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Piketty e as desigualdades no capitalismo: colocando alguns pingos nos is na análise de “O capital no século XXI”

Piketty and the inequalities in capitalism: an analysis of “Capital in the 21st century”

Resumo

Este trabalho faz uma análise do livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI, de 2013, sobre a questão da desigualdade no capitalismo. Para tanto, ele é desenvolvido em três seções. Na primeira, apresenta as principais ideias do autor sobre a evolução da desigualdade desde o século XIX, bem como sobre as causas que têm provocado seu aumento no mundo a partir da década de 1970, assim como sua proposta de criação de um imposto anual progressivo incidente sobre o capital para reverter essa tendência. Na segunda, busca-se fazer uma interpretação teórica alternativa à de Piketty, à luz das transformações conhecidas pelo capitalismo e das mudanças ocorridas no pensamento econômico a partir dessa época, sobre as causas deste aumento das desigualdades. Na terceira, tecem-se comentários sobre novidades que seu estudo apresenta na análise que realiza, bem como sobre suas deficiências para melhor compreensão dessa questão.

Palavras-chave:
Estado do bem-estar, Capital; Distribuição da renda e da riqueza, Tributação

Abstract

This paper analyzes the book Capital in the 21st century, written by Thomas Piketty in 2013, on the issue of inequality in capitalism. To do so, it is divided into three sections. In the first, it presents the author’s main ideas on the evolution of inequality since the nineteenth century, and on the causes of its increase in the world from 1970 onwards, as well as its proposal to create a progressive annual tax on capital to reverse this trend. In the second section, it seeks to make an alternative theoretical interpretation to that of Piketty, in light of the transformations in capitalism and the changes that occurred in economic thought from that time on the causes of this increase in inequality. In the third, contributions of the study in terms of the analysis performed are discussed, as well as its limitations that prevent a better understanding of this issue.

Keywords:
Welfare state; Capital; Income and wealth distribution; Taxation

1 Introdução

Saudada até mesmo por um prêmio Nobel de economia, Paul Krugman, como uma obra que mudaria a maneira de se pensar a sociedade e pela qual concebemos a economia (Krugman, 2014KRUGMAN, Paul. Livro “O capital no século XXI” revoluciona ideias sobre a desigualdade. New York Times, 26 abr. 2014.), o livro de Thomas Piketty, de 2013, O capital no século XXI, publicado no Brasil, em 2014, ganhou grande notoriedade e importância por recolocar o debate sobre a questão da desigualdade no capitalismo, que andava meio adormecido, mas, nem por isso, se encontra imune de controvérsias.

O livro conta com uma Introdução e se encontra distribuído em quatro partes. Na Introdução é apresentado o plano geral da obra e antecipado, em linhas gerais, o exame de algumas forças que provocam convergência e divergência na estrutura da distribuição de renda. Na primeira parte, discutem-se os conceitos de renda e de capital e são apresentadas as etapas do crescimento da produção e da renda desde a Revolução Industrial do século XIX, variáveis que têm centralidade em sua tese sobre a desigualdade ou, em síntese, definido o marco teórico no qual se apoiará o estudo. Na segunda, é feita uma discussão sobre a evolução do estoque de capital e sobre a dinâmica da relação capital/renda (C/Y) e como essa determina a distribuição entre o capital acumulado, no conceito que utiliza, e o trabalho. Na terceira, analisa a distribuição dentro dos polos do capital e trabalho, bem como a influência de cada um sobre a desigualdade total. Na quarta e última parte, apresenta uma proposta de cobrança de um imposto progressivo incidente sobre o capital, complementar aos impostos cobrados sobre as rendas e as heranças, como forma de deter ou reverter o avanço da desigualdade que, a partir da década de 1970, voltou progressivamente a aumentar.

1.1 A explicação teórica de Piketty para o aumento das desigualdades entre o capital e o trabalho

Na Introdução, Piketty começa constatando que, depois de um longo período em que as desigualdades no capitalismo conheceram uma forte queda entre 1914 e 1950, o que levou os arautos do sistema a construir várias teorias e modelos para decantar suas virtudes1 1 Ver a este respeito os trabalhos de Kuznets (1955) e de Solow (1956). , as mesmas teriam retomado sua trajetória de crescimento a partir da década de 1950 e se acelerado desde a de 1970, principalmente nos Estados Unidos, “onde a concentração de renda na primeira década do século XXI voltou a atingir - e até excedeu - o nível recorde visto nos anos de 1910-1920” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 22).

Para Piketty, a queda da desigualdade da renda nos países desenvolvidos entre 1914-1950 explica-se, sobretudo, pelas duas grandes guerras mundiais e pelos violentos choques econômicos e políticos que delas resultaram, queimando parte da riqueza acumulada devido principalmente às crises econômicas e à deflação nos preços dos ativos em geral, mudando a equação da distribuição de renda em prol dos não-proprietários do capital, já que diminuiu sua concentração e, consequentemente, a capacidade de apropriação da renda gerada pelos donos da riqueza (2014, p. 27).

Passado este período de crises, o capital teria retomado sua trajetória de expansão, mas com velocidades distintas em dois subperíodos. No primeiro, entre 1950 e 1970, de forma mais moderada, com a mesma sendo contida por uma maior taxa de crescimento econômico registrada no pós-guerra e por políticas do Estado de cunho mais redistributivo, que nasceram dos infortúnios causados pela Grande Depressão da década de 1930 e pela devastação provocada pela guerra, especialmente nos países nela envolvidos (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 27).

A partir de 1970, no entanto, quando os efeitos provocados pela inflação sobre a economia e sobre a riqueza acumulada deslocaram a preocupação dos economistas do objetivo de criação de emprego para o de garantir a estabilidade monetária, juntamente com as várias transformações conhecidas pelo sistema capitalista nas décadas seguintes - globalização e financeirização da economia, avanço de novas tecnologias produtivas com a Terceira e Quarta Revolução Industrial -, as desigualdades deram um novo salto, praticamente retornando - e até mesmo excedendo - a situação vigente antes da Primeira Guerra Mundial2 2 Piketty não percorre necessariamente este roteiro na análise, embora alguns flashes dessa trajetória apareçam em seu trabalho, por não investigar mais profundamente nem as mudanças mais importantes ocorridas no pensamento econômico com a crise do paradigma keynesiano, nem o conteúdo das novas políticas econômicas surgidas com a hegemonia do pensamento neoliberal. Em algumas passagens de seu livro até menciona ligeiramente o consenso que se formou a partir da década de 1970 de se contar com uma inflação baixa para garantir a estabilidade macroeconômica (p. 135) e também os movimentos de liberalização e desregulamentação dos mercados (p. 139), assim como o processo de financeirização da economia em vários momentos, mas não procura organizá-los para explicar sua influência sobre o aumento das desigualdades e o crescimento do estoque de capital, no conceito que emprega. Nas deficiências que apontamos em seu trabalho sobre essas questões, especialmente na segunda e terceira partes deste estudo, procuramos apresentar, de forma mais organizada, como as mesmas se articularam e afetaram a desigualdade, principal objeto de seu estudo. .

Relacionando o estoque de capital existente num determinado país (C), independentemente de ser privado ou público, um conceito bastante elástico na análise que realiza, que não se restringe aos elementos materiais necessários ao processo produtivo, mas que inclui imóveis em geral, terras agrícolas, ativos corporativos e financeiros, etc., desde que sejam propriedade de alguém e este possa vendê-los no mercado, com o fluxo de renda anual que nele é gerada (Y), relação que denomina β, ou seja, β=C/Y, Piketty, estabelece, na primeira parte do trabalho, a participação da riqueza existente na mesma, por meio da fórmula α=r x β, que considera a primeira lei fundamental do capitalismo, onde r é a taxa de remuneração média do capital (2014, p. 57-58). Mas é bom chamar a atenção para o fato de Piketty considerar ser essa lei “[...] uma identidade contábil, sempre válida por construção” e de apenas espelhar “[...] a participação do capital na renda nacional” (2014, p. 167), o que a torna insuficiente para seu propósito teórico de explicar as causas do aumento da desigualdade.

Assim, de acordo com o exemplo que apresenta, se r=5% e β=600% (correspondente, portanto, a 6 vezes o fluxo de renda), então a participação do capital na renda gerada é igual a 30% (5% x 600%), cabendo 70% aos rendimentos do trabalho. Isso significa que, se mantida a mesma taxa de retorno de 5% para o capital, no caso de seu estoque aumentar, digamos, para 8 vezes o fluxo da renda, sua participação na mesma deve aumentar para 40% (800% x 5%), enquanto a do trabalho será reduzida para 60%. Já no caso de redução do estoque de capital para 4 vezes a renda, a participação do capital cairá para 20% (400% x 5%), cabendo ao trabalho 80%. E a condição para esse aumento da participação do capital na renda é a de que r (a taxa de retorno do capital) seja superior à taxa de crescimento da economia (g), ou seja, de que r>g, para ele uma realidade histórica do sistema.

Cabe chamar a atenção para o fato de que Pìketty, nessa formulação, comete, de saída, um erro fundamental do ponto de vista teórico ao confundir ou tomar como igual o conceito que na literatura econômica é considerado como capital com o de riqueza ou patrimônio, nas diversas formas que essa assume, e que inclui até mesmo propriedades públicas e religiosas. Como ele diz a este respeito (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 53): “[...] usaremos as palavras ‘capital’, ‘riqueza’ e ‘patrimônio’ de forma intercambiável, como se fossem sinônimos perfeitos”.

Ora, ao não fazer a distinção entre o capital capaz de efetivamente criar e/ou efetivamente contribuir para a expansão da riqueza real e o que dela apenas se apropria, ou entre o capital produtivo, útil para a sociedade e para o emprego, e as aves de rapina que a consomem, Piketty cria, ele próprio, dificuldades para compreender as transformações do capitalismo e também as principais causas do aumento das desigualdades a partir da década de 1970, assim como por que g se dissocia de r, com essa tendendo a crescer no tempo. Sem separar o joio do trigo para analisar e compreender, de fato, a essência do capital empobrece sua teoria, bem como a explicação dos fatores responsáveis pelo aumento da desigualdade na etapa atual de desenvolvimento do sistema capitalista.

Como falar de criação de riqueza de igrejas e prédios públicos ou de um capital financeiro fictício que, apesar de conseguir ser remunerado, apropriando de parte da renda gerada, em nada contribui para a produção real? A taxa de retorno do capital (r) que emprega torna-se imprecisa, não decorrente da relação capital/trabalho, entendida em seu sentido econômico e, por isso, sem conseguir explicar teoricamente como e por que é superior a g, já que não passa de um fato histórico derivado da relação capital/renda (C/Y), no conceito com que opera, no qual se mesclam fatores produtivos com estéreis e o impede de discernir os que efetivamente contribuem para a geração da renda dos que dela apenas se apropriam.

Enquanto entre os ativos que inclui neste seu conceito elástico de capital, apenas os bens requeridos para a produção - os elementos materiais do processo produtivo - contribuem para o crescimento econômico, os demais são estéreis para este objetivo, incluindo o capital financeiro na sua feição fictícia de alavancar artificialmente os níveis de riqueza, mas sem contribuir efetivamente para sua expansão real3 3 Uma lúcida e esclarecedora análise do capital fictício se encontra em Marx (1974, Livro III) e também em Carcanholo e Nakatani (1999). .

Com isso, sua proposta de criar um novo marco teórico para investigar a questão da desigualdade representa, na verdade, até mesmo um retrocesso em relação à escola neoclássica que, apesar de tratar o capital como uma massa gelatinosa, restringe-o aos elementos da produção, ao mesmo tempo que torna vazias, sem sentido, as críticas que endereça para as distintas escolas de economia, inclusive a marxista, considerando as diferenças existentes sobre sua concepção de capital com as das demais. Para Harvey (2014HARVEY, David. Reflexões sobre ‘O Capital’ de Thomas Piketty. Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/24/harvey-reflexoes-sobre-o-capital-de-thomas-piketty.
http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/24/...
, apud Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 686), “a conclusão a que chega Piketty de que o capitalismo tende a aumentar a desigualdade entre o capital e o trabalho não é por ele explicada” A lei que leva a isso r>g, simplesmente diz isso. E, “a lei é a lei”.

Essa concepção particular do capital de Piketty traz implicações para a primeira lei fundamental do capitalismo que está representada na equação α=r x β, que associa a participação do capital (α) na renda nacional, como sendo função de seu estoque neste conceito elástico (β) com a sua taxa de remuneração (r). De acordo com as críticas feitas a essa sua visão, Piketty realizou uma inversão da equação da taxa de lucro (r), dada pela relação r=α/β, sendo α a massa de lucro e β a composição do capital e, com isso, retirou da lei todo o conteúdo social e histórico presentes nas relações sociais de produção, tomando r apenas como um fato histórico, presente no longo prazo, naturalizando-a (Husson, 2014HUSSON, Michel. Le capital au XXIc Siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Con-tretemps, 2014. Disponível em: http://contretemps.eu/interventions/capital-xxi-si%C3%A8cle-richesse-donn%C3%A9es-pauvret%C3%A9-th%C3%A9ori.
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apud Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 687). Como coloca Boyer (2013BOYER, Robert. Le capital au XXIc siècle. Revue de la Regulation, n. 14, Zème semestre 2013. Disponível em: http://regulation.revues.org/10352.
http://regulation.revues.org/10352...
), citado por Marques e Leite (2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 687) essa equação supõe que a participação do lucro na renda é dada pela relação capital/renda, como Piketty repisa não poucas vezes no seu trabalho, e não como resultado do conflito existente entre o capital e o trabalho. Para ele, isso significaria adotar a hipótese de dominação da renda em relação ao conflito distributivo capital/trabalho e à partilha do valor adicionado (Husson, 2014HUSSON, Michel. Le capital au XXIc Siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Con-tretemps, 2014. Disponível em: http://contretemps.eu/interventions/capital-xxi-si%C3%A8cle-richesse-donn%C3%A9es-pauvret%C3%A9-th%C3%A9ori.
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apud Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 688)4 4 Para um balanço de algumas críticas feitas ao trabalho de Piketty na perspectiva marxista, ver Marques e Leite (2016). .

Como diz Husson (2014HUSSON, Michel. Le capital au XXIc Siecle. Richesse des données, pauvreté de la theorie. Con-tretemps, 2014. Disponível em: http://contretemps.eu/interventions/capital-xxi-si%C3%A8cle-richesse-donn%C3%A9es-pauvret%C3%A9-th%C3%A9ori.
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), citado por Marques e Leite (2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 686), há uma “pobreza” ou falta de teoria no livro de Piketty. Ao inverter a relação, o que diz a lei fundamental? Nada. Pois nela o lucro depende da evolução da taxa de lucro e da relação capital/renda. Mas, pergunta Husson: como definir a taxa de rendimento do capital senão comparando o lucro ao capital empregado? Arrisca-se a andar em círculos: se r se calcula a partir de α, não se pode calcular α a partir de r, e menos ainda extrair daí uma lei do capitalismo. A consequência disso, para ele, é “naturalizar r>g (Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 687).

Vista dessa maneira, não se pode falar que seja propriamente uma lei tal como ele a denomina, pois não há nada que a determine, diferentemente das escolas de pensamento que critica. Existe apenas a sua convicção de que o capital, ou a riqueza tal como ele o concebe, em suas diversas formas, tem direito a uma remuneração, independentemente de se tratar de habitações, propriedades religiosas e públicas, bens de capital, capital financeiro em todos os sentidos, enfim do patrimônio em geral, que lhes garante apropriar-se de uma parcela do fluxo de renda gerada.

Se Piketty teve a pretensão de criar uma teoria inovadora para explicar as desigualdades no capitalismo, não foi bem-sucedido neste propósito, porque em seu modelo faltam os encadeamentos lógicos dos fatores intervenientes neste processo, as relações estabelecidas entre o capital e o trabalho para entender e explicar este fenômeno e o mecanismo que garante sua reprodução e ampliação no tempo (Boyer, 2013BOYER, Robert. Le capital au XXIc siècle. Revue de la Regulation, n. 14, Zème semestre 2013. Disponível em: http://regulation.revues.org/10352.
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, p. 8, apud Marques; Leite, 2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. , p. 686). Ao mesmo tempo, ao tomar r como a taxa de retorno deste capital (riqueza, na verdade), sem diferenciar sua composição entre ativos produtivos e estéreis, incapacita-se até mesmo em obter elementos para avaliar as relações existentes entre a mesma e a taxa de crescimento (g), por incluir no primeiro ativos completamente improdutivos que podem até elevar a relação capital/renda (β), mas nada agregar à produção real. Uma r elevada, por exemplo, pode não ter nenhuma influência sobre o crescimento econômico, à medida que resultante de um aumento da riqueza (ou do capital, como ele a trata) decorrente de uma expansão artificial de capital fictício (riqueza financeira), ou do patrimônio, que em nada contribuirá para a expansão real da economia.

Isso não significa que o trabalho de Piketty deixe de ter importância para o objetivo que se propõe de investigar a evolução da questão da desigualdade no capitalismo ao longo de mais de três séculos - do XVIII ao XXI -, bem como sua situação e tendências na atualidade. A riqueza das informações sobre a distribuição e concent-o da riqueza em vários países desenvolvidos - Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Suécia, entre outros - representa uma importante contribuição para o conhecimento dessa questão e fornece elementos altamente relevantes para sua avaliação. Significa, sim, que se deve ter cautela e cuidado para não tomar o seu marco teórico como um novo approach para a análise dessa questão, dada a confusão que faz entre capital e riqueza, o que prejudica algumas análises que realiza5 5 O próprio Piketty (2014, p. 39) sintetiza o que considera sua contribuição relevante para o assunto: “[...] meu trabalho consiste, antes de tudo, em juntar fontes e mostrar séries históricas sobre a distribuição de renda e a riqueza”. . E ainda que se deve procurar, mesmo orientando-se por seu modelo, contemplar as implicações que essa riqueza acarreta para a distribuição, bem como as recomendações que sugere para sua redução, que não se distanciam da visão de algumas escolas e economistas sobre o tema. É o que se procura fazer em seguida, não se podendo esquecer, contudo, que, sempre e quando nos referirmos ao conceito de capital de Piketty, estamos nos referindo, na verdade, à riqueza em geral.

Considerando, portanto, de acordo com sua análise, que, se o estoque de capital (ou da riqueza), cujas principais formas mudam e variam de importância historicamente, determina a participação de seus proprietários na renda, dados os fluxos que gera na forma de aluguéis, lucros corporativos, juros, ganhos de capital, etc., é fundamental, nessa investigação, identificar os fatores que influenciam ou determinam β, ou seja, a relação capital/renda, considerando que o comportamento de ambas variáveis afetam a distribuição de renda.

Para isso, Piketty apresenta a equação β=s/g, que chama de segunda lei fundamental do capitalismo, onde s corresponde à taxa de poupança da comunidade e g à taxa de crescimento da economia. Quanto maior s, maior o ritmo de crescimento de β, que, no entanto, poderá ser compensado ou até mais do que compensado pelo crescimento do produto (g). Mas, se o produto (g) crescer pouco ou mesmo não crescer em relação a s, então β inevitavelmente aumentará, piorando progressivamente a distribuição de renda. Como ele afirma: “uma sociedade que poupa muito e cresce pouco, acumula, no longo prazo, um enorme estoque de capital [e] em uma sociedade que enfrenta uma quase estagnação, a riqueza acumulada ganha uma importância desmedida”. Concluindo que “se a relação capital/renda está aumentando, isso significa um retorno a um regime de baixo crescimento. [Por ser] a queda do crescimento que conduz ao retorno do capital” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 165).

Embora faça uma longa discussão sobre as forças que contribuem para garantir uma melhor distribuição de renda, caso da difusão do conhecimento com consequente aumento da produtividade (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 27-29; 75) e das forças que operam em sentido contrário, Piketty dá destaque, entre as últimas, ao comportamento de r, ou seja, da taxa de remuneração do capital, em relação a g, a taxa de crescimento do produto. Para ele, “quando a taxa de remuneração do capital excede substancialmente a taxa de crescimento da economia [ou seja, r>g), então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que a renda e a produção” (2014, p. 33), atuando como fator de aumento das desigualdades. Não é difícil entender a razão disso pelas razões já expostas: dada a maior poupança propiciada por uma mais expressiva remuneração do capital aos seus detentores, seu estoque só tenderá a aumentar de forma mais rápida que o fluxo de renda, diante, inclusive, da menor propensão ao consumo de seus proprietários, acentuando as desigualdades ao aumentar sua participação na renda. Devido, no entanto, à imprecisão, como visto, na determinação de r, seu esquema não consegue explicar teoricamente como e porque ela é superior a g.

Parece claro que nenhum dos extremos da fórmula será atingido porque, supondo a acumulação infinita, uma condição que equivocadamente ele atribui a Marx, o aumento exagerado da relação capital/renda (β) terminaria levando o capital a se apropriar de todo o fluxo de renda, para o que teria de prescindir do trabalho, enquanto, ao contrário, a redução da taxa de remuneração do capital para 0%, com o fluxo de renda sendo apropriado inteiramente pelo trabalho, retiraria a motivação de existência do capital, interrompendo o processo de acumulação. Existiria, no entanto, entre estes extremos, vários pontos possíveis de serem alcançados e que expressariam os níveis de maior ou menor igualdade ou de desigualdade na distribuição de renda numa dada sociedade. Como diz Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 223), “[...] se a taxa g é baixa e se aproxima de zero, a relação capital/renda de longo prazo, β, tende ao infinito. E, com uma relação capital/renda infinitamente elevada, o rendimento do capital deve necessariamente se reduzir até chegar perto de zero, o que fará com que a participação do capital α=r x β devore a totalidade da renda nacional”.

Piketty dedica um bom espaço em seu trabalho para discutir, diante disso, como se determina r. Demonstra, com clareza, que os ativos de diversas naturezas que compõem o capital (a riqueza) recebem diferentes remunerações - as pequenas aplicações bancárias em conta corrente, os aluguéis, os lucros das empresas, os juros -, alguns com remuneração inclusive negativa em termos reais, como os pequenos depósitos em bancos e as cadernetas de poupança, sendo também essa remuneração influenciada por problemas conjunturais, crises econômicas ou por outros eventos que provocam mudanças em seus preços. Importante, para ele, diante disso, é identificar a rentabilidade média de seu conjunto (2014, p. 204).

Para isso faz um mergulho na história para avaliar a evolução dessa remuneração, analisando o rendimento da dívida pública e das terras públicas em períodos anteriores, situando a mesma em torno de 4 a 5% e examina as teorias econômicas que procuraram avaliá-la pela produtividade marginal do capital (escola neoclássica), mas não chega a uma conclusão satisfatória sobre essa questão por estar trabalhando, na verdade, com outro conceito e sem contar com um marco teórico consistente, como visto. De qualquer maneira, essa parece ser uma questão irrelevante na lógica de sua argumentação, desde que se considere a hipótese de ser r>0, pois caso contrário o capital perderia qualquer motivação para sua existência, e a de que o aumento de β cresça provocando divergência na distribuição. Mas uma de suas conclusões, nessa análise de que “o excesso de capital mata o capital [porque] sua produtividade marginal diminui à medida que seu estoque aumenta” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 211), é importante para a trajetória que traça sobre a evolução da relação capital/renda (β) e da remuneração do capital no tempo.

Embora faça também uma longa discussão, apresentando estatísticas sobre essas variáveis para os principais países desenvolvidos (França, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, por exemplo) na evolução do capitalismo, as conclusões de Piketty podem ser resumidas, para nossos propósitos, em quatro grandes períodos: 1) nos séculos XVIII e XIX até o início do século XX, a relação capital/renda tendeu a aumentar, ampliando as desigualdades, mas com r tendendo a cair; 2) no período que se seguiu de 1913 a 1950, registrou-se uma queda expressiva de β, com as desigualdades diminuindo, mas r tendeu a aumentar; 3) de 1950 a 1970, β retomou moderadamente seu crescimento, provocando efeitos mais modestos sobre o aumento do nível de desigualdade e de r; 4) a partir de 1970 até os dias atuais, a velocidade de crescimento de β se acelerou, acentuando o aumento das desigualdades, mas com r em trajetória declinante. Como ele afirma a respeito dessa questão: “[...] a remuneração do capital é mais alta nos períodos em que a quantidade β é mais baixa, e vice-versa, o que parece natural” (2014, p. 196).

Até a segunda parte, o estudo de Piketty pode ser resumido da seguinte maneira: 1) por contribuir, independentemente da forma que assume, para a geração de fluxos de renda, o capital adquire o direito de se apropriar de uma parcela da mesma; 2) essa participação, por sua vez, depende: a) do montante do capital que é aportado na geração deste fluxo de renda; b) da taxa de remuneração do capital; 3) à medida que a relação capital/renda, β, se eleva no tempo, tende a aumentar a participação do capital neste fluxo, reduzindo a participação do trabalho e piorando a distribuição de renda, o mesmo ocorrendo em sentido contrário, caso β diminua; 4) β, por sua vez, é influenciada pela taxa de poupança (s) e pela taxa de crescimento da economia (g); 5) taxas elevadas de poupança conjugadas com baixas taxas de crescimento aumentam β, enquanto taxas menores de poupanças com taxas mais robustas de crescimento a reduzem, sendo benéfico para a diminuição das desigualdades.

Para nossos propósitos, a conclusão mais importante a retirar de seu trabalho, pelo menos até essa segunda parte, é a relevância por ele atribuída ao crescimento econômico para diminuir as desigualdades e permitir a reprodução do sistema com menos conflitos sociais e maior harmonia social.

1.2 As desigualdades dentro dos polos do capital e do trabalho

Na terceira parte do livro, Piketty se dedica a investigar a estrutura da desigualdade e a sua evolução ao longo dos séculos, à luz não somente do polo capital/trabalho, como analisado na segunda parte, mas também no interior de cada um destes polos, ou seja, a desigualdade existente dentro do capital e dentro do trabalho, visando colher melhores elementos para identificar os determinantes da desigualdade total.

Geralmente, de acordo com as estatísticas que apresenta, o capital se apropria de algo em torno de 1/4 a 1/3 do fluxo de renda gerada, cabendo o restante ao trabalho, ou seja, entre 3/4 e 2/3 (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 250). Isso não significa que esse fluxo de renda seja distribuído uniformemente entre os proprietários, de um lado, e os trabalhadores, de outro, porque essa distribuição irá depender, no caso dos detentores do capital, do tamanho, qualidade e do setor em que se insere, que determinam seu grau de lucratividade; do lado do trabalho, do seu nível de qualificação, do setor econômico em que opera (indústria, setor serviços, com maior ou menor produtividade, valor agregado, etc.) e também de sua organização em sindicatos e órgãos representativos do trabalho. Essa diferenciação de fatores indica haver desigualdade na distribuição dos rendimentos dentro de cada um destes polos que afeta a desigualdade total.

Para medir essas desigualdades, Piketty lança mão do método da estatística descritiva básica da participação dos décimos, centésimos e milésimos da população na apropriação do fluxo de renda, tanto na parte que cabe aos proprietários como na dos trabalhadores, em função do tamanho do patrimônio e do nível dos salários (2014, p. 247-250), considerando que este método retrata melhor essa realidade, sendo superior aos indicadores sintéticos que procuram mensurá-las, como o Índice de Gini, por exemplo, ao mesmo tempo que facilita a comparação das estruturas da desigualdade em períodos bem distintos no tempo (p. 260-261). Conclui, com a apresentação de abundantes estatísticas que atravessam os séculos analisados, ser a desigualdade mais forte dentro do polo do capital do que na do trabalho, ou seja, de que os grandes patrimônios tendem a se apropriar bem mais expressivamente das rendas obtidas pelo capital vis-à-vis os pequenos e médios, às vezes com os 10% da população detendo 90% do patrimônio total e os 1% cerca de 50%, do que os maiores salários em relação aos demais, ambos contribuindo, no entanto, para a desigualdade total.

Piketty faz uma longa análise avaliando a importância das riquezas herdadas (heranças) na geração dos rendimentos do capital, que seriam a expressão de uma “sociedade de rentistas” e que foi predominante até a Primeira Guerra Mundial e como essa realidade foi se transformando após os choques de 1914-1945, bem como os fatores que impediram que a concentração do patrimônio retornasse aos níveis existentes antes dessa guerra e reconstituísse essa sociedade (a dos rentistas), tal como existia anteriormente. Entre os fatores que discute deve-se destacar, de um lado, a inflação que teria queimado parcela considerável da dívida pública, reduzindo o paraíso dos rentistas, as “bolhas” que se formaram na economia, destruindo parte da riqueza financeira, e, de outro, o arcabouço fiscal progressivo incidente sobre as rendas, as riquezas e as heranças que, inexistente no século XIX e até 1920, ganharia extrema importância, de forma permanente, a partir das propostas keynesianas e da emergência do Estado do bem-estar (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 272).

Se isso representou um golpe para as riquezas herdadas, aparentemente reduzindo o poder dos mortos sobre a geração de rendas futuras para o capital, não significa que os maiores patrimônios formados de diversas maneiras tenham sido significativamente afetados, mas apenas que sua posse e a composição de seus proprietários conheceram uma mudança qualitativa nas transformações conhecidas pelo capitalismo a partir dessa época. Um movimento em geral que ocorre especialmente a partir da década de 1970, pôs em marcha a formação de uma “sociedade de executivos” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 270-272), com o aumento exagerado dos salários dos altos executivos de empresas, especialmente, mas não somente nos Estados Unidos, não explicado pela sua “produtividade marginal”, nem pelo nível educacional, ampliando as desigualdades no polo do trabalho. Isso, levaria à criação, segundo ele, de uma “classe média patrimonial”, após os choques de 1914-1945, à medida que estes grupos de trabalhadores mais especializados passaram a ter condições de aumentar sua poupança e aumentar sua participação no estoque de capital, passando a deter cerca de 1/3 da riqueza nacional e a integrar o grupo dos 40% intermediários na hierarquia das fortunas (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 338).

Piketty detecta este fenômeno de ascensão dos supersalários dos executivos, mas descarta de sua explicação tanto a produtividade marginal do trabalho quanto o nível de educação na sua determinação. Considera ser um fenômeno mais tipicamente dos Estados Unidos, ou anglo-saxão, embora não restrito a este conjunto de países e quantifica-o para vários deles com uma profusão de dados, visando demonstrar sua influência no aumento das desigualdades, especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980. Mas, depois de anunciar várias vezes ao longo de sua exposição sobre a evolução dos rendimentos do trabalho em diversos períodos (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 297-327) que apresentará sua explicação, contenta-se em atribuí-la a normas sociais vigentes no capitalismo contemporâneo “[...] que dependem do sistema de crenças em relação à contribuição de cada um na produção da empresa e no crescimento do país” (p. 324). Como se trata de temas que envolvem muitas incertezas e que, por isso, considerando os argumentos que apresenta, demandam o conhecimento de especialistas, os superexecutivos, a sociedade teria se tornado mais tolerante às remunerações altíssimas destes grupos, a partir dos anos 1970-1980 (inicialmente nos Estados Unidos e Reino Unido e, posteriormente, na Europa e no Japão (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 324)). Atribuir às normas sociais a explicação deste fenômeno significa, na verdade, renunciar a uma explicação que o vincule às necessidades do capital na etapa atual de desenvolvimento do sistema capitalista.

Duménil e Lévy (2007DUMÉNIL, Gerárd; LÉVY, Dominique. The crisis of neoliberalism. Massachusetts: Harvard University Press, 2011. 391p.; 2011DUMÉNIL, Gerárd; LÉVY, Dominique. Neoliberalismo - Neoimperialismo. Economia e Sociedade. Campinas, v. 16, n. 1 (29), p. 1-19, abr. 2007. ), numa perspectiva marxista, dão outra explicação para essa questão. Para eles, o fenômeno dos altos salários dos executivos deve ser entendido no contexto da atual etapa de desenvolvimento do capitalismo, onde uma nova ordem social, o neoliberalismo, passou a predominar a partir dos anos 1970, sob a hegemonia norte-americana, quando o capital em geral e as camadas de mais alta renda se uniram para recuperar o espaço anterior que tinham no sistema de obtenção de maiores lucros, prejudicados pelo compromisso firmado no pós-guerra, no embalo das políticas keynesianas, de maior solidariedade.

Para isso, aliaram-se a uma classe de administradores profissionais, integrantes da classe trabalhadora, mas que dela se diferenciam por seus conhecimentos sobre os negócios do capital, sendo sua função a de gerir o empreendimento capitalista e garantir a obtenção dos maiores ganhos possíveis, independentemente de onde os seus recursos sejam aplicados. Embora essa classe gerencial de trabalhadores não constitua uma novidade no capitalismo desde a emergência da grande empresa e a difusão das sociedades por ações no final do século XIX, que terminaram levando à substituição da posse direta dos meios de produção pelo capitalista pelo seu controle, por meio de títulos financeiros, em particular por ações das empresas, essa fração da classe trabalhadora, chamada “classe gerencial”, passou a ocupar um lugar privilegiado no sistema, destacando-se do que eles chamam de “classe popular” (o restante dos trabalhadores), mas com seu papel se acentuando no atual processo de globalização e de financeirização da economia.

Isso porque, como a ordem que emana deste pensamento é a da busca incessante por rendimentos elevados, ao contrário do que teria ocorrido na vigência do compromisso firmado no pós-guerra da busca pelo crescimento econômico e a criação de emprego, combinados com políticas tributárias progressivas, a criatividade dessa classe gerencial de “fazer dinheiro” num mundo financeiramente globalizado e desregulamentado, tornou-se essencial e transformou estes funcionários do capital em sócios destes ganhos, com elevados salários e merecedores de bônus extravagantes de acordo com as metas estabelecidas e atingidas. Com o voo alegre do capital, livre de amarras e controles, em busca de rentabilidade financeira, o crescimento econômico perdeu importância, a criação de emprego deixou de ser uma preocupação da ciência econômica, e o sistema se tornou mais vulnerável às crises, dadas as bases artificiais em que a criação da riqueza passou a ocorrer6 6 A análise efetuada por Duménil e Levy (2011) é mais complexa do que a apresentada aqui, onde priorizamos sua explicação para os altos salários dos executivos no capitalismo atual. Nela, os autores discorrem sobre a nova configuração das classes sociais no mundo capitalista globalizado e financeirizado, identificam este estágio de seu desenvolvimento depois do surgimento das sociedades por ações no final do século XIX como uma terceira etapa deste processo, que denominam de “segunda hegemonia financeira”, bem como a aliança que se forma entre a classe capitalista e a classe gerencial (os trabalhadores especiais), designando essa etapa com o termo de Finanças para caracterizar essa nova fase do sistema que se torna predominante a partir dos anos 1970-1980. Uma boa síntese de sua análise e ideias se encontra em Palludeto e Andrade (2017). .

Ou seja, a queda da herança dos ricos no conjunto das fortunas provocada por estes fatores teria sido substituída, ou compensada, pelo ingresso nessa hierarquia dos trabalhadores bem remunerados, superexecutivos e supercelebridades que, com salários extraordinariamente elevados, um fenômeno do capitalismo contemporâneo, que poderia estar indicando o nascimento de uma sociedade hipermeritocrática (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 259), passaram a figurar na hierarquia das grandes fortunas, repondo as condições de progressivo aumento das desigualdades. Isso teria levado, no início dos anos 2010, a desigualdade na distribuição das riquezas mundiais, a comparar-se, em sua magnitude, à observada nas sociedades europeias nos anos 1900-1910: enquanto o milésimo superior (0,1%) da população detinha 20% do patrimônio, a do centésimo (1%) correspondia a 50% e a do décimo (10%) entre 80% e 90%, com a metade inferior da população (os 50% mais pobres) ficando com apenas 5% do total (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 427). É muita desigualdade no sistema e, mais preocupante, crescente.

Isso significa ter havido uma mudança na composição dos fatores responsáveis pela geração das riquezas, com os rendimentos mais elevados do trabalho, permitindo a este grupo privilegiado de trabalhadores aumentar sua participação no seu estoque e, com isso, passar a drenar maior fatia da renda gerada em detrimento das riquezas herdadas, embora os grandes patrimônios continuem predominantes. Na sua visão, com essa mudança, mesclaram-se as fontes de renda para este grupo mais privilegiado de trabalhadores, com seus principais rendimentos continuando a ser gerados pelos salários, mas complementados por rendimentos do capital, passando eles a integrar o grupo do décimo (10%) da população que recebe mais renda, enquanto no grupo que representa o centésimo (o do 1%), as rendas principais continuaram tendo como fonte o capital e apenas complementarmente o trabalho (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 272-275; 363).

Essas mudanças não são, contudo, suficientes para explicar por que depois dos choques de 1914-1945 a concentração da riqueza, embora tenha retomado sua trajetória de aumento, ainda não conseguiu voltar aos níveis anteriores à Primeira Guerra, dada a lógica da desigual relação r>g, apesar de estar se acelerando desde a década de 1970.

Para ele, a mudança estrutural que pode explicar este quadro teria sido a criação, ao longo do século passado, “[...] de impostos fiscais significativos sobre o capital e seus rendimentos” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 364). Praticamente inexistentes até 1914, ou cobrados com alíquotas muito baixas, próximas de 0%, o imposto de renda começou a ser criado em vários países nas primeiras décadas deste século, avançou depois da crise de 1930 no embalo da teoria keynesiana sobre a importância do papel do Estado e se tornou um dos impostos mais importantes das estruturas tributárias, aumentando a capacidade de financiamento do Estado, operando, ao mesmo tempo, como um poderoso antídoto do aumento da concentração da renda e da riqueza (p. 364-365).

Assim como na leitura da segunda parte explicitamos a importância que o modelo de Piketty confere ao crescimento econômico como elemento redutor da desigualdade, o principal destaque dessa terceira parte diz respeito ao papel que os impostos progressivos incidentes sobre a renda e o patrimônio podem desempenhar neste processo. Não representa, na verdade, nenhuma novidade teórica, considerando que Keynes, em sua obra-prima de 1936, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1983) deu ênfase ao papel destes impostos não somente para diminuir as desigualdades geradas no capitalismo, mas também para atenuar suas flutuações cíclicas. Mas, apoiado num conjunto impressionante de dados, que praticamente afoga o leitor, o trabalho de Piketty adquire grande importância para confirmar sua teoria.

2 A importância dos impostos progressivos para redução das desigualdades e a proposta de criação de um imposto mundial progressivo sobre o capital

Na quarta e última parte, Piketty aprofunda a tese que defende sobre a importância dos impostos progressivos para a redução das desigualdades, do imposto sobre as rendas e do imposto sobre as heranças, considerando que o primeiro incide sobre o fluxo de renda gerada e o segundo sobre o patrimônio transmitido aos herdeiros (estoque de capital) que dá direito a uma parcela dessa renda, mas adiciona como desejável para deter o avanço inexorável dessas desigualdades um outro imposto, um imposto anual progressivo incidente sobre o capital, com limite de isenção e alíquotas que progrediriam de acordo com o tamanho da fortuna.

Piketty faz uma defesa enfática do imposto de renda e do imposto sobre heranças, considerando-os filhos do século XX, que ganharam relevância nas estruturas tributárias, principalmente para atender às necessidades de recursos do Estado colocadas pela guerra e, a partir da Grande Depressão da década de 1930 e da Segunda Grande Guerra, pelos infortúnios por elas causados, para o financiamento do Estado do bem-estar, instituição que emergiu deste processo com o objetivo de criar as condições para aquele atuar, reduzindo as desigualdades com o objetivo de garantir maior harmonia social, essencial para a reprodução do sistema.

Praticamente inexistentes até a Primeira Guerra ou cobrados com taxas irrisórias, garantindo a reprodução da desigualdade em escala crescente, tanto os impostos sobre a renda como sobre as heranças começaram a ser criados e/ou ampliados no início do século principalmente nos países desenvolvidos, como analisa Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 492-494).

Na França, a alíquota-teto do imposto de renda da pessoa física deu um salto de 2% antes da guerra para 50%, em 1920, 60%, em 1924, e 75%, em 1925, alíquota que se manteve em torno de 50% a 70% entre 1940 e 1980, praticamente o mesmo nível registrado na Alemanha; no Reino Unido, essa alíquota foi aumentada de 8%, em 1909, para mais de 40% após a guerra, sendo depois elevada para 98% na Segunda Guerra, nível reeditado nos anos 1970 e mantido até o início da década de 1980; nos Estados Unidos, onde a alíquota-teto havia sido reduzida para 25% em 1923, depois de chegar a 70% entre 1919-1922, Roosevelt a elevou para 63%, em 1933, e para 79%, em 1937, 88%, em 1942, e 94%, em 1944, estabilizando-se em torno de 90% até a metade de 1960, quando foi reduzida para 70%, nível em que permaneceu até o início da década de 1980. Em relação às heranças, as taxas máximas nos Estados Unidos oscilaram entre 50% e 80% de 1930 a 1980 e na Alemanha e França entre 30% e 40% neste período, todos superados pelo Reino Unido no gravame tributário imposto às mesmas (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 486-494).

Sua justificativa para a defesa dos impostos progressivos como instrumento eficaz para a redução das desigualdades e para que não o confundam com um autor anticapitalista é a de que: “o imposto progressivo constituiu sempre um método mais ou menos liberal para reduzir as desigualdades, pois respeita a livre concorrência e a propriedade privada enquanto modifica os incentivos privados, às vezes radicalmente, mas sempre de modo previsível e contínuo, segundo as regras fixadas com antecedência e debatidas de maneira democrática, no contexto de um Estado de direito. O imposto progressivo exprime de certa forma um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 492)7 7 Como Keynes fez no artigo “Soy un liberal?”, de 1925 (Keynes, 1978), Piketty (2014, p. 37) deixa claro seu compromisso com a doutrina liberal e sua oposição ao socialismo e comunismo, e de também ser, seu objetivo, contribuir para “salvar” o capitalismo: “Fui vacinado bem cedo contra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo e que se recusam a se render aos argumentos intelectuais que permitiriam deixar a retórica gasta para trás”. Para ele, o que de fato interessa, “[...] é contribuir para [...] o debate sobre a organização social, as instituições e as políticas públicas que ajudam a promover uma sociedade mais justa”. .

Mas, como ele observa, o movimento feito pelos Estados Unidos e Reino Unido dos anos 1920-1930 até os anos 1970 em direção a uma maior igualdade com a cobrança de impostos progressivos mudou para uma direção oposta a partir da década de 1980, quando o pensamento neoliberal recuperou sua hegemonia na ciência econômica e passou a orientar as políticas econômicas e tributárias. As taxas máximas do imposto de renda cobradas das pessoas físicas caíram, nestes países, de 80-90% entre 1930-1980 para 30-40% nos anos 1980-2010, assim como também se observaria para o imposto de renda cobrado sobre os lucros das empresas, embora o mesmo não se tenha verificado nessa dimensão para os demais países desenvolvidos da Europa, como na França e na Alemanha, e no Japão e também no imposto sobre heranças.8 8 No Brasil, país campeão em termos de desigualdade tributária, a alíquota-teto do imposto de renda das pessoas físicas foi reduzida de 65%, vigente até a década de 1960, para 25% em 1988, uma iniciativa do então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, sob o argumento de estar acompanhando as mudanças internacionais que vinham sendo feitas neste imposto. Em 1995 uma nova “revolução tributária”, comandada pelo então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, cuidaria de ampliar os benefícios do mesmo para o capital e as camadas mais ricas da sociedade. Pela Lei 9.249, de 26 de setembro de 1995, não somente os lucros das empresas distribuídos na forma de dividendos foram isentos de sua incidência como passou-se a subtaxar, com uma alíquota de 15%, sua distribuição na forma de Juros sobre o Capital Próprio (JCP), abaixo, portanto, da tabela progressiva. Além disso, a alíquota do imposto de renda incidente sobre o lucro tributável das empresas foi reduzida de 25% para 15%, bem como os adicionais cobrados sobre as faixas de lucros superiores a determinados limites. Para uma análise mais detalhada dessas mudanças, consultar Hickman e Salvador (2006, p. 57-69) e também o trabalho da Anfip/Fenafisco (2018).

Piketty procura relacionar essa redução do imposto a um fenômeno do capitalismo moderno, que consiste na concorrência fiscal que passou a ser travada entre os países no mundo globalizado e, principalmente nos Estados Unidos, ao surgimento dos superexecutivos que passaram a receber salários extremamente elevados, aumentando a desigualdade dentro do polo do trabalho e, consequentemente a desigualdade total, e que se integraram ao núcleo do centésimo da população, os 10% mais bem remunerados. Pelo que pode se depreender de sua análise, que não se pode considerar convincente, essa redução do imposto teria levado os superexecutivos a pressionarem por maiores salários cujos aumentos deixariam de ser confiscados tributariamente e as empresas a concordarem com esses aumentos para evitar ou impedir que esse corpo técnico altamente qualificado migrasse para outros países que oferecessem tratamento tributário mais favorável em termos da cobrança do imposto de renda sobre os supersalários, o que, ele próprio, considera que vai contra o bom senso (2014, p. 497-499). Tal explicação, defendida pelos que querem livrar o capital e as altas rendas da tributação, não parece dar conta das profundas transformações que estavam ocorrendo no sistema capitalista e no pensamento econômico a partir da década de 1970, e que, iniciadas exatamente nos Estados Unidos e Reino Unido, se propagaram especialmente a partir das décadas de 1980-1990 para o restante do mundo capitalista.

De qualquer maneira, este não pode ser visto como um movimento que contribui para a redução da desigualdade e para o controle mais democrático do capitalismo. Porque, segundo ele, “[...] a utilização de taxas confiscatórias no topo da pirâmide das rendas é não somente possível, mas ainda a única maneira de conter os grandes aumentos de salários observados no topo das grandes empresas. Segundo nossas estimativas, o nível ótimo da taxa superior nos países desenvolvidos seria superior a 80%” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 499). Não se pode dizer que seja uma proposta, por mais que ele procure vinculá-la a um capitalismo mais justo, democrático e com maior estabilidade, que agrade as classes mais ricas e nem os economistas que defendem seus interesses.

Piketty considera, contudo, que para que a democracia possa retomar o controle do capitalismo, neste século XXI de grandes transformações, em que o capital financeiro se tornou dominante e inúmeros arranjos surgiram para ocultar os ganhos do capital em geral para que este drible ou fuja da tributação, o desenho fiscal do século XX não parece mais suficiente para conter o avanço das desigualdades, sendo necessário inventar novos instrumentos para dar conta dessa questão na realidade atual do capitalismo. Com este objetivo propõe a criação de um imposto mundial progressivo anual sobre o capital, cobrado sobre o total dos ativos, imobiliários, financeiros, corporativos, acompanhado de uma grande transparência internacional, o qual seria complementar aos impostos sobre as rendas e as heranças (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 501)

Para ele, este imposto, embora pareça utópico, teria o mérito de preservar a abertura econômica e a globalização e regular com eficiência o capitalismo, contendo sua insensatez na busca de lucros crescentes e distribuindo os recursos de maneira justa dentro de cada país e entre os países (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 502). Este imposto seria estabelecido com taxas relativamente moderadas, com um limite de isenção para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para patrimônios entre 1 e 5 milhões de euros, e 2% para patrimônios superiores a 5 milhões, sem se correr o risco de se decretar a morte do capital, já que sua taxa de retorno (r) representa, como visto em sua análise, em média, algo em torno de 4 a 5%, em função de sua dimensão e do setor em que se encontra aplicado. Por isso, como ainda argumenta, não se pode descartar até mesmo a cobrança de taxas superiores a 2% para os patrimônios superiores a 5 milhões de euros por obterem rendas mais altas que a média (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 503; 515).

Piketty deixa claro que sua proposta não tem o objetivo de substituir os demais impostos diretos, não passando de “um complemento relativamente modesto na escala do Estado social moderno: alguns pontos da renda nacional (três a quatro pontos, o que não é nada desprezível”, mas que seu principal objetivo “[...] é evitar uma espiral desigualadora sem fim e uma divergência ilimitada de desigualdades patrimoniais, além de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras e bancárias “ (2014, p. 504).

Para um imposto dessa natureza é indispensável, em um sistema financeiro globalizado, em que o capital encontra portos seguros, verdadeiros paraísos fiscais, para ficar oculto e escapar da tributação, contar com a cooperação internacional, por meio de convênios entre os diversos países para revelar o patrimônio real do cidadão que será taxado, sendo, assim, a transparência internacional dos negócios, essencial. A falta de transparência nos negócios na atualidade no cenário internacional, que permite a uma parcela considerável dos rendimentos não ser taxada pelo imposto de renda justificaria a cobrança deste imposto, visto apenas como um complemento dos impostos diretos sobre a renda e o patrimônio que não conseguem alcançar a totalidade dos ganhos do capital, porque estes apenas se incorporam ao seu estoque, aumentando-o sem serem tributados nas declarações anuais de rendimentos. Por isso, seu caráter complementar (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 510-511).

Enfim, resumindo sua proposta de criação deste imposto: “[essa] é uma ideia nova, que deve ser inteiramente repensada no contexto do capitalismo financeiro globalizado do século XXI, tanto em termos de taxas de tributação como de modalidades jurídicas, por meio de uma lógica de troca automática de informações bancárias internacionais, de declarações pré-preenchidas e de valores de mercado” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 520).

Piketty realiza, ainda, no capítulo 16, uma discussão sobre a melhor solução que pode ser dada para resolver o problema do elevado nível da dívida pública do século XXI resultante das intervenções que principalmente os Estados dos países mais desenvolvidos tiveram de fazer na economia para salvar o sistema econômico do colapso com as tormentas desencadeadas, primeiramente pela crise do subprime de 2007-2009 e, a partir de 2010, pela crise da dívida soberana europeia.

Para ele, existem três métodos principais que podem ser combinados em diversas proporções para dar conta deste problema: i) a criação de um imposto extraordinário sobre o capital; ii) a inflação; e iii) a política de austeridade. Considera a melhor solução o imposto extraordinário, principalmente na ausência da inflação, responsável por vencer as grandes dívidas ao longo da história, e, a pior e de maior injustiça social, a política de austeridade, embora essa seja a opção que tem sido adotada na Europa na atualidade e também em outros países do mundo capitalista (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 527).

Pagar a dívida com a cobrança de um imposto extraordinário sobre o capital privado de uma só vez, com uma alíquota de 15% é, assim, para ele, a melhor opção, porque evita que o Estado tenha de vender seu capital para essa finalidade (escolas, hospitais, universidades, quartéis de polícia, etc.) e de perder a capacidade de operar como Estado social, ofertando políticas públicas, ao mesmo tempo que libertaria o setor público deste fardo para injetar oxigênio na economia. Mas não deixaria de ser razoável estabelecer uma alíquota menor para vencer resistências à sua cobrança e, com o montante arrecadado, abater uma parcela da dívida, que pode ser de 20%, 30%, 40%, o que também representaria um grande alívio para as contas do governo.

A inflação, instrumento clássico de queima do estoque da dívida pública, embora tentadora, esbarra atualmente na obsessão predominante no pensamento ortodoxo sobre a necessidade da estabilidade monetária para o sistema operar com maior eficiência, além de poder gerar efeitos secundários adversos, caso da possibilidade de ocorrer seu descontrole ou de a mesma perder sua eficácia para este propósito se começar a ser antecipada pelos agentes econômicos.

Ora, sem o imposto sobre o capital e sem o mecanismo da inflação, todo o ajuste da dívida teria de ser feito por meio da implementação de políticas de austeridade, como tem recomendado o pensamento econômico dominante desde as décadas de 1970 e 1980, com este ajuste podendo levar anos e até décadas para ser concluído, gerando prejuízos sociais e econômicos consideráveis para a sociedade, principalmente para os não detentores do capital e para os que se posicionam nas fileiras inferiores das camadas da população que mais necessitam de emprego e de serviços ofertados pelo Estado.

Como a dívida pública, pelo tamanho que assumiu no século XXI, custa globalmente muito caro e “amarra” o Estado social, torna-se necessário reduzi-la o quanto antes, “[...] idealmente por meio de uma arrecadação progressiva e excepcional sobre o capital privado e, se não for possível, pela inflação. Em todo caso, essas decisões devem vir de um parlamento soberano e de um debate democrático” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 551). Como recomenda o pensamento liberal mais esclarecido no capitalismo moderno.

2 Reinterpretando as origens do aumento das desigualdades no final do século XX e início do XXI

Embora com pontos de partida e objetivos bem diferentes na análise do sistema capitalista, tanto Marx (1971MARX, Karl [1867]. O Capital (Crítica da Economia Política); o processo capitalista de produção. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 (Livro I). e 1974MARX, Karl [1894]. O Capital (Crítica da Economia Política); o processo global de produção capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1974 (Livro III).) como Keynes (1983KEYNES, John Maynard [1936]. A teoria geral do emprego do juro e da moeda. São Paulo: Editora Cultural, 1983.) chegaram à mesma conclusão de ser o mesmo produtor de desigualdades, incapaz de gerar empregos para a população e de estar sujeito a fortes e recorrentes ondas de instabilidade, dada a natureza do capital. O maior mérito do trabalho de Piketty é, sem sombra de dúvidas, que ele confirma, com abundância de dados para mais de três séculos de existência do sistema, ser a questão da desigualdade e sua tendência de aumento no tempo uma de suas principais características. Por isso, como já propunha Keynes, com o objetivo de “salvar o sistema”, a importância dos impostos progressivos para deter a escalada crescente da desigualdade que pode decretar seu colapso, e, ao mesmo tempo, para amortecer suas flutuações cíclicas.

Além da importância do volume considerável de dados que apresenta sobre essa questão, uma das principais lições contidas no trabalho de Piketty é a de que políticas redistributivas eficientes exigem a combinação, de um lado, do crescimento econômico, e, de outro, do papel do Estado na redistribuição da riqueza produzida para, complementarmente, reduzir as desigualdades e dar fôlego, inclusive econômico, ao sistema para continuar se reproduzindo. Quando essas condições não se verificam, torna-se inevitável o aumento das desigualdades, enfraquecendo a demanda efetiva, com a crise econômica se instalando no sistema.

O trabalho de Piketty peca na compreensão das causas deste processo, talvez por não estar fundado numa base teórica sólida, como apontamos, e por não desvendar com profundidade as mudanças que ocorrem no sistema capitalista em todas as suas dimensões, especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980, nem como o pensamento econômico deslocou sua preocupação do objetivo de criação de emprego para o da estabilização macroeconômica, diante da instabilidade e aceleração dos preços que marcaram a primeira metade da década de 1970. Assim como, diante deste quadro, passou a conferir ao Estado o papel de luxo de restringir-se a ser o avalista dessa estabilidade, considerando prejudiciais suas ações no campo econômico e social para o sistema, alterando, dessa maneira, novamente a equação da prosperidade. Por essas razões, não consegue explicar, de forma convincente, nem por que o crescimento se enfraqueceu, a partir dessa época, nem por que o Estado perdeu força como agente redutor das desigualdades, tendência que só tem crescido no tempo.

De fato, não é preciso lançar mão de muitas estatísticas para comprovar que a partir da década de 1970, a taxa de crescimento recuou consideravelmente nos países desenvolvidos, acompanhada de um forte aumento da taxa de desemprego, como mostra a Tabela 1. E ainda que, a partir da década de 1990, o crescimento econômico passou a ser alimentado quase que invariavelmente pela formação de “bolhas” (bolhas da internet, do crédito subprime, dos preços do petróleo, dos juros reais negativos nestes países), diante, inclusive, do aumento das desigualdades, as quais, quando estouram, provocam crises e recessões que se prolongam por muito tempo, com prejuízos para a economia e a sociedade, especialmente para as camadas mais pobres da população para as quais costuma-se mandar a conta dos ajustes que são realizados.

Tabela 1
Taxa de crescimento e taxa de desemprego em alguns países e conjuntos de países desenvolvidos

Também não há necessidade de muitas estatísticas para comprovar que um dos subprodutos deste quadro tem sido, desde essa época, a proposta de redução, ou de encolhimento, do Estado do bem-estar9 9 Chama-se a atenção para o fato de que, apesar dessa proposta ter-se tornado consenso no pensamento neoliberal que nasce neste período, o desmonte do Estado do bem-estar tem, ainda hoje, encontrado fortes resistências, especialmente nos países, como os da Europa, onde ele já se encontrava em estágio bem avançado e consolidado e se incorporara à estrutura da sociedade. Mesmo nos Estados Unidos, com um Estado do bem-estar bem mais magro, as políticas neoliberais comandadas por Ronald Reagan com este propósito, na década de 1980, não conseguiram se revelar bem-sucedidas como se esperava. , acompanhado de alterações na composição da carga tributária, com a substituição dos impostos diretos progressivos pela tributação indireta, fenômeno que Piketty constata, mas não aprofunda em sua análise e compreensão (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 546). E que, por essa razão, o sistema tributário, ao lado da fraqueza do crescimento econômico, tornou-se também uma força que contribui para impulsionar o aumento das desigualdades no sistema. São essas questões que se procura discutir em seguida.

2.1 A mudança na equação da prosperidade

Para os economistas clássicos e neoclássicos, o crescimento econômico era fundamental para garantir a expansão da riqueza da sociedade e o emprego para a população. Este representava, bem como a distribuição da produção, o principal objeto da Economia Política ou da ciência econômica.

Para Adam Smith, por exemplo, os principais objetivos da Economia Política seriam: i) o de prover uma renda ou sua manutenção farta para a população ou, mais adequadamente, dar-lhe a possibilidade de conseguir ela mesma tal renda ou manutenção, por meio do emprego; e ii) prover o Estado ou a comunidade de uma renda suficiente para ofertar os serviços públicos (Smith, 1983SMITH, Adam [1776]. A Riqueza das Nações; investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Economistas)., Livro IV, v. I, p. 357). A preocupação com a importância do crescimento econômico para a criação de emprego sempre esteve presente em todos os trabalhos destes economistas, embora com algumas variações sobre métodos empregados de análise e da ênfase atribuída aos objetivos da ciência econômica.

Se definirmos a equação da prosperidade para esses economistas, poderíamos resumi-la na seguinte função: P(Y)=f(K, E, RN) 10 10 Embora diferentes em termos de magnitude, considera-se aqui eq22 para facilitar a exposição, mesmo por não serem expressivas as diferenças entre as duas variáveis. , onde P é o produto gerado, Y, a renda, K, o capital empregado no processo produtivo, E o trabalho que aciona e coloca em movimento o capital, e RN os recursos naturais que entram na produção dos bens. A fórmula pode ser simplificada para P (Y)f(K, E) por se tratar dos dois fatores produtivos que transformam os bens da natureza em produtos que serão ofertados no mercado e que, ao fim e ao cabo, serão os que se apropriarão da renda gerada. Note-se que, nessa equação, o capital (K) e o trabalho (E) são combinados para a produção, sendo o trabalho elemento central neste processo para pôr em movimento o capital e que, quanto maior K, maior será E e, portanto, P, com o que o Estado também se beneficiará com a expansão das receitas públicas. Por isso, a importância do crescimento econômico para essas escolas de economia.

Considerando, no entanto, que para essas escolas os gastos do Estado são improdutivos, com este operando como um mero agente consumidor da riqueza produzida, essa equação pode ser modificada se nela introduzirmos a riqueza que se esvai com a sua participação no processo, diminuindo-a. Neste caso, a equação pode ser alterada para P(Y)=f(K, E, [-S]), sendo -S a parte da riqueza que se perde no processo com sua participação, o que as leva, de uma maneira geral, a propor um série de limites e restrições à sua atuação. Nessa perspectiva teórica, quanto menor o peso do Estado na economia, mais a sociedade será beneficiada com maior riqueza e emprego.

Smith, por exemplo (Livro I, 1983, p. 286), no que foi seguido por Ricardo, que endossou sua posição sobre os conceitos de trabalho produtivo e improdutivo, exclui na medição da riqueza, na sua concepção, o trabalho improdutivo, no qual inclui todas as atividades do setor de serviços, incluindo as atividades do governo, que considera prejudiciais para o processo de acumulação e a expansão do capital. Mesmo que a escola neoclássica tenha revisto esse conceito, passando a considerar produtivo o trabalho que gera coisas “úteis”, coerente com sua visão sobre a origem do valor, o valor-utilidade, manteve intacta, em seu arcabouço teórico, a visão do Estado como mero dissipador da riqueza produzida.

Essa equação conheceria, no entanto, uma transformação radical com a obra-prima de Keynes, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936. Keynes demonstraria, na mesma, que, ao contrário do que preconizavam essas escolas, serem os gastos públicos produtivos e importantes não somente para impulsionar a atividade econômica e para promover a expansão do emprego, como também, por meio de políticas tributárias progressivas, amortecer as flutuações cíclicas do sistema e reduzir as desigualdades, essencial para o fortalecimento da demanda efetiva e, consequentemente, para o próprio crescimento. Os três defeitos congênitos do sistema por ele apontados - incapacidade de gerar emprego para a população, produzir desigualdades e estar sujeito a ondas de instabilidade, dada a natureza do capital - só poderiam, como defendia, ser corrigidos pela ação do Estado.

Na perspectiva keynesiana, nossa equação da prosperidade pode, portanto, ser reescrita da seguinte maneira: P(Y)=f(K, E, S(TG), com o Estado passando a contribuir para sua expansão, em função do resultado líquido que obtém com a cobrança de tributos (T), que reduz a renda privada, e com os gastos que realiza (G), que expande P (Y). Para Keynes, com a participação do Estado se tornaria possível, por meio da implementação das políticas tributárias e de gastos, atingir o objetivo do pleno emprego da população, que deveria ser a principal missão da ciência econômica, o que não seria possível se o sistema operasse sem restrições, dado tratar-se de um de seus defeitos congênitos.

A fórmula keynesiana inaugurou um período de grande prosperidade para a economia, registrando taxas robustas de crescimento e elevados níveis de emprego, que se prolongaram por cerca de 30 anos até os primeiros anos da década de 1970, período que ficou conhecido como “os anos dourados do capitalismo” ou, na Europa, como os “Trinta Gloriosos”, como a ele Piketty se refere em várias partes do livro (2014, p. 18 e 22, por exemplo). Ao mesmo tempo, com a nova teoria e com as políticas econômicas dela derivadas, as flutuações dos ciclos econômicos pareciam ter ficado para trás, assim como se caminhou, com a implementação de uma política tributária progressiva, como Piketty analisa, para um quadro em que o aumento da desigualdade perdeu velocidade reforçado pelo avanço e consolidação do Estado do bem-estar.

Essa trajetória mais virtuosa do capitalismo, em que a questão da solidariedade e da maior justiça social pareciam estar finalmente passando a ocupar um lugar mais privilegiado no sistema, começou a perder força no início dos anos 1970, quando a inflação se acelerou, acompanhada por um aumento do desemprego e de redução do ritmo de crescimento. Nesse quadro, operou-se, novamente, uma mudança na equação da prosperidade com o objetivo de se dar resposta ao fenômeno da alta de preços combinada com o baixo crescimento ou com a estagnação da economia, o fenômeno da estagflação, que não encontrava suporte no arcabouçou teórico keynesiano.

Diante da crise da teoria keynesiana, a escola de economia do pensamento conservador, que havia perdido a hegemonia na ciência econômica e na condução da política econômica, ressurgiu vigorosa pelas mãos - e mentes - dos economistas que enxergam os problemas da economia com lentes monetaristas e o Estado como fonte de instabilidade do sistema, devido aos seus gastos elevados e aos déficits em que incorre na promoção de políticas expansionistas, o que, para essa corrente, liderada por Milton Friedman, da Escola de Chicago, eram inócuas, no longo prazo, para expandir o emprego e a renda, acarretando, ao contrário, inflação e instabilidade.

Para essa escola, a preocupação de Keynes com o pleno emprego era prejudicial para o bom e eficiente funcionamento do sistema econômico, devendo, portanto, este objetivo ser relativizado na equação da prosperidade, devendo-se apenas procurar garanti-lo até o ponto em que não provocasse pressões inflacionárias, existindo, assim, um limite para o crescimento do produto (chamado de “produto potencial”), para o que seria necessário levar em conta a necessidade de se contar com uma taxa natural de desemprego (NAIRU)11 11 Acrônimo, em inglês, de Non-Acelerating Inflation Rate of Unemployment, o que significa, em português, Taxa de Desemprego não Aceleradora da Inflação. , uma taxa capaz de manter a neutralidade da moeda no longo prazo. E, como o Estado se encontrava na raiz deste fenômeno, pelos déficits que gerava com a implementação de políticas fiscais expansivas, este deveria renunciar às mesmas e passar a se ocupar apenas com o controle efetivo da oferta de moeda necessária para o sistema funcionar sem essas pressões.

O crescimento, que designaremos por P* (produto potencial) passaria, com isso, a subordinar-se, nessa nova formulação, à estabilidade monetária, assim como o trabalho (E) sofreria restrições caso fosse além da taxa natural de desemprego, enquanto o Estado seria retirado novamente da equação. Podemos definir a nova equação da prosperidade que nasce com a corrente monetarista com a seguinte fórmula: P*=f(K, E*), sendo P* o produto potencial da economia, cujo limite não pode ser ultrapassado para não provocar pressões inflacionárias, e E* o emprego, mas limitado pela taxa natural de desemprego (NAIRU), uma variável que depende da conjuntura econômica e das pressões exercidas sobre o nível de preços, sendo o principal papel do Estado - e da ciência econômica - cuidar para exercer um rígido controle sobre a oferta de moeda e manter a estabilidade monetária, mesmo que, para isso, tenha de sacrificar o crescimento e o emprego.

Às políticas restritivas ao crescimento e ao emprego que passaram a ser implementadas à essa época, sob a influência do pensamento monetarista, somou-se, também, uma teoria exótica, filha dessa mesma escola, a teoria econômica pelo lado da oferta (supply side economics), que atribuiu a fraqueza da atividade econômica ao excesso de impostos cobrados pelo Estado, propondo sua redução para o capital e as camadas mais ricas da sociedade para impulsionar os investimentos e o crescimento.

O fato é que teve início, nessa época, como consequência da adoção das medidas políticas recomendadas por essas teorias, um período de implementação de políticas altamente restritivas ao crescimento e ao emprego, acompanhadas de redução dos impostos incidentes sobre a renda, os lucros e o patrimônio, as quais se acentuariam nas décadas de 1980, comandadas pelos governos de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e por Ronald Reagan, nos Estados Unidos, cujas experiências viriam a compor o cardápio das políticas neoliberais que seriam consolidadas, em 1989, no documento conhecido como Consenso de Washington. Elaborado para orientar principalmente os países em desenvolvimento que se encontravam com fortes desequilíbrios macroeconômicos, o lema deste documento e a ordem predominante dele emanada era a de “menos Estado e mais mercado”, ou, em síntese, do Estado mínimo ou de desmonte do Estado do bem-estar.

Ora, se os dois principais instrumentos que contribuem para imprimir um ritmo mais lento ao aumento das desigualdades, podendo até mesmo reduzi-las - o crescimento econômico e o arcabouço fiscal com impostos progressivos -, como aponta Piketty em sua análise, perdem força nessa equação, torna-se inevitável que aquelas devem retornar inexoravelmente a uma trajetória de elevação. Embora a nova fórmula monetarista que passou a orientar as políticas econômicas a partir da década de 1970, especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, tenha minado as forças da atividade econômica, determinando uma trajetória de lento crescimento para a economia mundial, ela representou apenas o início de uma completa reviravolta na equação da prosperidade tal como passaram a entendê-la os economistas dessa escola de pensamento.

Apesar de ter passado a desfrutar de um grande prestígio nessa época, o monetarismo não teve vida longa, passando a receber não poucas críticas pelas simples razões: i) sua explicação para a aceleração de preços neste período estava centrado basicamente no movimento de alta dos salários devido às políticas expansionistas implementadas pelo Estado, num suposto quadro de plena utilização dos fatores produtivos, quando outros fatores a eles não relacionados começavam a afetar a dinâmica dos preços; ii) Friedman e Phelps, em seu modelo, supunham que, no curto prazo, as variáveis reais da economia poderiam ser afetadas pela ação do governo, como o emprego e a renda, e que somente no longo prazo se tornariam inócuas, diante da revisão das expectativas da inflação por parte dos agentes econômicos, neutralizando os resultados que haviam sido colhidos. Não era vista, assim, como uma teoria capaz de condenar, de vez, a intervenção do Estado na economia.

A crítica desfechada à teoria monetarista pelos teóricos das expectativas racionais, liderados por Robert Lucas, abriria uma nova avenida para a revisão da equação da prosperidade na ciência econômica, num mundo capitalista que passava a conhecer uma série de transformações a partir dessa época, como o avanço do processo de financeirização da economia, da globalização dos mercados - de produtos e financeiros - e das novas tecnologias de produção nascidas com a Terceira e, posteriormente, Quarta revolução industrial, fenômenos que Piketty, apesar de a eles se referir em sua análise, não trata com o devido cuidado e profundidade para melhor entender sua influência no processo de aumento da desigualdade, especialmente a partir dessa nova realidade do sistema. É o que se discute em seguida.

2.2 O pensamento neoliberal: avançando na mudança da equação da prosperidade

Os teóricos das expectativas racionais plantaram as raízes para que o pensamento neoliberal começasse e consolidasse sua hegemonia na ciência e na condução da política econômica em oposição ao ideário neokeynesiano da doutrina da Síntese Neoclássica. A base da crítica por eles feita à teoria monetarista era de que os seus agentes econômicos não eram assim tão racionais em sua estrutura, já que se deixavam enganar pela ação do governo no curto prazo e, por isso, o sistema se via submetido a recorrentes ondas de instabilidade, o que estava ocorrendo nos primeiros anos da década de 1970.

Para eles, que adotam os mesmos pressupostos teóricos da economia neoclássica, os agentes econômicos possuem racionalidade suficiente para se antecipar às ações do governo e, prevendo suas consequências, para neutralizá-las, impedindo que, mesmo no curto prazo, essas prosperem, evitando-se as disfunções que geram para o bom funcionamento do sistema. Isso garantiria a neutralidade da moeda mesmo no curto prazo e ainda que os movimentos e turbulência do mundo das finanças não afetem o lado real da economia, tornando inócuas e nocivas as ações do governo para este objetivo, sendo necessário criar as condições necessárias para manter o Estado comprometido apenas com a preservação da estabilidade macroeconômica.

O debate que se desencadeou a partir dessa visão entre as escolas que passaram a ser conhecidas como as dos novos-clássicos e dos novos-keynesianos, terminou conduzindo ao que é conhecido como Novo Consenso Macroeconômico (NCM), no qual acabou predominando a tese de que apenas o controle da oferta de moeda (a tese monetarista) não é suficiente para garantir a estabilidade, caso a política econômica seja contaminada por uma situação de dominância fiscal no governo, pois neste caso, em algum momento as autoridades monetárias terão de sancionar os déficits do Tesouro, acarretando prejuízos para a mesma.

Para evitar essa situação e que a perda de controle da oferta de moeda contaminasse a estabilidade, caminhou-se no sentido de considerar a necessidade de introduzir, nessa equação, a taxa de juros (i), em substituição à oferta de moeda, como variável-chave para garantir que, uma vez estabelecida uma meta inflacionária pela autoridade monetária, supostamente uma meta que manteria estável o nível de preços, de acordo com a regra de Taylor (1993TAYLOR, John B. Discretion versus Policy Rules in Practice. Carnegie Rochester Conference Series on Public Policy, v. 39, n. 1, p. 195-214, 1993.), essa será atingida, cabendo à política monetária única e exclusivamente estar comprometida com este objetivo. Caso a inflação real se mostre superior a essa meta, a taxa de juros, i, independente dos fatores que estiverem pressionando o nível de preços, deve ser elevada com o objetivo de contrair a demanda agregada; se inferior, reduzida para injetar oxigênio na demanda e permitir à economia avançar na direção do “produto potencial” (P*), de equilíbrio geral do sistema. Aparentemente, essa proposta nasceu com o objetivo de garantir a estabilidade, mas o fato é que, nas transformações conhecidas pelo capitalismo a partir dessa época, ela seria essencial para proteger o capital e garantir a remuneração da riqueza financeira. Explica-se a razão.

Na década de 1970, os “anos dourados do capitalismo”, produtores de elevadas e gigantescas taxas de lucro para o setor produtivo, começavam a ficar para trás devido ao excesso de acumulação de capital dos períodos anteriores (o abarrotamento do capital previsto pelos economistas clássicos e por Keynes) e à instabilidade que marcou este período, com as mesmas ingressando numa trajetória de forte declínio. Segundo Brenner (2003BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003., p. 57-58) a taxa de lucro das empresas do setor manufatureiro dos Estados Unidos foi de 24,3% no período de 1950-1970, um nível que pode ser considerado elevado para qualquer época e que explica muito o crescimento registrado neste período por atuar como estímulo para a expansão dos investimentos. Estes, no entanto, teriam se revelado excessivos quando, concluído o processo de reconstrução da Europa e do Japão, a demanda externa para as empresas americanas diminuiu e, mais grave, com algumas dessas economias operando com técnicas relativamente mais avançadas e custos de produção mais reduzidos e, portanto, com preços mais baixos de produtos comerciáveis, que lhes permitiam concorrer com as empresas americanas no comércio internacional.

Diante da incapacidade dessas empresas de elevarem os preços acima dos custos (de capital e de mão de obra) em face da concorrência internacional, a taxa de lucro do setor manufatureiro norte-americano, diante da queda dos preços, experimentou uma queda de 43,5% entre 1965 e 1973, caindo para pouco mais de 14%. Com a competitividade em declínio, a balança comercial e a de transações correntes dos Estados Unidos despencaram, agravando o problema do dólar e aumentando a pressão sobre a moeda americana, ao mesmo tempo em que, com o desestímulo ao investimento, dado o excesso de capacidade produtiva, a economia foi colocada numa rota de declínio após o longo boom de 1950-1970. Não havia como escapar da turbulência e da crise que se anunciava, a não ser por meio de uma política que empurrasse a solução do problema para a frente.

E mais importante, ainda segundo a análise de Brenner (2003BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003., p. 63-4), essa “[...] queda da lucratividade na economia dos Estados Unidos não foi causada - como se argumenta amplamente - nem por um esgotamento da tecnologia [ou seja, por um declínio no crescimento da produtividade], nem por um aumento do poder de compra dos trabalhadores [...], por meio de salários reais em crescimento mais rápido”. O crescimento da produtividade até se acelerou neste período de queda dos lucros, atingindo 3,3% entre 1965 e 1973, comparado aos 2,9% registrado entre 1950 e 1965. Já o crescimento médio anual do salário real foi de 1,9%, comparado aos 2,2% registrado entre 1958 e 1965 e aos 3,5% entre 1950 e 1958, enquanto os preços dos manufaturados subiram 2,3% entre 1965-1973. Ou seja, tratava-se de uma crise nascida do ventre do sistema e não provocada por algum evento a ele exógeno como aparece na análise da ortodoxia que, à procura de bodes expiatórios, via de regra responsabiliza, por essa situação, o aumento dos salários.

Não cabe, neste trabalho, entrar na discussão do conteúdo das políticas econômicas que passaram a ser implementadas a partir dessa época e que deslocaram a preocupação com o crescimento econômico e a criação de emprego para o da estabilização macroeconômica. Mas apenas reenfatizar o fato de que, com a contrarrevolução monetarista ocorrida, a proteção do valor da moeda passou a ocupar o trono das divindades a serem adoradas na teoria econômica, em detrimento do lado real da economia, e, com a teoria das expectativas racionais, com a tese de que os movimentos e turbulências do mundo financeiro não afetam o mesmo e de que, para o bem da sociedade, o Estado deve ser retirado da vida econômica, o capital, diante da queda da taxa de lucros no setor produtivo, começou a alçar voos em direção a outras esferas, notadamente a financeira, para continuar garantindo e colhendo os frutos que encolhiam com a produção, propiciando a taxa de juros, i, ser incluída na nossa equação da prosperidade como variável central de proteção e defesa da riqueza em geral. Apoiado nessas teorias, o capital encontrou argumentos para intensificar o movimento de financeirização da economia e exigir a queda das barreiras (a desregulamentação das regras deste controle) que, desde a Grande Depressão da década de 1930, o impediam de se mover livre e especulativamente pelo mundo para cumprir sua missão de obtenção do maior lucro possível, independentemente das formas que pode assumir.

Na orgia financeira que se acentuou a partir dessa época, somente com a crise do subprime de 2007-2009 que, nascida nos Estados Unidos, rapidamente contaminou o resto do mundo, provocando uma Grande Recessão, passou-se a reconhecer e incluir no modelo do Novo Consenso Macroeconômico (NCM) as fricções financeiras como uma variável que pode ter impacto macroeconômico significativo na economia real (Paula; Saraiva, p. 22; Mishikin, 2011MISHIKIN, Frederic S. Monetary policy strategy: lessons from the crisis. Cambridge: National Bureau of Economic Research, 2011. (NBER Working Paper, n. 16.755).), mas sem se abandonar ou rever os demais princípios que o sustentam, principalmente do papel-chave da política monetária, por meio da taxa de juros, para garantir a estabilidade macroeconômica.

É importante ressaltar ter sido a inflação, no passado, o principal instrumento de contenção e de corrosão da riqueza financeira, notadamente através da desvalorização da dívida pública, e que, tendo o capital financeiro assumido a hegemonia no sistema nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo, a teoria econômica, por meio dos funcionários do capital e das camadas mais ricas, cuidou de adequá-la a essa nova realidade não somente para protegê-la de seus efeitos, mas também para garantir sua remuneração, por meio do manejo das taxas de juros. E, também importante, para assegurar o seu pagamento, garantindo recursos no orçamento do Estado, exigindo que este deixasse de continuar patrocinando políticas de desenvolvimento e de cunho redistributivo, para que aqueles não fossem, inutilmente, esterilizados com as mesmas. Este arranjo teórico foi apresentado, por essa nova teoria que se tornou dominante, a partir deste período, como se não existisse alternativa (there is no alternative) e, defendendo que a especulação financeira não provocava impactos sobre a economia real, visão que sofreu um golpe com a crise do subprime, de que a desregulamentação dos controles de capitais seria benéfica para o crescimento econômico.

O fato é que desde a década de 1970, em que essas políticas restritivas passaram a ser implementadas, o crescimento econômico tornou-se anêmico, enquanto o emprego passou a funcionar como variável de ajuste do processo inflacionário. O enfraquecimento da demanda decorrente deste processo, dada a queda no nível de ocupação e na renda do trabalho, praticamente restringiu os ensaios de crescimento registrados após este período às forças criadas com a formação de “bolhas” (do mercado de ações, gerando efeito-riqueza, da internet, do crédito em excesso, como foi o caso do subprime nos Estados Unidos, das baixas taxas de juros reais, entre outras), que terminam estourando, produzindo crises, às vezes prolongadas, e submetendo as economias a severos ajustes ainda mais recessivos. Esse processo de financeirização da economia foi, no entanto, apenas o prelúdio de uma tormenta ainda maior que se aproximava para nublar, de vez, a capacidade do capitalismo de funcionar como sistema capaz de irradiar efeitos benéficos para toda a sociedade.

O processo de reestruturação produtiva deslanchado nos Estados Unidos na década de 1980, com o objetivo de recuperar a liderança tecnológica que vinha perdendo para outros países, como a Alemanha e o Japão, acelerou o lento processo de avanço da Terceira Revolução Industrial desde os anos 1950, baseada em novas tecnologias poupadoras de mão de obra - informática, robótica, genética, telecomunicações, eletrônica, entre outras - , dando novo impulso ao sistema capitalista e tornando o capital bem menos dependente do trabalho, praticamente supérfluo, inútil, nos setores que as absorveram e enfraquecendo seu papel como fator de produção. Com seus efeitos combinados com as políticas restritivas de crescimento para debelar ou conter a inflação predominantes a partir de década de 1970, o emprego se tornaria, assim, um bem de luxo nestes setores, difícil de ser adquirido, com o trabalhador tendo de migrar para outras atividades, geralmente trabalhando por conta própria ou ser submetido a trabalhos temporários, precários, com baixa remuneração. Situação que deve continuar se agravando com a Quarta Revolução Industrial, baseada entre outras novidades na Inteligência Artificial (IA), na qual só parece haver espaço para mentes bem formadas e brilhantes, o que não é bem o caso da maioria da população mundial. Não surpreende, assim, que Forrester (1997FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1997., p. 25) encare com horror este novo mundo para a situação do trabalho:

Quanto ao modelo inédito que se instala sob o signo da cibernética, da automação, das tecnologias revolucionárias, e que agora exerce o poder, este parece ter se desviado, isolado em zonas estanques, quase esotéricas. E, bem entendido, sem vínculo verdadeiro com o “mundo do trabalho”, que ele não usa mais e que considera, quando consegue entrevê-lo, um parasita irritante marcado por suas paixões, suas confusões, seus desastres incômodos, sua irracional obstinação em pretender existir. Sua inutilidade. [...] Suas renúncias e sua inocuidade, por estar preso nos vestígios de uma sociedade onde suas funções foram abolidas.

E, no que diz respeito à criação e ao aumento das riquezas, que Piketty, em seu trabalho, considera como capital para estabelecer a sua taxa de retorno (Forrester, 1997FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1997., p. 88):

Esses mercados [financeiros] não desembocam em nenhuma “criação de riquezas”, em nenhuma produção real. Não necessitam sequer de endereços imobiliários. Não utilizam pessoal, já que bastam alguns telefones e computadores para atingir mercados virtuais. Ora, nesses mercados, que não implicam o trabalho de outras pessoas, que não são produtores de bens reais, as empresas (entre outros) investem, cada vez com mais frequência e, cada vez mais, parcelas de seus ganhos, já que o lucro aqui é mais rápido, mais importante que em outros lugares. E é para permitir tais jogos financeiros, muito mais rentáveis, que chegam muitas vezes as subvenções, as vantagens concedidas a fim de que essas mesmas empresas criem empregos!

Se, como apontamos, antes o trabalho figurava de forma importante ao lado do capital, e até de forma bem mais predominante, como essencial para a produção de bens e serviços, ou da riqueza, tal como entendido desde Adam Smith (e não na visão de Piketty), ocupando papel-chave na equação P(Y)=f(K, E), ao ter se tornado supérfluo, enquanto o capital financeiro assumiu maior relevância, a equação parece ter sido alterada para P*=f(K, i, e), onde K representa o capital investido que vai gerar lucros produtivos, i, a taxa de juros necessária para garantir a estabilidade monetária e a rentabilidade dos ativos financeiros, ou da riqueza financeira, e e, o trabalho, aqui reduzido a um e minúsculo, dada a perda de sua importância na equação. Neste novo mundo em que predominam os mercados financeiros e a produção da riqueza deixa de ser real, mas meramente fictícia, não há muito mais lugar para o trabalho e nem mesmo pode se associar a taxa de crescimento (g) de Piketty aos movimentos de r, a taxa de retorno dessa riqueza. Mas não é só.

Com o avanço das novas tecnologias e a abertura das economias determinadas pelo processo de globalização para acomodar essas transformações, a questão da competitividade se tornou essencial e, como tal, foi alçada ao trono das grandes conquistas, passando-se a exigir dos países integrados à nova ordem internacional, uma remodelação de seus sistemas tributários para não afugentar os fatores de maior mobilidade espacial (capital financeiro, produção, investimentos, exportações, mão de obra qualificada, etc.) de seus territórios, passando-se a priorizar a cobrança de impostos sobre os fatores de menor mobilidade, como o consumo, os trabalhadores não qualificados, as propriedades imobiliárias, entre outros. Isso tem significado substituir estruturas progressivas de tributação por estruturas regressivas, que penalizam mais a população de menor renda, aumentando as desigualdades e estreitando as bases da tributação, limitando, assim, consequentemente, ou decretando o fim do Estado do bem-estar, tal como manda o cardápio da ortodoxia, com implicações para a reprodução da coesão social12 12 Uma discussão mais aprofundada dessas questões pode ser vista em Oliveira (2012). .

As mudanças que conheceu o capitalismo nas últimas décadas transformaram-no, assim, em um grande cassino (o temor manifestado por Keynes em A Teoria Geral), em que o capital percorre livremente o planeta para a obtenção de ganhos fáceis, por meio da especulação, ganhos que devem ser assegurados pelo Estado no orçamento, e enfraqueceu, de outro, o setor produtivo para operar como fonte geradora de emprego para a população, ao mesmo tempo que, em virtude do desmonte do Estado do bem-estar, tem lançado nos bolsões da pobreza e da miséria uma massa crescente da população, tornando-o também bem mais instável com a orgia financeira que brotou com a desregulamentação dos mercados. Para Thurow (1997THUROW, Lester C. O futuro do capitalismo - Como as forças econômicas moldam o mundo de amanhã. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 287), “a instabilidade financeira é, para o capitalismo, aquilo que os problemas sucessórios eram para os reinos medievais ou as ditaduras. Ambos colocam em risco seus respectivos sistemas”. Já para Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 257) a revolta dos despossuídos que pode ocorrer diante de tamanha desigualdade só poderia ser contida se “[...] se concebesse um mecanismo repressivo extremamente eficaz”.

O trabalho de Piketty passa ao largo dessas discussões, embora a elas se refiram de forma esparsa e, por isso, não é capaz de explicar convincentemente por que a desigualdade tem aumentado a uma velocidade assustadora no capitalismo, especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980, bem como as forças reais que estão por trás deste fenômeno. Quando muito enxerga mais claramente essa causa como uma característica do capitalismo contemporâneo com o surgimento de uma classe de trabalhadores muito bem remunerados - os superexecutivos das empresas -, recebendo salários exorbitantes, que passaram a incorporar-se às fileiras dos 10% mais ricos e a formar uma classe média patrimonial, para a qual o sistema tributário teria sido ajustado, reduzindo os impostos sobre os seus rendimentos para evitar sua fuga para outros países. Esse fenômeno estaria contribuindo para aumentar as desigualdades dentro do polo do trabalho e a desigualdade total, dada a maior capacidade destes trabalhadores privilegiados de poupar e, consequentemente, de aumentar sua participação na posse do capital, compensando a queda das heranças na sua composição devido à taxação progressiva sobre o patrimônio.

Piketty parece não enxergar ser essa uma tendência real do sistema nessa nova marcha de insensatez e, por isso, apenas constata que o arcabouço fiscal progressivo do século XX tem se tornado, nessas condições, incapaz de contribuir para deter a escalada do crescimento do montante do capital e do consequente aumento das desigualdades, mesmo com a aprovação da proposta que defende de elevar para 80% ou mais nos países desenvolvidos a alíquota-teto do imposto de renda sobre as pessoas físicas, como existente no passado nem tão remoto. Para ele, dado o crescimento acelerado do capital, seria necessário, na situação atual, criar novos instrumentos para permitir que r (a taxa de retorno) convirja para g (a taxa de crescimento), o que significaria o fim dos rentistas, já que estes terão de investir tudo que ganham para manter sua participação na renda, ao invés de se ter de ficar esperando o abarrotamento do capital para r declinar, o que pode levar muito tempo (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 548).

Daí, a sua proposta de criação de um imposto mundial progressivo sobre o capital, complementar ao imposto de renda e ao imposto sobre as heranças. Uma proposta defensável até mesmo pelos liberais mais esclarecidos, que percebem os riscos que desigualdades extremas representam para a própria reprodução do sistema, mas que desconhecem, de fato, a natureza do capital. Não é muito para um trabalho que foi apontado por Krugman como capaz de mudar a nossa forma de encarar a economia.

3 Uma conclusão sobre o trabalho de Piketty

O maior mérito do trabalho de Piketty é o de ter revelado, com a metodologia que utiliza para analisar as desigualdades no capitalismo, baseada na posição dos milésimos, centésimos e décimos da população na apropriação da renda gerada, o peso e a importância dos muito ricos nessa distribuição. Até então, como coloca Krugman (2014KRUGMAN, Paul. Livro “O capital no século XXI” revoluciona ideias sobre a desigualdade. New York Times, 26 abr. 2014.) em sua resenha sobre o livro, as pesquisas sobre disparidades econômicas desconsideravam os muito ricos e focavam a discussão sobre este tema entre os pobres da classe trabalhadora com nível mais baixo de educação ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados. Com o trabalho de Piketty essa realidade mudou, retirando os muito ricos (os 0,1%, 1% e 10%) das sombras dessas pesquisas que protegiam seu anonimato e revelando seu peso e importância na estrutura das desigualdades.

Principalmente por essa razão, a pesquisa por ele desenvolvida foge dos padrões convencionais e pode ser considerada inovadora por fornecer melhores elementos para a compreensão dessa realidade. Lançando mão de registros tributários dos contribuintes nos países que analisa, Piketty consegue reconstituir historicamente a evolução da estrutura da desigualdade no mundo capitalista desde o século XIX, destacando como a posse do capital, no conceito que emprega, por essas camadas privilegiadas, continua, em contextos históricos e políticos distintos, sendo expressiva na explicação dessa distribuição.

E, mais importante, como seu peso nessa distribuição marcou a Belle Époque como um dos períodos de maior desigualdade, quando o 1% detinha 20% da renda nacional, tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, percentual que oscilava entre 45% e 50% para o décimo superior. Em 1950, essa participação havia caído para menos da metade para o primeiro grupo e para 35% a 40% para o segundo, devido principalmente à queima de capital ocorrida em virtude das duas guerras e das crises econômicas, especialmente a da década de 1930, com o centésimo perdendo força mais que proporcional na explicação da desigualdade.

A partir da década de 1970 e mais ainda de 1980, essa desigualdade voltou a se acentuar, mais especialmente nos Estados Unidos, o que, se bem de acordo com a lógica do sistema, pode conduzir a crescentes questionamentos pelos dele excluídos e até gerar rebeliões contra as suas bases. Essa, a marcha da insensatez de retorno ao perverso padrão de distribuição do século XIX, podendo até ultrapassá-lo, com as políticas econômicas implementadas e com as transformações conhecidas pelo capitalismo.

Não são questões triviais, pois fornecem elementos importantes para a política governamental caso se pretenda, de fato, adotar medidas para reduzir essas desigualdades, sabendo-se que residem principalmente na camada da população pertencente ao centésimo superior e, em menor grau, ao décimo superior, as suas causas. É importante, no entanto, ter clareza se, apesar de contribuir para afastar os conflitos sociais que podem resultar dessas disparidades, na qual os 50% dos mais pobres quase nada possuem de capital e se apropriam de parcelas insignificantes da renda gerada com o trabalho, políticas dessa natureza não sofrerão vetos exatamente do capital na sua ensandecida busca e garantia da riqueza e de seus representantes nos governos e parlamentos. Resposta que o trabalho de Piketty não fornece.

Também é importante o fato de que, tendo demonstrado com essas estatísticas, que depois de ter visto ser enfraquecido no século XX, devido aos problemas provocados pelas guerras e pelas crises econômicas, bem como pelas políticas mais redistributivas com o Estado do bem-estar, o capital acumulado dos muito ricos voltou a se expandir mais aceleradamente no capitalismo contemporâneo, praticamente retornando à sua posição do século XIX, reconstituindo o que ele chama de “capitalismo patrimonial”, no qual o peso das fortunas acumuladas têm forte determinação na distribuição atual e futura das rendas, mas com uma composição um pouco diferente de seus membros.

De acordo com sua análise, enquanto na Belle Époque a riqueza hereditária (as heranças) tinha uma importância muito maior para a renda do capital, embora essa tenha diminuído e cedido espaço entre os 10% mais ricos para uma camada privilegiada de superexecutivos remunerados com supersalários no capitalismo atual, um fenômeno mais característico, embora não somente dos Estados Unidos, ela (a riqueza acumulada) continua sendo predominante na garantia de renda do 1% mais rico. Disso resulta ser a renda do capital e não a renda do trabalho, o que, se fosse o caso, poderia estar indicando uma sociedade mais meritocrática, que predomina no topo da distribuição de renda, atuando como maior propulsor das disparidades existentes. Com um agravante: o de que essa disparidade está crescendo com o aumento mais acelerado do estoque de capital em relação à renda, ou seja, da relação C/Y.

Na sua investigação deve-se destacar, ainda, a importância que adquire o objetivo do crescimento econômico e das políticas redistributivas para deter, diminuir ou até mesmo reverter essa tendência de expansão do capital e de aumento da desigualdade. A análise que realiza para o período de 1950-1970 deixa claro ter sido principalmente devido à maior taxa de crescimento dessa época, combinado com a implementação de políticas de cunho keynesiano e com os benefícios sociais que nasceram com o Estado de bem-estar, a diminuição ocorrida no ritmo de aumento da desigualdade. Tal conclusão é extremamente relevante para a implementação de políticas que, voltadas para este objetivo, privilegiem apenas a distribuição sem a preocupação com a criação de bases para um crescimento mais sustentável, capaz de torná-las consistentes no tempo. Isso porque, se o maior crescimento propicia, no seu esquema, que r convirja para g, é com ele que o Estado consegue obter maiores receitas para implementar políticas de redistribuição.

O trabalho representa, ainda, uma proposta também altamente relevante para desfazer a crença que se formou nos meios governamentais e acadêmicos da ciência oficial - a do mainstream - de que políticas tributárias progressivas em nada contribuem para a redução da desigualdade e de que os impostos não devem ser manejados para este objetivo, dadas as distorções que provocam no funcionamento do sistema, especialmente por prejudicarem a competitividade do país e estimularem a fuga de capitais para outros centros com tratamento tributário mais favorável. Por isso, como se constata de sua análise, a tendência das reformas tributárias no mundo de substituírem essas estruturas de impostos progressivos por estruturas regressivas, que só tenderão, pela sua natureza, a agravar a desigualdade no sistema.

O tratamento de algumas questões, no entanto, diminui o brilho do trabalho e enfraquece a compreensão das forças que estão por trás deste movimento do capitalismo a partir das décadas de 1970 e 1980, bem como de suas implicações para a reprodução do próprio sistema.

Além da elasticidade de seu conceito de capital, como visto, igualando-se ao da riqueza, o que acarreta problemas para o seu modelo teórico, ao não considerar devidamente a reação que nasceu entre os economistas do pensamento conservador com a crise do arcabouço keynesiano, deslocando a preocupação da ciência econômica do crescimento e da criação de emprego para o da estabilização macroeconômica, bem como as teorias que surgiram deste movimento para proteger o capital e a riqueza financeira, alterando a equação da prosperidade, impede-o de compreender as forças reais que estão conduzindo a essa situação, bem como a razão de o capital, considerado em seu sistema, estar expandindo-se mais aceleradamente.

Por outro lado, ao não fazer a distinção entre o capital produtivo e as outras formas de riqueza, que em nada contribuem para a produção real, mesmo que essas diversas formas que o capital assume para obter lucros estejam entranhadas no circuito de valorização financeira, não consegue explicar por que r, apesar de estar aumentando, não se traduz em aumento de g, dissociando-se, por ser fruto principalmente de um capitalismo financeirizado que não tem no setor produtivo sua principal fonte de ganhos, mas no da especulação facilitada pela desregulamentação dos mercados ocorrida desde a década de 1970, visando abrir novas fontes de lucratividade para o capital cumprir a sua sina.

Ora, ao não incluir na sua análise este processo de desregulamentação e a importância que o mesmo adquiriu para a expansão de r e da relação capital/renda, β, embora faça várias referências à expansão financeira, obscurece sua explicação sobre as causas reais da desigualdade pelo fato de seu capital (a riqueza, na verdade) estar expandindo-se ilusoriamente, embora garantindo seu direito à apropriação da renda, por meio principalmente das políticas estatais.

A falta de melhor articulação dos elementos estruturais que moldam o sistema capitalista na atualidade, em decorrência das transformações ocorridas a partir das décadas de 1970 e 1980, limita, assim, sua análise para entender por que se alterou a equação da prosperidade, na qual o crescimento e o emprego perderam espaço para uma forma de riqueza financeira, que se expande sem a contrapartida da riqueza real, tornando o sistema mais desigual e mais vulnerável às crises.

Por isso, a análise do novo papel que passou a ser atribuído ao Estado pela corrente neoliberal, o de mero “fiador da estabilização” e de agente protetor dessa riqueza, fica prejudicada em sua análise, sem respostas convincentes para o desmonte do Estado do bem-estar em curso e para o abandono da política fiscal, incluindo a tributária, como instrumentos de redução das desigualdades para a sustentação dessa nova ordem. Atribuir ao surgimento de uma classe de trabalhadores de alto nível, que passou a ocupar postos-chave nas grandes empresas, os superexcecutivos, recebendo supersalários, significa simplificar em demasia a negação das políticas tributárias progressivas e o aumento da regressividade do sistema tributário e, consequentemente, da desigualdade, quando o que se objetiva com as mesmas é a proteção e a defesa da riqueza em geral.

Por último, faltam também a Piketty melhores argumentos para a defesa da redução da desigualdade e para torná-la mais convincente para o próprio capital. Para isso, seria necessário fazer uma melhor discussão sobre o papel que ao Estado cabe no sistema e as políticas que deve ofertar principalmente para as camadas menos favorecidas da população, visando amortecer os conflitos sociais e impedir que o sistema entre em ebulição, comprometendo sua reprodução. Se, como ele próprio constata, “[...] a redução da desigualdade ao longo do século passado [foi] o produto caótico das guerras e dos choques econômicos e políticos por elas provocados e não o resultado de uma evolução gradual, consensual e branda” (Piketty, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 269) não se pode esperar que apenas com os argumentos de justiça social o capital se convença da importância de sua proposta. Mas, reforçar a ideia do novo caos que pode se instaurar em nível superior ao daquele período, conduzindo o sistema para o colapso, pode contribuir para abrandar as políticas excludentes e insensatas do sistema para manter, minimamente, a coesão social e garantir sua reprodução, permitindo aos ricos, embora com uma riqueza menor, permanecer no paraíso do prazer, do consumo e da ociosidade. Ou novamente esperar por novas catástrofes políticas, econômicas e sociais. Essa, a principal lição que se pode extrair do trabalho de Piketty.

O Relatório de Desigualdade Global de 2018 (Facundo et al., 2018FACUNDO, Alvaredo et al. World inequality report 2018. Investigadores Assoicados/Wide.world.fellows, 2018. Disponível em: https://wir2018.wid.world.
https://wir2018.wid.world...
) revela um quadro ainda mais dramático dessa situação. Em 2016, nos Estados Unidos e Canadá, a parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos havia atingido 47%, contra 34% em 1980 e 42,8% em 2001. Já a do 1% deu um salto de 11% em 1980 para 20% em 2016, praticamente dobrando. Na Europa, onde o Estado do bem-estar é mais robusto que o dos Estados Unidos e as políticas tributárias menos regressivas, as desigualdades são menos acentuadas, mas ainda assim elevadas, com os 10% dos mais ricos se apropriando de 37% da renda e o 1% de 12% em 2016. Em economias emergentes, como a China (41% de renda apropriada pelos 10% mais ricos) e Rússia (46%), esses índices têm registrado um progressivo aumento no tempo, enquanto em outros países, como Brasil (55%) para os 10% mais ricos), África subsaariana (54%) e Oriente Médio (61%), os 50% da população mais pobre estão praticamente alijados do acesso ao mercado de bens e serviços, vivendo em condições de pobreza e de extrema pobreza. Como se projeta uma progressiva piora dessa situação, caso este quadro não seja detido ou revertido com políticas tributárias progressivas e maiores benefícios do Estado para as camadas mais pobres, podendo, inclusive nos Estados Unidos, o 1% da população mais rico se apropriar de até 28% da renda gerada em 2050, as previsões de uma hecatombe social tornam-se cada vez mais reais.

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  • THUROW, Lester C. O futuro do capitalismo - Como as forças econômicas moldam o mundo de amanhã. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • 1
    Ver a este respeito os trabalhos de Kuznets (1955KUZNETS, Simon. Economic growth and income inequality. The American Economic Review, v. 45, n. 1, p. 1-28, 1955.) e de Solow (1956SOLOW, Robert. A contribution to the theory of economic growth. The Quartely Journal of Economics, n. LXX, fev. 1956.).
  • 2
    Piketty não percorre necessariamente este roteiro na análise, embora alguns flashes dessa trajetória apareçam em seu trabalho, por não investigar mais profundamente nem as mudanças mais importantes ocorridas no pensamento econômico com a crise do paradigma keynesiano, nem o conteúdo das novas políticas econômicas surgidas com a hegemonia do pensamento neoliberal. Em algumas passagens de seu livro até menciona ligeiramente o consenso que se formou a partir da década de 1970 de se contar com uma inflação baixa para garantir a estabilidade macroeconômica (p. 135) e também os movimentos de liberalização e desregulamentação dos mercados (p. 139), assim como o processo de financeirização da economia em vários momentos, mas não procura organizá-los para explicar sua influência sobre o aumento das desigualdades e o crescimento do estoque de capital, no conceito que emprega. Nas deficiências que apontamos em seu trabalho sobre essas questões, especialmente na segunda e terceira partes deste estudo, procuramos apresentar, de forma mais organizada, como as mesmas se articularam e afetaram a desigualdade, principal objeto de seu estudo.
  • 3
    Uma lúcida e esclarecedora análise do capital fictício se encontra em Marx (1974MARX, Karl [1894]. O Capital (Crítica da Economia Política); o processo global de produção capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1974 (Livro III)., Livro III) e também em Carcanholo e Nakatani (1999CARCANHOLO, Reinaldo; NAKATANI, Paulo. O capital especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o capital financeiro característico da globalização. Ensaios FEE, Rio Grande do Sul, v. 20, n. 1, 1999, p. 284-304.).
  • 4
    Para um balanço de algumas críticas feitas ao trabalho de Piketty na perspectiva marxista, ver Marques e Leite (2016MARQUES, Rosa Maria; LEITE, Manuel Guedes. Nota crítica sobre “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty. Revista de Economia Política, v. 36, n. 4 (145), p. 684-703, out./dez. 2016. ).
  • 5
    O próprio Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 39) sintetiza o que considera sua contribuição relevante para o assunto: “[...] meu trabalho consiste, antes de tudo, em juntar fontes e mostrar séries históricas sobre a distribuição de renda e a riqueza”.
  • 6
    A análise efetuada por Duménil e Levy (2011DUMÉNIL, Gerárd; LÉVY, Dominique. The crisis of neoliberalism. Massachusetts: Harvard University Press, 2011. 391p.) é mais complexa do que a apresentada aqui, onde priorizamos sua explicação para os altos salários dos executivos no capitalismo atual. Nela, os autores discorrem sobre a nova configuração das classes sociais no mundo capitalista globalizado e financeirizado, identificam este estágio de seu desenvolvimento depois do surgimento das sociedades por ações no final do século XIX como uma terceira etapa deste processo, que denominam de “segunda hegemonia financeira”, bem como a aliança que se forma entre a classe capitalista e a classe gerencial (os trabalhadores especiais), designando essa etapa com o termo de Finanças para caracterizar essa nova fase do sistema que se torna predominante a partir dos anos 1970-1980. Uma boa síntese de sua análise e ideias se encontra em Palludeto e Andrade (2017PALLUDETO, Alex Wilhans Antônio; ANDRADE, Rogério R. Teorias marxistas e a Grande Recessão. Revista de Economia Política , v. 37, n. 3 (148), p. 527-550, jul./set. 2017.).
  • 7
    Como Keynes fez no artigo “Soy un liberal?”, de 1925 (Keynes, 1978KEYNES, John Maynard [1925]. ¿Soy un liberal? In: KEYNES, John M. Ensayos de persuasión. Barcelona: Editorial Crítica, 1988.), Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 37) deixa claro seu compromisso com a doutrina liberal e sua oposição ao socialismo e comunismo, e de também ser, seu objetivo, contribuir para “salvar” o capitalismo: “Fui vacinado bem cedo contra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo e que se recusam a se render aos argumentos intelectuais que permitiriam deixar a retórica gasta para trás”. Para ele, o que de fato interessa, “[...] é contribuir para [...] o debate sobre a organização social, as instituições e as políticas públicas que ajudam a promover uma sociedade mais justa”.
  • 8
    No Brasil, país campeão em termos de desigualdade tributária, a alíquota-teto do imposto de renda das pessoas físicas foi reduzida de 65%, vigente até a década de 1960, para 25% em 1988, uma iniciativa do então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, sob o argumento de estar acompanhando as mudanças internacionais que vinham sendo feitas neste imposto. Em 1995 uma nova “revolução tributária”, comandada pelo então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, cuidaria de ampliar os benefícios do mesmo para o capital e as camadas mais ricas da sociedade. Pela Lei 9.249, de 26 de setembro de 1995, não somente os lucros das empresas distribuídos na forma de dividendos foram isentos de sua incidência como passou-se a subtaxar, com uma alíquota de 15%, sua distribuição na forma de Juros sobre o Capital Próprio (JCP), abaixo, portanto, da tabela progressiva. Além disso, a alíquota do imposto de renda incidente sobre o lucro tributável das empresas foi reduzida de 25% para 15%, bem como os adicionais cobrados sobre as faixas de lucros superiores a determinados limites. Para uma análise mais detalhada dessas mudanças, consultar Hickman e Salvador (2006HICKMAN, Clair Maria; SALVADOR, Evilásio da Silva. 10 anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal, 2006. 204p., p. 57-69) e também o trabalho da Anfip/Fenafisco (2018ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e FENAFISCO - Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital. Eduardo Fagnani (Org.). A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: ANFIP:FENAFISCO: São Paulo: Plataforma de Política Social, 2018. 804p.).
  • 9
    Chama-se a atenção para o fato de que, apesar dessa proposta ter-se tornado consenso no pensamento neoliberal que nasce neste período, o desmonte do Estado do bem-estar tem, ainda hoje, encontrado fortes resistências, especialmente nos países, como os da Europa, onde ele já se encontrava em estágio bem avançado e consolidado e se incorporara à estrutura da sociedade. Mesmo nos Estados Unidos, com um Estado do bem-estar bem mais magro, as políticas neoliberais comandadas por Ronald Reagan com este propósito, na década de 1980, não conseguiram se revelar bem-sucedidas como se esperava.
  • 10
    Embora diferentes em termos de magnitude, considera-se aqui eq22 para facilitar a exposição, mesmo por não serem expressivas as diferenças entre as duas variáveis.
  • 11
    Acrônimo, em inglês, de Non-Acelerating Inflation Rate of Unemployment, o que significa, em português, Taxa de Desemprego não Aceleradora da Inflação.
  • 12
    Uma discussão mais aprofundada dessas questões pode ser vista em Oliveira (2012OLIVEIRA, Fabrício Augusto. Economia e política das finanças públicas no Brasil: um guia de leitura. São Paulo: Editora Hucitec, 2012.).
  • 13
    JEL: I30, E01, D31, E62.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    May-Jul 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    01 Fev 2020
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