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As mulheres na economia social: No centro da ação, longe da decisão

Women in the Social Economy: at the heart of action, far from the decision

Resumo

Com este texto, pretende-se alertar para a persistente desproporção entre homens e mulheres nos cargos de liderança das entidades da Economia Social. Para o efeito, observa-se a realidade portuguesa sobre a qual, pela primeira vez, estão disponíveis dados atualizados e a nível nacional, recolhidos pelo INE - Instituto Nacional de Estatística. Refletindo sobre as causas que lhe subjazem, propomo-nos ainda abordar as vias para ultrapassar a segregação de gênero. Neste ponto, partimos de uma constatação importante, a de que existe no seio das mencionadas organizações um bloqueio à mudança decorrente da invisibilidade das questões de gênero e de uma negação do problema, para advogar que uma parte da dinâmica de mudança em favor da igualdade de poder exige atuação interna, ao nível da consciencialização, do empoderamento e de uma abordagem transformadora.

Palavras-chave:
Liderança; Economia social; Organizações; Segregação vertical; Estatísticas

Abstract

With this text, it is intended to alert to the persistent disproportion between men and women in the leadership positions of social economy entities. To this end, we observe the Portuguese reality on which, for the first time, updated data are available at the national level, collected by INE - National Institute of Statistics. Reflecting on the underlying causes, we also propose to address the ways to overcome gender segregation. At this point, we start from an important observation, that there is a blockage to change within the aforementioned organisations due to the invisibility of gender issues and a denial of the problem, to advocate that part of the dynamics of change in favour of equality of power requires internal action, at the level of awareness, empowerment and a transformative approach.

Keywords:
Leadership; Social economy; Organizations; Vertical segregation; Statistics

Introdução

Quantas mulheres lideram ou pertencem à direção de topo das organizações da Economia Social? A resposta é que são poucas, quando comparadas com o número de homens. Será necessário escrever mais um texto expondo essa desigualdade? Nosso entendimento é o de que sim, particularmente quando novos dados estatísticos denotam/denunciam que a situação não se está a alterar significativamente, mantendo-se uma “segregação vertical” que urge continuar a debater e a combater.

“Segregação horizontal” e “segregação vertical” são as duas faces/expressões de uma realidade que persiste nas organizações atuais, do setor público e privado, “[…] e que explica por que é que as mulheres estão sub-representadas nas áreas mais estratégicas e lucrativas da gestão e dos negócios” (ILO, 2019aILO. (2019a), Women in business and management: Overcoming gender segregation. Geneva, International Labour Organization., p. 4). A segregação horizontal produz-se ao concentrar-se a participação das mulheres no setor dos serviços (ensino, saúde, ação social, comércio…) e a ser claramente minoritária na indústria e na construção. A segregação vertical produz-se através da menor presença de mulheres nos lugares de topo da estrutura profissional/laboral (cargos de direção e categorias profissionais mais bem remuneradas), assim como da estrutura orgânica (membros dos órgãos de administração e de outros órgãos sociais) (cf. Vidal, 2011VIDAL, M. J. Senent. (2011), “¿Cómo pueden aprovechar las cooperativas el talento de las mujeres? Responsabilidad social empresarial e igualdad real”. Revesco: Revista de Estudios Cooperativos, 105: 57-84.). Tanto uma como outra incorrem na desigualdade de oportunidades proporcionadas a mulheres e a homens para que possam exercer as suas competências, progridam nas suas carreiras profissionais e vejam reconhecido o valor do seu trabalho. De igual modo, significa uma disparidade em relação aos princípios da igualdade de gênero e da representação equilibrada, legalmente reconhecidos num cada vez maior número de países.

Sobre a presença nos cargos de liderança, sendo esta a perspectiva que iremos desenvolver no presente texto, ao longo do tempo e olhando para distintas geografias, vários estudos têm dado expressão numérica ao fosso entre homens e mulheres (cf. Proni & Proni, 2018PRONI, Thaíssa & PRONI, Marcelo. (2018), “Discriminação de gênero em grandes empresas no Brasil”. Revista de Estudos Feministas [online], Florianópolis, 26 (1): e41780. http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2018000100212&lng=es&nrm=iso. Epub 08-Feb-2018, consultado em 22/09/2020.
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; ILO, 2019bILO. (2019b), Women in business and management: The business case for change. Geneva, International Labour Organization , 2019b.). Perante as estatísticas, debate-se se “o copo está meio cheio” ou continua “meio vazio”. Enquanto algumas análises e organizações advogam que nos últimos anos se deram passos importantes no sentido de um maior equilíbrio de poder entre mulheres e homens, outras há que consideram os avanços ainda como incipientes e muito distantes da meta desejável. Mas, sobretudo, interessa saber se já foi feito o suficiente para quebrar o “teto de cristal” e ultrapassar a segregação ainda vigente.

Nesta matéria, a cada setor da sociedade cabe uma responsabilidade distinta. Ao Estado, exige-se que implemente medidas legislativas e incentivos à adoção de práticas promotoras da igualdade de gênero, desde logo no quadro do próprio setor público. Por sua vez, as empresas são desafiadas a conciliar a atividade econômica com uma responsabilidade social acrescida, em que novamente a igualdade de gênero deve ser assumida como prioridade. Já no que concerne ao setor da Economia Social, entendemos que o mesmo deve assumir uma responsabilidade acrescida, por duas ordens de razões: por um lado, pela importância econômica e social desse setor que, por exemplo, em Portugal representa 3,0% do VAB e 6,1% do emprego remunerado da economia nacional; por outro, porque esse é um setor que assume o combate às desigualdades como uma das suas principais causas e, ao mesmo tempo, se rege legalmente pelos princípios da participação livre, da igualdade formal e da gestão democrática. Interessa agora saber até que ponto tais princípios têm uma concretização ao nível interno, das próprias entidades que compõem o setor.

Assim, estabelecemos um triplo objetivo para este artigo. Primeiramente, o de conferir expressão numérica e factual à desproporção entre homens e mulheres nos cargos de liderança das entidades da Economia Social. Para o efeito, olhamos para a realidade portuguesa sobre a qual, pela primeira vez, dispomos de dados atualizados e a nível nacional, recolhidos pelo INE - Instituto Nacional de Estatística. Paralelamente, renova-se o debate sobre a persistência dessas desigualdades, e as causas que lhes subjazem. Por fim, propomo-nos abordar as vias para ultrapassar a segregação de gênero na liderança das organizações da Economia Social. Neste ponto, partimos de uma constatação importante, a de que existe no seio das mencionadas organizações um bloqueio à mudança decorrente da invisibilidade das questões de gênero e de uma negação do problema, para advogar que uma parte da dinâmica de mudança em favor da igualdade de poder exige atuação interna, ao nível da consciencialização, do empoderamento e de uma abordagem transformadora.

Os contornos do debate

“A sociedade civil ganhou o debate sobre a desigualdade, mas ainda precisa de ganhar a verdadeira luta contra ela.” (Civicus, 2018CIVICUS. (2018), “Civil society won the debate on inequality but still needs to win the actual fight against it” - Interview with Ben Phillips, Launch Director of the Fight Inequality Alliance. https://www.civicus.org/index.php/media-resources/news/interviews/3048-civil-society-won-the-debate-on-inequality-but-still-needs-to-win-the-actual-fight-against-it, consultado em 20/04/2020.
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). As desigualdades sociais manifestam-se de múltiplas formas (nos recursos, na educação, no emprego, na habitação, na saúde, e decorrentes da idade, do gênero, da orientação sexual ou da classe social de pertença…), e em muitas delas a sociedade civil, em geral, e a Economia Social, em particular, têm empreendido iniciativas visando a combater as suas manifestações e consequências.

Dentro do campo mais amplo da sociedade civil, as entidades da Economia Social formam um setor plural, com realidades orgânicas muito diferentes, na forma, na dimensão, no objeto e na lógica de funcionamento. Nesta “arca institucional” existem cooperativas, mutualidades, misericórdias, associações, fundações e entidades autogestionárias e comunitárias, que têm como denominador comum serem organizações de pessoas que desenvolvem atividades para satisfazer as necessidades de pessoas, de forma sustentável e sem a finalidade de remunerar investidores capitalistas, (cf. Pitacas & Sá, 2018PITACAS, José Alberto & SÁ, Jorge de. (2018), “A Economia Social em Portugal”. In: ALVARÉZ, Juan Fernando et al. (coord.). Anuario Iberoamericano de la Economía Social. Valencia, OIBESCOOP/Ciriec-España, pp. 133-144.), regidas pelos princípios da livre adesão, da gestão democrática e da participação alargada. A Economia Social é tradicionalmente um território profissional animado por mulheres, gerido por mulheres e cuja atenção se dirige, amiúde, às mulheres e aos problemas por elas enfrentados. As atividades ligadas ao cuidado, à assistência, à solidariedade e à missão social foram desde o seu aparecimento desempenhadas maioritariamente por mulheres. Uma realidade que se verifica até o momento presente, em que se estima que, em Portugal, o emprego feminino na economia social possa oscilar entre os 77% (cf. Parente & Martinho, 2018PARENTE, Cristina & MARTINHO, Ana Luísa. (2018), “The ‘places and non-places’ held by women in social economy organizations”. Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 29, (6): 1274-1282.) e os 88% (cf. Paiva et al., 2015PAIVA, Júlio et al. (2015), Empregabilidade nas Organizações da Economia Social, o papel das políticas ativas de emprego. Porto, EAPN.).

Todas as circunstâncias acima descritas reforçam a perplexidade com que se

observa a denúncia recorrente de que, seguindo as tendências de segmentação de gênero que atravessam a economia capitalista, as organizações da Economia Social tendem a reproduzir estruturas orgânicas e modelos de governança que mantêm as mulheres em posição de desvantagem (Civicus, 2016CIVICUS. (2016), State of civil society report 2016. Civicus Alliance.; EWL, s/dEWL. (s/d), “Decision-making & leadership” [online]. European Woman’s Lobby. https://www.womenlobby.org/-Women-in-Decision-Making-454-?lang=en, consultado em 15/08/2020.
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; Wolf, 2020WOLF, Helen. (2020), “More women in leadership positions” [online]. Fair Share of Women Leaders. https://fairsharewl.org/more-women-in-leadership-positions/, 2020, consultado em 15/08/2020.
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). Naturalmente, essa diminuição da proporção de mulheres à medida que se sobe na hierarquia piramidal significa perda de oportunidades e, sobretudo, perda de poder. Acresce ainda que a feminização do setor tem sido interpretada como consequência da desvalorização e diminuição do reconhecimento social a que o setor é votado, ao mesmo tempo que contribui para a tolerância de certas discriminações: “[…] porque estamos perante um setor residual, estamos perante um setor feminizado e com tendência crescente para o ser”, e essa marca distintiva justifica em parte a prevalência de baixos salários, do trabalho a tempo parcial, da elevada temporalidade e rotação, ou de tarefas desqualificadas (Piñón, 2011PIÑÓN, Josefina. (2011), “Sobre el porqué de la feminización del Tercer Sector. Lo que el género desvela”. Revista Española del Tercer Sector, Madri, 16: 17-46., p. 21).

Na busca de teorias explicativas para a persistência e generalização de fenômenos de segregação laboral entre os sexos, deparamo-nos com um conjunto de explicações que estabelecem um nexo de causalidade entre a sua ocorrência e o modelo de funcionamento da economia capitalista e neoliberal. Concretamente, e como lembram Anne Ross-Smith e Martin Kornberger (2004)ROSS‐SMITH, Anne & KORNBERGER, Martin. (2004), “Gendered rationality? A genealogical exploration of the philosophical and sociological conceptions of rationality, masculinity and organization”. Gender, Work & Organization, 11 (3): 280-305., a racionalidade capitalista tem sido associada a valores com conotação masculina, como os de pensamento abstrato, julgamento objetivo, calculismo, ação agressiva ou visão instrumental. O que poderá justificar uma certa inadaptação das mulheres às tendências dominantes da moderna economia competitiva. Ou, dito de outra forma, abre caminho às teses da “apetência” ou “preferência” das mulheres por certas profissões (marginais) que requerem outro quadro de valores e skills, quer sejam os de intuição, de criatividade ou de capacidade relacional (cf. Monteiro & Oliveira, 2014MONTEIRO, Alcides A. & OLIVEIRA, Catarina Sales. (2014), “Intervenção em igualdade de género no terceiro sector: organizações que discutem a sua própria mudança”, Atas do VIII Congresso Português de Sociologia. Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia.).

Assim, a teoria do capital humano (cf. England, 1982ENGLAND, Paula. (1982), “The failure of human capital theory to explain occupational sex segregation”. Journal of Human Resources, 17 (3): 358-370.; Anker, 1997ANKER, Richard. (1997), “La segregación profesional entre hombres y mujeres. Repaso de las teorías”. Revista International del Trabajo, Ginebra, 1167 (3): 343-370.) tende a explicar a segregação profissional entre os sexos pelo fato de as mulheres estarem menos qualificadas que os homens para certas profissões, por causa das diferenças de instrução, dos anos de experiência e do menor investimento na carreira profissional. Esse argumento baseia-se na suposta prioridade outorgada pelas mulheres ao contexto familiar, em detrimento de uma carreira profissional (cf. Bonet & Moreno, 2004BONET, M. A. Ribas & MORENO, Antonia Sajardo. (2004), “La desigual participación de hombres y mujeres en la economía social: teorías explicativas”. Ciriec-España, Revista de Economía Pública, Social y Cooperativa, Valencia, 50: 77-103.). Por sua vez, as teorias do mercado dual e da segmentação do mercado de trabalho apontam para a compartimentação desse mercado de trabalho em dois setores (primário e secundário) que se diferenciam no que toca a condições de trabalho, aos níveis salariais, às oportunidades de promoção e à estabilidade no emprego. As necessidades decorrentes do uso da tecnologia e da maior capacidade laboral originam um setor principal, masculinizado, que remunera melhor, exige e confere estabilidade, oferece mais oportunidades de promoção e melhores condições de trabalho (cf. Casaca, 2006CASACA, Sara Falcão. (2006), “La segregación sexual en el sector de las tecnologías de información y comunicación (tic): observando el caso de Portugal”. Sociología del Trabajo, 57: 95-130.). As mulheres, juntamente com as minorias étnicas e os emigrantes, tenderão a situar-se mais no mercado “secundário”, em que os salários são mais baixos, a flexibilidade é maior e as oportunidades de promoção são relativamente mais baixas.

Não descuramos o potencial explicativo de tais teorias, ainda que seja de reconhecer que os contextos que lhes deram origem se alteraram profundamente. Nomeadamente, no que concerne à inversão da tendência para que as mulheres detivessem menores níveis de qualificação e menos capital humano, ao aumento da sua experiência laboral, assim como ao tipo de conjunção entre a posição na família e o investimento numa carreira profissional. Todavia, julgamos mais adequado um quadro analítico que invoca os fatores socioculturais como justificativos da persistência das diferenças de gênero. Ou seja, numa abordagem próxima das teorias sociossexuais (cf. Passos & Nogueira, 2018PASSOS, Rachel Gouveia & NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. (2018), “O fenômeno da terceirização e a divisão sociossexual e racial do trabalho”. Revista Katálysis, 21 (3): 484-503.), a percepção de que persistência de desigualdades de gênero no mercado de trabalho decorre de determinados estereótipos dominantes na sociedade, sustentados pela convicção de que existem aptidões e tarefas próprias de mulheres, sucedendo o mesmo no caso dos homens. A divisão entre ocupações “masculinas” e “femininas” obedece em grande medida a ideias e valores que tem a sociedade em cada momento quanto ao que são as “preferências” e atributos de cada uma das partes, tanto do prisma da oferta (que trabalhos preferem desempenhar as mulheres/os homens) como da procura (quem os empregadores preferem contratar) (cf. Anker, 1997ANKER, Richard. (1997), “La segregación profesional entre hombres y mujeres. Repaso de las teorías”. Revista International del Trabajo, Ginebra, 1167 (3): 343-370.; Bonet & Moreno, 2004BONET, M. A. Ribas & MORENO, Antonia Sajardo. (2004), “La desigual participación de hombres y mujeres en la economía social: teorías explicativas”. Ciriec-España, Revista de Economía Pública, Social y Cooperativa, Valencia, 50: 77-103.).

Esta última explicação adquire força quando percebemos que a Economia Social se move em dois territórios que a tornam particular: por um lado, ser um setor fortemente marcado por princípios, que por sua vez se opõem aos da economia capitalista concorrencial; por outro, ser um terreno propício à cristalização de estereótipos no que concerne ao retrato das mulheres, e dos seus papéis sociais e profissionais.

Ao contrário de outros setores, na Economia Social a questão dos princípios é central e determinante para a sua identidade e para a sua sobrevivência enquanto setor autônomo. A Economia Social não se distingue do setor empresarial ou do setor público pela atividade que desenvolve, ou pelos serviços que presta e bens que produz. A sua diferenciação decorre de um conjunto de princípios de funcionamento e organização, que em Portugal estão determinados pela Lei nº 30/2013, ou Lei de Bases da Economia Social: sem fins lucrativos, orientadas para a satisfação de necessidades sociais, livre adesão, gestão democrática, uma pessoa um voto, o respeito pelos valores da solidariedade, da igualdade e não discriminação, da coesão social, da justiça e da equidade, da transparência, da responsabilidade individual e social partilhada e da subsidiariedade. Stricto sensu, os princípios enunciados não reportam nem exigem o respeito pela igualdade de gênero. Mas não é difícil vislumbrar no seu conteúdo que esse pressuposto se insere no elenco de valores a defender pelas organizações da Economia Social (Meira, Martinho & Castro, 2020MEIRA, Deolinda et al. (2020), “(Des)igualdade de gênero nos órgãos das cooperativas portuguesas: uma análise exploratória”. Gestão e Sociedade, 14 (38): 3526-3544.). Os valores da “igualdade e não discriminação”, assim como o da “equidade” são expressamente apontados. De igual modo a enunciação do princípio da gestão democrática implica que todos os seus membros, homens ou mulheres, participam na tomada de decisões e é-lhes reconhecido poder para tal. Assim como o controle democrático dos seus órgãos não pode ser devidamente respeitado quando dele é excluída uma parte dos membros, pelo simples fato de serem mulheres.

Observando agora pela outra perspectiva, é igualmente importante perceber que este também é um setor em que certos estereótipos facilmente florescem. Como já antes foi sublinhado, a Economia Social caracteriza-se globalmente pela elevada feminização dos seus recursos humanos. Na economia do cuidado dominam as mulheres, e uma das convicções mais fortemente arreigadas é a de que as mulheres estão naturalmente vocacionadas e adaptadas à prestação de cuidados pessoais. Essa não será uma visão que apenas vem de fora, de uma ordem social capitalista e masculinizada que impele as mulheres para tais tarefas, mas igualmente decorre da prevalência de uma ética do care (cf. Piñón, 2011PIÑÓN, Josefina. (2011), “Sobre el porqué de la feminización del Tercer Sector. Lo que el género desvela”. Revista Española del Tercer Sector, Madri, 16: 17-46.; Macedo, 2019MACEDO, Renata Mourão. (2019), “Resistência e resignação: narrativas de gênero na escolha por enfermagem e pedagogia”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, 49 (172): 54-76. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010015742019000200054&tlng=pt , consultado em 10/07/2020.
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), que compõe a própria identidade das mulheres e as leva a assumirem que são naturalmente sensíveis para o desempenho de certos cuidados e profissões.

Assim, e de acordo com o que têm revelado certas análises empíricas, não é apenas de “fora para dentro” que o bloqueio à mudança é exercido e se criam condições para a perenização da segregação de gênero. O impacto dessas concepções não será apenas intersetorial, mas também intrassetorial, na medida em que as próprias organizações acabam por refletir internamente, e de certa forma naturalizam, essa discriminação. À semelhança do constatado por outros estudos (cf. Tiessen, 2004TIESSEN, Rebecca. (2004), “Re‐inventing the gendered organization: Staff attitudes towards women and gender mainstreaming in ngos in Malawi”. Gender, Work & Organization, 11 (6): 689-708.; Moreno, 2008MORENO, Sandra. (2008), “Las desigualdades de género en las ONG de desarrollo: discursos, prácticas y procesos de cambio”. Revista Española de Investigaciones Sociológicas (Reis), 122 (1): 119-144.; Piñón, 2011PIÑÓN, Josefina. (2011), “Sobre el porqué de la feminización del Tercer Sector. Lo que el género desvela”. Revista Española del Tercer Sector, Madri, 16: 17-46.), também nós, no contexto de um autodiagnóstico organizacional de gênero desenvolvido com 32 instituições particulares de solidariedade social (IPSS) portuguesas (Monteiro & Oliveira, 2014MONTEIRO, Alcides A. & OLIVEIRA, Catarina Sales. (2014), “Intervenção em igualdade de género no terceiro sector: organizações que discutem a sua própria mudança”, Atas do VIII Congresso Português de Sociologia. Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia.), registamos a prevalência de um discurso interno marcado por estereótipos e marcas de segregação quanto aos papéis e funções de gênero. Questionadas sobre a conveniência de ter mulheres em certos postos de trabalho, a resposta foi afirmativa por parte de 61% das organizações, justificada de três formas: uma maior capacitação da mulher para o tipo de tarefas desempenhadas (exemplificando: limpezas, higiene pessoal, confecção de alimentos, cuidados a dependentes); a dificuldade em encontrar homens para tais funções; a insatisfação da população beneficiária quando certas tarefas são desempenhadas por homens.

Perante esta realidade, a explicação que encontramos é a de que a força e o caráter arreigado dos estereótipos obnubilam a flagrante incongruência entre os princípios advogados e as práticas empreendidas, nomeadamente em matéria de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. O respeito pelos princípios acomoda uma tolerância à desigualdade de gênero. Que, em boa verdade, não é entendida como tal, mas como uma natural separação de funções no interior das organizações. E tão mais complexo se torna este cenário, quando falta o mecanismo da prova, ou seja, para contrariar as convicções não existe evidência empírica (estatística) que mostre que a realidade é potencialmente essa, a da desigualdade e da segregação de gênero, tanto ao nível horizontal como vertical (cf. Vidal, 2011VIDAL, M. J. Senent. (2011), “¿Cómo pueden aprovechar las cooperativas el talento de las mujeres? Responsabilidad social empresarial e igualdad real”. Revesco: Revista de Estudios Cooperativos, 105: 57-84.).

Portugal: segregação vertical nas organizações da Economia Social

Apontamentos metodológicos

Do mesmo modo que globalmente se carece de informação extensa e atualizada sobre a realidade da liderança feminina nas organizações da Economia Social, até muito recentemente em Portugal não havia disponibilidade de dados que permitissem caracterizar a situação a nível nacional. Ao longo dos últimos anos foram apresentados alguns estudos setoriais (cf. Franco, 2015FRANCO, Raquel Campos (coord.). (2015), Diagnóstico ONG em Portugal. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.; Parente & Martinho, 2018PARENTE, Cristina & MARTINHO, Ana Luísa. (2018), “The ‘places and non-places’ held by women in social economy organizations”. Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 29, (6): 1274-1282.; Meira et al., 2020MEIRA, Deolinda et al. (2020), “(Des)igualdade de gênero nos órgãos das cooperativas portuguesas: uma análise exploratória”. Gestão e Sociedade, 14 (38): 3526-3544.) que permitiram identificar tendências mas facultavam um retrato parcelar da realidade. A situação inverte-se em 2019, quando o organismo coordenador da informação estatística nacional, o ine, Instituto Nacional de Estatística, divulga os primeiros resultados de um Inquérito ao Setor da Economia Social (Ises, 2018), dirigido aos membros da direção de topo das entidades e procurando respostas para a seguinte questão: “como e por quem são geridas as entidades que compõem a Economia Social?”.

O instrumento de inquirição foi dirigido aos membros da direção de topo das entidades, pretendendo caracterizar o setor da Economia Social, subdividindo-se em três módulos principais: 1) caracterização da entidade; 2) práticas de gestão da entidade; 3) informação sobre o membro da direção de topo responsável pela informação.

O Ises foi realizado entre 17 de junho e 18 de setembro de 2019, tendo o ano 2018 como período de referência dos dados, abrangendo 6019 entidades da Economia Social, e foram obtidas 3550 respostas válidas (59,0% da amostra). Por grupo de entidades, a maior taxa de resposta observou-se nas Misericórdias (76,7%), seguida das Associações Mutualistas (75,8%). Em novembro de 2019 foi feita a primeira apresentação pública de uma parcela do inquérito, de onde se extrai a informação específica agora descrita e analisada neste artigo.

Principais resultados

À semelhança do que acontece em vários outros países, o setor da Economia Social (ES) tem hoje em Portugal uma importante expressão econômica e social. De acordo com os dados da Conta Satélite da Economia Social, em 2016, esse setor era composto por 71.885 entidades, que geravam 3,0% do Valor Acrescentado Bruto (VAB) e representavam 5,3% do emprego total e 6,1% do emprego remunerado (INE/Cases, 2019INE/Cases. (2019), Conta satélite da Economia Social 2016/Inquérito ao trabalho voluntário 2018. Lisboa, Cases.). Ao longo das últimas décadas, o setor da es tem crescido consistentemente em termos do seu peso na produção de riqueza e na criação de emprego. Apenas entre 2010 e 2013 a es continuou a crescer em número de unidades, mas viu decrescer a sua importância na economia nacional, tanto no que diz respeito ao VAB gerado como em matéria de emprego. Esse fato ocorre numa conjuntura de forte crise financeira e social enfrentada por Portugal, particularmente sentida entre 2011 e 2014, no decurso de um processo em que o governo nacional se viu obrigado a pedir ajuda à Troika (União Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) para evitar a bancarrota e recuperar a credibilidade internacional. A diminuição do financiamento público, associada à crise no investimento e no consumo, poderá constituir uma parte importante da explicação para a diminuição da capacidade econômica do setor da es durante esse período. Entre 2013 e 2016 o cenário inverte-se, e a ES regista novamente um crescimento positivo em todos os níveis.

Uma das características da es é a sua composição diversificada e a multiplicidade de áreas em que desenvolve a sua atividade. Em 2016, a Saúde e os Serviços Sociais foram as áreas de atividade mais relevantes, e em conjunto elas significavam aproximadamente 61,9% do emprego remunerado e 48,9% do VAB gerado pelo setor: a Saúde foi responsável por 24,6% do VAB e 32,1% do emprego remunerado da ES, enquanto os Serviços Sociais geraram 24,3% do VAB e 29,8% do emprego remunerado. A área da Cultura, Comunicação e Atividades de Recreio é a que congrega maior número de entidades (33.722), mas representa apenas 5,0% do VAB e do emprego remunerado do setor.

Numa análise por grupos de entidades, ou “famílias”, da ES, as Associações com Fins Altruísticos são o grupo mais numeroso (66 761 ou 92,9% do total, e 64,6% do emprego remunerado). As Cooperativas constituem a segunda família com maior peso relativo (23434 unidades e 10,4% do emprego) e as Misericórdias, não sendo muito numerosas (387 entidades), surgem como a segunda maior empregadora (16,8% do emprego remunerado do setor). As Fundações (6,0%) e as Associações Mutualistas (2,1%) estão presentes em menor número, se bem que algumas dessas entidades são das maiores em termos de peso econômico e de postos de trabalho criados.

Concluindo a breve visão global sobre o setor, importa ainda mencionar que, numa óptica territorial, as entidades da es se disseminam por todo o país. Tal como acontece em termos populacionais, as Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto concentram mais de um terço do total das unidades (34,9%). Mas a presença em todos os municípios e na maioria das freguesias de Portugal contribui para o crescimento da importância econômica e social da ES, nomeadamente no que toca à sua influência sobre a organização do tecido social.

Sobre dimensões mais específicas, como a composição dos órgãos sociais dessas entidades, já havíamos mencionado a carência de informação estatística alargada. É precisamente essa amplitude que o Ises aporta, na medida em que a sua referência é de âmbito nacional e os dados obtidos resultam de 3550 respostas válidas (taxa de resposta de 59,0%) (Quadro 1). As entidades inquiridas foram agrupadas em seis grandes famílias - cooperativas; associações mutualistas; misericórdias; fundações; associações com fins altruísticos; entidades abrangidas pelos subsetores comunitário e autogestionário - respeitando a divisão consignada na Lei de Bases da Economia Social quanto à composição do setor. Mas apenas os cinco primeiros grupos foram considerados para efeitos de análise estatística mais fina, dada a baixa representatividade do último.

TABELA 1
Taxas de resposta do Ises (2018)

Observando especificamente os dois níveis superiores da sua estrutura hierárquica, ou seja, os membros da direção de topo (entendida como órgão social da entidade com funções executivas) e o/a dirigente de topo (o/a dirigente que ocupa a posição hierarquicamente mais elevada sem subordinação a nenhuma outra), resulta flagrante o modo como em ambos os níveis domina a masculinização (ver Tabela 2).

TABELA 2
Caracterização dos membros da direção de topo e dirigente de topo, por sexo

A presença de homens nos órgãos de direção é sempre superior a 70%, oscilando entre os 70,2% nas Associações com fins altruísticos, e os 79,3% nas Associações mutualistas. No que concerne ao posto de Direção de topo, o desequilíbrio é ainda mais flagrante. Dos 73,7% nas Fundações aos 93,3% nas Associações mutualistas, passando por valores de 78,0% nas Associações com fins altruísticos, de 80,9% nas Cooperativas e de 87,0% nas Misericórdias, nenhuma das famílias da ES portuguesa diverge da tendência para a segregação de gênero no preenchimento dos lugares de topo, e de poder, das entidades.

Ainda que a partir de análises mais setoriais, idêntica tendência já havia sido detectada por outros estudos. No âmbito do projeto por nós coordenado (autodiagnóstico de gênero, feito por 32 ipss, no contexto da elaboração de um Plano Municipal de Intervenção para a Igualdade de Gênero), foi-nos dado observar o modo como as estruturas de emprego e governação refletem o caráter masculinizado dos principais órgãos de gestão. Com efeito, a governação dessas organizações é conduzida sobretudo por homens e, apesar de a direção técnica ser maioritariamente assumida por uma mulher (em 87% das organizações com direção técnica), todos os cargos dos órgãos sociais (Presidências da Direção, da Assembleia-Geral e do Conselho Fiscal, bem como de Tesoureiro/a) tendem a ser ocupados por homens (Monteiro & Oliveira, 2014MONTEIRO, Alcides A. & OLIVEIRA, Catarina Sales. (2014), “Intervenção em igualdade de género no terceiro sector: organizações que discutem a sua própria mudança”, Atas do VIII Congresso Português de Sociologia. Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia.).

No caso da investigação conduzida por Parente e Martinho (2018PARENTE, Cristina & MARTINHO, Ana Luísa. (2018), “The ‘places and non-places’ held by women in social economy organizations”. Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 29, (6): 1274-1282.) junto de onze organizações representativas do setor, a informação coletada apontou para que em apenas uma delas a presidência era assumida por uma mulher. Apenas duas organizações tinham mais mulheres do que homens nos seus órgãos de decisão, e nas restantes esses órgãos eram maioritariamente formados por homens (74,3%). Por sua vez, Meira et al. (2020MEIRA, Deolinda et al. (2020), “(Des)igualdade de gênero nos órgãos das cooperativas portuguesas: uma análise exploratória”. Gestão e Sociedade, 14 (38): 3526-3544.) analisaram a taxa de feminização nos órgãos das cooperativas portuguesas, tendo concluído que o valor médio de representatividade feminina na Mesa da Assembleia é de 26,13%, 23,17% no Órgão de administração e 24,03% no Órgão de fiscalização.

Expandindo a análise a outras dimensões, como as habilitações acadêmicas, a idade e a antiguidade nos postos de liderança, constata-se que em quase todas as famílias de entidades os membros da direção de topo não tinham licenciatura ou grau acadêmico superior, com exceção das Fundações (76,4%).

No oposto (ver Tabela 3), apenas no caso das Cooperativas a maioria dos/das dirigentes de topo não detinha grau acadêmico de licenciatura ou superior. Nos restantes grupos de entidades a situação prevalecente era essa, estando em linha com o verificado no universo das empresas portuguesas (53,1% detinham essa habilitação, dados de 2016) (INE, 2016).

TABELA 3
Habilitações acadêmicas dos membros da direção de topo e dirigente de topo

Sobre a idade e antiguidade nas funções (ver Quadro 4), o principal destaque vai para a idade elevada de quem assume a direção das organizações: nas Associações mutualistas, Misericórdias e Fundações, a maioria tinha mais de 64 anos de idade. Tendência semelhante é a que se verifica entre os membros da direção de topo, em que domina o escalão etário dos 55 aos 64 anos. As Associações com fins altruísticos são aquelas cujas funções dirigentes são assumidas por pessoas mais jovens (concentração dos membros de topo no escalão 45 a 54 anos e do/a dirigente de topo no escalão 35 a 44 anos de idade). Por sua vez, as Misericórdias agregam à elevada idade dos/as ocupantes dessas funções um tempo mais longo de permanência nos cargos.

TABELA 4
Idade e antiguidade nas funções, dos membros da direção de topo e dirigente de topo

Por fim, julga-se pertinente partilhar uma informação adicional ainda no quadro da composição e práticas de gestão das entidades da ES, e que reporta às estratégias de gestão e de desenvolvimento das entidades. Para o efeito, foram neste inquérito consideradas quatro estratégias alternativas: a) Sobrevivência, o que abarca a redução de custos e o desinvestimento; b) Manutenção, que inclui a estabilidade e a sustentabilidade; c) Crescimento, que envolve a diversificação, expansão e internacionalização; d) Desenvolvimento, que implica a inovação social, cooperação, parceria, ou fusão com outras entidades.

Face aos quatro cenários possíveis, em todas as famílias da es a maior proporção das entidades indicou uma estratégia de manutenção da sua atividade, com maior preponderância nas Associações Mutualistas (75,8%) e menor nas Fundações (51,0%) (Gráfico 1). Tendo em consideração o tipo de respostas obtidas, extraem-se daqui algumas ilações relevantes no que concerne ao estilo de liderança e à ambição para o futuro dessas organizações da Economia Social.

GRÁFICO 1
Estratégias da entidade (%)

Conclusões e discussão

“Penso que é absolutamente necessário encontrar a possibilidade de construir um espaço público alternativo que não seja o espaço público oficial masculinizado. A este respeito, parece-me que as iniciativas ESS [Economia Social e Solidária] podem, muito bem, ser espaços públicos alternativos aptos a tornar possível o desenvolvimento das competências ditas femininas.” (Fraser, 2015FRASER, Nancy. (2015), “Entretien avec Nancy Fraser”, Entretien réalisé par Madeleine Hersent, Jean-Louis Laville, Magali Saussey. Revue Française de Socio-Économie, 1 (15): 253-259., p. 256). Os dados observados sobre a realidade portuguesa revelam que, pelo menos neste país e no que respeita à ocupação dos cargos de liderança, as organizações sociais estão distantes do desígnio que Nancy Fraser lhes atribui. Na sequência da análise estatística feita a partir de um inquérito nacional ao setor da Economia Social, é-nos dado constatar que, tanto no que toca à composição dos órgãos de direção como a quem ocupa a Direção de topo, todo o setor é pautado por uma destacada segregação vertical. E, por outro lado, revela que a sub-representação feminina é comum a todas as grandes famílias que o compõem.

Essa masculinização da estrutura de governação, aliada a uma feminização do emprego nas funções mais técnicas e administrativas, espelha aquilo que a literatura nos indicou ser estrutural: o trabalho social é maioritariamente feminino e as funções de maior representatividade e poder são tendencialmente ocupadas por homens. Mas os resultados apresentados não só revelam imutabilidade como, ao observar outras duas características, deixam indiciar uma potencial resistência à mudança. Falamos concretamente da elevada idade que caracteriza em média quem assume a liderança dessas entidades e, ainda, do modo como é expressamente privilegiada uma estratégia de “manutenção” no que concerne às práticas de gestão e de desenvolvimento das entidades. Acresce ainda a constatação feita a partir de outros estudos, a de que existe no seio dessas organizações uma certa naturalização e desvalorização da segregação de gênero.

É perante este cenário, de imutabilidade e de potencial resistência à mudança, que cabe interrogar sobre como é possível desafiar a Economia Social a ser um bom exemplo e a assumir a luta contra a segregação vertical e outras formas de discriminação de gênero.

Entre outras possibilidades, a integração sistêmica da perspectiva de gênero e a sua institucionalização por via legal ou deliberativa têm sido defendidas em distintos contextos, sejam eles de análises acadêmicas (cf. Vidal, 2011VIDAL, M. J. Senent. (2011), “¿Cómo pueden aprovechar las cooperativas el talento de las mujeres? Responsabilidad social empresarial e igualdad real”. Revesco: Revista de Estudios Cooperativos, 105: 57-84.; Adjamagbo & Calvès, 2012ADJAMAGBO, Agnès & CALVÈS, Anne-Emmanuèle. (2012), “L’émancipation féminine sous contrainte”. Autrepart, 2 (61): 3-21.; Parken, 2018PARKEN, Alison. (2018), Putting equality at the heart of decision-making. Cardiff, Wales Centre For Public Policy.), como de plataformas reivindicativas (Civicus, 2016CIVICUS. (2016), State of civil society report 2016. Civicus Alliance.; EWL, s/dEWL. (s/d), “Decision-making & leadership” [online]. European Woman’s Lobby. https://www.womenlobby.org/-Women-in-Decision-Making-454-?lang=en, consultado em 15/08/2020.
https://www.womenlobby.org/-Women-in-Dec...
; Wolf, 2020WOLF, Helen. (2020), “More women in leadership positions” [online]. Fair Share of Women Leaders. https://fairsharewl.org/more-women-in-leadership-positions/, 2020, consultado em 15/08/2020.
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). Sinteticamente, a via escolhida é a de que, através da advocacia e do lobismo, da reivindicação no espaço público ou da intervenção legislativa, se consigam acelerar as dinâmicas de mudança. Outras medidas mais concretas, como a divulgação de estatísticas (tais como as que aqui se apresentam), estratégias de mainstreaming a partir de exemplos de sucesso, a introdução de cotas ou de vantagens fiscais, a limitação do número de mandatos ou a criação de parcerias para a ação, também se inscrevem no esforço para alterar a ordem vigente, nesta e em outras matérias que também dizem respeito à igualdade de gênero. Uma das vantagens que vemos nesta abordagem é a de que ela potencia a sensibilização coletiva e a adoção de uma agenda política que vise à alteração dos paradigmas a um nível mais global (Medina-Vincent, 2020MEDINA-VICENT, Maria. (2020), “Los retos de los feminismos en el mundo neoliberal”. Revista Estudos Feministas [online], Florianópolis, 28 (1): e57212, 2020. https://www.scielo.br/pdf/ref/v28n1/1806-9584-ref-28-01-e57212.pdf, consultado em 09/06/2020.
https://www.scielo.br/pdf/ref/v28n1/1806...
). Como limitação principal, observa-se como em variadas circunstâncias a law in books não se transforma em law in action. Só por si, a determinação legislativa ou a aceitação de certos princípios não são suficientes para alterar as práticas. Nessa matéria, como temos citado, as entidades da Economia Social podem ser apontadas como exemplo de uma particular dissociação entre os princípios sociais que defendem e as práticas intramuros.

Todavia, o setor também apresenta essa outra particularidade de ser altamente feminizado, o que poderá funcionar como suporte para uma ação transformativa. Nesse sentido, e tendo em atenção todo o contexto de resistência que está instalado dentro das próprias organizações, julgamos que uma parte da dinâmica de mudança em favor da igualdade de poder exige atuação interna, ao nível da consciencialização e do empoderamento das mulheres. Sem essa energia propulsora, estima-se que se possa permanecer por mais um longo período entre avanços legislativos que institucionalizam o debate e definem orientações programáticas no sentido da alteração do statu quo, mas tardam em gerar a necessária mudança a nível da realidade concreta.

De acordo com esta perspectiva, que se inspira no pensamento de Paulo Freire, Jacques Mezirow ou Jürgen Habermas, a ação afirmativa em prol da mudança começa na pessoa e no esforço de “conscientização” (Freire) ou “aprendizagem transformadora” (Mezirow). A insistência sobre o peso da ação pessoal baseia-se na convicção de que um ganho de poder e de controle sobre a própria vida exige uma prévia consciência crítica sobre as fontes e a natureza das desigualdades e exploração. Paulo Freire (1979)FREIRE, Paulo. (1979), Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo, Cortez & Moraes. define-a como uma experiência de conscientização, ou seja, de ação reflexiva da pessoa sobre si mesma e o mundo que, na circunstância, conduz a uma interpretação mais esclarecida sobre a natureza e as dimensões das desigualdades vividas. E Jacques Mezirow reforça a ideia:

Muitas vezes os aprendentes não têm consciência de serem oprimidos; eles internalizam os valores dos opressores. Freire demonstrou como é possível ajudá-los a entender que tradicionalmente têm interpretado erradamente a sua situação, para que algum tipo de ação adequada se torne possível. Esta “desconstrução” de quadros reificados de referência deve frequentemente preceder a ação em prol de interesses próprios (Mezirow, 1997MEZIROW, Jacques. (1997), “Transformation theory out of context”. Adult Education Quarterly, 48: 60-62. https://doi.org/10.1177/074171369704800105.
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, p. 62).

A valorização de uma aprendizagem transformadora, ou seja, aquela que se inicia com uma reflexão crítica ou autorreflexão crítica sobre os pressupostos pessoais e os dos outros, é tanto mais importante quanto a realidade de discriminação e de segregação vivida não é apenas determinada por barreiras estruturais e institucionais, mas se esconde por detrás de barreiras culturais, que estão ligadas à difusão (ou não) de certos valores tradicionais concernentes ao lugar da mulher na sociedade, na família ou nas organizações. No caso das entidades da sociedade civil, a imputação às mulheres do papel principal de cuidadoras e, no oposto, a masculinização das características e atributos da liderança contribuem seguramente para manter aquelas afastadas dos cargos de direção. É ao mesmo tempo uma ordem que prima pela invisibilidade e pela sua naturalização, e que induz à inércia face aos desafios da mudança.

Mas a “transgressão dos interditos” não pode apenas cingir-se à consciência individual. Sob pena de estimular a percepção das desigualdades e, ao mesmo tempo, um sentimento de impotência perante a força dos sistemas instituídos. Este é apenas o primeiro passo de um caminho mais longo, que conduz da inquietação individual à vontade e à dinâmica coletivas. O restante desse caminho implicará uma disponibilidade para refletir e agir em conjunto. No processo de demarcação das identidades atribuídas e de reivindicação do direito a novas identidades e a novos papéis, constrói-se uma continuidade entre a construção da individualidade, a ação comunicativa e a organização coletiva (cf. Habermas, 2010HABERMAS, Jürgen. (2010), Obras escolhidas - Vol. 1: Fundamentação linguística da sociologia. Lisboa, Edições 70.).

No contexto particular de cada entidade, dada a especificidade de cada caso, e no quadro de parcerias interorganizacionais, a construção de uma dinâmica coletiva de mudança poderá ser concretizável através de processos de (auto)aprendizagem orientados para a interpretação crítica da realidade vivida, sucedendo-lhe uma revisão dos mecanismos internos de governação. Entre outros, o domínio da aprendizagem deverá contemplar um autodiagnóstico sobre a situação vigente, a procura da racionalidade subjacente à escolha das lideranças, assim como a mútua interpelação quanto ao futuro desejável. A concretização de novas modalidades de governação implicará, por sua vez, o esbatimento da verticalidade nos organogramas das entidades, a introdução de mecanismos de alternância, assim como a valorização da diversidade e da participação alargada nos processos de decisão.

Face ao imobilismo da realidade, é crucial que as organizações da Economia Social assumam para dentro o que têm defendido para fora, nomeadamente no que concerne à promoção da igualdade e da equidade, na luta contra a discriminação e a desigualdade. Urge um processo de transformação multidimensional, com origem nas mulheres mas igualmente mobilizador e comprometedor dos homens, que lhes permita tomar consciência, individual e coletivamente, das relações de dominação que as marginalizam, e de desenvolver a sua capacidade para as transformar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2020
  • Aceito
    11 Maio 2021
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