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Arte e loucura como limiar para outra história

Art et folie comme le seuil pour autre histoire

Arte y locura como el umbral para otra historia

Resumo

Pretendemos problematizar arte e loucura, inicialmente discutindo a experiência do pesquisador em relação às imagens do mundo, com o testemunho e a figura do louco e, consequentemente, com o fora que ela evoca. Em seguida nos colocamos diante do muro, situação-limite na qual a loucura enquanto catástrofe e a arte enquanto via poética vêm compor um limiar, ausência que Blanchot transpõe à linguagem para dar a ver outras constelações possíveis, tanto de palavras quanto de seus inomináveis. Por fim, com Walter Benjamin, pomos a história da loucura a contrapelo, e, mergulhados no Ateliê de Escrita do Hospital Psiquiátrico São Pedro, desvelamos que a arte pode, na relação com a loucura, tornar-se a linguagem essencial na perigosa travessia em direção à experiência, transpondo a vivência desse estado assustador para trazer ao mundo outro sentido, reconhecendo outros modos de existência que podem vir a ser outras poéticas de vida.

Palavras-chave:
arte; loucura; limiar; história; linguagem

Résumé

Nous désirons problématiser l’art et la folie, initialement en discutant l’expérience du chercheur par rapport aux images du monde, avec le témoignage et l’image du fou, et, par conséquent, l’extérieur qu’elle évoque. Puis, on se pose devant le mur, situation extrême dans laquelle la folie comme catastrophe et l’art comme voie poétique composent un seuil viennent à construire un seuil, absence que Blanchot transpose en langage afin de révéler d’autres constellations possibles tant comme des mots, tant comme ses innombrables. Enfin, avec Walter Benjamin, nous prenons l’histoire de la folie à contre-poil, et plongés dans l’Atelier d’écriture de l’Hôpital psychiatrique de São Pedro, à Porto Alegre au Brésil, nous révélons que l’art, par rapport à la folie, peut devenir le langage essentiel de la traversée dangereuse vers l’expérience, en transposant le vécu de cet état terrifiant, afin de donner un autre sens au monde, tout en reconnaissant d’autres modes d’existence qui pourraient devenir d’autres poétiques de vie.

Mots-clés:
art; folie; seuil; historie; langage

Resumen

Nuestra intención es de problematizar el arte y la locura, inicialmente discutiendo la experiencia del investigador en relación con las imágenes del mundo, el testimonio y la figura del loco, y por lo tanto con el afuera que ella evoca. Seguidamente, nos ponemos delante de un muro, una situación extrema en la que la locura como catástrofe y el arte como vía poética componen un umbral, una ausencia que Blanchot transpone en lenguaje para revelar las otras constelaciones posibles tanto como palabras, tanto como innombrables otros. Por último, con Walter Benjamin, ponemos la historia de la locura a contra pelo, y sumergidos en el Taller de escritura del Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, Brasil, desvelamos que, en relación con la locura, el arte puede convertirse en el lenguaje esencial de ese peligroso pasaje que nos conduce a la experiencia, que transpone lo vivido en este estado aterrador para dar otro sentido al mundo, reconociendo otros modos de existencia que pueden llegar a ser otras poéticas de vida.

Palabras clave:
arte; locura; umbral; historia; lenguaje

Abstract

We intend to problematize art and madness. We begin by discussing the experience of the researcher in relation to images of the world, to witnessing and to the image of the insane, and then inevitably to the outside they evoke. Subsequently, we stand before a wall, a limit situation in which madness as catastrophe and art as poetics compose a threshold, an absence which Blanchot transposes to language to bring other possible constellations into view, both as words and as their unnamable others. Finally, with Walter Benjamin, we touch upon the grain of the history of madness - immersed in the Writing Workshop at the São Pedro Psychiatric Hospital, in Porto Alegre, Brazil, we reveal that, in relation to madness, art can become the essential language of the perilous passage towards experience, transposing the experience of this horrific state to bring another sense to the world, recognizing other modes of existence which may come to be other poetics of life.

Keywords:
art; madness; threshold; history; language

Trata-se de arte e de loucura. E de buscar as palavras justas para o inominável, dessa vez, pelas margens, pelos limiares, pelo escuro que insiste em nos fazer fracassar quando desejamos dar voz à catástrofe existencial. Palavras e imagens povoam nossa bagagem perceptiva e sensível, ressoam em nosso corpo como badaladas ou acordes para torná-lo passagem, suspendem-nos na escolha de nosso dizer e, mesmo assim, nos garantem que não nos será possível revelar de todo aquilo que nos olha. Sempre por vir, como um incessante incompreendido, as imagens produzidas na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, local em que realizamos nossa pesquisa, se acumulam em enormes maços de papel pardo, guardadas à espera de nosso toque. Tocamo-las como quem está cego, tateamo-las com certo tremor, nossa garganta gagueja quando queremos dizê-las fora da banal linguagem, fora de seu enquadre físico e de sua aparência fenomênica. Junto a elas encontramos a figura do qualquer, do anônimo que as produziu, que, morto ou vivo, está marcado pelos poderes da ciência que o nomearam como louco: louco e infame, vergonha dos homens em sua radical alteridade, habitante do lado de lá do mundo considerado normal e civilizado. Este louco, contudo, considerado como impotente, mudo e sem utilidade social ou produtiva, coloca-se diante de nós com sua obra de linguagem, obra impossível de vir a ser interpretada e traduzida a partir dos cânones da razão e das boas normas estéticas. Não se trata de belas artes, trata-se, antes, daquilo que podemos chamar de expressão, daquilo que salta da profundidade como certo grito, como certo sussurro, como uma gagueira, quem sabe. Nada ali flui que auxilie o rápido entendimento. Não se pode ir depressa quando estamos nessa função de catalogar e interpretar os signos enlouquecidos que se apresentam tingidos pelas cores das tintas, das linhas de bordar e das canetas de escrever. Trabalho que suspende o julgamento é do que se trata, pois o ethos do tradutor, aqui, se faz com delicadeza, por desvios e pelos pormenores e insignificâncias. Nosso próprio corpo vibrátil torna-se, nessas leituras e momentos de contemplação, em limiar, em soleira de imaginação, sendo que nos situamos nesse instante kairológico como um Janus bifronte, uma face voltada para o passado, outra para o futuro, adensamento de um tempo intensivo que nos transporta para muitas possíveis direções, bifurca-se em córregos que alcançam outros, constituindo uma aglutinação de águas ou mesmo uma constelação de estrelas que se articulam por vizinhança e, sobretudo, pelos seus sentidos particulares e interligados. Aqui, o sentido de cada um, de cada coisa, de cada elemento se faz por interferências de um grupal, de um agenciamento coletivo de enunciação, de passagens de um para outro, e não por demarcações firmadas na fixidez de uma identidade substancial. O plano da imagem das obras que estudamos mostra-se reverberante, absorve o que nos está próximo como algo que se faz estranho e distante, longínqua se torna sua presença, mesmo que diante dela estejamos. Presença e ausência, claro e escuro, dia e noite, aparição e desaparição, tudo o que foi em uma existência se junta ao que está sendo e ainda às exigências do que poderia ter sido quando nos situamos nesse fora que se faz também como lugar da loucura. Dizer que o louco está fora de si, implica em reconhecer seu funcionamento e relacionamento com o mundo a partir desse seu próprio fora de si - a partir daquilo que estilhaça o bom senso e o senso comum, que o faz recuar de um Eu -, porque no louco falam forças selvagens, impessoais e disruptoras, cuja manifestação na exterioridade o coloca como um condenado a viver apartado do chamado convívio social. Se não apartado, como nos tempos antigos manicomiais, trata-se, mesmo assim, de um condenado a viver sem a confiança dos outros, exiliado no lado de lá, impedido de ultrapassar as portas - das salas familiares e das praças públicas - porque se encontra confinado na fronteira entre o homem e o não-homem, entre o homem e o animal. Interditado de passar, o louco se acha, mesmo que circulante, comprimido no canto escuro da moral e do manicômio mental que nos habita. Assim, encontrar, no âmbito da Oficina de Criatividade do HPSP e de seu acervo, suas expressões imagéticas e o pensamento que se pode daí extrair, implica em uma transgressão aos comuns desígnios à loucura e aos seus portadores. Profanações que buscamos no arquivo de imagens sobre o tema, tendo em vista que as consideramos como testemunhos de outra história da loucura, narrada, dessa vez, pelos próprios loucos e, quem sabe, com sorte, introduzida por nós no tecido social como seus precários tradutores. É desse lugar e com essa crença que fazemos nossa busca do tempo perdido. Dizer crença, aqui, importa esclarecer não se tratar de uma atitude piedosa e mesmo conformada. Crer, nas palavras de (Zourabichvili, 2005Zourabichvili, F. (2005). Deleuze e a questão da literalidade. Revista Educação e Sociedade, 26(93), 1309-1321. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/es/v26n93/27281.pdf
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, p. 1311), “não quer dizer aderir, parafrasear, papaguear um discurso que não fomos nós que produzimos. Crer torna-se sinônimo de fazer”, o fazer inseparável do dizer, tratando-se de uma mudança de prática da linguagem, traçada pela crença de que as imagens que vemos não se referem a metáforas que “representam o que quiseram dizer”, mas que expressam, sim, um sentido próprio, possuem uma potência de apresentação das coisas, tendo sido produzidas desde as singularidades imanentes a uma vida. Se pensarmos que uma imagem não se refere ao visível e que não se oferece a nós a não ser pelo que nos olha, sempre de modo furtivo e oblíquo, precisamos, para constituir um diálogo entre arte e loucura, sublinhar esse conectivo que reúne os dois domínios e situarmo-nos nesse entre-lugar, nesse intervalo liminar, nesse fora que está dentro, nessa crença que dirige nosso olhar não para as alturas das transcendências dos modelos de homem e de cura, mas que se situa ao rés do chão da experiência, experiência essa feita da relação com o que vemos, experiência liminar, oposta à da fronteira, uma vez que nela o É identitário se torna um E de um possível vir-a-ser. Trata-se de uma operação em que o ser se extingue em prol da relação e do devir. Experiência sempre cristalina, pois escapa ao clichê das representações do arquivo, buscando o invisível, o indizível, o inesquecível dos seres do mundo. Mundo sempre espelhado, sempre entre suas formas atuais e suas virtualidades, mundo desdobrado em multiplicidades de sentido, destruído e construído ao mesmo tempo, impregnado de forças de estranhamento, enigmático, impassível de ser reduzido a um nome identitário. A dualidade atual-virtual de que se reveste certo modo de olhar “é primitiva e irredutível”, diz-nos (Zourabichvili, 2005Zourabichvili, F. (2005). Deleuze e a questão da literalidade. Revista Educação e Sociedade, 26(93), 1309-1321. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/es/v26n93/27281.pdf
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, p. 1318), sendo a sua busca o incessante e insistente trabalho a ser feito em nome da crença no mundo por vir.

Diante do muro

Apesar de tudo, o muro. Nos blocos de concreto empilhados, a dureza dos diagnósticos, prontuários e receituários médicos são revelados como arquivos que assinalam a profundidade catastrófica produzida pelo enlouquecimento. Catástrofe que perpassa a massa e desdobra o olhar para encontrar a pele: nas mãos trêmulas, a peneira do tempo em decomposição. Só é possível nos colocarmos diante do muro se estivermos abertos à sua descontinuidade: diante da história da loucura somos lançados ao fora, ao exterior do exterior, desastre que repousa no paradoxo da morte como catástrofe e como poética.

Nessa confluência da loucura como catástrofe e da arte pela via poética, aproximamo-nos de uma situação-limite: adentrando no muro podemos ver as vidas enclausuradas no esquecimento de seu dentro, vidas que em algum momento colocaram em xeque a cultura e o pensamento, pois tentaram recuperar uma linguagem que lhes é própria. Para (Foucault, 1964/1995Foucault, M. (1995). História da loucura: na idade clássica. São Paulo, SP: Perspectiva . (Trabalho original publicado em 1964)), os artistas-loucos Nietzsche, Artaud e Van Gogh acolhem a loucura e dão a ela uma expressão que ascende sobre o mundo ocidental.

Como expressão de sua invisibilidade, a loucura começa a vazar pelo muro, pois já não se contenta em contemplá-lo. Ela quer fazer derivar seu território, extraviar seu corpo na poeira cósmica do mundo. São nossos olhos, então, que se tornam oblíquos, pois aproximar-se da decomposição e da fratura irremediável que conduz à escuridão desse estado de ser é reconhecer o insustentável em nós mesmos, o que não pode ser dito e nem mesmo esquecido. O mal-estar, como aponta Suely (Rolnik, 1995Rolnik, S. (1995). À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In M. C. Magalhães (Org.), Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo, SP: Escuta.), se apresenta no momento em que experimentamos as turbulências do invisível provocadas pelas diferenças. Diferença e caos, como o lodo do muro, movem as partículas que fazem irromper outro plano: ao tocar o chão, um fora imprime o plano selvagem e vertiginoso das forças, no qual o consolo das formas e a organização tranquilizadora do mundo não se acumulam. Por isso, reconhecemos que há nos sujeitos considerados loucos uma diferença dita radical (Fonseca & Brites, 2012Fonseca, T. M. G. & Brites, B. L. (Orgs.). (2012). Eu sou você. Porto Alegre, RS: UFRGS., p. 18), diferença que o arruína ao mesmo tempo em que o transforma, sempre em estado de devir.

Mergulhando na névoa do devir, abandonam-se os territórios duros e os muros concretos, instaurando uma experiência no paradoxo da morte como possibilidade de dizer e de silenciar que é iminente ao desastre enquanto o impensável do mundo. Esse estado que nos leva silenciosamente à temerosa ausência, contudo, não coloca a presença do outro lado do muro, mas sim, embaralha-se com ela por todos os lados, até que não se consiga mais definir o que é de uma - ausência - e de outra - presença. Nesse jogo são os paradoxos que constituem o cenário, e sua força “reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à gênese da contradição” (Deleuze, 1974Deleuze, G. (1974). Lógica do sentido. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 77). Atear fogo ao muro seria uma performance necessária, uma forma de expressão artística que possibilitaria à loucura desaparecer da oposição exterioridade e interioridade, normal e patológico, para fazê-la aparecer enquanto experiência-limite.

Em meio ao incêndio criminoso, somos todos suspeitos. O suspeito (Blanchot, 2007Blanchot, M. (2007). A fala cotidiana. In A conversa infinita 2: a experiência limite. (J. Moura Jr., trad., pp. 235-246). São Paulo, SP: Escuta.) é a figura daquele que é e não é - criminoso - e que experimenta esse limite, um não-lugar, tal como a ausência presente na linguagem que fala de si, no interior de si e que se afasta do mundo. Por isso, desamarra a expressão de sua regulação e a faz transgredir, trazendo à superfície a tênue linha que separa o louco daquilo que ele não é. “O que é então a loucura, em sua forma mais geral, porém mais concreta, para quem recusa desde o início todas as possibilidades de ação do saber sobre ela? Nada mais, sem dúvida, do que a ausência de obra.” (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). Loucura, literatura e sociedade. In M. B. Motta (Org.), Michel Foucault - Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (Coleção Ditos & Escritos I, V. L. A. Ribeiro, trad., pp. 232-258). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 156)

Resta-nos, na ausência de obra e de muro, interrogar o ser, fazendo tensionar o ser da literatura e o ser da loucura, nos quais as fronteiras são ignoradas: entre um e outro, um desastre prenuncia a criação de outra (im)possibilidade. Algo que diz desse vazio enquanto experiência incomum, emblemático mistério da morte e a morte enquanto potência da escritura. Furos subvertendo a lógica, questionando o inapreensível em nós: no domínio da arte existe vazão para a linguagem da loucura? O que é a loucura e o que não é? Um louco ou um poeta? Lembrando Foucault (Motta, 2002Motta, M. B. (Org.). (2002). Michel Foucault - Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (Coleção Ditos & Escritos I, V. L. A. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 188) “onde termina a obra, onde começa a loucura?”. Experiência-limite que nos mobiliza a manter o muro incendiado como forma de dar atenção à dimensão crítica para desembrulhar outra história possível, outros modos de existência. Modo-loucura, artista-louco, que fez morada na arte para salvar a si mesmo. Sobreviver apesar de tudo.

A morte da palavra

Na esperança de sobreviver, seguramos o frágil e transparente fio dessa experiência aberta à violência intrínseca do ato de pensar que faz nascer aquilo que ainda não existe. Pensar a relação entre loucura e arte é trabalho forçoso no contemporâneo quando são sempre com os excessos que nos deparamos: excesso de informação, excesso de imagens e espaços preenchidos que não permitem o fracasso e o vazio, nem parada, pois é sempre contra o tempo que se está correndo, ou melhor, a favor do relógio capitalista. Tanto na loucura quanto na arte são os restos e os buracos que ganham esconderijos e sua relação vai a contrapelo de uma vida fadada a um destino certo. É uma hemorragia de vida que reinventa o ato de morrer. Comecemos pela morte então.

Morrer é um mal-entendido da vida. Uma crueza da linguagem que não encontrou sua plena compreensão e que coloca seu dedo na ausência, para esperar, perder o tempo e ganhar o descompasso de (Beckett, 2003Beckett, S. (2003). Parte II. In Como é (pp. 61-112). São Paulo, SP: Iluminuras., p. 93): “silêncios monstruosos vastos tratos de tempo nada perfeito reler as antigas anotações passar o tempo começo do murmúrio seu último dia diabo sortudo estar nessa para que é que eu sirvo”. Beckett não oferece sua linguagem ao intelecto e à ordem, parece não pensar no que diz e diz mesmo assim, sendo incapaz de responder para que serve afinal. Afinal, seu texto é maquinaria e, sua língua, desenvoltura de esquecimentos.

Escrevemos para não sermos esquecidos ou escrevemos para não nos esquecermos de nós mesmos? Se entendemos que escrever não se dá a priori e que essa operação se efetiva na medida em que se faz, é com o esquecimento que vamos nos aventurar em territórios indecifráveis de palavras e lapsos frasais, territórios nos quais tanto os poetas quanto os loucos depositam seus corpos, pois deixam-se navegar nas águas onde flutuam tanto a sedução do rastro quanto o perigo da ausência. Assim, é sempre com o jogo de aparecer-desaparecer que a linguagem se equivoca em esquecer.

Pelas margens, a arte e a loucura são escritas. Pela terceira margem, que é longínqua, o impensável se esparrama na beira do abismo, e o abismo, assim como muro queimado, aproxima-se da margem inexplicável de ser. Ali, diante da paisagem nebulosa do vazio e da ausência, a morte vem como um vento cortante suspirar seu acaso e seu atraso, pois, a morte é a paisagem que sempre existiu em nós e que sempre existirá. Paisagem que insiste na linguagem, na qual a potência do interminável morrer não viria revelá-la, nem revelar o ser: “el arte no conoce um tipo particular de realidad - taja sobre el conocimento. Es el acontecer mismo de oscurecimiento, un atardecer, una invasión de sombra” (Levinas, 2001Levinas, E. (2001). La realidad y su sombra. Madrid, España: Trotta., p. 46), mas interrogá-la em seu fracasso, no qual haveria uma possibilidade de dispersão.

Por atestar o disperso, a loucura, à sombra da arte, reconduz a uma relação imperceptível entre o “Outro” que perdeu sua razão e esse “Outro” que se perde em si mesmo, impondo uma solidão essencial diante do abismo mortífero. Olhar turvo da morte invivível experimentado pelo Homo Sacer (Agamben, 2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: UFMG.) quando recebe a interdição tanto jurídica quanto sagrada. É a solidão de uma vida que nada vale, pois está fadada à morte que o Homo Sacer carregará no deserto da indeterminação e do anonimato para encontrar sua contradição na impossibilidade de não poder ter sua vida sacrificada, pois essa é sagrada e impura. O Homo Sacer, então, é aquele despojado de qualquer direito, pois, por ter a vida sagrada e destituída de valor, simultaneamente, abre-a à morte insacrificável, permanecendo no limite. Por fim, Agambem denominará vida nua, o novo sujeito político da modernidade que se constituiria como uma espécie de rendimento (fundamentalmente às condições financeiras). “O rendimento fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar de articulação entre a natureza e a cultura, zoé e bíos” (Agamben, 2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: UFMG., p. 187).

Por indefinir-se vivo ou morto, o Homo Sacer imprime uma lacuna, um hiato em sua existência a-significante, levando-o a ocupar o não-lugar que o desliga bruscamente da sociedade através da exclusão oferecida nos campos de refugiados e exilados. Experiência análoga a do Homo Sacer é a experimentada pelo louco, que na época clássica passa a ser enclausurado dentro dos muros manicomiais, justapondo à clausura do sujeito a clausura do pensamento, visto que “a loucura se torna condição de impossibilidade do pensamento” (Machado, 2005Machado, R. (2005). Foucault, a filosofia e a literatura (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 29), reduzindo-a ao seu silenciamento total. Enquanto a loucura é marcada no contexto do Grande Enclausuramento como desrazão, na modernidade ela - a loucura - ganhará o atributo de doença mental o que a torna passível de cura, pois o homem em estado de loucura é visto, como designa (Foucault, 1964/1995, p. 535), “estrangeiro com relação a si próprio, Alienado”. Por conseguinte, se na época moderna a arte deveria representar a realidade, (Lima e Pelbart, 2007Lime, E. M. F. A. & Pelbart, P. P. (2007). Arte, clínica e loucura: um território em mutação. História, Ciências, Saúde, 14(3), 709-735. doi: 10.1590/S0104-59702007000300003
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) enfatizam que a relação da arte produzida pelo louco era compreendida como uma expressão de seu estado mental e, portanto, como sintoma, sendo que, com base nas produções plásticas, a prática de psicodiagnósticos era recorrente em instituições psiquiátricas.

O salto do contemporâneo será deslocar a atividade artística como representação em direção à arte como possibilidade de experimentação fragmentária e intensiva voltada à produção de processos de criação e não unicamente à remissão dos sintomas. Diante de tal abertura, haveria uma transgressão das verdades e certezas inquestionáveis, criando um tensionamento pretencioso que intenta ultrapassar as fronteiras impostas entre a loucura e a razão, instaurando a arte e reinstaurando a linguagem entre essas instâncias. Desse modo, a expressão estética será possível no limite dessa impossibilidade - entre a vida e a morte do Homo Sacer, experiência-limite do ser da linguagem.

Nessa passagem do aparecer-desaparecer é outra experiência do mundo que se inaugura: uma experiência que acolhe o trágico do mundo por reconhecer a presença da loucura em sua sinuosa ausência. Turva relação com “o outro de todos os mundos” (Blanchot, 2011Blanchot, M. (2011). A parte do fogo (A. M. Scherer, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.), em que as palavras se apresentam - e não representam - para serem sentidas e vivenciadas (Levy, 2011Levy, T. S. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.). Assim, um mundo sob permanente ameaça da experiência trágica de Nietzsche seria um mundo no qual a arte poderia ultrapassar a razão, representando a loucura em sua estrutura, na medida em que a arte também consiste em uma experiência não-racional, pois admite em seu discurso a negatividade mortífera do trágico em Nietzsche. Assim disse Foucault em História da loucura (1964/1995), obra que se diz.

A aventura do fora

Emprestamos ritmos ao mundo, recolhemos pedaços e compomos retratos em movimento. Na bruma, é nossa própria escrita de mundo que se faz pequeno mistério movente. Simultaneamente, o rastro cria uma zona de inscrição que desaparece e se esvai passando pelo nosso olhar como vertigem. À primeira vista, lidamos com uma espécie de destruição da linguagem, que revela sua potência na capacidade de criar e fundar mundos fugidios, falsa evidência que introduz uma distância entre nós e as coisas. O que pulsa é a ausência na qual a criação tece suas franjas. “A palavra afasta o objeto: ‘Eu digo: uma flor!’ e não tenho diante dos olhos uma flor, nem uma imagem de flor nem uma recordação de flor, e sim a ausência de flor” (Blanchot, 2011Blanchot, M. (2011). A parte do fogo (A. M. Scherer, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 42).

Falar é ser atraído por signos. Disse-se, nos discursos de referência linguísticos, que o mundo é composto por signos e que cada signo se cola a um objeto, dando-lhe sentido e fixando a palavra à coisa. No entanto, se levamos em conta o incidente de Blanchot dizer “uma flor!”, descrito na passagem anterior, não conseguimos aceitar essa definição reducionista da linguagem, uma vez que Blanchot transforma a coisa pela palavra. É a erosão que pulveriza a palavra até ela cair na lacuna, até ela perder-se na errância poética que a arruína e elevar-se à última potência, a qual Deleuze aponta como signos da arte: “os signos da arte são os únicos imateriais” (Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). Proust e os signos. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 36). O imaterial, que dispara lufadas de sentidos possíveis, permite que os paradoxos componham um mundo, sem precisar recriar sempre o mesmo.

Passear por esse mundo outro, desgarrando-se do espetáculo para repousar o passo em qualquer beco ou fazer do próprio espetáculo um beco. O flâneur que perambula pela cidade para “flertar” com o mundo é a imagem do andarilho que se dissolve na materialidade da multidão e que, ao mesmo tempo, sente a solidão imaterial que o angustia. Ao acaso, é a busca de um perder-se, experiência de Baudelaire na cidade e na poesia.

“A natureza outra coisa não é senão um dicionário” ... Para bem compreender a amplitude do sentido implicado nessa frase, devem-se imaginar os usos ordinários e numerosos do dicionário. Neste, procura-se o sentido das palavras, ... enfim, extraem-se dele todos os elementos que compõem uma frase ou uma narrativa; mas ninguém jamais considerou o dicionário como uma composição, no sentido poético da palavra. Os pintores que obedecem à imaginação procuram em seu dicionário os elementos que se acomodam à sua concepção, e ainda ajustando-os com uma certa arte, dão lhes uma fisionomia bem nova. Aqueles que não têm imaginação copiam o dicionário. (Baudelaire, 1995Baudelaire, C. (1995). Poesia e prosa. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar., p. 887)

Dos dicionários de significados mundanos às ruas dissolvidas pelos interstícios acústicos da arte, a experiência do flâneur ganha um riso rompido na loucura. Assim como o andarilho, o louco tem à disposição a cidade: nela, a multidão que o habita e o deserto que o percorre. A loucura é sempre virgem ao pré-estabelecido dos trajetos, rejeita os mapas geográficos, recusa os guias, escolhe a via da transgressão como a liberdade perigosa que permite sua inscrição criacionista. É onde a arte é posta à beira do abismo que (Bataille, 1943Bataille, G. (1943). L’Expérience intérieure. Paris, France: Gallimard.) afirma a necessidade de instaurar uma violência à linguagem, como uma crise essencial que faria emergir uma possível inspiração poética. Para o autor, haveria uma falácia na presença da obra e ela só comunicaria um breve acontecimento, nunca uma totalidade. Essa violência que se exerce primeiro em si mesma efetua uma operação que transborda o estratificado levando tanto a arte quanto a loucura a uma aventura que arranca o sujeito de si para habitar o fora, lugar que Blanchot atribui à prática literária.

Subitamente, o flâneur é assolado por uma tempestade. Encharcado pela violência lança-se ao fora do que lhe é comum e familiar, privando-se de si mesmo para ir ao encontro de outras imagens cotidianas. Quando consegue olhar entre a nuvem cinzenta, dá-se conta que já não está diante dos signos mundanos, mas atingiu o impensado dos signos da arte. Por estar no fora, encontra-se com a loucura e com esta enseja o desvio que traz a crueza da arte colada à solidão. O fora é selvagem, é animal. É O cão (1821-1823) de Goya (1746-1828), no qual, sob a areia movediça, um cão somente com a cabeça para fora, como se esperasse alguém para salvá-lo, só se encontrasse com sua solidão e com a iminente morte. O cão ocupa um por cento de todo o quadro, e a obra, desprovida de quaisquer objetos familiares, é composta, com excelência, pela solidão, pelo vazio e pela ausência: “nunca antes um artista se aventurou em tão radical renúncia para retratar a solidão” (Hagen & Hagen, 2004Hagen, R. M. & Hagen, R. (2004). Francisco Goya: 1746-1828 (Philos, trad.). Rio de Janeiro, RJ/São Paulo, SP: Paisagem., p. 75).

Figura 1
O Cão, 1820-1823. Óleo sobre tela, 131,5 cm x 79,3 cm,

Um retrato fora que age sobre a solidão e a morte transpõe a loucura como um limite, como as margens desencontradas dos cantos. Antes, é a trágica existência diluída nas tintas que faz o cão manter-se na superfície, mesmo que a areia o impele à morte. Nas margens, Foucault virá nomear a loucura como “ausência de obra” (1964/1995), um fora que está dentro da obra e que para insurgir na areia movediça - superfície - precisa arruiná-la, sem destruí-la. Por isso, é com a ausência que ela dialoga, na qual o silêncio também é conversa e pelo rumor faz ruir. Enquanto a loucura é ruína, a linguagem seria a tentativa - insuficiente - de reerguer essa ruína, agindo imediatamente na fissura que deforma a linguagem. Um traçado embebido pela violência de Bataille, que, ao cortar nosso olhar, dissolve linguagem e loucura, perde-se na multidão para, diluído nas duas instâncias, tornar-se outro corpo. Flutuando agora pelo espaço vazio, as palavras se tornam também coisas, corpos, sons, e as frases deslizam por um plano muito mais dos ruídos que do enunciado, muito mais dos fragmentos que dos acabamentos.

Excursão da linguagem na qual a loucura viria tocar a veia da poesia: resgatar na palavra sua dimensão sensível de coisa, gesto e matéria sonora (Leminski, 1987/2009). Fazer jorrar o sangue quando a veia é perfurada é poder libertar a palavra do corpo que a aprisiona, ganhando o fora, aquilo que anuncia a potência do nada. Reviravolta do jogo aparecer-desaparecer que mantém o corpo nesse limite da veia esvaziada, mas pulsante. O buraco que permanece é o movimento de desobramento (Blanchot, 2011Blanchot, M. (2011). A parte do fogo (A. M. Scherer, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.), em que a realidade fundada pela violência da linguagem torna-se uma realidade imaginária, dando a ver “o ponto em que coincidem a realização da linguagem e seu desaparecimento” (Pelbart, 1989Pelbart, P. P. (1989). Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 75). Sua fatalidade é o projeto que alcança o que há de mais trágico na língua, em sentido nietzschiano, pois vem acolher, ao mesmo tempo, a razão e o delírio em sua própria experiência.

Na névoa da indiscernibilidade, é o trágico que explode como um vulcão em erupção. As lavas que inundam o mundo carregam toda a matéria seja ela animada, inanimada, animal ou humana. Em meio ao fogo, os signos que tornavam fixos os objetos, ganham mobilidade, abalando as verdades já instituídas (Levy, 2011Levy, T. S. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.) levando consigo, no lodo vulcânico, o ser da linguagem, que por estar misturado é impessoal e indeterminado. No encontro com o fora, a arte recai como indiscreto espaço em que a loucura reinventa-se, onde artista-louco e linguagem-obra se fazem simultaneamente, produzindo outro mundo com o que há nesse. Feito carne e osso, pela pele, fora dela.

Eu tenho merda nos olhos Eu tenho merda no coração Deus desaparece progressivamente ri irradia luz nubla o céu o céu canta dê a cabeça à morte o céu canta o trovão canta o raio de sol canta os olhos com as secreções o silêncio misturado com a merda dentro do coração. (Bataille, 1970-1992Bataille, G. (1970-1992). Oeuvres complètes (Vol. 1-17). Paris, France: Gallimard., p. 61)

Ateliê de Escrita: escovando a loucura a contrapelo

Antes mesmo que possa sentir medo do abismo, já se está desdobrando as fibras dos rochedos. Antes mesmo que se possa fechar a cortina, já se colocou o corpo na superfície da janela. Para olhar o mundo e para que ele nos olhe, é necessário experimentá-lo. E quando o olhar alcança, novamente escapa:

Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que mais não veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. (Didi-Huberman, 2010Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha (P. Neves, trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Ed. 34., p. 34)

É com esse olhar fugidio, pois esvaziado, que experimentamos a arte no espaço manicomial para transformar a banalidade mundana em expressão ilimitada do ser.

A primeira cena que o olhar captura é um volume: um aglomerado de pavilhões ao fundo de um jardim extenso e verde. Esse aglomerado é chamado de Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado na cidade de Porto Alegre (RS).

Figura 2
Hospital Psiquiátrico São Pedro, 1922

Logo, a segunda cena: o olhar que volta é o seu fora, um pequeno espaço que se compõe e se esvai constantemente e que de oficina passou a ser chamado Ateliê de Escrita. Essa segunda cena vem então compor uma nova escrita, pois quer, no âmbito da experiência, dar a ver outras espessuras possíveis do encontro entre arte e loucura, como o inesperado de uma palavra que não foi escrita, como um livro por vir que insiste na violência da linguagem que corta o olhar fazendo diluir todo o tipo de matéria por entre nossos dedos, seja ela material ou imaterial.

Figura 3
Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro

Transitando no fora, nesse limiar no qual a palavra se dirige ao próprio ser da linguagem, os participantes do Ateliê descolam das paredes já descascadas da exclusão, do controle e do aprisionamento outro mundo possível, outro modo de existência para vidas que respiram dolorosamente. A escrita como um pegar de ar ou sopro, que empurra cada corpo para a beira do abismo do imprevisível, é o seu próprio desastre: ao ganhar o papel em branco faz explodir o corpo que perde sua forma: “a literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento” (Deleuze, 2011Deleuze, G. (2011). Crítica e clínica (P. P. Pelbart, trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Ed. 34., p. 11). Por respirarem e por tornarem-se outra coisa, não são apenas loucos que escrevem, nem escritores que deliram, mas, sem pretender defini-los, poderiam ser considerados desescritores de vidas, histórias e línguas.

Linhas erráticas anunciam o desvio do desescritor que quer trazer à superfície a expressão de seu delírio, compondo com ele o trágico que permite a ele escrever. E desescrever suspenso nesse não-lugar atelial passa a dar importância às insignificâncias do cotidiano que passam, simplesmente por terem deixado em aberto o canal com o fora, com esse estranho que o estranha. Nas quartas-feiras à tarde reúne-se o bando do Ateliê de Escrita para comer pipoca e tomar café (muito café), mas também para escrever poesias sobre cachorros, muros, receitas para curar gripe, cadeiras, chuva, morte, palavra, outono, loucura. E para cada estranhamento uma nova história se faz.

A violência do fora como esse outro que “é justamente o desconhecido, o estrangeiro, o exilado, o errante” (Levy, 2011Levy, T. S. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., p. 42) grita para a escrita revelar outra história possível, excedendo o passado em direção a um futuro impensável, para sobreviver no presente esse fora que já está dentro. Por isso, a escrita no Ateliê vem na esteira do que Walter Benjamin propõe: “A história deve ser escovada a contrapelo” (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. In Obras escolhidas (Vol. 1, pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense., p. 225). Escovar a história é tocar cada fio que compõe a estrutura capilar, sabendo nunca conseguir penetrar por todo o cabelo, quando uma escova atenta e sensível aos movimentos compreende que o processo nunca se encerra, mas que mesmo depois de escovado, o cabelo continua a agir e a viver, embaraça-se novamente e fica despenteado assim que o vento o alcança.

Figura 4
Arte e loucura na Oficina de Criatividade

Na história do mundo, a loucura era despenteada. Encerrada nos portões manicomiais, os excessos não deixavam escoar a impossibilidade da morte, nem a ausência potente que a levava a experimentar o próprio limite pela invenção de um lugar outro e de uma língua menor. No Ateliê, a escrita funcionaria como a escova que propõe colocar em questão a narração dominante dos experts, para, a partir dessa linguagem que emerge, dar outra textura ao fio, abrindo-se à produção de uma nova história da loucura. Tal gesto viria provocar essa linguagem a perder-se novamente, num movimento incessante da desescritura, como o tecer e o desmanchar de Penélope, que insere na narrativa épica ordenada de Homero um elemento de desordem, incertezas e fugacidade - esse aparecer-desaparecer dos enunciados e visibilidades para descobrir que “há um visível que tudo o que pode é ser visto, um enunciável que tudo o que pode é ser falado” (Deleuze, 2005Deleuze, G. (2005). Foucault (C. S. Martins, trad.). São Paulo, SP: Brasiliense., p. 74).

O que pode então a loucura com a arte? A arte, nesse ínterim, não insurge como um meio para recuperar a saúde mental - esse pode vir a ser um dos seus efeitos - mas alarga o cone para deixar o trânsito livre aos fluxos. Um desescritor não busca a palavra para expressar sua doença, mas o infinito do seu ser que desescreve. Por isso, a arte pode, na relação com a loucura, tornar-se a linguagem essencial na perigosa travessia em direção à experiência, transpondo a vivência desse estado terrorrífico para trazer ao mundo um sentido corriqueiro, reconhecendo o delírio como outro modo de experiência. Pode então, tornar-se poética de vida, como fez (Manoel de Barros, 2001Barros, M. (2001). Matéria de poesia (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.) ao afirmar que tudo o que pode ser disputado no cuspe à distância pode ser matéria de poesia.

Fazer da vida poesia ou obra de arte, não pela imitação, mas como modo: modo-Nietzsche, modo-Artaud, modo-louco. Escavar tais modos dentro de si para apropriar-se do mundo é dar-se conta da intensidade de descobrir o irrecuperável da escrita no tempo presente, como aquilo que se quer escrever e aquilo que se consegue escrever no Ateliê, no texto. No tempo presente e diante do papel haveria um achatamento da superfície dos sentidos e da expressão, estreitando vida e morte como processos intrínsecos, enquanto loucura e arte ganhariam outra imagem num momento em que poderiam passar despercebidas, mas por terem se tornado experiência, esperam. Por “um gesto de interrupção e de suspensão” (Gagnebin, 2014Gagnebin, J. M. (2014). Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo, SP: Ed. 34., p. 242) vêm ganhar uma constelação de possibilidades, expressões singulares que derivam do tempo do abismo desse fora e que, abrindo-se pela arte, produzem novas imagens de si e do mundo, imagens sobreviventes, desescrituras.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2016
  • Revisado
    26 Maio 2016
  • Aceito
    16 Jun 2016
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