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As jornadas pelas “vias secundárias” da globalização

Entrevista com Caroline Knowles

Nesta entrevista, Angelo Martins Jr. conversa com a professora Caroline Knowles, do Goldsmiths College/University of London, sobre seu recente livro Flip-Flop: a journey through globalisations ‘backroads’ (Knowles, 2014Knowles, Caroline. (2014), Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads. Londres, Pluto Press.), que foi traduzido para o português e publicado pela Annablume com o título Nas trilhas de um chinelo: uma jornada pelas vias secundárias da globalização(Knowles, 2017Amit, Vered & Knowles, Caroline. (2017), “Improvising and navigating mobilities: tacking in everyday life”. Theory, Culture & Society, 8 (34): 165-179.).

Caroline, um dos pontos que você levanta em seu livro é que, para entender completamente o que é a globalização, precisamos olhar para a vida cotidiana das pessoas (e suas conexões com objetos) que constituem o chamado “mundo móvel global” e não apenas nos concentrarmos nos aspectos econômicos e estruturais do fenômeno. Acredito que sua própria trajetória pessoal, como uma acadêmica que trabalhou e viveu em diferentes países, pode ter sido importante para trazer esse olhar ao seu estudo sobre a globalização. Podemos começar discutindo um pouco sua própria trajetória pessoal, como pesquisadora, e como e por que você veio a desenvolver essa pesquisa?

É importante compreender e trabalhar com suas próprias características pessoais, como pesquisador. Como você corretamente sugere, meu interesse pelas lógicas e mobilidades da globalização não é acidental, mas parte da minha biografia pessoal e intelectual. Crescida no interior do Reino Unido, em um local um tanto remoto que trazia um sentimento forte de imutabilidade e de “desconexão com o resto do mundo”, isso produziu em mim uma sede de conhecimento sobre o mundo e um desejo de experimentar uma espécie de hipermobilidade. Foi quando eu era uma estudante de doutorado que viajei pela primeira vez para fins de pesquisa, pois usei os arquivos na Biblioteca Nehru, em Nova Délhi. Naquele momento, eu buscava compreender as configurações de “raça” no Reino Unido pré-Segunda Guerra Mundial, em reação a processos de independência colonial. A pesquisa é a forma como vivo no mundo e então comecei a viajar e a viver em outros lugares, assim minha pesquisa se estendeu. Meu primeiro trabalho acadêmico foi na Universidade de Maiduguri, no norte da Nigéria – agora a fortaleza de Boko Haram, um desenvolvimento com o qual a universidade é creditada. Encarando mais uma vez uma pequena cidade e seu estilo de vida, eu decidi explorar o desenvolvimento rural e seu impacto nas comunidades locais de Kanuri, especialmente nas mulheres.

Incapaz de operar em Kanuri ou Hausa, colaborei com um linguista americano que falava a língua. Eu dirigia até as aldeias distantes no meu volkswagen e ele traduzia as conversas para mim. Os muitos exemplos do Banco Mundial e de outras agências que que eram incapazes de abordar as questões e os problemas locais de fato, por exemplo, querendo ensinar aos agricultores como cultivar nas condições de seca subsaariana, algo que eles já haviam descoberto por si mesmos séculos antes, apareceram na minha escrita inicial com o Grupo Mulheres na Nigéria – um interesse já precoce na questão da globalização, de certa forma.

De volta a um trabalho acadêmico em Londres, retomei minha preocupação anterior com “raça”, migração e a política social-democrata, produzindo meu primeiro livro: Race, discourse and labourism(Knowles, 1992Knowles, Caroline. (1992), Race discourse and labourism. Londres, Routledge.). Posteriormente, questões familiares me levaram ao Canadá pelos oito anos seguintes, passando primeiro por Toronto e Vancouver para depois viver em Montreal por seis anos. Em cada cidade, eu estava preocupada com as formas de racismo incorporadas nas reações locais à migração, que tomaram formas bem diferentes em cada cidade e província. Esses foram anos em que aprendi muito, dei aula com dificuldade por causa da minha falta de conhecimento local e escrevi muito pouco, até eu me instalar em um emprego mais estável em Montreal, na Concordia University. Foi em Montreal que tive a oportunidade de desenvolver a vertente urbana do meu trabalho, de forma oblíqua, através de um estudo de “esquizofrênicos” (maioria migrantes afro-caribenhos) e seu relacionamento (hipermóvel) com a cidade. Foi nesse contexto que minha preocupação com a biografia e o espaço começou a se desenvolver ao lado da mobilidade e do urbanismo, não abandonando a “raça”, mas voltando-se para produções de whiteness (branquitude). Essas discussões se desenvolveram mais plenamente quando voltei ao Reino Unido para trabalhar na Universidade de Southampton, onde me aprofundei no tema da “branquitude pós-colonial”. Tendo passado dez anos como imigrante, pareceu-me lógico seguir alguns desses interesses, o que me levou de volta à pequena cidade em que cresci, onde então, só então, pude compreender – e não quando criança – que aquela cidade estava cheia de gente branca que havia retornado dos serviços do império. Foi nesta cidade que comecei a seguir uma trilha (de pesquisa) que me levou a Hong Kong, resultando no livro, em coautoria com o fotógrafo Douglas Harper, Migrant Lives, landscapes and Journeys(Knowles e Harper, 2009Knowles, Caroline & Harper, Douglas. (2009), Hong Kong: migrant lives, landscapes, and journeys. Chicago, University of Chicago Press.), o qual desenvolveu empiricamente algumas das questões que eu havia levantado, teoricamente, no livro Race and social analysis(Knowles, 2003Knowles, Caroline. (2003), Race and social analysis. Londres, Sage.). Quando me mudei para Londres, o ponto em que eu tinha começado a minha jornada, fui trabalhar no Goldsmiths College – University of London, um departamento de sociologia maravilhoso, por ser “disciplinariamente promíscuo e multidisciplinar”, o que ampliou ainda mais o meu trabalho no que diz respeito a novas colaborações com artistas e fotógrafos. Eu também ampliei meu escopo de pesquisa para incluir circulações de objetos e pessoas e comecei a pesquisar no Kuwait, Coreia, China e Etiópia, seguindo a trilha de chinelos que escrevo no livro, Flip-Flop: a journey through globalisations backroads (Knowles, 2014Knowles, Caroline. (2014), Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads. Londres, Pluto Press.).

Voltando a sua abordagem específica em relação à globalização, a qual mencionei na primeira questão, você usa uma abordagem que pretende se afastar das teorias da globalização que partem de uma perspectiva mais macro, as que são vistas, por você, como limitantes demais em suas perspectivas. Para você, a globalização é menos organizada do que os teóricos como John Urry (2000Urry, John. (2000). “Mobile sociology”. The British Journal of Sociology, 51 (1): 185-203.) e Manuel Castells (1996) sugerem. Ao debater com esses autores e sua abordagem da globalização, você argumenta que a ideia e o conceito de que as pessoas e os objetos “fluem” [flow] em um mundo em movimento transmitem uma facilidade irreal com a qual pessoas e objetos se movem de um lugar para outro, e tal facilidade apagaria as “texturas sociais do viajar”. Em vez de fluxo, você usa a ideia de “jornada” [journey] para entender as rotas globais que os movimentos das pessoas e das coisas criam, conectando vidas e paisagens que produzem o mundo global. Você poderia discutir um pouco mais como seu trabalho difere das noções anteriores de globalização (via seu conceito de jornada) e quais teóricos a ajudaram a desenvolver o seu argumento?

Penso que a globalização é um tema tão assustadoramente vasto que os sociólogos, como aqueles que você mencionou – e eu gosto do trabalho desses autores, por serem bastante imaginativos –, se mantêm com uma abordagem macro e geral na tentativa de capturar uma visão mais abrangente do que é a globalização e de como ela funcionaria. Embora esse tipo de globalização se aproxime de uma orientação teórica obtusa, seu lado de pesquisa empírica é muito fraco, muitas vezes se limitando a alguns exemplos. Para mim, é importante capturar como essas coisas funcionam “no chão” [on the ground], no dia a dia. É assim que antropólogos tendem a trabalhar com a globalização, e eu alinhei o meu trabalho com esse tipo de abordagem “no chão”, a qual envolve desenvolver uma visão próxima, de perto, de apenas uma pequena vertente da globalização. Daí a minha escolha de uma pequena biografia de objeto – inspirada por Igor Kopytoff (1986Kopytoff, Igor. (1986), “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: Appadurai, Arjun (org.), The social life of things. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91.)– para que eu pudesse analisar a globalização em uma escala menor. As teorias da globalização se baseiam fortemente em uma outra vertente do trabalho teórico sobre as mobilidades. De fato, essas duas formas de abstração estão interligadas, de modo que as mobilidades, assim como a globalização, emergem como uma visão geral, generalizada, do movimento/mecânica da globalização. Isso também é altamente abstrato (“superteorizado”, na minha opinião) e pouco demonstrado nas pesquisas empíricas. Mais uma vez, penso que os antropólogos são melhores em descompactar as microcenas da mobilidade, e eu gosto de trabalhar nesse campo. Eu gosto de descobrir como a mobilidade se decompõe em viagens individuais e formas de navegação contingenciais e incertas, que se alternam de um lado para o outro, à medida que as circunstâncias “no chão”, no dia a dia, exigem. Eu escrevi sobre isso, junto com minha amiga Vered Amit, no texto Improvising and navigating mobilities: tacking everyday life(Vered e Knowles, 2017Amit, Vered & Knowles, Caroline. (2017), “Improvising and navigating mobilities: tacking in everyday life”. Theory, Culture & Society, 8 (34): 165-179.), em que defendemos uma abordagem mais aberta e fluida da mobilidade, a qual leva em conta as realidades cotidianas da vida das pessoas à medida que planejam e executam pequenas e grandes jornadas que compõem suas vidas. Na verdade, esse artigo foi inspirado nos refugiados que tentaram acessar a Europa por diferentes rotas e formas de viagem, durante os últimos três ou quatro verões, ajustando suas rotas e formas de viagem conforme as circunstâncias exigiam. Isso coloca as pessoas como agentes ativos no centro do quadro analítico, no lugar do processo abstrato de mobilidade e viagens globais. Tal perspectiva também desacopla a mobilidade da globalização e insiste que ambas são parte da vida cotidiana.

O livro (Knowles, 2014Knowles, Caroline. (2014), Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads. Londres, Pluto Press.) é resultado de seis anos de pesquisa etnográfica seguindo a biografia de um par de chinelos pelo mundo – partindo da extração do petróleo para a sua produção. Para desenvolver sua etnografia, você atravessou diferentes fronteiras nacionais, conversou com pessoas de diferentes classes, que falam diferentes línguas e às vezes em locais considerados perigosos para desenvolver pesquisas. Você poderia nos falar sobre a abordagem metodológica que usou para desenvolver sua pesquisa, a qual você chamou de “métodos itinerantes”, e também sobre os desafios que enfrentou para desenvolver sua pesquisa?

A resposta honesta à sua pergunta é que eu tive que improvisar em todas as etapas deste projeto de pesquisa. Então, o que eu resumi no livro como “métodos itinerantes” é um jeito curto de me referir a uma caixa de ferramentas de abordagens para situações diferentes em que eu seria exposta – não conseguir o que eu queria e, em seguida, tentar de outra forma. Portanto, estes são todos os métodos de pesquisa-padrão usados por todos os pesquisadores: observação minuciosa, tomar notas, desenhos, mapeamento, fotografia, entrevistas e assim por diante. A complicação – e o que os fez “métodos itinerantes” – foi a sua aplicação em movimento, ao longo da trilha do chinelo. É aí que as dificuldades surgiram. A trilha não foi claramente definida antes de eu começar a segui-la. Eu tinha apenas uma ideia bem vaga de para onde realmente ir e, portanto, sempre tive presente um grande elemento de descoberta no desenrolar da pesquisa. Por exemplo, embora eu soubesse que a trilha passava pela cidade chinesa de Fuzhou, eu não sabia exatamente onde, em Fuzhou, ela estava. Muitas vezes a perdi, tive que procurá-la e redescobri-la em lugares que não esperava. Não podendo viajar de fato com os sapatos de plástico que eu estava seguindo, eu estava sempre antecipando onde eles poderiam estar e tentando alcançá-los. Nesse tipo de pesquisa, o pesquisador está sempre atrasado e lutando para recuperar o atraso. Outra complicação dos métodos itinerantes vem do número de diferentes pessoas e locais com que eu era obrigada a interagir. Os acadêmicos geralmente se especializam em regiões e línguas particulares, mas o método itinerante, seguindo uma trilha incerta, não pode fazer isso. Portanto, os métodos itinerantes não permitem as presunções usuais de experiência (de expertise) e muitas vezes eu sou criticada pelos antropólogos por isso. Sempre digo que não estou tentando entender pontos e lugares específicos, mas as conexões entre eles. Quando estão “enraizados” em um local, os antropólogos não podem fazer essas perguntas sobre rotas e conexão, pelo menos eles só podem fazer isso a partir de um único local. Os métodos itinerantes podem ser intelectualmente insatisfatórios, mas abrem novas questões e conduzem a novas possibilidades. Todos os métodos são de qualquer forma imperfeitos. Melhor apenas admitir suas limitações e seguir em frente!

Ainda sobre métodos, neste livro você trabalhou em colaboração com um fotógrafo, Michael Tan, para desenvolver a pesquisa. Você poderia nos dizer sobre a importância, e também as limitações, de usar a fotografia como uma ferramenta metodológica para apreender o mundo urbano e social (móvel)?

Trabalho com fotógrafos e artistas porque eles têm uma imaginação diferente, mais visualmente calibrada, enquanto a minha trabalha com palavras. Eu sou uma escritora que é atraída pela estética visual, para a aparência das coisas, mas além de fotografar cenas de pesquisa para fins de inventário, como parte das minhas notas de pesquisa, não consigo pensar e combinar fotografias em uma gramática de imagens que transmitem algo intangível sobre a pesquisa. Quando Michael Tan e eu trabalhamos juntos na trilha do chinelo, eu não impus nenhum requisito. Nós concordamos que estávamos seguindo o chinelo e que estávamos estudando a globalização, mas, além disso, nós dois fomos livres para cada um explorar a questão da maneira que nos parecesse apropriada.

Na verdade, Michael às vezes trabalha com fotografia: ele é melhor descrito como um artista. Então trabalhamos em conjunto nas mesmas cenas de pesquisa na China e na Etiópia. Enquanto eu fazia entrevistas, ele vagava pelas cenas descobrindo coisas que eu não havia notado e tirando fotografias da maneira que quisesse. Então, mudaríamos para a próxima cena conforme havíamos concordado. Todas as noites nos encontrávamos. Michael me mostrava suas fotos e eu lhe falava o que havia descoberto via entrevistas. Dessa forma, formamos uma colaboração paralela. Ele editaria suas fotos dessas nossas conversas. No final, nem todas as fotos puderam constar do livro, mas estão no site www.flipfloptrail.com. Também fizemos algumas exposições – lideradas por ele – em Leeds e em Cingapura, de modo que o livro e os artigos não eram nossa única produção. Michael foi bastante habilidoso em captar movimento em sua fotografia. Isso se mostra em suas fotos na estrada na Etiópia, onde ele fotografou peregrinos caminhando a pé e caminhões e ônibus na estrada, enquanto dirigíamos entre Adis Abeba e a fronteira da Somália.

Sei que você foi premiada com o extremamente competitivo financiamento Leverhulme Major Fellowship para desenvolver seu projeto, Serious money: a mobile investigation of plutocratic London, no qual você explora os bairros e as vidas dos plutocratas de Londres. Você poderia nos contar mais sobre esse projeto e como isso está relacionado com o trabalho anterior sobre a circulação de pessoas e coisas e a produção das cidades (e do mundo global)?

Meu novo projeto tenta fazer visíveis as cartografias da riqueza de Londres, as quais são parcialmente submersas e, às vezes, deliberadamente obscurecidas. A pesquisa foi desenhada como uma caminhada através do vórtice de riqueza de Londres – o que eu penso como um corredor de residência e atividade plutocrática –, que começa em Virginia Water no Wentworth Golf Course, segue ao longo do Tamisa, pelos bairros de Chelsea, Knightsbridge, Kensington, e termina em Mayfair. Estas são partes afluentes do oeste e sudoeste de Londres. O ponto da caminhada é descrever os bairros em que os plutocratas vivem e tentar falar com eles e com sua classe de serviço. As questões da pesquisa são: Quem são esses plutocratas de Londres? Como eles pensam sobre si mesmos, sobre a cidade e sobre outras pessoas? Como eles vivem? Pensei nisso como descobrindo a carne e a força vital do capital. Claro que isso também é um projeto sobre globalização, mas agora operando na extremidade oposta do espectro de riqueza da fabricação do chinelo! Londres é um nexo global no fazer, ampliar e consumir dinheiro! Dessa vez, meus métodos itinerantes são confinados a uma única cidade e aos condutores que a conectam com o resto do mundo.

Referências Bibliográficas

  • Amit, Vered & Knowles, Caroline. (2017), “Improvising and navigating mobilities: tacking in everyday life”. Theory, Culture & Society, 8 (34): 165-179.
  • Kopytoff, Igor. (1986), “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: Appadurai, Arjun (org.), The social life of things. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91.
  • Knowles, Caroline. (2014), Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads. Londres, Pluto Press.
  • Knowles, Caroline. (2003), Race and social analysis. Londres, Sage.
  • Knowles, Caroline. (1992), Race discourse and labourism. Londres, Routledge.
  • Knowles, Caroline & Harper, Douglas. (2009), Hong Kong: migrant lives, landscapes, and journeys. Chicago, University of Chicago Press.
  • Urry, John. (2000). “Mobile sociology”. The British Journal of Sociology, 51 (1): 185-203.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Aceito
    19 Out 2017
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