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O português outro: entre mães e professoras de Letras

Non-standard Brazilian portuguese: between mothers and professors of Letras

Resumos

Neste texto, fazemos referência a um estudo no qual ouvimos professoras de Letras quanto aos sentidos que veiculam em seus discursos acerca de formas outras de português quando interagem com seus alunos e com pessoas de sua família, principalmente, com seus filhos, ou seja, quando educam dentro e fora da escola, tendo em vista a ruptura herética encetada pela sociolingüística, ao afirmar a heterogeneidade, a variação e a mudança como essência de toda língua, contra os princípios de homogeneidade, uniformidade e conservação, cultivados pela longeva tradição gramatical e naturalizados pelo senso comum. Pela maior familiaridade com os sentidos engendrados no universo da lingüística, professores de Letras, supostamente, deveriam figurar, nas comunidades sociais de que são membros, como vetores da transformação da opinião pública, dos discursos sociais sobre quaisquer formas de alteridade lingüística. Que gestos de interpretação sobre as variedades de português, professoras/mães cultivam entre os alunos e os filhos? Que relações se estabelecem entre o Discurso do Um (DU) e o Discurso do Múltiplo (DM) em práticas de educação lingüística protagonizadas por mães/ professoras de Letras?

discurso do um; discurso do múltiplo; educação lingüística


In this text, we refer to a study in which we heard professors of Letras concerning the meanings they produce in their discourses about forms of non-standard Brazilian Portuguese as they interact with their students and persons of their family mainly their children, that is, when they educate either in or out of school respectively. Our interest departs from the heretic rupture carved by Sociolinguistics when it embraces the viewpoint that heterogeneity, variation and change constitute the essence of every language against the principles of homogeneity, uniformity and conservation cultivated by the long-lived grammar tradition and naturalized by common sense. In view of their vast familiarity with the meanings engendered in the universe of Linguistics, professors of Letters allegedly should figure in the social communities to which they belong as vectors of transformation of public opinion and of their social discourses about all forms of linguistic differences. What gestures of interpretation regarding the varieties of Brazilian Portuguese do these women as professors of Letters and mothers nurture between their students and their own children? What relations are set up between the Discourse of the One and the Discourse of the Many in practices of linguistic education lived by mothers/professors of Letters?

discourse of the one; discourse of the many; linguistic education


ARTIGOS

O português outro: entre mães e professoras de Letras

Non-standard Brazilian portuguese: between mothers and professors of Letras

Maria Inês Pagliarini Cox

Professora do Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem MeEL/UFMT, Mato Grosso, Brasil. Membro do GT Transculturalidade, Linguagem e Educação da ANPOLL. lcox@terra.com.br

RESUMO

Neste texto, fazemos referência a um estudo no qual ouvimos professoras de Letras quanto aos sentidos que veiculam em seus discursos acerca de formas outras de português quando interagem com seus alunos e com pessoas de sua família, principalmente, com seus filhos, ou seja, quando educam dentro e fora da escola, tendo em vista a ruptura herética encetada pela sociolingüística, ao afirmar a heterogeneidade, a variação e a mudança como essência de toda língua, contra os princípios de homogeneidade, uniformidade e conservação, cultivados pela longeva tradição gramatical e naturalizados pelo senso comum. Pela maior familiaridade com os sentidos engendrados no universo da lingüística, professores de Letras, supostamente, deveriam figurar, nas comunidades sociais de que são membros, como vetores da transformação da opinião pública, dos discursos sociais sobre quaisquer formas de alteridade lingüística. Que gestos de interpretação sobre as variedades de português, professoras/mães cultivam entre os alunos e os filhos? Que relações se estabelecem entre o Discurso do Um (DU) e o Discurso do Múltiplo (DM) em práticas de educação lingüística protagonizadas por mães/ professoras de Letras?

Palavras-chave: discurso do um; discurso do múltiplo; educação lingüística.

ABSTRACT

In this text, we refer to a study in which we heard professors of Letras concerning the meanings they produce in their discourses about forms of non-standard Brazilian Portuguese as they interact with their students and persons of their family mainly their children, that is, when they educate either in or out of school respectively. Our interest departs from the heretic rupture carved by Sociolinguistics when it embraces the viewpoint that heterogeneity, variation and change constitute the essence of every language against the principles of homogeneity, uniformity and conservation cultivated by the long-lived grammar tradition and naturalized by common sense. In view of their vast familiarity with the meanings engendered in the universe of Linguistics, professors of Letters allegedly should figure in the social communities to which they belong as vectors of transformation of public opinion and of their social discourses about all forms of linguistic differences. What gestures of interpretation regarding the varieties of Brazilian Portuguese do these women as professors of Letters and mothers nurture between their students and their own children? What relations are set up between the Discourse of the One and the Discourse of the Many in practices of linguistic education lived by mothers/professors of Letters?

Keywords: discourse of the one; discourse of the many; linguistic education.

1. DAS RAZÕES

A leitura purista e inquisitorial que o senso comum ainda hoje faz de fenômenos de alteridade lingüística muito nos incomoda, uma vez que é fonte de estigma, preconceito e minoritarização de línguas e/ou dialetos. Inumeráveis são os episódios de manifestação de purismo lingüístico que presenciamos nas avaliações cotidianas de formas outras de português que não a padrão. Dois casos ganharam notoriedade nos últimos anos, um tendo na mira os estrangeirismos e o outro, o internetês. À margem dos conhecimentos produzidos pela lingüística, teórica e aplicada, a maioria das pessoas continua vendo os estrangeirismos e as formas de expressão engendradas contemporaneamente pelas interações via internet como uma ameaça à integridade e à identidade da língua portuguesa.

No caso dos estrangeirismos, quem não se lembra do Projeto de Lei 1676, apresentado à Câmara dos Deputados, em 1999, pelo deputado Aldo Rebelo, que taxava "todo e qualquer uso de palavra ou expressão estrangeira como lesivo ao patrimônio cultural brasileiro e punível na forma da lei" (Art. 4º.)? O Projeto gerou uma calorosa polêmica, envolvendo estudiosos da linguagem empenhados em apontar as impropriedades e os equívocos da posição defendida pelo deputado. Acabou por ser o argumento de uma considerável produção bibliográfica em que o purismo e o anti-estrangeirismo são contundentemente rebatidos com o apoio de argumentos científicos produzidos pela lingüística, a exemplo do livro Estrangeirismos: guerra em torno da língua, organizado por Carlos Alberto Faraco e publicado em 2001.

No caso do internetês, ainda não sabemos de projeto de lei em tramitação que proíba o seu uso. Contudo, não estranharemos se logo nos depararmos com um; afinal se houve quem tentasse legislar sobre os estrangeirismos - "prática abusiva, enganosa e danosa" - em nome da proteção, defesa e promoção da língua portuguesa, não tardará a aparecer algum espírito conservador que legisle, inutilmente, sobre os males do internetês: o que não falta é parlamentar sem bandeira legítima para empunhar. A matéria tem figurado como presença obrigatória nas pautas de debate da mídia. Pesquisadores de diferentes campos da lingüística são insistentemente convocados a falar sobre o tema, mas, quase sempre, desconcertam a audiência porque, para eles, o internetês não é sintoma de degeneração da língua, mas de criação, de florescência de um gênero que não existia. E para servir a esse gênero, a escrita teve, paradoxalmente, de ser re-inventada como meio de interação à distância em tempo real, vocação que não era a sua. É desconcertante ter de ouvir da boca de quem se esperam palavras afinadas com a tese da degradação do português que "a língua simplesmente muda... nem para o bem nem para o mal" (Faraco, 2001, p. 8). Entre as ações de corrigir ou explicar um fenômeno de linguagem verbal, cientistas ficam com a última.

Diante de casos como os aqui lembrados, estudiosos da linguagem são obrigados a admitir que o conhecimento que produzem permanece na torre de marfim da academia, incapaz de afetar o senso comum. Possenti (2001, p. 7) afirma que, apesar de a lingüística estar no mercado há muito tempo, ela ainda "não se popularizou. A rigor é como se não existisse. (...) é como se não tivesse havido a revolução copernicana nos estudos da linguagem". Em tom não menos incisivo, diz Faraco (2001, p. 39-40) que, mesmo após 40 anos de sua introdução nas universidades brasileiras, "a lingüística permanece invisível e inaudível para a sociedade em geral".

Em vista desse quadro desalentador, lingüistas, lingüistas aplicados, sociolingüistas, analistas de discurso se auto-convocam a fazer a voz da ciência soar em praça pública, ou de modo mais adequado às práticas sociais e comunicativas da contemporaneidade, soar em espaços vários da mídia, em contraponto ao discurso purista, de modo a produzir mudanças no senso comum acerca da realidade lingüística brasileira. Eles reconhecem que é preciso "travar uma guerra ideológica ao normativismo" (Faraco, 2002, p. 44); que é preciso "colocar a voz da lingüística no campo das batalhas culturais como uma voz ao menos eqüipolente com as demais" (Faraco, 2001, p. 39); que é preciso fazer as descobertas das pesquisas lingüísticas ultrapassarem a esfera acadêmica, tornando-se "instrumentos sociais efetivos para a mudança das concepções de língua que vigoram em nossa sociedade" (Bagno, 2003, p. 151); que é preciso assumir "o papel político que têm (ou deveriam ter) na transformação do senso comum lingüístico, transferir para a coletividade mais ampla os conhecimentos adquiridos em suas investigações científicas" (Bagno, op. cit., p. 153); que é preciso "discutir de forma mais sistemática e mais incisiva todas as situações de preconceito lingüístico, especialmente as veiculadas pela mídia" (Scherre, 1996, p. 37); que é preciso, além de balizar teórica e empiricamente a revisão da norma-padrão no Brasil, desafiar "os reacionários comandos paragramaticais, que hoje, aboletados nos meios de comunicação de massa, dão o tom do discurso sobre a língua na sociedade" (Lucchesi, 2002, p. 89).

Nas últimas décadas do século XX e primeira do XXI, temos visto todas as formas de diversidade ganharem status de cidadania e, inclusive, a proteção da lei, menos a diversidade lingüística que continua a ser lida como erro, desvio da boa norma, algo torto que precisa ser endireitado, corrigido. Mesmo entre professores universitários, o preconceito lingüístico não é percebido e tratado como preconceito. Quem não teve a oportunidade de interagir com colegas de outras áreas, comprometidos com causas populares e militantes contra discriminação de raça, cor, gênero, opção sexual e religião que se revelam inadvertida e cegamente preconceituosos em relação à alteridade lingüística? Lingüistas, imaginados como representantes da gramática, costumam emprestar seus ouvidos a histórias dramáticas de preconceito. Um dia desses, conversava com um colega sociólogo, naturalista, defensor de causas ambientais e engajado em inúmeros movimentos de minorias e excluídos. Lá pelo meio da conversa, certamente pensando impressionar uma professora de Letras, confessou-me ficar arrepiado quando seus alunos dizem "menas", forma que classifica como "um atentado à eufonia". De que adiantaria eu entrar com o argumento lingüístico de que tais alunos, ignorando o decreto gramatical de que "menos" é uma palavra invariável, seguem uma regra geral da língua adjuntos adnominais concordam em gênero com o nome. Quem diz "menas gente", "menas pessoas" certamente não diz "menas homens", "menas rapazes". A esse meu colega sociólogo, como àquele que Possenti (2000, p. 10) alude na crônica Anacoluto, aplica-se perfeitamente o comentário: "apesar de toda sociologia que leu e escreveu, sua fonte para questões de linguagem é a modesta gramatiquinha normativa. Se fizesse sociologia com manuais do mesmo tipo não faria sociologia".

Engana-se quem pensa que os departamentos de Letras são o paraíso da Lingüística, pois até neles temos de nos defrontar/confrontar com a posição purista reinante entre colegas. As reuniões de colegiado costumam ser ocasião de discussões ruidosas acerca do desempenho lingüístico indesejável dos alunos. Somos acusados de propagar o vale-tudo da língua e responsabilizados pela crise da escrita. E a volta ao ensino normativo é sempre invocada como a solução para o problema, como exemplo do que teria dado certo no passado. O fato de assumirmos a posição de que toda língua é heterogênea, dinâmica e variável não significa encorajamento ao abandono do ensino de uma norma culta. Sabemos que as normas lingüísticas estão sujeitas a juízo de valor, são hierarquizadas, e que as normas associadas aos grupos urbanos mais abastados e com nível superior de escolarização são as mais bem avaliadas, legitimadas, e, como tais, consideradas modelares. Mais do que ninguém, estamos conscientes do custo social de o aluno ficar confinado ao gueto de uma língua materna quando essa língua materna não corresponde ao modelo legitimado. Discordamos, sim, do queé tido/imposto como padrão: um códice normativo com normas lingüísticas anacrônicas e idealizadas que não são realizadas por nenhum grupo social. Propomos uma revisão dessa essência platônica de língua, inatingível pelos usos concretos, com base nas normas cultas efetivamente verificadas na realidade lingüística brasileira. Além disso, discordamos do comoa língua é habitualmente ensinada nas escolas - ensino gramatical e prescritivo, precedendo o trabalho com os usos lingüísticos, mas isso é tema de uma fecunda discussão e farta bibliografia que não vamos aqui retomar.

No curso deste texto, interessa-nos ouvir professoras de Letras quanto aos sentidos que veiculam em seus discursos acerca de formas outras de português quando interagem com seus alunos e com pessoas de sua família, principalmente, com seus filhos, ou seja, quando praticam educação lingüística dentro e fora da escola, tendo em vista as contradições que se apresentam diante de nossos olhos e a inocultável alienação do senso comum em relação ao plurilingüismo inerente a toda língua. Pela maior familiaridade com os sentidos engendrados no universo da lingüística, professores das Letras, supostamente, deveriam figurar, nas comunidades sociais de que participam, como vetores da transformação do senso comum quanto ao modo de significar a alteridade lingüística. Que gestos de interpretação sobre as variedades de português professoras ensinam aos alunos e aos filhos? Temos presente que a educação familiar cala mais fundo do que a educação escolar, podendo ser um fator decisivo para a mudança dos discursos sociais que circulam para além do reduto estreito das ciências lingüísticas. Estamos pensando em propagação de sentidos que tenham o poder de, a médio ou longo prazo, afetar e mudar os sentidos hoje hegemônicos no senso comum acerca de diferenças lingüísticas.

No recorte do espaço discursivo, mergulhando no complexo campo das idéias lingüísticas hoje em circulação, vislumbramos o inevitável enredamento entre dois discursos que dizem a língua: o Discurso do Um (DU) e o Discurso do Múltiplo (DM)1 1 Neste texto, o termo DU pode ser parafraseado por discurso gramatical e DM por discurso lingüístico ou sociolingüístico. . O DU enraíza-se na longeva tradição gramatical e afirma a ideologia purista, segundo a qual há um português; o resto é caco, é lixo, é doença a ser curada pelos médicos da língua que prescrevem, como remédio, a norma padrão, dosada em lições de gramática. O DM constitui-se no solo da lingüística moderna, nutrido principalmente pelas disciplinas e teorias que se recusam a extrair a língua de seus condicionantes sociais, históricos, culturais, políticos e ideológicos. O DM afirma que o nome da língua é singular, mas sua existência é sempre plural. Assim, o português transforma-se em portugueses, diferentes entre si, mas todos eles lingüística e estruturalmente perfeitos. Ninguém melhor do que o escritor José Saramago para nomear poeticamente o caráter múltiplo de nossa língua: "Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa; há línguas em português"2 2 Enunciado extraído da fala de José Saramago no documentário produzido por Victor Lopes Língua: vidas em português. . Interpelados pelo DM, seríamos levados a dizer que "somos de fato multilíngües em português" (César e Cavalcanti, 2007, p.63), e que somos sempre mestiços e transglóssicos (Cox e Assi-Peterson, 2007, p.42), já que a passagem de um português para outro nunca se faz de modo automático e pleno, sempre traz consigo a memória das nossas outras vozes. Lingüisticamente, somos sempre impuros.

O corpus discursivo aqui analisado foi obtido por meio de entrevistas realizadas à guisa de desenvolvimento do projeto Os professores dos cursos de Letras em Mato Grosso e as fricções lingüísticas na sociedade brasileira. Como se trata de um trabalho filiado à tradição de estudos em Análise de Discurso (AD), não podemos deixar de discutir o estatuto que a entrevista assume nesse quadro disciplinar. Concordamos com Rocha, Daher e Sant'Anna (2004, p. 162), que, no campo da AD, a entrevista seja tratada como "um dispositivo de produção de textos a partir de uma ótica discursiva - produção situada sócio-historicamente, como prática linguageira que se define por uma dada configuração enunciativa que a singulariza". Nessa perspectiva, a entrevista não é vista como um instrumento que permite extrair a realidade ou a verdade dos sujeitos entrevistados, mas como uma forma de aceder a uma "massa de textos" que o pesquisador supõe já existir, mas que não são imediatamente disponíveis no arquivo. "Em outras palavras, só se entrevista quem já 'sabe' algo a respeito de determinado tópico (isto é, quem é capaz - ou quem vem sendo capaz - de produzir texto(s) a respeito do que se deseja saber)" (op. cit., p. 173). Cabe ao pesquisador armar estratégias de interlocução que incitem os entrevistados a produzirem textos interpelados por discursos que já haviam gerado uma massa de textos anteriormente. O dispositivo "entrevista" torna possível retomar/atualizar/condensar esses discursos. Contudo, não podemos perder de vista que os textos gerados - retomados/condensados - por esse dispositivo resultam de um processo de enunciação conjunta entre entrevistado-entrevistador, singularizando-se, assim, em relação aos textos anteriores, pela inscrição dos rastros dessas condições de produção.

Entrevistamos professores da Universidade Federal de Mato Grosso, Universidade Estadual de Mato Grosso e Centro Universitário de Várzea Grande, todos atuando em cursos de Letras. Originariamente gravadas, as entrevistas foram transcritas, constituindo-se em superfície permeável à captura das posições de sujeito. Dentre os entrevistados, selecionamos dez professoras, as que eram também mães. Examinamos enunciados produzidos por essas professoras em resposta a apenas três perguntas do roteiro-guia, a primeira topicalizando indicadores e as duas outras, marcadores lingüísticos: 1) Em sala de aula, quando você escuta alunos dizendo [doch], [tchuva], ou [córrétamenti], ou [paichta], o que você pensa e como você reage? 2) Em sala de aula, quando você escuta um aluno dizendo "ingreis", "pranta", "moiado", "os menino chegou", "menas gente", "ponhei o livro na pasta", o que você pensa e como reage? 3) Se estiver em casa e escutar seu filho ou alguém muito próximo dizendo "ingreis", "pranta", "moiado", "os menino chegou", "menas gente", "ponhei o livro na pasta", o que você pensa e como reage?

2. DOS INDICADORES LINGÜÍSTICOS

Lendo o conjunto de enunciados produzidos como respostas à questão 1, buscamos apreender a interpretação das professoras em relação a diferenças lingüísticas, designadas pelo termo "indicadores", que porventura se manifestem na fala de seus alunos. "Indicadores são traços de linguagem que distinguem um grupo de outro - digamos, uma região de outra-, mas não distinguem um subgrupo de outro na mesma região" (Possenti, 2002, p. 321). Indicadores não dividem os falantes pelo nível sócio-econômico e costumam não ser afetados pelo grau de formalidade da situação. Se reservarmos o termo "dialeto" para designar variedades lingüísticas ligadas a regiões, podemos dizer que indicadores são traços dialetais. Na pergunta que fizemos para incitar a enunciação acerca do tema, apresentamos traços como: a monotongação e a palatalização da fricativa alveolar na posição de travamento de sílaba em [doch] e a africação da fricativa em [tchuva], comumente identificados com o falar cuiabano; o abaixamento das vogais pretônicas em [córrétamenti], com o falar pernambucano e outros falares do nordeste; a ditongação e a palatalização da fricativa alveolar na posição de travamento de sílaba em [paichta], com o falar carioca. Eis os enunciados formulados pelas professoras3 3 As siglas E1-E18 referem-se aos enunciados analisados e S2-S10 aos sujeitos entrevistados. :

E1, S2. eu acho normal / não tenho problema com isso, não / indica um lugar, a origem, a referência do aluno, né / já andei bastante, morei em vários estados / às vezes, né, a gente consegue identificar sem precisar perguntar

E2, S3. penso que ele vem de uma região diferente / que é uma forma específica de certo lugar onde ele cresceu

E3, S4. eu penso que ele fala de acordo com o local que ele foi criado / de acordo com a comunidade que ele está inserido / mas eu acho legal até, porque eu acho até bonito essa mistura de línguas, de musicalidades diferentes / porque eu trabalho com literatura e eu acho um barato esse tipo de coisa

E4, S5. na hora eu já penso que não é da minha região / pergunto de onde é... / e comento com os alunos que ele fala diferente, pra evitar um certo preconceito / se não os alunos já vão começar a rir / os alunos começam a achar diferente / e esse diferente deles, é no sentido da zombaria / já aproveito pra mostrar... / tal lugar fala assim, diferente da gente / DIFERENTE, não pior nem melhor

E5, S6. eu começo a perceber que ele... / se eu tiver numa determinada região / que ele não é daquela região / que ele é de outra / que é relacionado com a cultura de uma região

E6, S7. eu penso que é uma variedade lingüística, né / ela pode não ser a variante de prestígio, mas é mais uma variante / em todas as minhas aulas eu falo que são variantes e que umas têm prestígio e outras não / mas eu, como professora, eu, jamais, menosprezo / e dentro da minha sala, eu tento criar uma consciência também contra o preconceito lingüístico

E7, S8. minha reação é natural, porque eu sei que tem a diversidade, né / depois que a gente estuda, vê que as pessoas só falam diferente, alguns gostam outros não / eu sempre gostei de observar as variedades, mesmo antes de eu ter estudado / mas pra mim isso não tem nenhuma questão de preconceito ou restrição

E8, S9. isso já ficou tão natural pra mim, essas variantes, né, essas variedades da língua que a manifestação vem quando o outro reage a essas diferenças de falar / se o outro faz assim, eu tento levar pra perspectiva da sociolingüística / e mostrar que isso é uma variante

E9, S10. eu penso que é uma forma natural do falante / acho que o professor do ensino básico pode discriminar a forma como o aluno fala / se é errado? / eu não concordo, eu acho que nós temos que respeitar a cultura do aluno / que é o capital lingüístico dele / se ele vem dessa forma pra sala de aula, o professor tem que respeitar

Ao se pronunciarem sobre traços indicadores manifestos na fala dos alunos, as professoras esboçam seus gestos de interpretação tendencialmente alinhadas com o discurso da lingüística. Dizem pensar que isso a) é "normal", "natural"; b) é "diferença", "diversidade", "variedade", "variante" e "variação"; c) está ligado a "lugar", "origem", "região", "referência" e "cultura do aluno"; d) não deve ser alvo de "preconceito", "restrição", "discriminação", "menosprezo", "considerado erro"; e) precisa ser "respeitado" como "capital lingüístico" do aluno. Quer dizer, se o português outro é uma variedade dialetal, as professoras assumem uma posição sociolingüística, adotando o idioma próprio da disciplina e demarcando as fronteiras em relação ao discurso gramatical.

Quem diz "não tenho problema com isso, não" (E1), diz também que "alguém tem problema com isso", rememorando a polêmica constitutiva do discurso segundo - discurso relativista - em relação ao discurso primeiro - discurso purista. Essa mesma polêmica permeia também E3 e é indiciada pelo termo "até" em "legal até" e "até bonito" que evoca, como efeito de sentido, a avaliação comumente negativa dos indicadores. Quem diz dos indicadores "legal até" e "até bonito" o faz assombrado pelo fantasma do purismo que deles diria "não legal" e "feio". É uma concessão feita ao português outro, olhado do mirante da literatura, um lugar onde o desvio da norma vira recurso estilístico, licença poética. Em E4, a enunciadora alude à luta que trava com os alunos para ressignificar as diferenças lingüísticas. Ao viés etnocêntrico dos alunos que fazem do diferente algo estranhável e risível, submetendo-o a uma avaliação negativa, S5 contrapõe o viés relativista que interpreta a diferença simplesmente como "diferença", sem juízo de valor que redunde em hierarquização. Nas palavras mesmas de S5, "tal lugar fala assim, diferente da gente / DIFERENTE, não pior nem melhor". Quem diz "DIFERENTE, não pior nem melhor" acentua seu posicionamento sociolingüístico em contraposição àquele gramatical de que se afasta/aparta.

Em E1, E3 e E4, aqui comentados, é evidente a natureza interdiscursiva dos enunciados e a clivagem dos sujeitos. Contudo, parecer haver discrepâncias com relação à posição dominante nos gestos de interpretação. Em E1 e E4, a posição dominante parece ser a relativista, já em E3, a purista. Leituras semelhantes poderiam ser feitas dos enunciados E8, tendo por índice da interdiscursividade o termo "já ficou" em "isso já ficou tão natural pra mim, essas variantes, né" (se "já ficou" natural é porque não era natural); E9, por meio do termo "só" em "depois que a gente estuda, vê que as pessoas só falam diferente, alguns gostam outros não" (se "só falam diferente" é porque antes o diferente era significado como erro). Nos demais enunciados também encontram-se inscritas pistas, mais ou menos evidentes, da heterogeneidade e polêmica que os constituem.

3. DOS MARCADORES LINGÜÍSTICOS

Nesta seção, lendo o conjunto de enunciados produzidos como respostas às questões 2 e 3, buscamos apreender a interpretação das professoras/mães em relação a diferenças lingüísticas, designadas pelo termo "marcadores", que venham a se manifestar na fala de seus alunos ou filhos. "Marcadores são traços de linguagem que distinguem subgrupos classes sociais diversas dentro de uma mesma região e indicam maior ou menor formalidade" (Possenti, 2002, p. 322). Marcadores dividem os falantes pelo nível sócio-econômico e costumam ser afetados pelo grau de monitoramento da situação. No campo da sociolingüística, marcadores são próprios de "variações diastráticas ou socioletos".

Os fenômenos lingüísticos apresentados nas perguntas que fizemos às professoras/mães, ou seja, o rotacismo em "ingreis" e "pranta", o ieísmo em "moiado", a marcação não redundante do número plural nas locuções nominal e verbal na oração "os menino chegou", a flexão de gênero em "menas gente", e a conjugação de "por" como "ponhar" em conformidade com o paradigma da primeira conjugação em "ponhei o livro na pasta", identificam variedades populares de português, associadas a camadas sociais empobrecidas, menos escolarizadas e, portanto, com menor grau de letramento. Tais traços são interpretados pela sociolingüística não como transgressão de normas categóricas do português, mas como normas variáveis e previsíveis entre falantes de determinados grupos sociais. Apesar de variáveis, essas normas são encaradas como gramaticais no sentido de serem tacitamente reiteradas nos usos lingüísticos desses grupos. Elas não introduzem o caos, a desordem, a desestruturação na gramática do português, mas a multiplica.

Compreender marcadores sociais como diferença gramatical e não como deficiência é algo difícil. Observamos reações bastante diversas daquelas percebidas no confronto com os indicadores. Ninguém atribuiu às diferenças adjetivos como "natural", "normal" e, tanto na enunciação como professora quanto na como mãe, a nomeação dos exemplos como "erros" parece inevitável. Quando o português outro emerge na forma de um marcador, o espectro do purismo volta à cena, toldando o olhar nutrido pelos saberes sociolingüísticos. Vejamos.

3.1. Na escola, com os alunos...

Na leitura do conjunto de enunciados E10-E13, podemos ver que há uma dificuldade em interpretar marcadores sociais também como diferenças lingüísticas. Em E10, até há uma tentativa de categorizá-los como "variante" ("aí é uma variante também"), mas tal gesto é imediatamente contraditado pela evocação da "norma", como invariável e única ("não tem PRANTA, não existe PRANTA"). Do "sotaque", ou seja, dos indicadores, S7 diz ser "variação lingüística"; dos marcadores, não. Marcadores lingüísticos são significados como "desvio da norma", merecendo ser corrigidos, principalmente se ("nossa!") aparecem na fala de um aluno de Letras que, como futuro professor, "tem até que ter consciência de seu ("dele") erro para saber ". Com certeza, um complemento possível para preencher a predicação interrompida pela hesitação seria "ensinar a norma aos alunos", a norma havida no singular e não no plural. A correção é primeiro indireta, por meio de repetição/insumo da norma padrão ("eu procuro ser o mais natural possível / eu procuro repetir PLANTA"). Porém, se essa estratégia indireta não surtir efeito, S7 diz lançar mão da correção explícita ("Olha, não é PRANTA"). Quer a correção seja explícita, quer implícita, é o mesmo sentido de norma invariável e única que é por ela reiterado.

E10, S7. aí é uma variante também / só que essa é complicada, porque dentro da norma aí já é diferente / porque não tem PRANTA, não existe PRANTA / então eu falo assim... / eu procuro ser o mais natural possível... / eu procuro repetir PLANTA / e, em último caso, se ele não perceber eu explico / mas assim, em último caso, só se ele não perceber / sem eu ter que falar "olha não é PRANTA..." / porque é diferente uma variação lingüística por sotaque, do que um desvio da norma, da ortografia, da fonologia / nossa, e se falam de letras então, porque eu não dou aula só na letras né, mas aí é que tem que ser corrigido, porque é o futuro professor / tem até que ter consciência do erro dele pra saber...

Em E11, observamos, de início, um enunciador que fala interpelado pelo DM, aludindo a preceitos da pedagogia culturalmente sensível que propõe o respeito à língua materna do aluno ("a gente tem que valorizar o que ele fala / considerar a bagagem que ele traz, o meio em que ele vive, a situação, o contexto sócio-cultural"). Antecipando o provável simulacro desse enunciado como recomendação para o não ensino da norma culta, habitual entre aqueles que o traduzem pelas lentes do DU, S8 é enfático ao dizer que "o aluno deve ser levado a conhecer a variedade culta pra se sair bem nas questões, nos momentos em que a sociedade exigir, em que ele for requisitado a agir dessa forma". Percebemos, em E11, o concurso de conceitos/noções patenteados pela sociolingüística, tais como: língua como um conjunto de variedades, diferença entre as modalidades oral e escrita da língua, adequação/inadequação lingüística. Contudo, há uma derrapagem em relação a essa posição discursiva, no momento em que o rotacismo em PRANTA, um marcador social altamente estigmatizado, é patologizado ("falar PRANTA pode ser uma questão de dificuldade da língua, né / eu conheci pessoas adultas com esse problema que nunca conseguiram resolver"). Quando a avaliação social castiga em demasia o marcador social, o enunciador até pode não ler o traço como erro, mas resiste a lê-lo como diferença "natural", restando-lhe a possibilidade de interpretá-lo como distúrbio de fala.

E11, S8. dentro da sala de aula, a gente tem que ter aquela postura de não chocar o aluno / a gente tem que valorizar o que ele fala / considerar a bagagem que ele traz, o meio em que ele vive, a situação, o contexto sócio-cultural / mas ao mesmo tempo é papel da escola mostrar que na escrita ele tem que trabalhar aquela questão / não que ele necessariamente tenha que deixar de falar daquela forma / até mesmo porque você falar PRANTA pode ser uma questão de dificuldade da língua, né / eu conheci pessoas adultas com esse problema que nunca conseguiram resolver / e essa questão de concordância é importante como papel da escola mostrar que a escrita é diferente da fala / e que o aluno deve ser levado a conhecer a variedade culta pra se sair bem nas questões, nos momentos em que a sociedade, em que ele for requisitado a agir dessa forma / o papel da escola é esse, senão pra que escola?

Em E12, observamos um enunciador hesitante que, provavelmente, tem as vozes da sociolingüística assoprando aos seus ouvidos, mas não se sente suficientemente convencido por elas de que marcadores lingüísticos, como os apresentados na questão que lhe fora dirigida, sejam também apenas diferenças e não deficiências. Apresentado aos marcadores, o enunciador, referindo-se à ausência de concordância verbal e nominal, diz insistentemente que os "estranha", mas não os "recrimina". Dizendo "nunca vou recriminar ou pensar que é ignorante", o enunciador diz, também, que há quem recrimine ou pense que o outro é ignorante por apresentar marcadores sociais em sua fala, trazendo à lembrança a polêmica reinante em torno do tema. A exemplo de S8, S3 também patologiza o fenômeno do rotacismo ("quanto ao l, eu já vou imaginar que é um problema mais difícil, que é a língua pregada, que é porque ... / mas não vou achar que é ..."). Ao lermos essa frase, ficamos com a sensação de que o enunciador iria completá-lo com a palavra "erro", mas não o fez provavelmente temendo os efeitos de sentido negativos que a circundam no discurso das ciências lingüísticas. "Estranhar" opõe-se a "achar natural", atitude citada pelos sujeitos quando apresentados a traços indicadores. Há uma gradação do grau de estranhamento ("vou estranhar"; "vou estranhar um pouquinho"; "a gente percebe e meio que estranha"). Embora haja uma evitação da palavra "erro", o discurso da gramática é um fantasma que assombra o palco o tempo todo e, por fim, ganha a cena, com o exemplo do professor universitário que apresenta problemas de concordância e que leva o enunciador a pronunciar algo como "eu pensei que podia ter mais cuidado, porque é um professor da universidade...". Afinal, a palavra "cuidado" inevitavelmente nos remete ao campo semântico de "erro".

E12, S3. bom, na verdade assim... / eu não vou assim... recriminar isso não / mas eu vou estranhar / eu vou estranhar quando a gente percebe a concordância / é bobagem, assim, mas a gente percebe / mas quanto ao l, eu já vou imaginar que é um problema mais difícil, que é a língua pregada, que é porque ... / mas não vou achar que é... / quanto à concordância com certeza eu vou sim estranhar um pouquinho / mas nunca vou recriminar ou pensar que é ignorante / mas a gente percebe e meio que estranha / outro dia tinha um professor apresentando um trabalho de especialização / e ele falava muito assim, né... / e eu fiquei imaginando ele, como professor da universidade, falando assim / o problema é a concordância mesmo, né / eu pensei que podia ter mais cuidado, porque é um professor da universidade...

Em E13, os marcadores lingüísticos são significados como "erros" pelo enunciador S6 que não parece hesitar e ter problemas de consciência originários do encontro com o discurso da sociolingüística. Todavia, os marcadores nunca ("jamais eu corrijo") são nomeados como "erros" diante dos alunos que os cometem para não inibi-los. Como S7, S6 também diz optar pelo fornecimento de insumo de língua com a forma correta, para que eles tenham oportunidade de associar e refletir sobre a outra forma.

E13, S6. eu começo a falar corretamente pra ver se ele vai associando / eu vou oferecendo a forma correta, né / pra ver se ele vai associando / mas eu não corrijo /jamais eu corrijo / eu desperto ele pra que ele tente ver a forma que é correta / não corrigir de imediato / eu acho que isso vai até inibir o aluno / acho que essa é a idéia / colocar ele pra refletir a outra forma

3.2. Em casa, com os filhos...

Na seção anterior, pudemos constatar que as interpretações de marcadores pelas entrevistadas, ao serem requisitadas a se representarem como professoras, indiciam um processo de subjetivação agônico em que a identificação com o DM se retrai (mas não a ponto de não incomodar o enunciador), abrindo espaço para o DU. Nesta seção, vamos observar que, ao serem requisitadas a se representarem como mães, as entrevistadas quase se "esquecem" do DM, dele deixando raros vestígios nos enunciados.

Em E14, S8 declara, com todas as letras, que corrige seus filhos "constantemente", evocando a sentença "o correto, o ideal, é você falar assim" que costuma usar nessas ocasiões. Nessa sentença, não se divisam marcas do DM. Há um retorno ao ideal da "boa língua". Os conceitos de certo/errado e não os de adequação/inadequação balizam as ações ordinárias de educação lingüística nos encontros/interações entre mãe e filhos. S8 diz corrigir apenas os filhos ("pra outras pessoas, mesmo parente de outro grau, eu não faço isso, não"), por ter responsabilidade em relação a eles. Como mãe, deseja o melhor para os filhos. A correção não é extensiva às demais pessoas, a menos que seja solicitada por elas, não porque S8 esteja considerando a possibilidade de a língua variar e de não estar diante de erro, mas pelo temor de ameaçar a face do interlocutor ("fica uma situação mais delicada"; "pode ser meio melindroso ficar corrigindo as pessoas"). A face dos filhos pode ser descomposta, sem melindres, sem luvas de pelica; afinal é para o bem deles que são submetidos à correção.

E14, S8. pros meus filhos, eu faço a correção constantemente / se ele já sabe ou se ele não sabe, eu procuro mostrar... / o correto, o ideal, é você falar dessa forma / mas só pros meus filhos, pra outras pessoas, mesmo parente de outro grau, eu não faço isso, não / eu acho que com os meus filhos eu tenho responsabilidade, agora com as outras pessoas já fica uma situação mais delicada, né / assim, pode ser meio melindroso ficar corrigindo as pessoas... / a menos que a pessoa pergunte e peça alguma explicação / fora disso eu não fico...

Em E15, também sem meias palavras, S7 afirma: "eu corrijo na hora", mas, diferentemente de S8, deixa impressas no enunciado as pegadas das lições da sociolingüística. Termos "como preconceito", "norma de prestígio", "norma culta coloquial" convivem com "erro" e "correção". S7 carrega na alma o mal-estar de um sujeito que sabe que a língua é variável, mas que sabe também que as variedades de uma língua são desigualmente avaliadas nas/pelas sociedades estratificadas. Por isso, vive o conflito de não desejar corrigir ("eu queria que todo mundo pudesse falar do jeito que fala"), mas de se sentir obrigada a fazê-lo, pressionada pelo princípio de realidade, na forma de cobrança social ("então, com meu filho, o meio dele não permite que ele fale desse jeito"), cobrança mais incisiva por se tratar de filho de mãe professora de Letras, imaginada como guardiã da "boa língua" e como dicionário e gramática ambulantes. Apesar de a correção não se fazer sem "choque" de posições de sujeito, como mãe, S7 absolutiza a norma de prestígio, como se fosse a norma. Suas ações visam a substituir uma norma por outra e não a ampliar o repertório de normas, a desenvolver a competência comunicativa do filho.

E15, S7. eu corrijo na hora / na minha casa, sabe por quê? / porque convivendo do jeito que eu convivo, no meio social, eu sei que essas pessoas vão ser vítimas de preconceito / então, se elas não tão usando a norma de prestígio / eu corrijo na hora, principalmente porque em família, eu sei... / a minha mãe... / por que isso acontece só com a minha mãe, meu marido tem só até a oitava série, mas eu não sei o que acontece, eu não corrijo nunca, ele tem domínio da norma culta / não sei se escrita, mas essa coloquial urbana, que tem erros de concordância, mas que faz parte da norma, né, ele... / agora minha mãe, eu corrijo a minha mãe / porque ela sabe que eu sou professora então quando ela me pega no erro ela me corrige, daí eu vou encima dela também / agora, no caso de uma criança, eu penso muito no meu filho e eu tenho muito choque / eu tenho muito choque porque eu não queria que a língua fosse isso que eu já te falei / sabe eu queria que todo mundo pudesse falar do jeito que fala... / não do jeito que... / em relação a você ter que corrigir, por que eu acho que claro tem que ter uma norma, mas que a pessoa não deveria ser inferiorizada por causa daquilo / então, com meu filho, o meio dele não permite que ele fale desse jeito

Em E16, S4 diz corrigir seus filhos, mas com docilidade ("nunca fiquei brava com esse tipo de coisa, mas sempre procuro, de uma maneira agradável, fazer com que eles falem da maneira correta"). Embora dê sinais de ter perdido a inocência em relação às certezas do DU, ao realizar uma modalização autonímica da palavra "errado" pela menção das aspas ("mas ele fala muito errado / Eu vou falar errado entre aspas"), evocando a impropriedade da palavra no DM que tem como parâmetro de avaliação os conceitos de adequado/inadequado ("ele fala errado porque ele não tá lá no barzinho, ele tá numa escola"), a correção nunca se faz pela consideração do contexto, mas pela absolutização do português padrão, a exemplo do diálogo mãe-filho, encenado por S4 (" mãe, mãe nós foi..." " o que?" " nós fomos..."). A avaliação negativa que faz dos falantes da região onde reside (ela imigrara do sudeste para o centro-oeste) também exala o purismo do DU. Esses falantes são vistos como más influências para a educação lingüística de seus filhos ("sabe foi criado aqui, e as pessoas, aqui, parece que nunca conjugaram o verbo na vida"), já que eles estão mais presentes na vida deles ou têm mais crédito do que ela mesma ("as outras instituições são mais fortes... / escola, criança acredita mais na escola / então, estão mais ativas / os amiginhos da rua, né, estão... mais na vida dele que eu"). A relação com o DM é tão periférica que sequer envergonhou seu olhar preconceituoso diante da alteridade lingüística que encontrou como forasteira.

E16, S4. nunca fiquei brava com esse tipo de coisa, mas sempre procuro, de uma maneira agradável, fazer com que eles falem da maneira correta / o meu filho de 19 anos cresceu aqui, se alfabetizou aqui, e ele fala todo esse... / ele tem uma expressão que inclusive ele fala assim "nossa, chega dói" / eu falo "que coisa horrível você falar dessa maneira / mas ele fala muito errado / eu vou falar errado entre aspas / ele fala errado porque ele não tá lá no barzinho, ele tá numa escola, terminando o segundo grau e a dificuldade dele é horrível / sabe foi criado aqui, e as pessoas aqui parece que nunca conjugaram o verbo na vida / porque não têm coerência e coesão na fala, de maneira alguma, mesmo aqui na faculdade / em termos de concordância... / porque o verbo não concorda com nada / então ele fala muito "ah, ontem nós chegou..." / eu falo "que que é isso..." / e o meu pequenininho, não / o de 5 anos eu já tenho mais facilidade com isso porque ele fala "mãe, mãe nós foi..." "o que?" "nós fomos..." / ele corrige sabe... bonitinho... / mas se você não ficar pegando no pé... / as outras instituições são mais fortes... / escola, criança acredita mais na escola / então, estão mais ativas / os amiginhos da rua né, estão... mais na vida dele que eu

S3, no enunciado abaixo, usa a estratégia de, primeiro, chamar a atenção para o erro ("como é que é mesmo?" "ãh?") e, depois, repetir a forma correta ("em casa eu chamo atenção assim, né, eu repito aquilo errado pra ele perceber, né / eu faço isso / eu sempre dou um jeitinho dele aprender a outra forma"). S3 é um sujeito clivado entre as posições possibilitadas por DU e DM, contudo, em sua fala, predomina a interpelação pelo DU ("a gente fala que aceita, mas você quer que o filho aprenda o melhor, né"). O que indicia a dominância do DU é o simulacro que faz das interpretações lingüísticas a respeito do fenômeno da variação e suas conseqüências nos processos de educação informal e formal. No universo semântico da lingüística, uma língua, o português, por exemplo, é interpretada como um conjunto de variedades que, do ponto de vista estrutural, são igualmente complexas e que funcionam igualmente bem nas situações onde são faladas e para as finalidades a que servem. Diante disso, não se trata de "aceitar" a variação, mas de compreendê-la. Ensinar a variedade culta não significa ensinar a variedade estruturalmente mais complexa, mais perfeita, e muito menos "melhorar" a língua já dominada pelo filho, mas ensinar-lhe a variedade legitimada socialmente. No termo "aceitar" reverbera a tradução enviesada que enunciadores interpelados pelo DU comumente fazem dos saberes da sociolingüística. Tais enunciadores lêem a afirmação de que a língua varia como um convite/mandamento para a complacência e para o não ensino da norma culta. Ao dizer "a gente fala que aceita, mas quer...", S3 alude não à interpretação da lingüística propriamente, mas àquela que lhe é atribuída por seu Outro, o DU.

E17, S3. na verdade eu chamo atenção / "como é que é mesmo?" "ãh?" / eu repito se ele fala alguma coisa / eu repito o correto pra ele perceber que... / porque a gente fala que aceita, mas você quer que o filho aprenda o melhor, né / então, eu repito pra ele perceber que ele podia melhorar / então, eu chamo atenção, em casa eu chamo atenção assim, né, eu repito aquilo errado pra ele perceber, né / eu faço isso / eu sempre dou um jeitinho dele aprender a outra forma

Em E18, S5 também baliza sua reação aos marcadores lingüísticos, quando eles emergem nos encontros domésticos, pelo DU, interpretando-os como erros que devem ser corrigidos. Se está interagindo com o filho não o corrige diretamente, mas recorre à estratégia de usar "a forma correta, várias vezes". Diz: "com a criança que tá aprendendo a falar, quanto mais ela ouvir como você quer que ela fale, ela vai falar". Porém, se o interlocutor infrator é o marido, a correção é explícita, sem a preocupação de ameaçar-lhe a face e de fornecer-lhe insumo lingüístico ("oh, não é PROBREMA não, fala PROBLEMA, pelo amor de deus"). A forma de corrigir filho e marido pode variar, mas o motivo que a leva a corrigir é o mesmo a interpretação da diferença como erro. A identificação com o DU é plena, não restando pistas visíveis da interpelação pelo DM.

E18, S5. com o meu filho, dou um jeito de criar uma situação que eu tenha de usar a forma que ele errou/ aí eu uso de forma correta, várias vezes /pra ele perceber a forma correta/ o marido, corrijo / corrijo e ele me corrige também... / porque com o marido eu não vou fazer, né... / é bem diferente / eu não vou ficar usando muito pra ele ouvir e aprender / é bem diferente eu acho / com a criança que tá aprendendo a falar, quanto mais ela ouvir como você quer que ela fale, ela vai falar / com o marido eu já acho assim... / fala logo como é que é / "oh, não é PROBREMA não, fala PROBLEMA, pelo amor de deus" / eu já falo desse jeito / é outro tipo de contato, não tem como comparar / não vai levar a mal, não vai criar nenhum atrito / é bem diferente

4. DAS CONCLUSÕES

Iniciamos este texto evocando o mal-estar experimentado por estudiosos do campo da linguagem verbal diante da constatação da impermeabilidade da doxa aos saberes engendrados pela lingüística que releu os fenômenos de variação e mudança como constitutivos das línguas vivas, possibilitando que o que antes era considerado erro passasse a ser visto como mera diferença, para além da moral purista que enxerga degenerescência em qualquer forma outra que não a considerada padrão. Tendo em vista que essa interpretação, originária da sociolingüística, circula no discurso da ciência e do ensino de língua materna desde a década de 1970, perguntamo-nos: por que ela não se difundiu e não modificou o senso comum? Contendas com colegas das Letras, a propósito de como interpretar e lidar com a alteridade lingüística na linguagem de nossos alunos, motivaram-nos a investigar o posicionamento de nossos próprios pares, já que, supostamente, somos (ou deveríamos ser) a boca que põe a lingüística no mundo. Desejaríamos visualizar uma espécie de progressão/propagação geométrica do DM: professoras/mães educariam seus alunos ou filhos consoante seus sentidos e esses, por sua vez, continuariam a multiplicá-los escola e casa afora. E o que vimos efetivamente?

Em relação aos indicadores, ficou evidente a polêmica entre o DU e o DM. Levando em conta a metáfora do direito e do avesso, segundo Maingueneau (2005, p 40), diríamos que as professoras, quando se deparam com traços dialetais, tendem a assinalar, como direito, o lugar da lingüística e, como avesso, o lugar da gramática. Destarte, para decifrarmos seus enunciados, tivemos de relacioná-los a seu direito, ao DM, mas também a seu avesso, ao DU, na medida em que constitui o Outro rejeitado. E, examinando o conjunto de enunciados E1-E9, pelo direito e pelo avesso, vimo-nos diante de um sujeito que afirma sua filiação à lingüística, embora a gramática esteja lá, como presença renegada, mas incômoda. Em síntese, é principalmente em companhia do DM que pensam e reagem à alteridade quando ela é de ordem dialetal. Alguns chegam mesmo a mencionar que praticam uma educação lingüística atenta, compreensiva, que respeita "a cultura do aluno", seu "capital lingüístico" (S10), buscando "criar uma consciência contra o preconceito" (S7).

Confrontados com marcadores lingüísticos, outra é a leitura e a reação das professoras. Retomando a metáfora do direito e do avesso, diríamos que é difícil distingui-los de tal modo eles se entrelaçam nos enunciados. Há uma oscilação entre as fronteiras semânticas, ora quem dá o tom é o DM ora o DU. Mas, apesar de toda indecisão, insegurança, hesitação entre o direito e o avesso, o direito, mais claramente, a perspectiva de sentido dominante nos enunciados é a do DU. Percebemos, pois, um retorno do recusado. Se há muita cautela em designar marcadores que possam aparecer na fala dos alunos como erro, há também muita resistência em caracterizá-los como diferenças normais, a exemplo do que fazem diante de indicadores. Ninguém se encoraja a dizer que tais traços devem ser respeitados como capital lingüístico do aluno; todas as professoras, direta ou indiretamente, buscam substituí-los, silenciá-los, confiná-los no sótão da memória entre as lembranças que devem ser esquecidas.

Representando-se como mães, as entrevistadas, quase todas, pensam e reagem aos marcadores que poderiam estar presentes na fala de seus filhos, alheias às lições de lingüística que tiveram em sua formação acadêmica em nível de graduação e pós-graduação. Seus enunciados se curvam ao DU que é o seu direito. O avesso, o DM, poucas vezes dá algum suspiro sufocado. As correções, indiretas ou diretas, absolutizam a norma padrão. Mãe alguma mencionou explicar ao filho que estava a lhe ensinar mais uma norma lingüística, a norma legítima, e não a única norma. Logicamente não esperávamos que as mães oferecessem uma explicação técnica de "norma legítima", algo como: norma legítima refere-se ao "uso (lingüístico) dominante, mas desconhecido como tal, o que quer dizer que é tacitamente reconhecido" (Bourdieu, 1983, p. 87), mas esperávamos que ela não fosse ensinada como a norma correta que deve substituir a forma errada; esperávamos, no mínimo, que essa prática fosse desnaturalizada. No trajeto da escola à casa, o DM parece ter sucumbido à pressão do senso comum que fala a língua do DU. Não vislumbramos na educação lingüística que professores de Letras dispensam aos próprios filhos qualquer gesto de questionamento ou crítica da interpretação tácita que define o português outro como erro. Não vimos nenhum esboço de educação para a subversão herética do senso comum, que pressupõe uma conversão da visão de mundo. Como afirma Bourdieu (1998, p. 118), a subversão herética é uma previsão, uma predição política que pretende fazer acontecer o que enuncia. Ela contribui praticamente para a realidade do que anuncia, pelo fato de enunciá-lo, prevê-lo, torná-lo concebível e, sobretudo, crível, criando a representação e a vontade coletivas para produzi-lo. Se a subversão herética do DU não está acontecendo nem mesmo no seio das famílias que têm por mães professoras de Letras, supostamente bem iniciadas no DM, pouca esperança podemos ter de ver o senso comum significando quaisquer diferenças indicadores ou marcadores - por meio de outra grade semântica que não inclua as categorias de certo e errado. Afinal, os sentidos que as mães (a família) cultivam/plantam nos filhos, durante o processo de socialização primária, enraízam-se neles tão firmemente que o trabalho educativo que outras instituições venham a fazer depois disso pouco os abala.

Recebido: 21/01/2008

Aceito: 05/04/2008

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  • 1
    Neste texto, o termo DU pode ser parafraseado por discurso gramatical e DM por discurso lingüístico ou sociolingüístico.
  • 2
    Enunciado extraído da fala de José Saramago no documentário produzido por Victor Lopes Língua: vidas em português.
  • 3
    As siglas E1-E18 referem-se aos enunciados analisados e S2-S10 aos sujeitos entrevistados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      21 Jan 2008
    • Aceito
      05 Abr 2008
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