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O discurso educacional católico sob a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu

The educational speech under Pierre Bourdieu sociological perspective

Resumos

Este artigo faz uma análise do discurso educacional católico propagado na década de 1930. Para isso, são abordados os conceitos analíticos de Pierre Bourdieu, a saber, as noções de habitus, estratégia, campo e capital cultural. O objetivo é buscar elucidar as razões e os mecanismos discursivos que engendraram as falas dos intelectuais católicos a respeito da Escola Nova e das concepções filosófico-educacionais de John Dewey. Seguindo os esquemas analíticos de Bourdieu, o discurso em questão pode ser considerado como estratégia, mecanismo pelo qual buscavam conservar o habitus do professorado consoantes com os interesses do grupo.

estratégias discursivas; habitus; campo educacional


This article makes an analysis of the Catholic education speech spread in the decade of 1930's . For that, the Pierre Bourdieu's analytical concepts are approached, to know, the habitus notions,1 strategy, field and cultural capital. The objective is to look for to elucidate the reasons and the discursive mechanisms that they engendered the Catholic intellectual's speeches regarding the New School and of John Dewey's philosophical-education conceptions. Following Bourdieu's analytical outlines, the speech it can be considered as strategy, mechanism for which they looked for to conserve the habitus of the faculty consonants with the interests of the group.

discursive strategies; habitus; education field


PESQUISAS TEÓRICAS

O discurso educacional católico sob a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu

The educational speech under Pierre Bourdieu sociological perspective

Viviane da Costa

FCL- Universidade Estadual Paulista - Araraquara

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Viviane Costa Av. Altino Correa Almeida, 490 CEP: 14801-080 Araraquara - SP E-mail: vidacosta@bol.com.br

RESUMO

Este artigo faz uma análise do discurso educacional católico propagado na década de 1930. Para isso, são abordados os conceitos analíticos de Pierre Bourdieu, a saber, as noções de habitus, estratégia, campo e capital cultural. O objetivo é buscar elucidar as razões e os mecanismos discursivos que engendraram as falas dos intelectuais católicos a respeito da Escola Nova e das concepções filosófico-educacionais de John Dewey. Seguindo os esquemas analíticos de Bourdieu, o discurso em questão pode ser considerado como estratégia, mecanismo pelo qual buscavam conservar o habitus do professorado consoantes com os interesses do grupo.

Palavras-chave: estratégias discursivas; habitus; campo educacional.

ABSTRACT

This article makes an analysis of the Catholic education speech spread in the decade of 1930's . For that, the Pierre Bourdieu's analytical concepts are approached, to know, the habitus notions,1 strategy, field and cultural capital. The objective is to look for to elucidate the reasons and the discursive mechanisms that they engendered the Catholic intellectual's speeches regarding the New School and of John Dewey's philosophical-education conceptions. Following Bourdieu's analytical outlines, the speech it can be considered as strategy, mechanism for which they looked for to conserve the habitus of the faculty consonants with the interests of the group.

Key words: discursive strategies; habitus; education field.

Introdução: Por influência das formulações de pensadores norte-americanos e europeus imbuídos de princípios de renovação pedagógica, o movimento conhecido como Escola Nova surgiu no Brasil em meados de 1920 com a pretensão de colocar o país em sintonia com os desenvolvimentos teóricos e práticos que já vinham sendo implementados na área da educação em outros países (Cunha, 2000).

Na década de 1920, a Associação Brasileira de Educação (ABE) era a principal organização aglutinadora de intelectuais interessados em remodelar a educação no país. Nela, congregavam-se católicos e liberais, trabalhando em prol de causas comuns, envolvidos numa mesma campanha cívico-educacional. Por meio da introdução da ciência e das técnicas modernas, todos buscavam redimensionar o sistema educacional para engendrar uma nova civilização (Carvalho, 1998).

No âmbito da educação escolar, tais propostas traduziram-se como valorização de medidas disciplinadoras e sanitárias avançadas, como dispositivos de fixação de hábitos e erradicação de vícios. Tendo como denominador comum a implementação de um modo de vida moralizado e sanitarizado, em que o trabalho e a família eram modelados por uma série de dispositivos essas propostas funcionavam como os principais recursos de uma "profilaxia social" (Carvalho, 1998, p. 314).

Uma educação desvencilhada da instrução moral e cívica não era vista como cabível. Para formar o indivíduo ideal à nova ordem social devia-se disciplinar seus corpos, corações e mentes. Nesse contexto, o Estado despontava como a única instância de poder competente para responder pela educação das novas gerações, o que seria feito por intermédio de escolas mantidas sob o controle dos poderes públicos. "O Estado, portanto, era elevado ao patamar de representante dos anseios da nação e a educação pública era guindada à condição de formadora de cidadãos em consonância com os projetos políticos" (Cunha, 1998, p. 54).

A afirmação do direito de todos à educação era, por si só, um ganho democrático; no entanto o projeto educacional configurava-se como de domínio social. Expandir a educação a toda a população, na visão dos grupos dirigentes, tinha um caráter eminentemente político: ela seria um instrumento de formação do cidadão republicano, ideal à sobrevivência e consolidação do novo regime de um país moderno (Souza, 1991).

Intelectuais de diversos matizes, católicos e liberais, moviam-se, assim, num mesmo terreno de debate: a educação escolar. Ambos propunham a reforma educacional sob a ótica da formação da nacionalidade e tinham como ideal a legitimação de uma educação que situasse o país dentro dos ditames da Ordem e do Progresso, mas, para o grupo católico, particularmente, esse ideal só poderia ser alcançado por meio de uma política sintonizada com os princípios cristãos (Carvalho, 1998).

A publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,1 1 Sobre o Manifesto (AZEVEDO et al, 1932) ver as avaliações contidas no livro organizado por Maria do Carmo Xavier (2004). ocorrida em 1932 logo após a IV Conferência Nacional de Educação realizada em 1931, acirrou o conflito entre educadores católicos e liberais, há tempos iniciado.2 2 Ainda no Império, a apresentação dos Pareceres de Rui Barbosa já dera margem a divergências (Valdemarin, 2000). A defesa, feita no histórico documento, de uma escola pública laica, regida pelos princípios de obrigatoriedade, gratuidade e co-educação, agravou a árdua disputa teórica e política em que os dois agrupamentos buscavam exibir legitimidade e competência para conduzir o aparato educacional de um novo país - polêmica sensivelmente ampliada nas décadas seguintes.

Na disputa pelo domínio da educação, o grupo dos intelectuais católicos iniciou, então, uma ampla campanha de divulgação de sua política educacional, abordando, também, aspectos do ideário educacional de seus rivais. A publicação do Manifesto dos Pioneiros, segundo Cury (1986), foi o momento estratégico utilizado pelos católicos que, "percebendo no texto frestas que deixavam entrever as oposições internas, passam ao ataque direto, acusando-o de documento socialista e comunizante"(p.23).

No discurso católico veiculado pelo periódico A Ordem, em particular, os representantes do Manifesto eram contextualizados como os "preparadores conscientes ou inconscientes da pedagogia comunista" (Athayde, 1932, p.318), cujas propostas educacionais, de princípios laicos, levariam "fatalmente à descristianização do ensino e ao advento da pedagogia comunista" (Instituto Oficial de Psicologia, 1932, p.402):

Fernando de Azevedo é um comunista e um contrariador dos ensinamentos dos educadores mais modernos. Os escolanovistas buscam passar uma imagem de que nunca houve educação, de que nunca se soube educar. E só agora, com a chegada desses novos Cabrais, vai começar o Brasil a gozar dos benefícios incalculáveis da técnica pedagógica desses educadores que afirmam que a religião é uma força estranha as disciplinas da educação (...) Que querem fazer do Brasil esses manejadores de técnicas imitadas, de filosofias oportunistas, de laicismo sectário, contra o ambiente moral da nossa terra, contra a consciência profunda da nossa gente? (Pedantismo Pedagógico, 1933, p.85)

Segundo a concepção dos católicos, o movimento de renovação pedagógica significava perigo, subordinação do sobrenatural ao terreno, opressão da Igreja Católica, perseguições religiosas, imoralidade e domínio dos comunistas (Mattos, 1933). A presença desse movimento no país resultaria na eliminação da verdadeira educação e na descristianização da sociedade (Van Acker, 1930).

O laicismo, que era visto como o grande mal da República, vinha penetrando na esfera da educação escolar, o que induzia os católicos a desencadear um combate ferrenho contra a Escola Nova. Na visão dos autores, a saída para todos os problemas sociais estava nas mãos de uma instrução que seguisse os ensinamentos religiosos cristãos. Era preciso lutar para que o Estado e seus governantes voltassem às verdadeiras raízes da nacionalidade (Athayde, 1930). E a solução para evitar a contínua queda da nação no "abismo da demagogia liberal" consistia em adotar firmemente uma política católica, abandonando para sempre as concepções laicistas (Oliveira, 1932, p.188).

Assim, a preservação do cristianismo católico passava pela retomada de sua posição como guia oficial da espiritualidade das elites e do povo. Os homens precisavam ser formados dentro dos preceitos do catolicismo, e a legitimação do campo educacional seria o instrumento fundamental para o êxito desta campanha (Errerias, 2000).

A conservação do habitus católico como estratégia de dominação do campo educacional

Com o intuito de legitimar sua posição como instância primeira para conduzir os meios e os fins da educação, a Igreja, por intermédio dos intelectuais católicos, procurou por diferentes meios difundir sua concepção cristã de educação. O objetivo dessa campanha era manter o professorado como adepto dos princípios cristãos e assim garantir uma população imbuída desses mesmos preceitos.

De acordo com a perspectiva sociológica de Bourdieu, o intuito dessa campanha pode ser visto como tentativa de continuar orquestrando o habitus dessa categoria profissional de acordo com os ditames necessários à preservação do grupo e, conseqüentemente, a sua própria inserção na disputa pela dominação do campo educacional. Desta forma, o habitus do professorado deveria ser preservado de possíveis influências das propostas dos intelectuais liberais.

No esquema explicativo de Bourdieu, o conceito de habitus é entendido como sistema de disposições socialmente elaboradas que, "enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes" (Bourdieu, 1974, p.191). O habitus seria a forma pela qual o indivíduo aprecia e age no grupo de que participa, fazendo-se presente nas ações e estratégias que este realiza para se manter ou transformar (Martins, 1990).

O habitus, por ser regulado segundo a realidade da qual um indivíduo faz parte, contribui para a participação em realidades objetivas das instituições às quais pertence, permitindo mantê-las em atividade, mas também impor a elas certas revisões e transformações, de modo que continuem ativas. Embora o habitus possa ser visto como sistema engendrado no passado e orientado para uma ação no presente, é um sistema em constante reformulação, o que, de certa forma, exige que diferentes estruturas sociais se adaptem segundo as circunstâncias da realidade (Setton, 2002).

Ao perceberem que o professorado vinha tomando conhecimento das concepções educacionais defendidas pelo grupo rival, e que assim poderia abandonar os preceitos defendidos pelo catolicismo, e, conseqüentemente, confrontar-se com o poder da Igreja, os intelectuais católicos lançaram mão de diversos meios para se situarem no mesmo nível de seus adversários, de modo a se engajarem num mesmo jogo: a disputa pelo domínio do campo educacional.

O conceito de campo, em Bourdieu, significa um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e de poder marcado por luta concorrencial entre os agentes. São relações assimétricas porque derivam da distribuição desigual da espécie de capital dominante em cada um dos diversos âmbitos sociais. Os detentores do maior volume de capital específico de um determinado campo ocupam as posições dominantes no seu interior e tendem a ser considerados legítimos (Martins, 1990).

De acordo com Bourdieu (1983), o habitus constitui em um sistema de disposições duráveis e transponíveis que integra todas as experiências passadas, e funciona a cada momento como uma matriz de percepção, de apreciação e de ação, o que torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas; o habitus tende a produzir práticas que, por sua vez, se ajustam às circunstâncias objetivas. Por essa razão, era imprescindível para os intelectuais católicos modificar a estrutura do grupo, por meio de estratégias bem traçadas para assim situar-se como agência educadora tão atrativa, moderna e competente quanto a dos renovadores.

Sendo habitus uma estrutura possível de reestruturação, na disputa travada entre intelectuais católicos e liberais, os primeiros viram a necessidade de transformar suas concepções educacionais tradicionais em educacionais modernas, de modo que o professorado católico pudesse se identificar cada vez mais com a educação cristã, o que seria viabilizado pela aceitação de propostas educacionais elaboradas pelos escolanovistas.

Somente assim o grupo dos católicos poderia continuar participando da disputa pela dominação do campo educacional e conservar o professorado como adepto da educação cristã e, conseqüentemente, imbuir a população de preceitos necessários à conservação da Igreja no âmbito da educação, isto é, desenvolver na população disposições duráveis para apreciar e agir como agente do grupo católico.

Na terminologia de Bourdieu, os empreendimentos discursivos efetivados por esse grupo podem ser considerados como estratégias, isto é, mecanismos pelos quais buscavam conservar o habitus cristão de seus agentes, pois que o habitus, enquanto produto da história, tende a produzir práticas individuais e coletivas em conformidade com os esquemas engendrados pela história (Bourdieu, 1983), isto é, práticas consoantes com os interesses do grupo para se legitimar no campo em questão.

Para Bourdieu (1990), o sistema de estratégias pode ser definido como seqüências ordenadas e orientadas de práticas que todo grupo empreende para se produzir como tal. As estratégias são empregadas a fim de que possam se produzir ou se reproduzir, isto é, "criar e perpetuar sua unidade, sua existência enquanto grupo, o que é quase sempre, em todas as sociedades, a condição da perpetuação da sua posição no espaço social" (p. 94).

A maior parte das estratégias dos agentes sociais é produto de um encontro entre um habitus e um campo. Na disputa que se trava no interior do campo educacional, o que prevalece é o capital cultural: códigos legítimos, culturalmente legitimados e socialmente valorizados em um determinado momento histórico (Bourdieu, 1983). Ao analisar as estratégias investidas pelos intelectuais católicos por meio do discurso educacional, deve ser considerado o nível de capital cultural e simbólico que o grupo possui e insere estrategicamente na disputa como instrumentos de lutas.

Na luta em que ambos os grupos estavam colocados, para impor o valor de seu produto e de sua própria autoridade, estava em jogo a melhor definição dos termos componentes do campo (melhor projeto educacional, métodos, teorias, fins e correntes filosóficas), que estivesse de acordo com seus interesses específicos. A definição mais apropriada permitiria ao grupo ocupar legitimamente a posição dominante. Nesse tipo de disputa, o que é percebido como importante e interessante pelo grupo é o que tem chances de ser reconhecido como importante e interessante pelos outros (Bourdieu, 1983). Contra os liberais, as formulações discursivas dos católicos tiveram que ser articuladas para mostrar a Igreja como o grupo mais relevante e, ao mesmo tempo, para desqualificar o oponente. Para isso, seus representantes precisaram ressignificar as principais correntes filosóficas, sociológicas e psicológicas em voga no momento.

A Escola Nova e John Dewey no discurso de autores católicos

De acordo com Bourdieu (1998b), o valor do discurso depende da relação de forças que se estabelece concretamente entre as competências lingüísticas dos locutores, entendidas ao mesmo tempo como capacidade de produção, de apropriação e apreciação ou, em outros termos, "como capacidade de que dispõem os diferentes agentes envolvidos na troca para impor os critérios de apreciação mais favoráveis a seus produtos" (p. 54).

No caso em estudo, devem ser considerados os objetivos que engendraram o discurso, bem como os mecanismos que o legitimaram, de modo a possibilitar uma reflexão sobre seu poder e as razões de seu empreendimento. Estrategicamente, o discurso foi uma maneira perspicaz de o grupo católico permanecer na arena de combate, pois era voltado principalmente para a classe católica, visando garantir a existência de agentes dotados de habitus cristão.

Na época, a Igreja tomou várias iniciativas para defender suas posições, como a organização de Congressos Eucarísticos, a criação da Liga Eleitoral Católica e, no campo escolar, as Associações de professores católicos (Dias, 1996). Ao lado disso, variados tipos de impressos divulgavam suas idéias, incluindo livros e revistas para ensinar sua pedagogia e transmitir a crítica à Escola Nova e seus mentores (Carvalho, 1994).3 3 Toledo (2001), em sua análise das publicações efetivadas pela editora Companhia Nacional no período em questão, salienta que os católicos procuravam controlar a leitura do professorado cristão, publicando sistematicamente resenhas, comentários, artigos sobre a bibliografia pedagógica difundida entre os educadores e a comunidade escolar em geral. Enquanto os liberais veiculavam suas concepções por intermédio de periódicos mantidos por instituições públicas (como Escola Nova, Educação e Revista de Educação, do governo paulista, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, do governo federal) os católicos possuíam publicações próprias, como a Revista Brasileira de Pedagogia (Sgarbi, 1997), órgão da Confederação Católica Brasileira de Educação, e A Ordem (Dias, 1996), periódico de responsabilidade do Centro D. Vital, entidade criada em 1922 por Jackson de Figueiredo e que aglutinava intelectuais de feição mais conservadora.

Os católicos estavam cientes de que seria impossível influir nas políticas governamentais, cristianizando a nação e o Estado, sem ao menos possuir uma elite católica realmente preparada e em condições de pôr em movimento "as grandes massas eleitorais em torno dos ideais católicos" (Dever cultural dos católicos, 1932, p.246). Era preciso difundir, por diferentes formas, os conhecimentos e dogmas cristãos, cabendo à imprensa e à formação do professorado um papel decisivo nesse empreendimento (Carvalho, 1994). Fazia-se imprescindível ensinar ao povo o sentido da verdadeira ciência por meio da apresentação das características modernas da Igreja Católica, apesar de ser ela uma instituição de origens medievais.

Em relação ao poder do discurso veiculado pelos católicos por meio de A Ordem, deve ser levado em consideração o público para o qual o periódico era dirigido: a elite católica, em geral, o que incluía o professorado. O discurso empreendido viria garantir membros e agentes dotados de habitus e práticas cristãs, e manter os católicos no poder.

Nesse periódico, os intelectuais católicos recorreram a diferentes meios para se situarem na disputa pela educação. Uma dessas estratégias consistiu em apresentar a sua própria visão do ideário da Escola Nova e das concepções filosófico-educacionais de John Dewey, que muito repercutiam entre os educadores da época.4 4 Segundo os estudos de Silva (2002), John Dewey foi o autor mais citado nos manuais pedagógicos publicados entre 1930 e 1971. No plano estratégico, os católicos adotavam duas atitudes frente à Escola Nova: de um lado, os mais conservadores atacavam frontalmente suas concepções educacionais com o intuito de negá-las na totalidade; de outro, buscavam absorver alguns de seus princípios, dando-lhes feição mais condizente com os ensinamentos cristãos.

Acima de tudo, a Escola Nova devia ser desprezada por pregar a laicização do ensino e conduzir a sociedade ao comunismo (Van Acker, 1934). Conforme se lê em vários artigos de A Ordem, um dos recursos dos católicos para propagar a idéia de que a Escola Nova significava o perigo do comunismo foi apresentar aspectos negativos de países que aderiram ao pensamento moderno. Todas as crises sociais vivenciadas pela França, inclusive perseguições religiosas, eram vistas como derivadas do ensino "objetivo, materialista, utilitário", tal qual os escolanovistas buscavam implantar no Brasil (A crise de espírito, 1930, p.69). Ao apresentar a Escola Nova como precursora de uma sociedade comunista, os católicos almejavam o repúdio do professorado em relação às concepções educacionais por ela traçadas, de tal modo que voltassem sua atenção somente para o que já existia na educação, principalmente às concepções educacionais católicas, estas, sim, apresentadas como norteadoras de uma sociedade democrática perfeita.

Em alguns artigos, entretanto, os autores prescreviam ser possível a implementação de alguns dos princípios da pedagogia nova, tal como a proposta de realizar uma educação mais próxima entre professor e aluno (Seção universitária, 1932, p.386), mas desde que esses princípios fossem regidos pela filosofia católica:

Não se trata de repudiar a escola ativa em nenhuma de suas modalidades boas. O problema é muito mais complexo e difícil. E nós, católicos, precisamos redobrar nossa atenção para não cairmos nos dois erros iguais e contrários que nos ameaçam: repudiar toda a pedagogia nova por causa dos erros que contém, ou aceitá-la integralmente, sem ver esses mesmos erros. (Serrano, 1932, p.277)

Do mesmo modo, encontrava-se articulada a estratégia de se apropriar das concepções de John Dewey. Em certos momentos, ele é apontado como "profeta da Escola Nova" e um "propagandista do regime comunista, que dizia ter encontrado no sistema educacional soviético "as condições ideais para o funcionamento do seu tipo de escola" (Registro, 1932, p.78).5 5 O fato de John Dewey buscar conduzir a educação por meio de finalidades sociais dava margem a que os católicos identificassem suas idéias com o comunismo, identificação agravada pelo fato de a União Soviética ter simpatizado com sua filosofia educacional em certa época (Cunha & Costa, 2002). No entanto, em outros argumentos, os princípios educacionais seguidos por Dewey eram apresentados como pertencentes ao catolicismo há séculos:

Anchieta foi o precursor da Escola Nova, no que ela tem de inteligente e bom, que é a alegria, a liberdade, a vida do ensino, sem a natureza compulsória da escola racionalista. Anchieta ensinava pelos cantos e danças, pelos autos festivos e pelas aulas ao ar livre. E não precisou do filósofo Dewey ou do pedagogo Ferrière para descobrir o que lhe ensinava seu coração de homem e sua vida de santo. (Athayde, 1934, p.262)

Os autores também alegavam que Dewey, em seu livro The Schools of tomorrow, aproximava-se "muito do Ratio Studiorum dos jesuítas". Ele, assim como os jesuítas, teria, então, fundado a "disciplina sobre a força", mas em vez de "invocar a Deus", inovara "apenas a necessidade social da natureza humana" (Torrend, 1932, p.27).

Com o intuito de comprovar a legitimidade dos princípios cristãos em conduzir a sociedade à democracia, os autores destacavam a Igreja como uma instituição educativa que, apesar de seus preceitos tradicionais, não desconsiderava todos os avanços científicos elaborados por teorias modernas. Pelo contrário, os autores se empenhavam em apresentá-la como um domínio filosófico e educativo que, ao longo de sua existência, soube diferenciar e valorizar mudanças e resultados que estivessem de acordo com a verdadeira natureza humana. Para os católicos, algumas idéias do movimento escolanovista sob o rótulo de modernas não passavam, pois, de noções católicas antigas, que apenas esperavam condições favoráveis para passarem ao domínio da aplicação (Moraes, 1930).

Considerações Finais

Os conceitos de Bourdieu (1974) buscam elucidar "as leis segundo as quais as estruturas tendem a se reproduzir", produzindo agentes dotados de sistema de disposições capaz de "engendrar práticas adaptadas às estruturas, e portanto, em condições de reproduzir as estruturas dominantes" (p. 296).

Ao aplicar esses conceitos à análise do discurso educacional católico, busca-se elucidar o sentido das estratégias discursivas pelas quais os católicos recontextualizaram as concepções escolanovistas e deweyanas. Seu objetivo maior era o de se legitimar perante seus membros e a sociedade, de modo que estes não abandonassem os princípios da Igreja.

De acordo com Bourdieu (1998a), a análise do discurso deve levar em consideração o poder que este possui, isto é, deve-se relacionar a linguagem às condições sociais de sua produção e de sua utilização, "procurando fora das palavras", nos mecanismos que as produzem e que as pessoas emitem e recebem, "os princípios de um poder que uma certa maneira de utilizar as palavras permite mobilizar". A redação nada mais é do que uma das condições de eficácia do poder simbólico e uma condição que só se opera sob certas condições: "prega-se somente aos convertidos". O poder dos eufemismos só é absoluto quando se exerce sobre "agentes assim selecionados de modo que suas condições sociais de produção o predisponham a reconhecê-lo absolutamente" , (p.199-200) .

A especificidade do discurso de autoridade não reside no fato de sua plena compreensão pelos ouvintes; em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido e, mesmo assim, ter o seu poder mantido (Bourdieu, 1998b). Não necessariamente o discurso proclamado pelos católicos precisava ser decifrado para ser aceito, bastando que, no mesmo discurso crítico às concepções escolanovistas e deweyanas, existissem princípios que fossem conhecidos e/ou reconhecidos pelo público alvo em questão. No caso, tratava-se dos princípios educacionais cristãos, implicitamente mencionados.

Segundo a perspectiva sociológica de Bourdieu (1998a), para um discurso ser aceito e incorporado basta que ele vá ao encontro do habitus de quem o recebe. O interesse que um ouvinte pode ter por uma mensagem, qualquer seja ela, "e, mais ainda, a compreensão que dela venha ter, são, direta e estritamente, função de sua cultura, de sua educação e de seu meio cultural" (p. 62). As práticas são o resultado do encontro entre um agente predisposto e prevenido, "em mundo presumido, isto é, pressentido e julgado, o único que lhe é dado a conhecer" (p.111).

Nessa perspectiva, pode-se considerar o discurso católico como um efetivo mecanismo de manutenção do poder, pois era proclamado de modo a ser incorporado e conservado pelos seus agentes. A linguagem, assim, consistiria num instrumento de dominação. Uma pessoa sendo dominada por outra, devido a não conhecer os códigos de poder, e por ora reconhecer-se no perfil de quem os proclama, o que deriva da afirmação de bens simbólicos familiares. E é essa relação, entre o que se conhece e o que não se conhece, que permite que seja elaborado o que se quer conhecer sobre o desconhecido.

Estudos sobre o processo de apropriação e transformação de significados por que passam certos paradigmas filosóficos e científicos na elaboração do discurso pedagógico sugerem que uma característica do pensamento educacional seja fazer a realocação de conteúdos tendo em vista finalidades políticas. Esse processo, aqui denominado recontextualização (Cunha, 1999), parece explicar as relações dos intelectuais católicos com o ideário da Escola Nova.

Ao empreender estratégias discursivas, o objetivo do grupo católico foi o de estruturar ou reestruturar o habitus do professorado, garantindo a existência de agentes dotados de disposições adequadas para a permanência do grupo no terreno da disputa pela dominação política e filosófica da educação. E isso foi possível porque o discurso, ao mesmo tempo em que recontextualizava as concepções deweyanas e escolanovistas, era permeado de concepções e percepções capazes de serem identificadas pelo público alvo.

Por essa razão, a maneira como os católicos recontextualizaram as concepções de John Dewey e da Escola Nova pode ser considerada uma maneira estratégica de garantir um professorado católico afastado das concepções escolanovistas, não sendo assim difícil que a Igreja fosse vista como a instituição mais adequada, e por ora a mais moderna, para conduzir o campo político e filosófico da educação.

Artigo recebido em 26/10/2005 e aceito para publicação em 11/04/2006.

Apoio CAPES

Este trabalho, anteriormente apresentado na 27ª Reunião Anual da ANPEd em novembro de 2004/ Caxambu - MG.

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  • Endereço para correspondência:

    Viviane Costa
    Av. Altino Correa Almeida, 490
    CEP: 14801-080 Araraquara - SP
    E-mail:
  • 1
    Sobre o Manifesto (AZEVEDO et al, 1932) ver as avaliações contidas no livro organizado por Maria do Carmo Xavier (2004).
  • 2
    Ainda no Império, a apresentação dos
    Pareceres de Rui Barbosa já dera margem a divergências (Valdemarin, 2000).
  • 3
    Toledo (2001), em sua análise das publicações efetivadas pela editora Companhia Nacional no período em questão, salienta que os católicos procuravam controlar a leitura do professorado cristão, publicando sistematicamente resenhas, comentários, artigos sobre a bibliografia pedagógica difundida entre os educadores e a comunidade escolar em geral.
  • 4
    Segundo os estudos de Silva (2002), John Dewey foi o autor mais citado nos manuais pedagógicos publicados entre 1930 e 1971.
  • 5
    O fato de John Dewey buscar conduzir a educação por meio de finalidades sociais dava margem a que os católicos identificassem suas idéias com o comunismo, identificação agravada pelo fato de a União Soviética ter simpatizado com sua filosofia educacional em certa época (Cunha & Costa, 2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Recebido
      26 Out 2005
    • Aceito
      11 Abr 2006
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