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O SI MESMO COMO UM OUTRO: IDENTIDADES EM NARRATIVAS VISUAIS DE APRENDIZES DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA

ONESELF AS ANOTHER: IDENTITIES IN VISUAL NARRATIVES OF PORTUGUESE AS A SECOND LANGUAGE LEARNERS

RESUMO

Neste estudo de natureza qualitativa, com base na hermenêutica ricoeuriana do si (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.), assim como nos trabalhos de Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006. e Norton (2016)NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479., analiso a forma como o eu e o outro estão representados em narrativas de dez estudantes de diferentes nacionalidades aprendendo língua portuguesa como segunda língua em uma universidade pública em Portugal. Tendo em vista as multiplicidades de textos e culturas presentes na sociedade contemporânea em que conhecimentos são construídos e compartilhados por meio de diferentes semioses, inspirada pelo trabalho de Kalaja, Dufva e Alanen (2013)KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131. e Melo-Pfeifer (2015)MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215., utilizo narrativas visuais em imagens desenhadas à mão livre pelos participantes como principal instrumento de coleta e geração de dados, tendo, como referencial para a análise dessas narrativas, as categorias da Gramática do Design Visual, adaptadas de Kress; van Leeuwen, (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006. e Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.. As imagens analisadas sugerem que os participantes percebem a si mesmos ora como crianças, ora como seres híbridos, dotados de grandes orelhas, ou mesmo alienígenas, alijados do processo de interação e frustrados no desejo de reconhecimento diante do outro, representado por colegas, professores, parentes ou falantes nativos. A pesquisa traz importantes implicações para a educação de professores, revelando que é preciso acolher visões múltiplas e subjetivas de si e do outro, não apenas na sala de aula, mas na vida social da comunidade como um todo, na atestação e reconhecimento de cada um perante o outro, no sentido de fortalecer identidades na busca de mundos sociais mais justos (EARLY; NORTON, 2012EARLY, M.; NORTON, B. (2012). Language learner stories and imagined identities. Narrative Inquiry, 22 (1), pp. 194-201.), pois, como lembram Jewitt e Oyama (2001)JEWITT, C. ; OYAMA, R. (2001). Visual Meaning: A Social Semiotic Approach. In: Leeuwen, T. v.; Jewitt, C. (Orgs.), Handbook of Visual Analysis. London: Sage, pp. 134-156., a imagem não reflete a realidade, mas a constrói.

Palavras-chave:
identidades; alteridade; aprendizagem de segunda língua

ABSTRACT

In this qualitative study, based on Paul Ricoeur’s hermeneutics of the self (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.), as well as on the works of Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006. and Norton (2016)NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479., I examine how the self and the other are represented in narratives of ten foreign learners from different countries learning Portuguese as a second language at a public University in Portugal. Given the multiple cultures and texts present in contemporary society in which knowledge is built and shared through different semiosis, inspired by the work of Kalaja, Dufva and Alanen (2013)KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131., and Melo-Pfeifer (2015)MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215., visual narratives in freehand images drawn by participants are the main instrument for data collection in this paper, having as reference for the analysis, the categories of The Grammar of Visual Design, adapted from Kress; van Leeuwen, (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006. and Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.. The analysis of the images suggests that participants perceive themselves sometimes as children, sometimes as hybrid beings, with big ears, or even as aliens, isolated from the interactional process and frustrated in the desire of being recognized by the other, represented by colleagues, teachers, relatives or native speakers. The research has important implications for teacher education, revealing that it is necessary to accept multiple and subjective views of oneself and the other, not only in the classroom, but in the social life of the community as a whole, in the attestation and recognition of one another, in order to strengthen identities thus enabling equitable social worlds (EARLY; ​​NORTON, 2012EARLY, M.; NORTON, B. (2012). Language learner stories and imagined identities. Narrative Inquiry, 22 (1), pp. 194-201.), because, as Jewitt and Oyama (2001)JEWITT, C. ; OYAMA, R. (2001). Visual Meaning: A Social Semiotic Approach. In: Leeuwen, T. v.; Jewitt, C. (Orgs.), Handbook of Visual Analysis. London: Sage, pp. 134-156. stand, images do not reflect reality, but build it.

Keywords:
identities; otherness; second language learning

INTRODUÇÃO

“Somos o outro do outro.”

(Saramago, 1995SARAMAGO, J. (1995). Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.)

Paul Ricoeur, um dos maiores expoentes da filosofia no pós-modernismo, enfatiza a importância das identidades ao questionar a pretensão constituinte do ser no cogito de Descartes, sublinhando que o ser é anterior ao pensar, ou seja, antes da reflexão e do pensamento, antes da interrogação sobre o ser, por assim dizer, aquele que interroga já é, de algum modo. Por outro lado, para o autor, a compreensão de si seria mediada pelo sentido, por sua vez, desenvolvido por meio de uma interpretação, sendo a ideia de um sujeito autossuficiente ilusória, posto que a interpretação do sentido se dá perante o eu histórico e social (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

Na hermenêutica ricoeuriana, essa concepção de sentido mediado pela interpretação evidencia a importância do outro, uma vez que esse mesmo sentido encontra-se no interior da linguagem, expresso por meio dos símbolos da cultura, fazendo do sujeito um ser em busca de si através da interpretação do sentido que está fora de si. O autor traça uma distinção entre identidade-idem (mesmidade) e identidade-ipse (ipseidade), trazendo, para o conceito de identidades, uma polissemia entre o “si mesmo” e o “outro”, em que a mesmidade seria compreendida como o diverso do outro, a identidade substancial. Nessa dialética entre ipseidade e alteridade, Ricoeur defende a ideia de que o outro reside na constituição do si (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

Em uma sociedade marcada pelo que é efêmero e transitório, o tema identidades assume grande relevância no debate ético-filosófico contemporâneo, e, em especial, na sala de aula de línguas, em que multilingualismos e multiciplicidades de culturas demandam uma compreensão mais clara dos processos de construção identitária. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo investigar a forma como o eu e o outro estão representados em narrativas visuais de estudantes de diferentes nacionalidades aprendendo língua portuguesa como segunda língua em uma universidade pública em Portugal.

Embora minha compreensão de identidades seja, a partir de Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006., como fenômenos estratégicos e posicionais, tecidos em contextos históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas e desprovidos de núcleos estáveis (HALL, 2006HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.), neste estudo1 1 Este trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF). , tomo emprestadas algumas contribuições da obra de Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.2 2 Convém ressaltar que, neste estudo, tomo emprestadas algumas contribuições da obra “Soi-même comme un autre” de Paul Ricoeur, tendo em vista sua relevância para a compreensão do construto identidades, em especial no que se refere à compreensão de si a partir do outro, por meio de narrativas. Não é meu intuito, de nenhuma forma, exaurir a imensa riqueza da obra do autor, fazendo uma leitura centrada apenas em alguns aspectos de um dos muitos temas iluminados por este pensador. , buscando compreender, com base na hermenêutica ricoeuriana, a forma como o eu e o outro estão representados nas narrativas dos aprendizes de língua portuguesa como segunda língua. Nesse universo caleidoscópico em que vivemos, tendo em vista as multissemioses de textos e imagens na vida cotidiana atual, minha proposta é no sentido de estimular, na pesquisa científica, a análise do sentido de imagens (KRESS; van LEEWEN, 2006 [1996] KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.) para a compreensão de processos de construção identitária (KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. 2013KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131.; MELO-PFEIFER, 2015MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215.). Para tanto, ao lançar o olhar para imagens produzidas à mão livre pelos participantes deste estudo, busco responder as seguintes perguntas, conforme os objetivos propostos para a pesquisa: 1) Quais imagens produzidas pelos aprendizes de língua portuguesa participantes do estudo podem ser classificadas segundo a estrutura narrativa?3 3 Conforme as categorias da Gramática do Design Visual (Adaptadas de Kress; van Leeuwen, 2006 [1996]). 2) Que identidades esses aprendizes atribuem a si mesmos como falantes da língua portuguesa nessas narrativas visuais? 3) Em quais narrativas a presença do outro está marcada e como essa presença é representada?

O artigo está organizado em três seções. Na primeira, apresento o aporte teórico da pesquisa, discorrendo acerca de questões como o si mesmo e o outro na constituição das identidades, o papel das narrativas, a aprendizagem de uma língua como realização de si, o desejo por atestação e o papel das representações na construção das identidades, apresentando, por fim, alguns estudos que utilizaram narrativas visuais na pesquisa em aprendizagem de línguas. A segunda seção é dedicada ao percurso metodológico. Na terceira seção, apresento a análise e discussão dos dados, trazendo, então, algumas considerações quanto ao trabalho de investigação empreendido.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 O si mesmo como um outro, identidades e narrativas de vida

Em “A Cidade das Palavras”, uma espécie de simpósio imaginário entre autores do ocidente e oriente nas mais diversas épocas, Alberto Manguel (2008)MANGUEL, A. (2008). A cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos. São Paulo: Companhia das Letras. nos apresenta uma reflexão a respeito do conceito de identidades. Para o autor, vivemos em um mundo de fronteiras fluídas em que intensos movimentos migratórios tornam as identidades fragmentadas.

Em sua “Metafísica”, Aristóteles já discorria acerca das identidades e do papel do outro na constituição identitária:

com efeito, aquelas coisas cuja matéria é uma, ou em espécie ou em número, são chamadas de idênticas, e também aquelas cuja substância é uma. Por conseguinte, é evidente que a identidade é, de qualquer modo, uma unidade, seja porque esta se refira a uma única coisa considerada duas, por exemplo, quando se diz que a coisa é idêntica a si mesma, visto que se toma uma coisa como duas. (ARISTÓTELES, 2005ARISTÓTELES. (2005). Metafísica, Trad. Valentín Garcia Yebra. Madrid: Gredos., p. 217-219).

Essa reflexão assume grande relevância no pensamento de Ricoeur, que propõe, em sua obra “O si mesmo como um outro”, uma hermenêutica do si, por meio da dialética da mesmidade e da ipseidade: a dualidade da identidade dividida entre identidade-idem4 4 A identidade como mesmidade ( do latim idem ou do inglês same) (RICOEUR, 1991, p.140). (mesmidade, ser idêntico a si) e identidade-ipse5 5 A identidade como si-próprio [soi] (do latim ipse ou do inglês self) (RICOEUR, 1991, p.140). (ispseidade, identidade pessoal e reflexiva, marcada pela alteridade).

Em Ricoeur, o si é afetado pelo mundo e é a palavra do outro que o constitui como autor responsável por seus atos. Sendo assim, o si na relação a si mesmo enquanto consciência, seria mediado pelo corpo primeiro e depois pelo outro, sendo um terceiro, em relação ao corpo e ao outro. Para o autor, as identidades são formadas nas identificações “com” o outro e, nesse sentido, reconhecer-se “no” outro contribui para esse reconhecer-se “com” o outro. Assim, na fenomenologia hermenêutica ricoeuriana, o sujeito deve ser sempre pensado em relação ao outro. Essa alteridade é o que possibilita a afirmação de si próprio, que não outro ser humano (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

Para Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006., não podemos mais contar como seguro um senso rigoroso de si, e, tampouco, de uma identidade nacional, frente às demandas imperiosas do fenômeno da globalização, em que as sociedades são, por definição, sociedades de mudança permanente. Ao discorrer acerca da descentralização do sujeito, Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006. nos leva a questionar se haveria, de fato, uma agência individual ou se, na verdade, como indivíduos não seríamos autores ou agentes da história, já que agimos em contextos e condições históricas criadas por outros antes de nós. Como teórico dos estudos culturais, Stuart Hall nos apresenta o sujeito pós-moderno, constituído por uma identidade móvel e fragmentada. A identidade, para o autor, é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006., p. 13).

Nessa perspectiva, o autor se posiciona contrário a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade, baseada na mesmidade ou em um conceito de um eu que permanece o mesmo, idêntico a si mesmo ao longo do tempo (HALL, 2006HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.). Outrossim, defende identidades como estratégicas e produzidas no discurso. Nas palavras do autor,

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, 2000HALL, S. (2000). Quem precisa da identidade? In: Silva, T. T. da. (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, pp. 103-133., p. 109)

Neste trabalho, compreendo, segundo Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006., que o tema identidades é um tema demasiadamente complexo e ainda muito pouco compreendido na ciência contemporânea para ser definitivamente posto à prova, a despeito dos esforços das mais diversas correntes filosóficas e sociais na busca por uma definição do construto. Meu interesse no pensamento de Ricoeur, entretanto, reside, neste estudo, não apenas na compreensão de que o ser humano se constrói na alteridade e na reciprocidade das suas relações, mas, ainda, no entendimento do filósofo de que essas relações estão circunscritas em um tempo e em um ‘lugar’ social que só pode ser explorado por meio da narrativa. O pensamento de Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus. é posto, aqui, em perspectiva, no sentido de pensar identidades em uma tentativa de situar, no estudo, quem fala e quem se relata e se reconhece a partir do outro nessa mesma narrativa, no decorrer da ação e no decurso do tempo e da práxis social (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

Segundo Ricoeur, para responder à pergunta “quem sou eu?”, é preciso narrar a história de uma vida (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p. 190). O autor nos indaga: “Não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito?” (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p. 138). Para o autor, se o conhecimento de si próprio é uma interpretação, a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra mediação na narrativa. A estrutura narrativa, segundo Ricoeur, é o que oferece sentido à práxis humana.

A narrativa empresta também sentido à história, além de contribuir para a determinação do si mesmo, preenchendo muitas lacunas e dificuldades na definição do construto identidades. O autor chega, nesse sentido, a argumentar em favor de uma noção de identidade narrativa em contrapartida à noção de identidade pessoal, destacando que é por meio da identidade narrativa que se constrói a identidade pessoal. Uma narrativa autobiográfica, por exemplo, seria, nessa perspectiva, uma interpretação de si, a partir de um indivíduo que se debruça sobre seu passado e sobre si mesmo, buscando reconstituir-se outro no presente. O filósofo ressalta a importância das narrativas de vida como parte de uma compreensão de que o sujeito é a sua história, e é a partir daquilo que ele faz da sua temporalidade que ele se define e se realiza como si mesmo. Na sua estrutura ontológica, o homem é, para Ricoeur, uma exigência de realização de si (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

Nessa busca constante da realização de si, a essência do ser humano é ser um ser que deseja. É o desejo de ser reconhecido que move a sua existência. Novamente, a alteridade assume grande relevância na compreensão das identidades, uma vez que, como sublinha Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., em um jogo de reconhecimento mútuo, por assim dizer, a consciência não é para si, mas sim é, antes, consciência de si diante do outro. O ser humano solicita ser reconhecido por aquilo que ele é, distinto do outro, ou seja, o ser humano nada é, enquanto o é para si só.

Em “O si mesmo como um outro”, Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus. discorre acerca desse desejo de atestação de si perante o outro, um desejo de confirmação ou aprovação que o “outro”, nas práticas sociais da linguagem, pode conferir, atestando a existência e reconhecendo a identidade de um indivíduo. Nessa prática social de linguagem perpassada pela historicidade, o agir de uma pessoa deve se inscrever, portanto, em uma ordem simbólica comum e em um conjunto de normas que define a interação social. Ao falar a respeito de identidades, assim, Ricoeur fala também de reconhecimento histórico que só é possível porque o sujeito está inscrito em uma memória coletiva.

1.2 A aprendizagem de uma língua como realização de si: identidades e o desejo de reconhecimento

Em se tratando, ainda, desse desejo de reconhecimento, no contexto de ensino e aprendizagem de línguas, Norton (2013)NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters. também ressalta que as identidades implicam o desejo de reconhecimento e de afiliação, lembrando que tais desejos não podem ser separados da distribuição de recursos materiais na sociedade. A autora enfatiza que pessoas que têm acesso a uma ampla gama de recursos em uma sociedade terão privilégios, que, por sua vez, influenciarão a forma como essas pessoas entendem sua relação com o mundo e suas possibilidades para o futuro. Assim, para Norton (2013)NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters., 8pergunta “quem sou eu?” não pode ser entendida à parte da pergunta “o que eu posso fazer?”, assim como a pergunta “o que eu posso fazer?” não pode ser compreendida à parte das condições materiais que estruturam oportunidades para a realização de desejos. Nessa perspectiva, as identidades de uma pessoa mudarão de acordo com as mudanças nas relações sociais (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.).

Nessa mesma linha de pensamento, Norton (2013)NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters. lembra também o trabalho de Bourdieu (1991)BOURDIEU, P. (1991). Language and symbolic power. Cambridge, MA: Harvard University Press. no que se refere às relações entre identidades e poder simbólico. Ao argumentar que “a fala sempre deve uma parte importante de seu valor ao valor da pessoa que a pronuncia” (BOURDIEU, 1991BOURDIEU, P. (1991). Language and symbolic power. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 652), o autor sugere que o valor atribuído à fala não pode ser entendido à parte da pessoa que fala e, da mesma forma, a pessoa que fala não pode ser compreendida à parte das redes maiores de relações sociais nas quais encontra-se inserida (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.).

Também para Woodward (2000)WOODWARD, K. (2000). Identidade e diferença: uma introdução teórica. In: Silva, T. T. da. (Org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes., as identidades são concebidas através de representações simbólicas e estão, assim, vinculadas a condições sociais e materiais e marcadas em contraposição a outras identidades:

O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica é meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. (WOODWARD, 2000WOODWARD, K. (2000). Identidade e diferença: uma introdução teórica. In: Silva, T. T. da. (Org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes., p. 14)

Percebe-se, aqui, mais uma vez, que as identidades, para além de um construto biológico, estariam mais ligadas não a um conceito de ser, mas a um conceito de estar, ou, mais, especificamente, a um conceito de representar. É também nesse sentido, portanto, que Norton (2013, p. 4)NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters. define identidades como “a maneira como a pessoa entende sua relação com o mundo, como essa relação é estruturada no tempo e no espaço e como a pessoa entende as possibilidades para o futuro”6 6 Do original: “the way a person understands his or her relationship to the world, how that relationship is constructed across time and space, and how the person understands possibilities for the future. (NORTON, 2013, p.4) , enfatizando que a linguagem, longe de constituir simplesmente um sistema de palavras e sentenças, seria definida por uma prática social na qual desejos (de reconhecimento, em especial, a meu ver) são negociados nas relações com o outro. Da mesma forma, Norton (2013)NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters. também argumenta que a aprendizagem de uma língua significa, para o aprendiz, a possibilidade de adquirir um capital simbólico mais amplo, resultando na inserção em comunidades imaginadas, definidas pela autora, como comunidades nas quais os indivíduos desejam se inserir. No sentido de reconhecimento e poder social, a aprendizagem da língua asseguraria, por conseguinte, ao indivíduo, a capacidade de reestruturar constantemente seu relacionamento com outros, assumindo novas identidades a partir das quais possa obter reconhecimento em suas relações sociais.

1.3 A linguagem: representações e montagens específicas que designam indivíduos

Embora este trabalho se situe no campo dos estudos das identidades, o entrecruzamento entre identidades e representações, como apontado nos parágrafos anteriores, sugere, no contexto deste artigo, a necessidade de uma breve discussão acerca do construto representações. Além disso, de forma indireta, ao indagar acerca das identidades atribuídas aos participantes do estudo a si mesmos e aos outros, analiso, nas narrativas visuais, como essas identidades estão representadas.

Conforme Moscovici (2013)MOSCOVICI, S. (2013). Representações Sociais: investigações em psicologia social, Trad. Pedrinho Guareschi, Rio de Janeiro, Petrópolis: Editora Vozes., a compreensão da natureza das relações sociais é de grande importância para a compreensão do mundo que nos cerca. O autor aponta que a imagem, ideia ou conceito que um indivíduo produz acerca de um objeto específico, não só, de certa forma, familiariza tal objeto para o indivíduo, de maneira que ele tenha o que pensar sobre o mesmo, mas também influencia a forma como o indivíduo poderá interagir com aquele objeto.

As representações apresentam um caráter mutável e são compostas por um processo de decodificação, ao estabelecerem códigos aceitos e compartilhados pela comunidade social, assim como por um processo de transferência, ao transferirem significados e conceitos para, por exemplo, um objeto e/ou um estereótipo humano. Para Mosocovici (2013, p. 39),

as representações sociais são entidades quase tangíveis; circulam, se cruzam e se cristalizam continuamente através da fala, do gesto, do encontro no universo cotidiano. A maioria das relações sociais efetuadas, objetos produzidos e consumidos, comunicações trocadas estão impregnadas delas. (MOSOCOVICI, 2013, p. 39)

Fica clara, portanto, a necessidade de se buscar compreender a importância das representações tanto em caráter pessoal quanto social, uma vez que estas intervêm nos processos de construção de identidades e nas transformações sociais (JODELET, 2002JODELET, D. (2002). As Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet, D. (Org.), As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, pp. 17-44.), em especial, no contexto de aprendizagem de línguas, já que a linguagem constitui e representa, para os atores sociais, não apenas o mundo, mas modos diferentes de ser e estar no mundo.

É a linguagem, quer se trate de contextos de interação em língua materna ou segunda língua, que institui o mundo e seus sujeitos, representada não por um espelho que reflete a realidade, mas sim como a plasmagem de um canteiro de obras (KRAMSCH, 2003KRAMSCH, C. (2003). Language and Culture. Oxford: Oxford University Press.), em constante ir e vir no tempo e espaço, constituindo a realidade de seres em devir, no desenrolar do tempo e de suas historicidades, representando, como que em um palco, suas muitas possibilidades de ser e representar. Em suma, como aborda o próprio Ricoeur ao tratar das aporias da linguagem no processo de identificação dos indivíduos, “a linguagem comporta montagens específicas que nos orientam para designar indivíduos.” (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p.40).

1.4 Narrativas visuais, identidades e o outro na pesquisa em aprendizagem de línguas

Nos últimos anos, muitos estudiosos têm utilizado narrativas visuais para a coleta de dados em estudos com foco em diferentes áreas na Linguística Aplicada, entre estas, emoções (ARAGÃO, 2007ARAGÃO, R. C. (2007). São as histórias que nos dizem mais: emoção, reflexão e ação na sala de aula. Tese de Doutorado em Estudos Linguísticos. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.; 2008ARAGÃO, R. (2008). Emoções e pesquisa narrativa: transformando experiências de aprendizagem. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 8, n. 2, pp. 295-320.), ensino e aprendizagem de línguas (SILVA, 2017SILVA, M. M. dos S. (2017). À mão livre: explorando narrativas visuais de alunos brasileiros sobre a aprendizagem de Inglês. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), multilingualismos (MELO-PFEIFER, 2015MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215.) e identidades (MIYAHARA, 2009MIYAHARA, M. (2009). Researching Identity and Language Learning: Taking a Narrative Approach. ICU Language Learning Research Bulletin.; CONCEIÇÃO, 2018CONCEIÇÃO, M. P. (2018). O uso de tecnologias no desenvolvimento da oralidade: implicações para a formação de professores de línguas no século XXI. In: Sturm, L. ; Toldo, C. (org.), Desafios contemporâneos do ensino: língua materna e língua estrangeira, Campinas: Pontes Editores, pp. 187-212.), entre outras.

Meu interesse na análise de processos envolvendo o ensino e aprendizagem de línguas por meio de narrativas visuais surgiu, inicialmente, a partir dos estudos de Paula Kalaja e sua equipe na Universidade de Jyväskylä, Finlândia (KALAJA; ALANEN; DUFVA, 2008KALAJA, P; ALANEN, R.; DUFVA, H. (2008). Self-Portraits of EFL Learners: Finnish Students Draw and Tell. In: Kalaja, P.; Menezes, V.; Barcelos, A. M. (Org.), Narratives of Learning and Teaching EFL. Basingstoke, UK: Palgrave Macmillan, pp. 186-198.; KALAJA; DUFVA; ALANEN, 2013KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131.) a respeito do complexo processo de aprender e ensinar línguas estrangeiras. Foram também muito inspiradores para o meu trabalho, os estudos de Melo-Pfeifer (2015)MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215. envolvendo multilingualismos e línguas de herança e a forma como crianças representam, por meio de desenhos, sua percepção acerca de suas identidades. Essa autora aponta, na análise de narrativas visuais de crianças, suas percepções em relação ao multilingualismo, sugerindo a validade desse instrumento para a compreensão das identidades.

No Brasil, Aragão (2007)ARAGÃO, R. C. (2007). São as histórias que nos dizem mais: emoção, reflexão e ação na sala de aula. Tese de Doutorado em Estudos Linguísticos. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. utiliza narrativas visuais, entre outros instrumentos, para estimular, entre os participantes de sua pesquisa, uma reflexão acerca de emoções e identidades. O trabalho apresenta importantes contribuições para a pesquisa envolvendo experiências com narrativas visuais na sala de aula de línguas. Ainda CONCEIÇÃO (2018)CONCEIÇÃO, M. P. (2018). O uso de tecnologias no desenvolvimento da oralidade: implicações para a formação de professores de línguas no século XXI. In: Sturm, L. ; Toldo, C. (org.), Desafios contemporâneos do ensino: língua materna e língua estrangeira, Campinas: Pontes Editores, pp. 187-212., em um estudo do uso de tecnologias no desenvolvimento da oralidade em língua inglesa, analisa, por meio de narrativas visuais, as experiências de professores em formação mediante a utilização de uma plataforma de colaboração online, levantando relatos das percepções de si mesmos e crenças desses professores quanto ao desenvolvimento da habilidade oral em língua inglesa.

Mais recentemente, Silva (2017)SILVA, M. M. dos S. (2017). À mão livre: explorando narrativas visuais de alunos brasileiros sobre a aprendizagem de Inglês. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. analisa, por meio de narrativas visuais, o processo de aprendizagem de língua inglesa, tendo como base os pressupostos da Semiótica Social e da Multimodalidade (KRESS, 2010KRESS, G. (2010). Multimodalility; a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.) e da Gramática do Design Visual (KRESS; van LEEUWEN, 2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.). A autora analisa desenhos elaborados pelos participantes do estudo, concluindo que os aprendizes se colocam, nessas narrativas visuais, como protagonistas não apenas de suas próprias histórias, mas também de sua aprendizagem, compreendida como atividade social e mediada por interações sociais e artefatos culturais. O estudo traz implicações para a Linguística Aplicada, sugerindo que narrativas visuais constituem uma importante ferramenta de investigação do processo de ensino e aprendizagem, não apenas pela possibilidade da descrição de experiências pessoais, mas também por desencadear um processo reflexivo do processo de aprender, com base em um sistema de significação construído social e culturalmente.

Paiva (2010aPAIVA, V. L. M. O. e. (2010a) Narrativas multimídia de aprendizagem de língua inglesa. Revista Signos, v. 43, pp. 183-203.; 2010)PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217. também investigou processos de aprendizagem de línguas envolvendo identidades e o papel do outro por meio da análise de narrativas multimodais. Paiva (2010, p. 5)PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217. aponta que “é na alteridade que o aprendiz constrói sua identidade de falante do idioma de outrem (...)”. A autora compreende a aquisição de uma língua como um processo complexo, no qual um grande número de variáveis pode exercer um papel fundamental, entre essas variáveis, a interferência do outro ou outros (PAIVA, 2010PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217., p.4).

Segundo Paiva (2010)PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217., o outro na aprendizagem de línguas pode, muitas vezes, ser visto como um colega menos competente, assim como um par mais competente ou mesmo um grupo, o qual pode funcionar como elemento inibidor no processo de aprendizagem. A autora também argumenta que, em alguns casos, aprendizes não se beneficiam com a interação e convívio com falantes mais proficientes, mas, ao contrário, assumem uma identidade de aprendiz menos capaz, o que os leva a não desejaram se expor publicamente (Paiva, 2010PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217.), possivelmente inibidos e receosos de serem julgados pelo outro ao cometerem erros.

Em “O outro na aprendizagem de línguas”, Paiva e Gomes (2009)PAIVA, V. L. M. O. e.; GOMES, I.F. (2009). O outro em narrativas de aprendizagem de língua inglesa. Polifonia, v. 19, pp. 59-80. apontam que o convívio com falantes nativos é, geralmente, mencionado por aprendizes como uma experiência muito valorizada, sendo os falantes da língua tomados como modelo, representando uma oportunidade de prática e interação na língua alvo. Os autores também apontam o professor como o outro mais frequente nas narrativas dos alunos dos países investigados no estudo, no papel de incentivador, recebendo elogios no caso dos estudantes asiáticos ou criticados pelos alunos nas narrativas brasileiras e finlandesas. Parentes também são apontados nesse estudo como o outro no processo de aprendizagem e parecem ocupar uma posição importante nos estágios iniciais (PAIVA; GOMES, 2009PAIVA, V. L. M. O. e.; GOMES, I.F. (2009). O outro em narrativas de aprendizagem de língua inglesa. Polifonia, v. 19, pp. 59-80.).

Por fim, lembro que as identidades e o papel do outro na constituição de si, compreendidos a partir de Ricoeur, só podem ser analisados, tendo em vista a “articulação da dimensão temporal da existência humana” (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p. 146), considerando-se o indivíduo como sujeito da ação, da linguagem e da narração, a partir do contexto histórico e social no qual está inserido. É justamente com um foco nessa articulação que o papel do si e do outro foram investigados, neste trabalho, em busca de marcas identitárias de aprendizes de língua portuguesa, por meio de narrativas visuais. Apresento, assim, na seção a seguir, o percurso teórico-metodológico tomado na pesquisa, detalhando os procedimentos para a geração e análise dos dados.

2. O PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO: PROCEDIMENTOS PARA A GERAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

A abordagem qualitativa é a abordagem utilizada para este estudo circunscrito no contexto de ensino aprendizagem da língua portuguesa como segunda língua, com foco nos processos de construção de identidades representadas em narrativas. São privilegiadas, conforme os pressupostos da abordagem qualitativa, a referência do próprio indivíduo, sua voz e suas percepções pessoais (DENZIN; LINCOLN, 2003DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (2003). Introduction: The discipline and practice of qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.). The Sage Handbook of Qualitative Research.Thousand Oaks, CA: Sage, pp. 1-45.), inseridas em um contexto histórico e institucional específico, sendo os processos em análise compreendidos como processos interativos e socialmente construídos, constituindo um caso ou casos (JOHNSON, 1992JOHNSON, D. M. (1992). Approaches to research in second language learning. New York: Longman.) específicos que podem, possivelmente, encontrar ressonância em outros casos em estudos de marcas identitárias perpassadas pela representação do outro no processo de aprender línguas.

Nesta pesquisa, inspirada pelo trabalho de Kalaja; Dufva; Alanen (2013)KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131. e Melo-Pfeifer (2015)MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215., utilizo narrativas visuais em imagens desenhadas à mão livre pelos participantes como principal instrumento de coleta e geração de dados, tendo como referencial para a análise dessas narrativas, as categorias da Gramática do Design Visual, adaptadas de Kress; van Leeuwen, (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006. e, ainda, Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., conquanto essa autora acrescenta categorias referentes ao participantes humanos nas estruturas narrativas à tabela de Kress; van Leeuwen, (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., as quais julguei relevantes para a categorização dos dados deste estudo.

2.1 A coleta e a geração dos dados

A coleta de dados se deu no primeiro semestre de 2019 na Universidade do Minho, em Portugal, sendo os participantes da pesquisa dez alunos estudando língua portuguesa como segunda língua em cursos livres em caráter de extensão na Escola de Línguas BabeliUM, do Instituto de Letras e Ciências Humanas daquela universidade. Os participantes, quatro chineses, dois americanos, dois italianos, um canadense e um belga, encontravam-se em Portugal com bolsas de intercâmbio de estudos por meio de convênios da Universidade do Minho com outras universidades, com exceção de duas participantes, Cummings (americana) e Ghravô (belga), que acompanhavam seus esposos portugueses. O nível de proficiência dos participantes era B1 do Quadro Comum Europeu7 7 O Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas: Aprendizagem, ensino, avaliação (QECR), de 2001, é um documento do Conselho da Europa, elaborado no âmbito do Projeto Políticas Linguísticas para uma Europa Plurilíngue e Multicultural. , conforme atestado pela universidade na distribuição dos alunos nas turmas. Os dados foram coletados em duas diferentes turmas. O critério para a seleção dos participantes foi a participação voluntária, atestada por meio de assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido antes da realização da coleta, a qual se deu nas turmas dos professores que também, voluntariamente, consentiram em que os dados fossem coletados em suas salas de aula.

Para a coleta das narrativas visuais, foi entregue aos participantes uma folha de papel A4 em branco, sendo solicitado a estes que apresentassem um desenho que os representasse como falantes da língua portuguesa. Com base nos estudos de Kalaja; Dufva; Alanen (2013)KALAJA, P.; DUFVA, H.; ALANEN, R. (2013). Experimenting with visual narratives. In: Barkhuizen, G. (Org.), Narrative Research in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 105-131. e Melo-Pfeifer (2015)MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215., foram também coletadas breves descrições escritas dos desenhos, elaboradas pelos participantes, logo após a coleta das narrativas visuais. Na aplicação dos instrumentos nas duas turmas, os alunos ouviam a explicação da tarefa proposta com muito entusiasmo, representado no riso e expressões faciais. Os alunos pareciam ter, então, um breve momento de silêncio e logo iniciavam os desenhos, entre sorrisos e reflexões que pareciam ter consigo mesmos. Ao terminarem a tarefa, muitos a mostravam aos colegas mais próximos que haviam também concluído a tarefa. Notei que alguns tiravam fotos dos seus desenhos utilizando seus aparelhos de telefone celular. Nenhum tempo foi apresentado como limite para a realização dos desenhos e os alunos tomaram o tempo que acharam necessário. Inicialmente, pensei em pedir aos alunos que não se comunicassem durante a tarefa para evitar que fossem influenciados uns pelos outros na produção das narrativas, mas isso não foi necessário, pois cada participante empenhava-se a esboçar seu próprio desenho, em um momento que parecia tomado por eles como um momento muito individual. Após a conclusão dos desenhos, os alunos iam escrevendo as explicações das imagens e só então se comunicavam, entusiasmados, com o colega ao lado, sempre aguardando que este houvesse também concluído a tarefa.

Foram ainda utilizados, para a geração dos dados, um questionário escrito, cujo objetivo era a coleta de dados biográficos dos participantes, de forma que se pudesse traçar um perfil dos mesmos, tendo em vista que, como destaca Vieira-Abrahão (2004)VIEIRA ABRAHÃO, M. H. (2004). Metodologia na investigação das crenças. In: Barcelos, A. M. F. ; Vieira Abrahão, M. H. (Orgs.), Crenças e ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de professores. Campinas: Pontes Editores ., questionários permitem precisão na coleta de dados e podem facilmente ser aplicados em pequena e grande escala. Foram também utilizadas entrevistas semiestruturadas, as quais foram realizadas logo após a coleta das narrativas visuais, explicações escritas e preenchimento do questionário escrito. As entrevistas tiveram duração de vinte minutos aproximadamente e foram gravadas com o consentimento dos alunos e posteriormente transcritas, tendo como objetivo ouvir os participantes acerca de suas narrativas. Nas entrevistas, o pesquisador mostrava o desenho ao participante e solicitava a este que falasse sobre a imagem, possibilitando uma maior elucidação das narrativas visuais apresentadas pelos alunos.

2.2 Narrativas visuais: a análise do sentido em imagens

As imagens visuais são uma característica cada vez mais importante do discurso contemporâneo (KRESS, 2010KRESS, G. (2010). Multimodalility; a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.). Em relação a essa valorização do aspecto visual dos textos, Kress (2003)KRESS, G. (2003). Literacy in the new media age. London, New York: Routledge, 2003. sugere que a língua escrita será progressivamente suplantada pela imagem, em diversas áreas da comunicação pública. Segundo o autor, imagens, gestos, atos de fala ou eventos escritos constituiriam diferentes modos usados na representação e na comunicação com diferentes potenciais de produção de significados, diferindo na representação em diferentes culturas (KRESS, 2003KRESS, G. (2003). Literacy in the new media age. London, New York: Routledge, 2003.). O significado seria, assim, não uma construção puramente linguística, mas uma complexa interrelação entre recursos linguísticos, visuais, gestuais, gráficos ou musicais presentes no ato comunicativo (KRESS, 2010KRESS, G. (2010). Multimodalility; a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.). A partir dessa visão, o autor aponta a necessidade de uma teoria que seja capaz de abarcar o significado em todas as suas instâncias e modos de produção, nas mais diversas situações sociais e culturais, propondo uma evolução de uma teoria Linguística para uma Teoria Semiótica Social Multimodal do significado e da comunicação (KRESS, 2010KRESS, G. (2010). Multimodalility; a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.).

Na Gramática do Design Visual proposta por Kress e van Leeuwen (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., as funções da linguagem verbal apresentadas inicialmente por Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. (1994). An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold. e Halliday e Matthiessen (2004)HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. (2004). An introduction to functional grammar. 3. Ed. London: Edward Arnold. são adaptadas para a linguagem visual, com vistas a informar a análise de textos multimodais. Nessa proposta, os autores compreendem que tanto a linguagem verbal como a visual permitem construir representações de mundo (metafunção ideacional), atribuir papéis aos participantes representados - pessoas, objetos, instituições e estabelecer diferentes relações entre os participantes no texto, bem como entre esses e o leitor (metafunção interpessoal), assim como organizar esses sentidos na forma de um todo (metafunção textual). A gramática visual, como proposta por Kress e van Leeuwen (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., apresenta as seguintes categorias, por sua vez dividas em subcategorias, para a análise do sentido em imagens e textos multimodais: Estrutura Representacional, Estrutura Interacional e Estrutura composicional.

A escolha do método para a análise do sentido em imagens deve ser feita, conforme destaca Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., conforme os objetivos do trabalho a ser empreendido. Alguns cuidados, entretanto, como sublinha a autora, devem ser tomados. É preciso evitar, por exemplo, análises que se constituam estritamente simbolistas e estruturalistas, restringindo-se a conceber a imagem como uma espécie de ferramenta para compreender culturas, fenômenos ou representações. As imagens, no mesmo sentido, não devem ser tomadas apenas como objetos de reflexão a respeito de diferentes culturas, mas devem, elas próprias, e os significados nela representados, constituir o objeto de estudo, ou seja, categorias definidas a priori e descrições sistemáticas, cujo foco não seja a imagem em si, dificilmente resultarão em uma compreensão dos sentidos por trás dessas imagens (MOTA-RIBEIRO, 2011MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.). Uma combinação de métodos, conforme a autora, é também possível e até desejável, levando-se sempre em consideração os objetivos da pesquisa, assim como a natureza das imagens a serem analisadas.

Em estudos envolvendo a utilização de narrativas visuais na geração de dados, ainda, o pesquisador poderá lançar mão da combinação de diferentes procedimentos de coleta, entre estes, a descrição da imagem (escrita ou oral), gravações em áudio e/ou vídeo, entrevistas com os participantes (PAVLENKO, 2007PAVLENKO, A. (2007). Autobiographic narratives as data in applied linguistics. Applied Linguistics, 28(2), pp. 163-88.), sessões de visionamento (VIEIRA-ABRAHÃO, 2004VIEIRA ABRAHÃO, M. H. (2004). Metodologia na investigação das crenças. In: Barcelos, A. M. F. ; Vieira Abrahão, M. H. (Orgs.), Crenças e ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de professores. Campinas: Pontes Editores .) ou, ainda, grupos focais e protocolos verbais. No entanto, é importante sublinhar, conforme nos lembram van Leewen e Jewitt (2001)van LEEWEN; JEWITT, C. (2001). Handbook of visual analysis. London; Thousand Oaks; New Delhi: Sage Publications, 210p., que, apesar de a análise visual poder incluir o componente linguístico, em estudos com imagens, deve-se evitar o risco de tomar palavra e imagem como unidade de análise indivisível. É preciso considerar, como ressaltam os autores, que a imagem, de alguma forma, pode ter sido concebida para ser autossuficiente e o pesquisador deve sempre analisar o que a imagem pode comunicar, buscando uma desconstrução e (re)construção semântica da imagem como objeto de análise.

2.3 Procedimentos de Análise dos Dados

Para atingir o objetivo proposto, a primeira tarefa empreendida na análise, conforme os procedimentos da pesquisa qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2003DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (2003). Introduction: The discipline and practice of qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.). The Sage Handbook of Qualitative Research.Thousand Oaks, CA: Sage, pp. 1-45.), foi a leitura e organização dos dados buscando identificar aquelas imagens que poderiam ser classificadas, segundo Kress e van Leeuwen (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., como estruturas narrativas, tendo estas sido escaneadas e catalogadas mediante a criação de códigos relacionados aos pseudônimos escolhidos pelos próprios participantes. A categorização dos dados ocorreu, então, a partir da análise das narrativas conforme as categorias da Gramática do Design Visual (KRESS; van LEEUWEN, 2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.; MOTA-RIBEIRO, 2011MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.), delineando-se as unidades-base de análise, conforme os objetivos da pesquisa.

Neste estudo, as imagens coletadas foram tomadas como paisagens semióticas complexas (KRESS; van LEEUWEN (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., as quais representam “padrões de experiência e de sentimentos sobre essas experiências, em um contexto específico marcado pelos discursos culturais e sociais” (MELO-PFEIFER, 2015MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215., p. 2). Assim, busquei uma análise do sentido para além da descrição da gramática dos desenhos, a partir de uma compreensão de que elementos que não estão presentes nas narrativas podem ser também, ou, ainda, mais relevantes (PAVLENKO, 2007PAVLENKO, A. (2007). Autobiographic narratives as data in applied linguistics. Applied Linguistics, 28(2), pp. 163-88.).

3. DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS

No ensejo de vislumbrar as identidades que os aprendizes atribuiam a si mesmos como falantes da língua portuguesa, assim como a maneira como o outro era representado por eles em suas narrativas visuais, as imagens foram classificadas segundo as categorias da Gramática do Design Visual, adaptadas de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006. e Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., buscando-se inventariar essas imagens, não apenas nos conteúdos nelas explícitos, mas também, nas relações implícitas e tácitas nas imagens, confirmadas nas explicações escritas providas pelos participantes, assim como em excertos das entrevistas. Embora todas as imagens tenham sido individualmente analisadas e classificadas conforme toda a grade de categorias e subcategorias de Kress e van Leeuwen (2006 [1996])ARAGÃO, R. (2008). Emoções e pesquisa narrativa: transformando experiências de aprendizagem. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 8, n. 2, pp. 295-320., assim como as categorias para participantes humanos em Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., por questões de espaço, serão discutidas, neste artigo, apenas aquelas categorias que guardam relações mais fortemente marcadas com os objetivos da pesquisa. Cumpre ressaltar que as dez narrativas analisadas foram classificadas, em sua estrutura representacional, como estruturas narrativas (KRESS; van LEEUWEN, 2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.).

As representações de si parecem marcadas em um contínuo, sendo o eu representado ora como um participante humano propriamente, ora como uma criança, ora como uma criança que marca uma espécie de ser humano diversa, dotada de uma designação específica, a saber, orelhas grandes, característica essa que passa a representar, também, um ser humano adulto, fronteiriço e híbrido, com orelhas marcadamente grandes em termos das características dadas como comuns aos humanos. Observa-se, ainda, a representação de si como falante de língua portuguesa no corpo de um alienígena, sendo todas as imagens analisadas dotadas de sentido e significado atribuídos a si mesmo e ao outro no processo de identificação na aprendizagem da língua. O outro é representado como o falante nativo (o português, assim como falantes de outros países lusófonos), parentes, amigos ou colegas no círculo de interação pessoal ou o professor. Essas representações de si e do outro deram origem a quatro categorias específicas na análise, as quais passo a descrever de forma mais detalhada.

Na primeira categoria de narrativas, o eu é representado como um participante humano, com caracterização e aparência (MOTA-RIBEIRO, 2011MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.) ditas normais a um ser humano. Nessa categoria, Ghravô, de nacionalidade belga, 23 anos de idade, representa-se como uma mulher jovem, conforme está explícito em sua narrativa visual (Figura 1 - NIPL68 8 As narrativas visuais foram codificadas de forma a serem identificadas no corpus. Assim, NILP será entendido como Narrativa Identitária de aprendizes de Língua Portuguesa, seguida do número correspondente à narrativa. ).

Figura 1
Narrativa visual NILP6

Após concluir os seus estudos em Comunicação Social, Ghravô mudou-se para Portugal há cerca de um ano para morar com o namorado. Em seu desenho, Ghravô narra o seu processo de interação com os falantes da língua portuguesa, na nova configuração espaço-temporal que marca suas identidades no processo de aprendizagem da língua. Ela se coloca no centro da folha, estando marcada na posição de informação principal na função de foco da composição, com saliência em primeiro plano e está rodeada por vários interactantes falantes da língua portuguesa, com os quais interage cotidianamente, observando-se, aqui, processos de ação e reação transacionais, cujos vetores, na imagem, são o olhar dos interlocutores (os outros) que a interpelam, muitas vezes, com impaciência e estarrecimento por não compreenderem o que ela diz, segundo a participante afirma em sua entrevista. Não só o olhar, mas também as expressões faciais dos interlocutores de Ghravô na imagem (conforme a categoria Atitude de Mota-Ribeiro, 2011MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.), revelam a natureza das tentativas frustradas de interações, assim como dos sentimentos e atitudes dos interlocutores, expressos também em processos verbais (representados por balões de fala na imagem), com as frases: “Pode repetir, se faz favor?”, “Desculpe, não percebi.”, “Desculpe, menina, disse seis ou três?”.

De fato, na classificação da aparência da participante humana no centro da imagem, Ghravô aparece com uma espécie de faixa no cabelo (categorias adereços, objetos), na qual está escrita, em caixa alta, em máxima visibilidade e saturação, a palavra CHINESA, como um elemento de carga cultural em que chineses poderiam ser assumidos como estrangeiros cuja língua seria interpretada como de difícil compreensão entre falantes da língua portuguesa. As falas expressas nos processos verbais representados podem ainda remeter a crítica, reveladas em balões que trazem as seguintes frases: “Que sotaque muito engraçado! Ou “Vem de China, não é?”. No texto escrito explicativo9 9 Textos escritos explicativos das imagens pelos participantes, doravante, TE. da imagem, redigido logo após a narrativa visual, a participante destaca:

[1] É como se estivesse escrito CHINESA em minha testa. As pessoas sabem que sou estrangeira, não têm paciência. Tenho que fazer muito esforço para me integrar aqui. Todo mundo percebe. Mesmo que eu faça o maior esforço para me integrar aqui está escrito na minha testa que sou estrangeira. As pessoas têm a tendência de ver como obstáculo ou achar engraçado. Quer dizer que nunca vou me integrar como queria. Não sou portuguesa e as pessoas agem comigo de maneira diferente. É difícil se integrar. Falam devagar para eu entender; não é por mal, mas têm sempre uma maneira de me fazer sentir diferente. (Ghravô, TE, NILP6)

Paiva (2010)PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217., ao discutir o papel do outro na aprendizagem de língua estrangeira, faz menção ao conceito de procedência de Kress e van Leeuwen (2001)KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (2001). Multimodal Discourse: the modes and media of contemporary communication. London: Arnold., o qual se refere à ideia de que signos podem ser importados de um contexto, grupo social ou cultura para outro com a finalidade de significar ideias e valores associados com aquele outro contexto, o que pode explicar, aqui, o uso da palavra“chinesa”, para enfatizar o distanciamento e a estranhesa com que a participante acredita que seus interlocutores se refiram a ela, como se fosse uma pessoa de um país distante, com uma língua diferente. É interessante ainda notar, no excerto do TE de Ghravô, a constatação‘Não sou portuguesa’, remetendo ao fato de que as identidades são construídas por meio da diferença e que é por meio da relação com o outro (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.) e com aquilo que não é, que as identidades são construídas (HALL, 2006HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.). Como destacam esses autores, as identidades podem também operar em sua capacidade de excluir e deixar de fora ou transformar o diferente em abjeto ou exterior, como sugere o sentimento de Grhavô, que se declara ‘estrangeira’, ‘diferente’ e ‘não portuguesa’ e, portanto, segundo ela supõe, por mais que se esforce, nunca conseguirá se integrar.

Ainda em termos de participantes humanos na imagem, observam-se, na narrativa de Ghravô, seis participantes humanos, interlocutores da participante. Quanto ao aspecto composicional da imagem, não se podem notar linhas de separação demarcatórias ou de contrastes de cores ou outros elementos ou mesmo molduras que sinalizem separação entre os participantes. Não se pode dizer, contudo, que haja, na composição da imagem, um sentido de fluxo ou interligação entre os participantes. Ao contrário, as expressões faciais, o olhar possivelmente marcado como impaciência evidenciam uma descontinuidade no fluxo interativo. Sete sinais de interrogação em tamanho destacado também rodeiam a participante em sua posição central na imagem, possivelmente também denotando a dificuldade de comunicação frente às interpelações de seus interlocutores. Em sua entrevista, Ghravô destaca:

[2] Não é nada fácil. Fico sempre cheia de vergonha e não me atrevo a falar. (Ghravô, Entrevista)

Cumpre observar, no entanto, ainda em se tratando da expressão facial e do olhar de Ghravô, como representados na imagem, que estes não denotam sentimentos de tristeza e frustração, tampouco a posição dos braços e mãos em gesto de “v” denotam emoções negativas. Ghravô relatou, em sua entrevista, que pretende continuar morando em Portugal, exprimindo a forma como percebe suas possibilidades futuras (NORTON, 2016NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479.) e destaca seu investimento no sentido de aprender a língua (capital simbólico), em especial para se comunicar com a família de seu esposo, constituindo essa família uma comunidade imaginada na qual a participante deseja se inserir (NORTON, 2016NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479.).

Ainda na categoria de representações de si mesmo e do outro como participantes humanos, destaca-se a narrativa de Gia, italiana, 24 anos de idade (Figura 2 - NILP5).

Figura 2
Narrativa visual NILP5

Gia apresenta, em sua narrativa, dois elementos humanos representando interlocutores com os quais ela interage, possivelmente, no dia a dia, com expressão facial triste e balões de processos verbais que indicam que eles não compreendem o que ela diz. Encontram-se, também, vários sinais de interrogação espalhados pela imagem, em cores diferentes que dão ênfase às dificuldades no processo de interação. O cabelo é um importante descritor do sentimento de Gia, no quesito aparência e aspecto (MOTA-RIBEIRO, 2011MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga.). Encontram-se desarranjados, denotanto desespero, também confirmado na expressão facial e na representação do choro. Em seu TE, Gia afirma:

[3] Quando eu falo português fico com raiva e fico nervosa porque não consigo me expressar e gostaria de saber como fazer isso. Eu entendo quando os portugueses falam comigo mas eu não posso responder e eles não me entendem e isso é ruim. (Gia, TE, NILP 5)

Em sua entrevista ela enfatiza o seu sentimento de tristeza:

[4] Eu me represento triste porque não sei falar. Essa sou eu chorando quando falo porque a pessoa não me entende. (Gia, Entrevista)

O outro é representado, nessa narrativa, pelos falantes nativos da língua portuguesa, amigos e professores. Em um dos balões que encerram mensagens em processos verbais, Gia parece, em seu desespero e desejo de ser compreendida, indagar aos interlocutores quanto à possibilidade de usar um artefato para tradução para conversar com estes. Ela destaca que a língua portuguesa é muito difícil e não sabe se conseguirá aprendê-la, mas continuará tentando, mesmo quando voltar ao seu país.

Em sua narrativa, a participante Patty, canadense, 54 anos de idade, representa a si mesma como falante da língua portuguesa em dois momentos distintos (Figura 3 - NILP9).

Figura 3
Narrativa visual NILP9

A imagem pode ser categorizada na função de composição do texto, subcategoria estruturação em que uma linha divisória marca a desconexão entre os dois momentos. Patty registra, no topo da imagem, a situação ideal em que ela (participante humana), em sala de aula, junto a outros que são os professores e alunos, menciona compreender a língua. Na base da imagem, está explicitada a situação real em que o outro, representado pelos falantes nativos portugueses falam, enquanto a participante humana que representa Patty, com expressão facial de tristeza, não compreende o que é dito. Na imagem na base da folha, os elementos encontram-se separados por linhas divisórias o que indica menos conexão entre os participantes. Em seu TE, Patty enfatiza o quanto se sente desanimada e triste por não compreender o que os outros dizem. Ela ressalta em sua entrevista:

[5] Eu tenho confiança na aula. Eu entendo o que os professores estão dizendo. Quando encontro pessoas fora da sala de aula, não entendo o que eles estão dizendo. Eu me sinto desanimada. (Patty, Entrevista)

É interessante notar que também os dois participantes na imagem, representando o outro na interação, apresentam expressão facial que denota tristeza ou desapontamento. O outro, mais uma vez, é representado por falantes nativos, pessoas fora da sala de aula (portugueses) como é expresso verbalmente na narrativa visual. Note-se que os outros na imagem esboçada no topo, representados pelo professor e colegas em sala denotam satisfação e alegria em suas expressões faciais. Na primeira imagem, a posição do corpo da participante, em posição frontal para seu interlocutor também sugere a interação entre eles. Na narrativa NILP 3 (Figura 4), do participante chinês Zang, 19 anos, a imagem colocada ao centro da página não parece indicar, inicialmente, a presença do outro no processo de comunicação.

Figura 4
Narrativa visual NILP3

A imagem, por certo, não representa uma amostra de imagens que falam por si só, como destacam Jewitt e Oyama (2001)JEWITT, C. ; OYAMA, R. (2001). Visual Meaning: A Social Semiotic Approach. In: Leeuwen, T. v.; Jewitt, C. (Orgs.), Handbook of Visual Analysis. London: Sage, pp. 134-156.. Ao contrário, a compreensão de si como falante da língua portuguesa só é possível por meio da análise do texto explicativo escrito pelo participante. A propósito da imagem, em si, vemos um participante humano, em processo de ação que não pode ser identificada, pois, apesar do braço levantado segurando um objeto que poderia ser estabelecido como vetor, não se pode depreender, pela análise da imagem, um segundo participante. O participante estaria, ainda, inserido em um cenário também pouco discernível, assim como o objeto o qual segura. Não se pode negar, no entanto, que a imagem sugere, pela posição corporal do participante humano, uma ação. Ao contrapor a narrativa visual com a explicação escrita, é possível vislumbrar um eu assustado e cuidadoso, a observar o terreno em que pisa, receoso de acionar bombas no solo (erros), como expressa verbalmente o participante em seu TE:

[6] Quando falo português, sou como um soldado a observar e evitar as bombas no solo, fico com muito cuidado para não cometer qualquer erro, quer lexical quer gramatical. (Zang,TE, NILP3)

Em uma análise da imagem, não observamos, na composição do participante humano, qualquer expressão facial. O rosto está em branco e não sugere emoção, seja de alegria ou tristeza. Em sua entrevista, Zang ressalta:

[7] Tenho que prestar atenção pois não posso cometer erros ao falar a língua portuguesa diante do professor e dos meus colegas. (Zang, Entrevista)

Frente à narrativa proposta por Zang, poderia-se inicialmente inferir que, embora a aprendizagem de língua seja um processo que ocorre na interação, o participante asiático não teria representado o outro no processo. No entanto, ao contrário, a presença do outro, na análise da narrativa visual somada à explicação daquele que narra, deixa entrever, de forma implícita, a presença forte do outro no processo de interação na língua, diante do qual Zang, como um soldado, empreende todo o cuidado para não errar, quer perante o professor, pelo qual a cultura chinesa demonstra, como é sabido, grande respeito, ou perante o colega, por medo de errar. Paiva e Gomes (2010)PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217., também, ao analisarem o outro em narrativas visuais de aprendizes de língua, apontam que a menção a colegas de sala como o outro aparece com maior frequência em narrativas asiáticas, geralmente, em uma configuração negativa, sendo esse outro mais fluente na língua, e, como no caso deste estudo, até mesmo o falante nativo.

A segunda categoria de representações de si mesmo como falante de língua portuguesa neste estudo é também marcada por imagens em estrutura narrativa, com participantes humanos, dessa vez, no entanto, caracterizados como crianças. A resposta à pergunta quem sou como falante de língua portuguesa na narrativa NILP10 (Figura 5), da participante Yennefer, chinesa, 20 anos e na narrativa NILP1 (Figura 6), da participante Morgane Cummings, americana, 33 anos, é: sou uma criança que não pode se comunicar, mas apenas ouvir e aprender. Um primeiro olhar lançado a essas narrativas as classificaria, por certo, na categoria de representação conceitual, pela posição estática, sem ações marcadas por vetores, com um participante à primeira vista, sendo, e, não, necessariamente, executando uma ação. Contudo, ambas as classificações (como estruturas narrativas e conceituais) são possíveis no caso das duas narrativas, quando os dados são confrontados com as entrevistas individuais. Em ambas as entrevistas, observa-se menções ao fato de que, como crianças, essas participantes executam a ação de ouvir e aprender, longe de serem tarefas passivas. Yennefer explicita, em seu TE:

Figura 5
Narrativa visual NILP10

Figura 6
Narrativa visual NILP1

[8] Essa sou eu quando falo português, pois meu português não é bom. Acho que eu sou como uma criança. (Yennefer, TE, NILP10)

Em sua entrevista Yennefer explica:

[9] Como falante da língua portuguesa sou como uma criança. Durante todo o tempo eu ouço e aprendo. (Yennefer, Entrevista)

Na narrativa visual de Morgane Cummings (NILP1), a participante criança aparece no centro da folha, marcada como informação principal na narrativa, sendo os acessórios e o aspecto geral de uma criança.

A criança olha diretamente para o leitor, como se estabelecesse com ele uma relação pessoal, com o ângulo de frente denotando, ainda, envolvimento. O leitor pode olhar essa criança mulher, no alto dos seus 33 anos de idade, professora e doutora em História, que, com uma expressão facial triste, chama a atenção do leitor para a sua condição de uma criança que está separada do mundo adulto, conforme suas palavras. Cummings assume duas identidades, segundo ela mesma afirma, conforme a língua que fala. Como destaca em sua entrevista, em inglês, é uma mulher culta e inteligente, que pode falar a respeito de muitas coisas. Em português, no entanto, além de ser uma criança que não pode expressar suas ideias, mas apenas ouvir e aprender, a participante se autodeclara ‘burra’, o que representa, na narrativa visual, por meio de grandes orelhas “de burro”, destacadas na parte superior da cabeça da criança na imagem. Essa representação aponta que o processo de construção identitária na aprendizagem de uma língua pode ser um processo doloroso em termos afetivos e psicológicos, como parece sugerir a participante ao descrever sua narrativa visual:

[10] Eu me representaria como uma criança. Em português, eu não posso expressar todas minhas ideias - eu não tenho as palavras. Em inglês, eu sou uma mulher educada e inteligente que pode falar de muitas coisas, mas em português eu não tenho a facilidade de falar - sou burra! Como uma criança, eu devo ouvir e aprender. Como uma criança, estou separada do mundo adulto. (Cummings, TE, NILP1)

Cummings, em sua entrevista pondera, no entanto, que é muito importante que ela aprenda a língua portuguesa, já que seu esposo é português, assim como seus sogros e ela deseja ajudar seu filho a aprender a língua portuguesa, revelando seu investimento no capital social e simbólico (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.) que a língua representa, assim como o desejo de inserção em uma comunidade imaginada (NORTON, 2016NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479.), a família do esposo.

Em se tratando da categoria participantes humanos em estruturas narrativas, subcategorias caracterização, aparência, corpo e aspecto, conforme propostas por Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., as orelhas estão marcadas nas narrativas visuais neste estudo, ora como sinal de estupidez como Cummings expressa, ora para contrastar a habilidade de ouvir e compreender na nova língua, em contrapartida à habilidade de falar, comunicar e interagir na língua portuguesa, em que os participantes se assumem em uma identidade representada por uma plasmagem de ser humano com uma espécie dotada de enormes orelhas, como nas narrativas NILP 7, 4 e 2 a seguir.

Na terceira categoria na análise dos dados, Milano, italiano, 20 anos, estudante de engenharia descreve a si mesmo como um ser de orelhas imensas, nas quais representa, de forma escrita, algumas palavras na língua portuguesa, o que, conforme destaca em sua entrevista, é o modo como deseja expressar o fato de que não consegue compreender a língua portuguesa. A expressão facial revela um rosto atônito, os olhos arregalados, a boca, segundo ele, pequena e costurada, para representar sua incapacidade de falar português (Figura 7- NILP7).

Figura 7
Narrativa visual NILP7

Gonçalo (NILP4, Figura 8), de nacionalidade chinesa, também de 20 anos de idade, por sua vez, se representa por meio de um participante humanóide, centralizado na página como informação principal, também uma espécie de ser mutante com orelhas em ênfase, no tamanho e no preenchimento de cor escura, desproporcionais ao tamanho do rosto na imagem, que é também, marcadamente, de uma aparência mais velha, muito além dos 20 anos de idade do participante da pesquisa. A imagem contrasta as cores preta e branca e denota um ar sombrio. O franzido da sombrancelha, o olhar para o lado direito, os lábios curvados, em posição de irritação e descontentamento. Ao contrário da maior parte das narrativas visuais neste estudo que estabelecem, por meio da posição frontal e do olhar direto, uma relação de envolvimento pessoal com o leitor (KRESS; van LEEUWEN, 2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.), o participante não se comunica com o leitor de sua imagem. Frente às dificuldades que sente em se comunicar e expressar suas ideias ao outro, sente-se envergonhado e prefere se calar. Na representação de processos mentais em um balão de pensamento, o ser mutante, em posição do corpo que denota encolhimento e recolha, escreve:

Figura 8
Narrativa visual NILP4

[11] É tão difícil expressar a minha ideia, cada vez não consigo falar com português. Então fico calado e envergonhado. (NILP4 - Balão de processos mentais na imagem)

Ainda na narrativa de Pedro (NILP2, Figura 9), estadunidense de 19 anos, a orelha aparece em saliência, colocada do lado de fora do corpo de um participante humano muito pequeno, localizado ao lado esquerdo, na base da folha, enquanto um grande balão de processo mental ocupa todo o centro da folha, com mapas em saliência e setas que indicam a interrelação entre alguns dos países possivelmente lusófonos no desenho. Desse balão saem linhas de ligação que vão desde os países falantes da língua portuguesa até a grande orelha do pequeno participante humanóide, cuja cabeça está em contraste de tom e nitidez, revelando hierarquia entre os elementos. As linhas e setas mencionadas não são de separação, mas sim, de interconexão, conquanto Pedro ressalta em seu TE:

Figura 9
Narrativa visual NILP2

[12] Para mim, aprender um idioma é também entender mais das diversas culturas mundiais com que esta língua está conectada. É ter uma conexão com milhares de pessoas e entender de forma mais profunda suas experiências. (Pedro, TE, NILP2)

Em sua entrevista, Pedro chama a atenção para o fato de que é a primeira vez que aprende uma língua no país em que ela é falada. Para ele, a língua portuguesa é algo completamente diferente. A fala de Pedro em sua entrevista nos remete à sua narrativa visual, a qual estabelece todo um mundo de informações e experiências em plano aberto e êm ênfase, frente a um pequeno participante que busca aguçar seus sentidos por meio de protuberante orelha, para receber toda a informação e comunicação que vem a partir desse novo mundo que a língua portuguesa representa.

A última categoria, representada pela narrativa visual NILP8 (Figura 10), traz um participante alienígena, colocado em destaque de informação principal, ao centro da página na estrutura composicional da narrativa. Em processos de ação, a cauda do participante voltada para um planeta outro que não a terra, pela descrição em anel, assim como as pernas do participante pousadas em uma forma circular representando, possivelmente, o planeta Terra, narram a saída do alienígena de um planeta para pousar em um outro planeta. A expressão facial e o olhar atônito do participante sugerem seu sentimento em relação ao novo planeta, como algo totalmente novo, possivelmente uma representação de Portugal ou da língua portuguesa. Na base da folha, local que representa a informação real na categorização da Gramática Visual de Kress e van Leeuwen (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006., há uma anotação verbal em que se lê: “sobreviver”. O participante Gustavo, chinês, 20 anos, registra, em sua entrevista, que a língua portuguesa é muito diferente de sua língua e que, ao ouvir as pessoas, não consegue compreendê-las.

Figura 10
Narrativa visual NILP8

[13] Tenho procurado melhorar o meu ouvido, mas é muito difícil. Me sinto como um alienígena, vindo de outro mundo. (Gustavo, Entrevista)

Como se pôde observar, as narrativas visuais dos participantes deste estudo representam padrões de experiências de si mesmos e de sentimentos sobre essas experiências, marcadas por sentidos sociais (MELO-PFEIFER, 2015MELO-PFEIFER, S. (2015). Multilingual awareness and heritage language education: children’s multimodal representations of their multilingualism, Language Awareness, v. 24, n. 3, pp. 197-215.) em um contexto específico de aprendizagem de segunda língua em que o si, na nova língua, é representado como estrangeiro, diferente, alienígena, incapaz, enfim, um ser à parte da interação social, isolado em suas emoções e sentimentos de fracasso em termos de reconhecimento e atestação na comunidade em que se encontra inserido no tempo e espaço definido da geração dos dados. É interessante notar que os resultados do estudo se aplicam aos participantes como um todo, tendo as representações de si se apresentado semelhantes, independente da nacionalidade, o que reforça a complexidade do processo de construção de identidades no contexto de aprendizagem de línguas (PAIVA, 2010PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217.).

Nesta pesquisa, o outro é representado pelos colegas, professores, parentes e pelo próprio falante nativo, que, muitas vezes, na perspectiva dos aprendizes, faz com que estes se sintam constrangidos, envergonhados, com medo de cometer erros (PAIVA; GOMES, 2010PAIVA, V. L. M. O. e. (2010). O outro na aprendizagem de línguas. In: Hermont, A.B.; Espírito Santo, R. S.; Cavalcante, S. M. S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS. pp. 203-217.), e, no caso do participante Gonçalo, até se retraíam e se afastem desse outro, recolhendo-se, o eu, a um isolamento. Representações de um outro que não os compreende e, por vezes, parece criticá-los, afetam a forma como os participantes representam a si próprios, influenciando suas emoções e ações, não tendo sido observados registros de menções ao convívio com falantes nativos como uma experiência positiva, como apontam Paiva e Gomes (2009)PAIVA, V. L. M. O. e.; GOMES, I.F. (2009). O outro em narrativas de aprendizagem de língua inglesa. Polifonia, v. 19, pp. 59-80..

Os resultados deste estudo apontam a estreita relação entre alteridade e identidades na aprendizagem de línguas, não somente no âmbito da sala de aula, mas também no contexto mais amplo das relações sociais e institucionais (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.), quer seja na comunidade ou nas famílias, implicando em importantes reflexões acerca da capacidade ou não de o sujeito poder designar-se a si, em reconhecimento e aceitação perante o outro (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, procurei, com base nas reflexões propostas por Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., pensar as identidades de aprendizes de língua portuguesa como segunda língua, não somente a partir daquilo que ontologicamente as constitui, mas também a partir daquilo que, do ponto de vista fenomenológico, manifesta a existência humana: a atestação do outro. Ainda com base em Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., empreendi uma análise dentro de uma dimensão espaço-temporal específica, ciente de que as narrativas do participantes do estudo representam marcas identitárias dos mesmos no momento da coleta de dados da pesquisa, realizada na presença do “outro” representado pelo pesquisador, pelos colegas também presentes em sala de aula, assim como pelos diversos falantes da língua portuguesa em interação com os participantes em suas vivências diárias, mimetizados em o “outro” ou os “outros”, perante os quais os participantes ambicionam atestação e reconhecimento.

Com base no conceito de identidades de Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006. e Norton (2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters., 2016)NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479. e na compreensão de Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus. de que a pessoa é a sua história, narrativas visuais foram utilizadas neste estudo como instrumento principal de coleta de dados. Essas narrativas se mostraram como valiosos instrumentos para a compreensão dos processos identitários, em especial, se utilizadas em conjunto com outros instrumentos de coleta, como explicações escritas dos desenhos e entrevistas. Busquei, nas narrativas visuais, evidências que representassem a forma como os participantes se percebiam como falantes da língua portuguesa, assim como a forma como nomeavam os outros no processo de aprendizagem. As narrativas visuais coletadas, interpretadas a partir de Kress; van Leeuwen (2006 [1996])KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006. e Mota-Ribeiro (2011)MOTA-RIBEIRO, S. (2011). Do outro lado do espelho: imagens e discursos de gênero nos anúncios das revistas femininas: uma abordagem sociossemiótica visual feminista. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga., a partir do conceito de identidades de Hall (2006)HALL, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 2006., Ricoeur (1991)RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus. e Norton (2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.; 2016)NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479., revelam a forma como os participantes percebem a si mesmos mais do que “um si mesmo como um outro” (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus.), mas também como “o outro do outro”, na diferença e naquilo que não são.

Os participantes representam a si mesmos, algumas vezes como crianças, alijadas do processo de interação e do mundo dos adultos, outras vezes como uma espécie humanóide, dotada de grandes orelhas e boca pequena e costurada, remetendo à importância que os aprendizes conferem às habilidades de compreensão e expressão oral no processo de aprendizagem. As narrativas revelam as grandes dificuldades com as quais os aprendizes se deparam diante de um outro que parece não compreendê-los, e, por vezes, segundo apontam os participantes em suas narrativas, criticá-los. As identidades se convertem, ainda, não apenas em seres híbridos no esforço de se comunicar, mas também na representação de si no corpo de um estrangeiro ou alienígena, no que se refere ao que podem ou não fazer (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters.) como falantes de língua portuguesa. As histórias criadas pelos participantes exprimem relações conflituosas no desejo de reconhecimento e aceitação por parte do outro, representado como o falante nativo, o colega, o professor ou mesmo os parentes no papel de integrantes de comunidades imaginadas (NORTON, 2016NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479.) nas quais os participantes desejam se inserir. É interessante notar, contudo, que mesmo mediante emoções negativas como tristeza, irritação, frustração e desejo de isolamento, os participantes revelam ainda desejo de investimento no capital simbólico e social (NORTON, 2016NORTON, B. (2016). Identity and language learning: Back to the future .TESOL Quarterly, 50 (2), pp. 475-479.) que a aprendizagem da língua pode vir a significar em termos de possibilidades futuras.

O estudo traz, portanto, importantes implicações para os processos de ensino de línguas, assim como para a formação de professores, apontando que o tema identidades e a compreensão de quem são os atores e seus interactantes no processo de aprendizagem, em especial nos contextos de aprendizagem de segunda língua, assumem grande relevância. É preciso formar professores atentos aos processos de construção identitária de seus alunos e, que, em uma perspectiva mais ampla, possam refletir a respeito de que estratégias podem ser aplicadas, não apenas para o desenvolvimento de habilidades orais em sala de aula, mas também, tendo em vista o papel da pesquisa científica para a sociedade como um todo de forma mais efetiva, pensar estratégias de reflexão para a aceitação do outro, do diferente, na vida social.

A análise aqui empreendida me leva a recomendar a utilização de um modelo narrativo nos estudos das identidades, permitindo ao sujeito refletir a respeito de sua história, pela experiência e pelo reconhecimento da alteridade. As narrativa visuais, para além de um instrumento de pesquisa nos estudos de identidade, podem operar, também, como propulsoras de reflexão que possibilita novos modos de ser, por meio de uma melhor compreensão de si e do outro, diante da natureza dinâmica de interação e comunicação no processo de aprender línguas, que envolve visões múltiplas e subjetivas do individual e do coletivo, não apenas a sala de aula, mas na comunidade como um todo, na atestação e reconhecimento de cada um perante o outro.

Uma limitação deste estudo foi a impossibilidade de retornar aos participantes com os resultados da pesquisa para uma reflexão mais aprofundada que revertesse em benefícios para cada um deles em sua própria ação e práxis no processo de aprender, devido ao tempo reduzido de permanência dos participantes em Portugal. Considero, entretanto, que a participação destes na pesquisa mediante a possibilidade de gerar sua própria narrativa, criando suas próprias histórias como falantes da língua portuguesa, por si só, terá um impacto positivo nos processos de construção e (re)construção identitária dos participantes do estudo.

Estudos futuros poderão, a partir das discussões suscitadas neste artigo, somar às propostas de pesquisa, outras questões e conceitos contemplados na hermenêutica de si ricoeuriana, não abordados diretamente aqui, como os conceitos de responsabilidade e reciprocidade entre ação e sofrimento humanos, nesse caso, no processo de aprendizagem de segunda língua. Estes estudos poderão ser realizados, buscando a compreensão de si e do outro por meio de narrativas visuais em uma proposta de trabalho que vise procurar influenciar as práticas semióticas descritas, incluindo, ainda, reflexões críticas sobre questões de poder e sobre a função ideológica das imagens, com o objetivo de interpelar subjetividades múltiplas no sentido de fortalecer identidades (EARLY; NORTON, 2012EARLY, M.; NORTON, B. (2012). Language learner stories and imagined identities. Narrative Inquiry, 22 (1), pp. 194-201.) e possibilitar mundos sociais mais justos, pois, como lembram Jewitt e Oyama (2001)JEWITT, C. ; OYAMA, R. (2001). Visual Meaning: A Social Semiotic Approach. In: Leeuwen, T. v.; Jewitt, C. (Orgs.), Handbook of Visual Analysis. London: Sage, pp. 134-156., a imagem não reflete a realidade, mas a constrói.

  • 1
    Este trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).
  • 2
    Convém ressaltar que, neste estudo, tomo emprestadas algumas contribuições da obra “Soi-même comme un autre” de Paul Ricoeur, tendo em vista sua relevância para a compreensão do construto identidades, em especial no que se refere à compreensão de si a partir do outro, por meio de narrativas. Não é meu intuito, de nenhuma forma, exaurir a imensa riqueza da obra do autor, fazendo uma leitura centrada apenas em alguns aspectos de um dos muitos temas iluminados por este pensador.
  • 3
    Conforme as categorias da Gramática do Design Visual (Adaptadas de Kress; van Leeuwen, 2006 [1996]KRESS, G.; van LEEUWEN, T. (1996). Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, 2006.).
  • 4
    A identidade como mesmidade ( do latim idem ou do inglês same) (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p.140).
  • 5
    A identidade como si-próprio [soi] (do latim ipse ou do inglês self) (RICOEUR, 1991RICOEUR, P. (1991). O si mesmo como um outro, Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus., p.140).
  • 6
    Do original: “the way a person understands his or her relationship to the world, how that relationship is constructed across time and space, and how the person understands possibilities for the future. (NORTON, 2013NORTON, B. (2013). Identity and language learning: Extending the conversation. Bristol: Multilingual Matters., p.4)
  • 7
    O Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas: Aprendizagem, ensino, avaliação (QECR), de 2001, é um documento do Conselho da Europa, elaborado no âmbito do Projeto Políticas Linguísticas para uma Europa Plurilíngue e Multicultural.
  • 8
    As narrativas visuais foram codificadas de forma a serem identificadas no corpus. Assim, NILP será entendido como Narrativa Identitária de aprendizes de Língua Portuguesa, seguida do número correspondente à narrativa.
  • 9
    Textos escritos explicativos das imagens pelos participantes, doravante, TE.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2019
  • Aceito
    04 Abr 2020
  • Publicado
    20 Jul 2020
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