampla crítica à racionalidade técnica. O autor argumenta que um tipo de "racionalidade" ocidental não somente separou os diferentes saberes, mas também, segmentou o objeto de conhecimento, ao separar Natureza e Cultura, e que somente a inclusão dos seres humanos no conceito de natureza pode nos possibilitar um caminho de compreensão da Natureza e, portanto, da Cultura ou da Sociedade (MELO, 2010, p, 156).

Aqui, dada a limitação que uma resenha nos impõe, muitos elementos de crucial importância tiverem de ser deixados de fora. A ideia foi registrar aos estudantes, pesquisadores e professores que trabalham com a temática desigualdade, que o mercado editorial brasileiro acaba de disponibilizar uma importante ferramenta teórica e metodológica que merece um olhar atento por parte dos leitores e apreciadores das ciências sociais e das análises sobre desigualdades. Essa é uma daquelas leituras que, a cada página, oferece novos questionamentos e novos olhares diante da realidade discutida.

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    . Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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