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Constipação intestinal em pacientes graves: muito mais do que imaginamos

EDITORIAL

Constipação intestinal em pacientes graves: muito mais do que imaginamos

Rodrigo Palácio de AzevedoI; Flávia Ribeiro MachadoII

IHospital São Domingos - São Luiz (MA), Brasil

IIDisciplina de Anestesiologia, Dor e Terapia Intensiva, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Rodrigo Palácio Azevedo Avenida Jerônimo de Albuquerque, 540 - Angelim CEP: 65060-642 - São Luís (MA), Brasil E-mail: rpdeazevedo@yahoo.com.br

A constipação intestinal é complicação comumente identificada entre pacientes graves, entretanto existem poucos dados disponíveis na literatura. Uma série de fatores eleva a frequência de constipação intestinal entre paciente internados em terapia intensiva, como choque, uso de agentes sedativos e opioides, distúrbios eletrolíticos, mudanças no padrão dietético, entre outros.(1,2) A incidência de constipação, no ambiente da terapia intensiva, tem ampla variação entre os estudos, podendo ir de 5 a 83%.(1-5) Essa variação está diretamente relacionada à ausência de definição precisa. Nas diretrizes da American Gastroenterological Association, constipação é conceituada como frequência de eliminação de fezes menor que três vezes por semana, sensação de esvaziamento retal incompleto, fezes endurecidas, esforço para eliminar fezes ou necessidade de toque para esvaziamento retal.(6) Alguns desses critérios, entretanto, são subjetivos e de difícil aplicação entre pacientes graves e sob ventilação mecânica. Os estudos já publicados sobre o tema adotam principalmente a frequência de evacuações durante a internação ou o tempo entre a admissão na unidade de terapia intensiva (UTI) e a primeira evacuação como os principais definidores de constipação entre pacientes graves.(1,2,4,5,7,8)

Por meio do entendimento da incidência, da fisiopatologia e das consequências da constipação intestinal entre pacientes graves é possível traçar estratégias de prevenção e tratamento dessa complicação. Como já mencionado, suas potenciais causas são múltiplas. Já suas consequências são menos definidas. A constipação intestinal poderia estar relacionada ao aumento da pressão intra-abdominal, redução do aporte nutricional, hiperproliferação bacteriana, lesão da mucosa intestinal e translocação de bactérias por essa mucosa lesada. Pacientes que evoluem com constipação frequentemente cursam com gastroparesia e ileoparesia, condições que atrasam o início e dificultam a progressão do suporte nutricional. O aporte nutricional inadequado pode acarretar piora do prognóstico por redução da força muscular global e da capacidade funcional, redução da capacidade de síntese de novos tecidos e da cicatrização de feridas, aumento do número de infecções, além de aumento do tempo de internação e da morbidade e mortalidade. A constipação intestinal pode estar associada a maior tempo de ventilação mecânica.(1,5) A distensão abdominal pode dificultar a ação do diafragma, diminuir a complacência pulmonar e aumentar o trabalho respiratório.(2) Em alguns pacientes, pode estar relacionada à elevação da pressão intra-abdominal, com consequente redução da complacência pulmonar e elevação da pressão intratorácica e pleural, podendo gerar edema e atelectasias.

Muito além de um problema da motilidade intestinal, ou mesmo de um epifenômeno em pacientes graves, a constipação pode estar inserida num contexto mais abrangente: a disfunção intestinal aguda. Esta é frequente entre pacientes graves, porém sua identificação é difícil por falta de definição amplamente aceita e uniforme. Nessa definição, a presença de constipação parece ser uma das peças centrais. Possivelmente é essa inserção no contexto de disfunção orgânica que explica sua correlação com a má evolução de pacientes graves.(1,2,7) Apesar de alguns dados conflitantes, a maior partes das evidências correlaciona constipação a desfecho negativo em pacientes de UTI.(1,2,4,7-12) Nesses pacientes, constipação relacionou-se a aumento do tempo de ventilação mecânica, do tempo de internação, piora da evolução de disfunções orgânicas e mesmo aumento da mortalidade. Assim, seu tratamento poderia resultar em melhor prognóstico por reduzir a ocorrência dessas complicações.

Se já são raros os estudos abordando aspectos epidemiológicos relacionados à constipação, ainda menos frequentes são aqueles que versam sobre seu tratamento. Em um ensaio clínico randomizado, pacientes que utilizaram laxativos como forma de promover evacuação tiveram menor tempo de internação. Nesse mesmo estudo, a análise multivariada identificou o escore Acute Physiologic Chronic Health Evaluation II (APACHE II) e tempo para a produção fecal como variáveis independentes preditoras de mortalidade.(2)

Nesta edição da RBTI, Guerra et al. publicam estudo observacional e retrospectivo em uma UTI pública nacional e relatam incidência elevada de constipação (72%) entre pacientes em ventilação mecânica e que tiveram seu suporte nutricional iniciado em até 72 horas da internação.(13) Embora os resultados sejam limitados por sua natureza unicêntrica e retrospectiva, e pela exclusão de grande parte dos pacientes internados no período, resultando em pequeno número de pacientes analisados, o artigo tem o mérito de abordar assunto pouquíssimo estudado. Ele ganha importância por evidenciar a elevada frequência desse problema no nosso meio, em incidência similar a do estudo de Nassar et al.(4) e de outros.(1,7) O critério utilizado para definir constipação foi a ausência de evacuação nos primeiros 4 dias de internação, conforme adotado em estudos prévios. Essa incidência poderia ser ainda maior caso o critério usado fosse ausência de eliminação fecal por período superior a 3 dias durante qualquer período da internação. Observa-se que, mesmo no grupo sem constipação, o tempo para a primeira evacuação foi bastante longo, de 2,8 dias. No estudo de Guerra et al.,(13) foi ainda observada associação entre ausência de evacuações durante toda a internação e maior tempo de internação. As limitações do estudo possivelmente não permitiram a detecção de outros fatores de risco, mas, novamente, o mérito está em trazer à tona uma questão relevante e possivelmente implicada na gênese de disfunção orgânica.

A questão que ora se impõe é se a constipação representa apenas um marcador de gravidade e mau prognóstico de pacientes graves ou se estamos diante de disfunção a ser evitada e tratada por contribuir efetivamente para a piora clínica do paciente. Nesse sentido, infelizmente, ainda são escassos os estudos que nos auxiliam a compreender a constipação no cenário das UTIs. Dada a relevância do tema, novos estudos, tanto epidemiológicos como clínicos, virão. E serão muito bem-vindos!

Conflitos de interesse: Nenhum.

  • 1. Mostafa SM, Bhandari S, Ritchie G, Gratton N, Wenstone R. Constipation and its its implications in the critically ill patient. Br J Anaesth. 2003;91(6):815-9.
  • 2. van der Spoel JI, Oudemans-van Straaten HM, Kuiper MA, van Roon EN, Zandstra DF, van der Voort PH. Laxation of critically ill patients with lactulose or polyethylene glycol: a two-center randomized, double-blind, placebo-controlled trial. Crit Care Med. 2007;35(12):2726-31.
  • 3. Asai T. Constipation: does it increase morbidity and mortality in critically ill patients? Crit Care Med. 2007;35(12):2861-2.
  • 4. Nassar AP Jr, da Silva FM, de Cleva R. Constipation in intensive care unit: incidence and risk factors. J Crit Care. 2009;24(4):630.e9-12.
  • 5. van der Spoel JI, Schultz MJ, van der Voort PH, de Jonge E. Influence of severity of illness, medication and selective decontamination on defecation. Intensive Care Med. 2006;32(6):875-80.
  • 6. Locke GR 3rd, Pemberton JH, Phillips SF. American Gastroenterological Association Medical Position Statement: guidelines on constipation. Gastroenterology. 2000;119(6):1761-6.
  • 7. Gacouin A, Camus C, Gros A, Isslame S, Marque S, Lavoué S, et al. Constipation in long-term ventilated patients: associated factors and impact on intensive care unit outcomes. Crit Care Med. 2010;38(10):1933-8.
  • 8. Masri Y, Abubaker J, Ahmed R. Prophylactic use of laxative for constipation in critically ill patients. Ann Thorac Med. 2010;5(4):228-31.
  • 9. Reintam Blaser A, Poeze M, Malbrain ML, Björck M, Oudemansvan Straaten HM, Starkopf J; Gastro-Intestinal Failure Trial Group. Gastrointestinal symptoms during the first week of intensive care are associated with poor outcome: a prospective multicentre study. Intensive Care Med. 2013;39(5):899-909.
  • 10. Reintam A, Parm P, Kitus R, Starkopf J, Kern H. Gastrointestinal failure score in critically ill patients: a prospective observational study. Crit Care.2008;12(4):R90. Erratum in: Crit Care. 2008;12(6):435.
  • 11. Berger MM, Oddo M, Lavanchy J, Longchamp C, Delodder F, Schaller MD. Gastrointestinal failure score in critically ill patients. Crit Care. 2008;12(6):436; author reply 436.
  • 12. Reintam A, Parm P, Redlich U, Tooding LM, Starkopf J, Köhler F, et al. Gastrointestinal failure in intensive care: a retrospective clinical study in three different intensive care units in Germany and Estonia. BMC Gastroenterol. 2006;6:19.
  • 13. Guerra TL, Mendonça SS, Marshall NG. Incidência de constipação intestinal em uma unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(2):87-92.
  • Autor correspondente:

    Rodrigo Palácio Azevedo
    Avenida Jerônimo de Albuquerque, 540 - Angelim
    CEP: 65060-642 - São Luís (MA), Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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