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Realismo utópico: o público e o intertransdisciplinar

Resumos

Selecionei, para a análise do tema, a estratégia do realismo utópico para compreensão e enfrentamento das questões da nutrição e pobreza. O texto abrange duas partes. A primeira traz argumentos sobre o conceito de utopia, entendida como inédito viável (Paulo Freire) e antecipação (Jerzi Szachi), e complementa com o sentido do público e seus atributos básicos: universalidade, visibilidade social, controle social, democratização, sustentabilidade e cultura cívica. A segunda parte trata das noções de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, essenciais para interpretar a temática selecionada por buscar a integração das diversas áreas científicas.

Utopia; Público; Interdisciplinaridade; Transdisciplinaridade


In order to analyze the theme, I have selected the strategy of the utopian realism for understanding and tackling issues of nutrition and poverty. The text comprises two parts: the first one provides arguments on the utopia concept, understood as untested feasibility (Paulo Freire) and anticipation (Jerzi Szachi), and adds to the sense of the public and its basic attributes, i.e., universality, social visibility, social control, democratization, sustainability and civic culture, while the second part addresses the notions of interdisciplinarity and transdisciplinarity, essential to interpret the selected theme for pursuing the integration of various scientific areas.

Utopia; Public; Interdisciplinarity; Transdisciplinarity


NUTRIÇÃO E POBREZA

Realismo utópico: o público e o intertransdisciplinar

Luiz Eduardo W. Wanderley

Sociólogo, professor titular do Departamento de Sociologia da PUC-SP, da qual foi reitor (1984-1988). Coordena o Núcleo de Estudos Latino-americanos (Nelam) do PEPG em Ciências Sociais/PUC-SP. @ – marilew@uol.com.br

RESUMO

Selecionei, para a análise do tema, a estratégia do realismo utópico para compreensão e enfrentamento das questões da nutrição e pobreza. O texto abrange duas partes. A primeira traz argumentos sobre o conceito de utopia, entendida como inédito viável (Paulo Freire) e antecipação (Jerzi Szachi), e complementa com o sentido do público e seus atributos básicos: universalidade, visibilidade social, controle social, democratização, sustentabilidade e cultura cívica. A segunda parte trata das noções de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, essenciais para interpretar a temática selecionada por buscar a integração das diversas áreas científicas.

Palavras-chave: Utopia, Público, Interdisciplinaridade, Transdisciplinaridade.

ABSTRACT

In order to analyze the theme, I have selected the strategy of the utopian realism for understanding and tackling issues of nutrition and poverty. The text comprises two parts: the first one provides arguments on the utopia concept, understood as untested feasibility (Paulo Freire) and anticipation (Jerzi Szachi), and adds to the sense of the public and its basic attributes, i.e., universality, social visibility, social control, democratization, sustainability and civic culture, while the second part addresses the notions of interdisciplinarity and transdisciplinarity, essential to interpret the selected theme for pursuing the integration of various scientific areas.

Keywords: Utopia, Public, Interdisciplinarity, Transdisciplinarity.

Introdução

Nas ricas e diversificadas abordagens sobre o tema "nutrição e pobreza", são apontadas distintas correntes teóricas e práticas, que variam segundo constatações no tempo e no espaço. Elas buscam explicitar as concep-

ções de compreensão da realidade, em constantes mudanças, e estratégias de uma sociedade mais livre, solidária e humana, que contemple essa temática de modo realista e eficiente. Entre estratégias de superação e avanços nas soluções, predominam ora correntes de cunho mais otimista, ou mais pessimista. Uma sugestão, que venho desenvolvendo, diz respeito ao que denominei realismo utópico, que reputo a mais conveniente e relevante. Realista porque está ciente de grande parte das causas da situação em que os povos vivem, na qual enormes contingentes populacionais vivem na pobreza relativa e absoluta, e contingentes expressivos morrem de forma recorrente. As causas são geradas pelas mudanças contínuas do capitalismo e fortalecidas pela globalização hegemônica. Ciente dos limites, contradições, transformações, com efeitos positivos e negativos que as situações mundiais demonstram, é preciso, pois, aprender – a conhecer, a fazer, a viver junto, a ser – sempre com maior empenho e vontade política para melhor resistir, denunciar, propor. Utópico, tentando compor os sonhos de asas e raízes, traduzindo o inédito-viável freiriano em todas as latitudes e longitudes, detectando os sinais dos tempos, antecipando metas e caminhos. Nesse contexto, à guisa de compor algumas reflexões abrangentes, é fecundo perquirir sobre certas contribuições instigantes sobre a utopia, sempre condicionado pelo escopo limitado deste texto.

Para completar o quadro, além da utopia, julguei conveniente tratar dos sentidos de público, um foco relevante quando se investigam as políticas públicas e as políticas sociais. Como é conhecido, nesse campo específico existem algumas convergências e muitas divergências. Na produção do Grupo Nutrição e Pobreza, elaborada nos seus dez anos de existência, pode-se perceber a riqueza de interpretações e sugestões sobre a temática selecionada. No meu caso, tenho analisado a atuação das ONG, de movimentos sociais, sindicatos, pastorais sociais, que agem voltadas para um conjunto de questões relevantes e com acento nas políticas sociais patrocinadas pelo Estado e pela sociedade civil, e voltadas para a pobreza, a exclusão, a desigualdade. Sobre esses temas candentes, tendo em vista a amplitude da problemática, e as oscilações dos que valorizam ora o estatal, ora o privado, e mesmo as suas interligações históricas e atuais, defendo a tese de que um caminho válido e necessário é a compreensão mais rigorosa do sentido de público. Nesse sentido, apresento aqui alguns atributos para seu entendimento, como se verá a seguir.

E, para completar, trago uns poucos esclarecimentos sobre os temas da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, fundamentais para iluminar o assunto principal desta parte da publicação. Motivo também de múltiplas reflexões teóricas e práticas, muitas ainda desconhecidas e sem a valorização indispensável, que sinalizam alternativas imperativas para romper com a fragmentação das disciplinas, e mesmo para pensar a ciência moderna e sua crise atual, o papel do conhecimento acadêmico e sua contribuição para uma visão mais unitária e fecunda das sociedades em geral, e mesmo para o estudo e compreensão dos tópicos referentes à nutrição e pobreza.

As reflexões aqui expostas são resultantes de diversas publicações minhas, com ênfase em Educação popular: metamorfoses e veredas.

Utopia e protagonismo com realismo utópico

Num primeiro cenário, emana a concepção de Paulo Freire, que abordou a questão do que denominou inédito viável.

Determinadas elocuções de Paulo Freire configuram cenários ricos para a sua compreensão do conhecido inédito-viável. "Todo amanhã, porém, sobre o que se pensa e para cuja realização se luta, implica necessariamente o sonho e a utopia. Não há amanhã sem projeto, sem sonho, sem utopia, sem esperança, sem o trabalho de criação e desenvolvimento de possibilidades que viabilizem a sua concretização" (Freire, 2005, p.85). Na defesa da práxis do oprimido, ela se traduz em "unidade inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais" (ibidem, p.84).

São persuasivas outras contribuições de Paulo Freire. Ele afirma que onde não há utopia, sonho, não há lugar para a educação, e sim para o adestramento. Ver a história como possibilidade e não determinismo, anunciar um futuro a ser criado e construído, política, estética e eticamente. Nessa construção, a luta de classes não é o motor da história, mas certamente é um deles. A utopia é também um motor da história. Continua argumentando sobre velhos/novos aspectos, referenciados a essa temática, tais como: que há necessidade de articulação entre estratégia e tática; que as classes trabalhadoras devem aproveitar os espaços democráticos gerando novas relações com as classes dominantes; que essas relações geram um saber de classe; que o neoliberalismo não acabou com as classes sociais; que permanece a impossibilidade do discurso neutro; e que a miséria do mundo capitalista nega a sua pretensa excelência. E retoma uma de suas teses fundamentais no sentido de reafirmar: É por isso que, como indivíduo e como classe, o opressor não liberta nem se liberta. É por isso que, libertando-se, na e pela luta necessária e justa, o oprimido, como indivíduo e como classe, liberta o opressor, pelo fato simplesmente de proibi-lo de continuar oprimindo.

Nas anotações de Ana Araújo Freire (2008, p.233), na visão de Paulo, para os que desejam a transformação, há que se inserir no movimento utópico. Ele alude que:

O inédito viável nos diz, claramente, que não o reino do definitivo, do pronto e do acabado; do nirvana da certeza e da quietude dos sonhos possíveis. Ele se nutre da inconclusão humana, não tem um fim, um termo definitivo de chegada. É sempre, pois, devenir, pois alcançado o inédito-viável pelo qual sonhamos e lutamos, dele mesmo, já não mais um sonho que seja possível, mas o sonho possível realizando-se, a utopia alcançada, ele faz brotar outros tantos inéditos-viáveis quantos caibam em nossos sentimentos e em nossa razão ditada pelas nossas necessidades mais autênticas.

Para enfrentar a cultura dominante, Paulo Freire (2005, p.65) explicita que a introjeção dos valores dominantes exigem sua extrojeção:

Os oprimidos precisam expulsar os agressores não apenas enquanto presenças físicas, mas também enquanto sombras míticas introjetadas neles. A ação cultural e a revolução cultural, em diferentes momentos do processo de libertação, que é permanente, facilitam esta extrojeção.

De outro ponto de vista, um livro instigante e fecundo preconiza diversas interpretações sobre o significado de utopia, com base numa expressão que diz muito: "sem utopia, não há progresso, movimento, ação" (Szachi, 1972, p.130). Esse autor contempla a diversidade das utopias: de lugar, de espaço, de tempo, de ordem eterna, monásticas, da política, negativas, heroicas. Na presente conjuntura de crise acentuada, Szachi, escrevendo sobre o significado histórico das utopias, afirma que

elas são sobretudo tentativas intelectuais de controle sobre situações de crise, tentativas de superação de divisões penosas experimentadas por indivíduos quando a situação social lhes parece absurda, tentativas de reconstrução da comunidade humana que no momento somente é possível no sonho [...] As utopias podem ser consideradas, por um lado, como sintomas da crise de uma dada organização social, e, por outro, como sinal de que no seu interior existem forças capazes de saltar além dela, embora ainda não estejam conscientes de como fazê-lo. (ibidem, p.129)

Esse autor alude, ademais, que para muitos o traço essencial da utopia é o de ser uma antecipação. De certo modo, convergindo com a proposta freiriana do inédito viável: inédito, porque ainda não aconteceu; viável, porque pode acontecer e já está presente na realidade concreta.

No Prefácio à edição brasileira, Szachi faz uma metáfora que é fonte de inspiração.

Os homens sonharam com asas, os homens sonharam com raízes [...] Deixando-nos levar pelo primeiro desses sonhos, cremos que nada nos prende ao mundo existente, ou ainda melhor, que não há laços que não possamos, que não devamos ou que não precisemos romper, já que diante de nós se abre a vasta extensão do ideal. Imaginamos que conseguimos alcançar um céu secular, atingir um absoluto social – justiça, liberdade, igualdade, fraternidade e outras coisas mais. Escolhendo o segundo sonho, voltamo-nos para a terra de que nascemos, nela buscamos a fonte de força, de certeza, de segurança e – se preciso for – de esperança. Mesmo duvidando de que o mundo dado sirva de modelo, é justamente nele que nos esforçamos para encontrar o prenúncio do futuro melhor. Mesmo condenando o status quo, queremos acreditar que em algum lugar sob a sua superfície germina a perfeição futura, e que só é preciso um pouco de paciência. (ibidem, p.xxxvi)

O que, para ele, pode ser a fé dos conservadores e radicais.

Com acento em alguns reclamos da abordagem marxista, Löwy prega que a questão ecológica é o grande desafio que o pensamento marxista deve enfrentar no limiar do século XXI. Na sua defesa do ecossocialismo, que leve a um modo de vida alternativo, Löwy aceita que está presente uma utopia, algo indispensável na mudança social, desde que se baseie nas contradições da realidade e nos movimentos sociais reais. "A utopia revolucionária de um socialismo verde ou de um comunismo solar não significa que não se deva agir desde agora. Não ter ilusões sobre a possibilidade de 'ecologizar' o capitalismo não quer dizer que não se possa empreender o combate em favor de reformas imediatas" (Löwy; Bensaid, 2000, p.237). Sugere medidas imediatas de contenção do efeito estufa, de reformas ecossociais, tais como: privilegiar os transportes coletivos; lutar contra o sistema da dívida e dos "ajustamentos" ultraliberais impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países do Sul; defesa da saúde pública contra a poluição da água, do ar, ou da avidez das empresas capitalistas; redução do tempo de trabalho como resposta ao desemprego. Em suma, tornar o planeta habitável com uma humanidade mais justa e livre.

Convidando para dar conta da noção de mística, Boff (2008, p.188) relembra que, na América Latina, uma corrente se inspirou na utopia originária do cristianismo, "de uma sociedade fraternal e sororal, justa e participativa, carregada de ternura pelos pobres e marginalizados". Outra corrente se inspirou nos ideais emancipatórios da Revolução Francesa – de liberdade, igualdade e fraternidade, compelindo-os para uma democracia participativa – na militância política e em participação em partidos ditos progressistas. Outro conjunto se dirigiu ao socialismo. "Para milhões o socialismo e o marxismo foram uma torrente de generosidade e uma fonte inspiradora de verdadeiro amor aos oprimidos e de visões revolucionárias e práticas libertárias em todas as instâncias através das quais se organiza a sociedade" (ibidem, p.189). Se houve o colapso do socialismo real, "o ideário socialista permanece como uma vertente mobilizadora de engajamento social" (ibidem). Com acento na mística cristã, ele evoca a utopia. "Na mística político-social age sempre a utopia, aquela capacidade de projetar, a partir das potencialidades do real, novos sonhos, modelos alternativos e projetos diferentes de história" (ibidem, p.202).

Sentidos de público

No afã de coadunar convergências e divergências chanceladas no gradiente que engloba os temas da democracia, da participação política, da inserção social (individual e coletiva), da educação cidadã, da educação popular realizada no ensino formal – mas mesmo aquela direcionada aos setores populares e desenvolvida no ensino informal –, na animação sociocultural, é fundamental tratar do sentido de público. Mesmo porque, na maioria dos estudos e propostas elaboradas para esses campos, fica evidente o imperativo da instituição e realização de políticas públicas, com todos os obstáculos para a sua concretização. Historicamente, é conhecido o pêndulo entre o público e o privado, com sinergias mútuas. E o fato de que houve uma publicização do privado, pela intervenção dos poderes públicos na manutenção da ordem social, na regulação da economia, na promulgação de leis e diretrizes para as políticas sociais (na saúde, educação etc.), na regulação da vida cotidiana etc.; e uma privatização do público, expressa pela apropriação privada dos recursos públicos em obras, lobbies dos setores dominantes sobre os governos, doações a partidos e políticos, coalizões partidárias, interferência da mídia etc. Na América Latina, as análises em sua maioria constatam a força do Estado e como ele tem sido apropriado pelos interesses privados, sobretudo das elites, e mesmo dos demais setores. No geral, apontando os impedimentos para a consolidação da esfera pública e as distorções do sentido de público. Lutas de movimentos, partidos, sindicatos, as ONG têm conduzido para novas institucionalidades que criem, ampliem, consolidem os espaços públicos, tidos como reptos exorbitantes.

De modo crescente se reconhece que o público não se restringe nem pode ser totalmente configurado pelo estatal. Ainda que o Estado seja considerado como espaço de realização do público, uma dimensão democrática enfatiza que só acontece se ele represente a sociedade, mesmo que não se possa abdicar de suas responsabilidades. Os dados e informações, assinalados em diversos estudos, demonstram como a sociedade civil, principalmente os setores organizados dela, tem desenvolvido novas formas de representação política, de controle social, de parceria na execução de políticas voltadas para os serviços públicos.

Em alguns trabalhos, tenho destacado uma constelação de atributos que devem ser necessariamente manifestados e executados nas políticas públicas. Aponto-os agora com a afirmação categórica de que esses atributos são necessariamente interconectados e nenhum deles pode ser ignorado numa perspectiva de conjunto.

Universalidade. Objetiva o atendimento de toda a população de uma nação, sem discriminações de qualquer tipo, e que precisa ser efetivada em todas as áreas societárias. Na sociedade, todos/as devem ter atendidos/as em suas necessidades básicas: saúde, educação, moradia, trabalho, seguridade social etc. Todos os setores sociais e classes sociais devem ter acesso aos instrumentos de representação e protagonismo, e participarem dos processos decisórios. Evidentemente, no federalismo brasileiro, se a instância federal tem poderes reconhecidos e muitas das políticas dependem do que nela se delibera e se realiza, esse caráter universal também é válido para instâncias estaduais e municipais, respeitadas as suas competências normativas e de atuação.

Visibilidade social. Supõe transparência nas ações governamentais e nas ações dos atores sociais, publicidade e fidedignidade das informações que orientam as deliberações em todas as clivagens. O famoso segredo de Estado e derivativos, na maioria dos casos, manteve (e mantêm) a intransparência, o acobertamento de informações, dados e informações escondidos, quando não manipulados segundo os interesses dos detentores do poder. A transparência é uma exigência que deve estar presente nas decisões dos órgãos públicos e de todos os organismos privados que recebem recursos públicos. No ensino, público e privado, todos os participantes, em graus distintos, devem receber as informações indispensáveis sobre origem e alocação de recursos, dados congruentes para uma formação sólida e pertinente, bases que delineiem rumos seguros para a carreira, publicidade na formação de estatutos e regimentos, códigos de conduta, critérios para punições etc.

Controle social. Significa acesso de instâncias governamentais e da sociedade civil na fiscalização competente sobre as regras, aplicação de recursos e prestação de contas, atuação dos representantes nos cargos e funções exercidos. Além de aperfeiçoamento constante dos Tribunais de Contas e da presença do Judiciário, novos formatos de atuação pública foram instituídos no caso brasileiro (e mesmo em outros países) e necessitam ser fortalecidos e bem aplicados, pelos representantes em todas as instâncias políticas: pelos Conselhos Gestores, pelas Comissões Parlamentares de Inquéritos, no Orçamento Participativo, no uso dos recursos em Programas e Projetos, na Responsabilidade Social e no Orçamento Social das empresas etc.

Sustentabilidade. Deve ser entendida como um processo constante de reprodução institucional, com um equilíbrio entre os objetivos e o orçamento, os recursos materiais e humanos, as necessidades da administração e gestão, com as demandas das populações e a realização das políticas públicas e sociais. Ela inclui fontes claras e normatizadas pela legislação do país, orçamentos bem estruturados e planejados com o controle social efetivo, responsabilidade fiscal, obtenção de recursos de agências e IES internacionais com prestação de contas seguras e pertinentes. É preciso analisar e planejar com muita cautela a viabilidade ou não de utilização de critérios de administração e gestão empregadas por empresas privadas, nas instâncias estatais/públicas (como foi proposto e oficializado em reformas administrativas estatais), pois aqueles têm por objetivo explícito a obtenção de lucro.

Cultura pública. Talvez, a base de referências para os demais atributos. Ela tem origem na cultura cívica, que se promove nas famílias, nas escolas, nas comunidades, nas associações, nas igrejas, na mídia, nos governos. Funda-se no conhecimento e no exercício constantes. Se em alguns países ela avançou significativamente, ela supõe a superação da cultura privatista de apropriação do público pelo privado, do autoritarismo, do fisiologismo, do paternalismo, vigentes historicamente nas sociedades latino-americanas. Ela se insere nos processos de democracia e de cidadania ativas.

Democratização. Ela tem um lugar essencial nos processos de publicização, e implica compatibilizar consenso e conflito, sistemas abertos e autônomos de representação e de escolha de representantes, formas autênticas de gestão que concretizem a governança e a governabilidade. Um imperativo recorrente está em evitar democratismos que se confundem com a democratização real, corporativismo das associações e instâncias acadêmicas, falhas no cumprimento de tarefas contratuais. Ela abrange a democracia político-institucional, fundada na democracia representativa, que exige aplicações verdadeiras, e reformas profundas do que Bobbio denominou regras do jogo – existência de partidos, eleições periódicas, relações entre minorias e maiorias, votar e ser votado etc. Alguns exemplos são pertinentes e fecundos, como democracia direta, plebiscito, referendo, cidadania ativa, prática do público não estatal, dentre outras. Na democracia econômica se objetiva que todos tenham acesso e usufruto dos bens produzidos. Medidas expressivas dos "trinta anos gloriosos" concretizados no Estado de Bem-Estar Social são exemplares de como certos modelos e determinadas estratégias de atuação podem colaborar na construção das novas sociedades pretendidas. Na democracia social, se a história comprova as distâncias entre a retórica democrática e a realidade concreta, o fosso entre as elites e classes dominantes, por uma parte, e as maiorias, as classes dominadas, por outra parte, certos avanços da democracia representativa não podem ser ignorados. As lutas constantes e homéricas de enormes contingentes populacionais, variáveis de região para região, marcadas pelas características de resistência, denúncia e protagonismo, alcançaram conquistas, de maior ou menor alcance. Um exemplo expressivo foi a constituição de redes e fóruns, locais, nacionais, regionais, globais, articulados em objetivos variáveis, e alguns fecundando a nova sociedade do inédito viável. Outra faceta valiosa vem da democracia cultural que adquiriu um status mais substantivo nas últimas décadas. Pela localização comparativa entre culturas regionais e nacionais, pelos estudos históricos de membros pertencentes a diversos campos de conhecimento, pela constatação na vida cotidiana de quase todos os países, a dominação de uma cultura por outra, a subordinação, o desprezo, o desrespeito, das culturas hegemônicas pelas demais é algo abissal. Mesmo assente como um direito inescapável na maioria das legislações normativas, os traços de soberba, de ofensas e ataques pessoais e coletivas abundam, com raríssimos casos de punição. Em sentido contrário, comparecem facetas que buscam o diálogo ético e assumido, sinais e práticas que apontam para uma reconstrução democrática nessa dimensão: a defesa do respeito à diferença, num efetivo multiculturalismo que defende a identidade do Outro como a de si mesmo, delineando atividades concretas de inculturação; as buscas de um efetivo ecumenismo, de macroecumenismo, de diálogo inter-religioso; o respeito e valorização das culturas populares.

Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade

Como é sabido, em diversas partes do mundo, nas últimas décadas, surgiram interpretações fecundas sobre as relações sujeito e objeto, solução de problemas, lugar da ciência moderna e suas implicações atuais, papel das disciplinas em geral e acadêmicas em particular.

Apenas para contextualizar a problemática envolvida, trago alguns elementos analíticos sobre duas formas de conhecimento, denominadas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.

Na interdisciplinaridade, Jean Piaget foi um dos pioneiros que distinguiram entre multi, inter e transdisciplinaridades. A interdisciplinaridade trata da colaboração entre disciplinas diversas, com vários tipos de interações possíveis. Ela busca estruturas mais profundas, a variedade entre estruturas, ligações múltiplas e inteligíveis, e que são dedutíveis. No caso da transdisciplinaridade, ele situa essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas; uma espécie de teoria geral dos sistemas e das estruturas "englobando as estruturas operatórias, aquelas de regulações e os sistemas probabilísticos, e religando as diversas possibilidades pelas transformações resolvidas e definidas" (Piaget, 1972, p.144 apud Alvarenga, 2012, p.55).

Nesse campo, é relevante indicar os avanços trazidos no interior da Capes, por sua importância na dinâmica universitária, que tem proposto e disseminado as alternativas inseridas na concepção de interdisciplinaridade. Para uma primeira aproximação dessa temática tão ampla e questionadora, ela considera que

é no âmbito da interdisciplinaridade que grandes desafios epistemológicos – teóricos e metodológicos – se colocam. Daí seu papel estratégico de estabelecer a relação entre saberes, propor o encontro entre o teórico e o prático, entre o filosófico e o científico, entre ciência e tecnologia, apresentando-se, assim, como um saber que responde aos desafios do saber complexo. (Capes, 2008, p.2)

Na mesma lógica, trazendo um conjunto de elementos reveladores de princípios, no documento consta:

a interdisciplinaridade se coloca como espaço privilegiado, como decorrência de sua própria natureza transversal indicada pelo seu prefixo (como princípio geral), para avançar além das fronteiras disciplinares, articulando, transpondo e gerando conceitos, teorias e métodos, ultrapassando os limites do conhecimento disciplinar e dele se distinguindo por estabelecer pontes entre diferentes níveis de realidade [em relação a dado fenômeno complexo], diferentes lógicas e diferentes formas de conhecimento [presentes no âmbito das disciplinas]. (ibidem)

Considerando as ideias de Edgar Morin sobre a teoria da complexidade, algo fundamental nas transformações em curso em vários campos do conhecimento, e que contribuíram (contribuem) para entender as noções básicas que vêm sendo incorporadas na explicitação da transdisciplinaridade, cabe uma referência de como ela foi inserida na variedade dos pontos de vista incluídos na concepção da transdisciplinaridade. Nesse sentido, relacionando pontos imbricados nas perspectivas vigentes entre tradição e ciência no século XXI, é de interesse trazer as contribuições formuladas nos Congressos internacionais sobre ela, cujas reflexões estão analisadas na tese de livre-docência de Alvarenga (2012). Num texto longo, mas conveniente para o seu entendimento, no segundo Congresso internacional (1991), em sua Carta oficial, são apontados alguns fundamentos que permitem uma compreensão dos pontos centrais para seu entendimento, e que nortearam os congressos posteriores. Apesar dos limites do presente texto, inicio com alguns pontos que esclarecem a visão geral da transdisciplinaridade, e que podem ser agregados ao exposto na interdisciplinaridade; e que se direcionam na linha do realismo utópico e podem trazer subsídios para uma reflexão mais abrangente das discussões sobre "nutrição e pobreza". Destaco, a seguir, alguns deles que são relevantes para o seu entendimento (Alvarenga, 2012, p.219-20):

3. Uma das revoluções conceituais deste século veio, paradoxalmente, da ciên- cia, mais particularmente da física quântica, que fez com que a antiga visão da realidade, com seus conceitos clássicos de determinismo, que ainda predominam no pensamento político e econômico, fosse explodida. Ela deu à luz a uma nova lógica correspondente, em muitos aspectos, a antigas lógicas esquecidas. Um diálogo capital, cada vez mais rigoroso e profundo, entre a ciência e a tradição pode então ser estabelecido a fim de construir uma nova abordagem científica e cultural: a transdisciplinaridade. 4. A transdisciplinaridade não procura construir sincretismo algum entre a ciência e a tradição: a metodologia da ciência moderna é radicalmente diferente das práticas da tradição. A transdisciplinaridade procura pontos de vista a partir dos quais seja possível torná-las interativas, procura espaços de pensamento que as façam sair de sua unidade, espeitando as diferenças, apoiando-se especialmente numa nova concepção da natureza. 5. Uma especialização sempre crescente levou a uma separação entre a ciência e a cultura, separação que é a própria característica do que podemos chamar de "modernidade" e que só faz concretizar a separação sujeito-objeto que se encontra na origem da ciência moderna. Reconhecendo o valor da especialização, a transdisciplinaridade procura ultrapassá-la recompondo a unidade da cultura e encontrando o sentido inerente à vida. 6. Por definição, não pode haver especialistas transdisciplinares, mas apenas pesquisadores animados por uma atitude transdisciplinar. Os pesquisadores transdisciplinares imbuídos desse espírito só podem se apoiar nas diversas atividades da arte, da poesia, da filosofia, do pensamento simbólico, da ciência e da tradição, elas próprias inseridas na sua própria multiplicidade e diversidade. Elas podem desaguar em novas liberdades do espírito graças a estudos trans-históricos ou transreligiosos, graças a novos conceitos como transnacionalidade ou novas práticas transpolíticas, inaugurando uma educação e uma ecologia transdisciplinares. 7. O desafio da transdisciplinaridade é gerar uma civilização, em escala planetária que, por força do diálogo intercultural, se abra para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser.

Em outro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade (1994), são ressaltados os seguintes aspectos: existência de múltiplos níveis de realidade; ela unifica de modo semântico e operativo as acepções por meio das disciplinas; ele busca o diálogo e a reconciliação entre as ciências extas e as humanas, e com a arte, a literatura, a poesia, as experiências espirituais; o reconhecimento do pertencimento à nação e à Terra; é transcultural; a economia deve estar a serviço do ser humano; rigor, abertura e tolerância são características de base da atitude e da visão transdisciplinar; o saber compartilhado que se funda no diálogo e na discussão etc.

Recebido em 23.5.2013 e aceito em 13.6.2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    2013

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2013
  • Aceito
    13 Jun 2013
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