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Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e seus Macro Determinantes

Street Children and Their Macro Determinants

Resumos

Este trabalho está baseado nos resultados de uma pesquisa realizada simultaneamente em 20 cidades do Estado de Minas Gerais, no ano de 2007, que teve como objeto de análise todas as crianças e adolescentes com idade até 18 anos incompletos que morassem ou estivessem exercendo qualquer tipo de trabalho nas ruas, nos diversos períodos do dia (manhã, tarde ou noite), durante uma semana de referência. O artigo tem como objetivo analisar o impacto de algumas características agregadas de cada município ao respectivo número de crianças identificadas. Através de regressões lineares multivariadas foram correlacionadas a proporção de crianças e adolescentes em situação de rua em relação aos diferentes Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) e seus diversos componentes. Os resultados foram significativos, em especial no que se refere às variáveis "escolaridade dos adultos" e "longevidade". Entre as principais conclusões tem-se que parecem existir fatores ou características de caráter comunitário que propiciam ou não a maior ocorrência de crianças trabalhando nas ruas.

Crianças e adolescentes; Rua; Trabalho; Determinantes; Municípios


This paper is based on the results of a survey carried out simultaneously in 20 cities of the State of Minas Gerais in 2007. This research intended to survey all children and teenagers up to 18 years old who were living or exercising any type of work on the streets of these cities at different times of the day and night (morning, afternoon or evening) during one week of reference. The paper analyzed the impact of some characteristics of each municipality on the number of street children found. Through multivariate linear regression, the proportion of children and teenagers in street situation was correlated with different Municipal Human Development Indexes (HDI-M) and their various components. The results were significant, particularly with regard to the variables "adults' level of schooling" and "longevity". We concluded that there seems to be specific community factors or characteristics that increase or not the number of children working on the streets.

Children and teenagers; Street; Work; Determinants; Cities


PARTE I - ARTIGOS

Crianças e adolescentes em situação de rua e seus macro determinantes1 1 Esta pesquisa foi financiada com recursos da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG, projeto Crianças e seus Domicilios na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Street children and their macro determinants

Frederico Poley Martins Ferreira

Doutor em Demografia. Pesquisador Pleno da Fundação João Pinheiro. Endereço: Alameda das Acácias, 70, São Luiz, CEP 31275-150, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: poley@hotmail.com

RESUMO

Este trabalho está baseado nos resultados de uma pesquisa realizada simultaneamente em 20 cidades do Estado de Minas Gerais, no ano de 2007, que teve como objeto de análise todas as crianças e adolescentes com idade até 18 anos incompletos que morassem ou estivessem exercendo qualquer tipo de trabalho nas ruas, nos diversos períodos do dia (manhã, tarde ou noite), durante uma semana de referência. O artigo tem como objetivo analisar o impacto de algumas características agregadas de cada município ao respectivo número de crianças identificadas. Através de regressões lineares multivariadas foram correlacionadas a proporção de crianças e adolescentes em situação de rua em relação aos diferentes Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) e seus diversos componentes. Os resultados foram significativos, em especial no que se refere às variáveis "escolaridade dos adultos" e "longevidade". Entre as principais conclusões tem-se que parecem existir fatores ou características de caráter comunitário que propiciam ou não a maior ocorrência de crianças trabalhando nas ruas.

Palavras-chave: Crianças e adolescentes; Rua; Trabalho; Determinantes; Municípios.

ABSTRACT

This paper is based on the results of a survey carried out simultaneously in 20 cities of the State of Minas Gerais in 2007. This research intended to survey all children and teenagers up to 18 years old who were living or exercising any type of work on the streets of these cities at different times of the day and night (morning, afternoon or evening) during one week of reference. The paper analyzed the impact of some characteristics of each municipality on the number of street children found. Through multivariate linear regression, the proportion of children and teenagers in street situation was correlated with different Municipal Human Development Indexes (HDI-M) and their various components. The results were significant, particularly with regard to the variables "adults' level of schooling" and "longevity". We concluded that there seems to be specific community factors or characteristics that increase or not the number of children working on the streets.

Keywords: Children and teenagers; Street; Work; Determinants; Cities.

Introdução

Este trabalho está baseado nos resultados de uma pesquisa realizada simultaneamente em 20 cidades mineiras, no final de 2007, que teve como objeto de análise todas as crianças e adolescentes com idade até 18 anos incompletos encontradas morando ou exercendo qualquer tipo de atividade econômica nos diferentes logradouros públicos.

Mesmo com a melhoria das ações e o esforço de muitas instituições, o problema das crianças e adolescentes em situação de rua, de forma geral e especificamente o trabalho infantil nas ruas, ainda é persistente, demandando esforços de melhor qualidade para sua completa restrição. É cada vez mais necessário o conhecimento dos empecilhos que efetivamente barram uma maior efetividade das políticas públicas voltadas para essa questão social.

Cabe observar que no Brasil, dadas as dificuldades em se obter esse tipo de informação, os levantamentos disponíveis sobre crianças e adolescentes em situação de rua normalmente se referem a estudos de caso, circunscritos a determinadas cidades, espaços e períodos.

Por suas próprias características, esses trabalhos padecem de pelo menos duas limitações: por um lado, a maioria das pesquisas se restringe às grandes cidades, geralmente sedes de regiões metropolitanas. Por outro lado, mesmo para esses tipos de municípios, os estudos tendem a ter fortes limitações de comparabilidade, tanto em decorrência da diversidade metodológica - das estratégias de coleta dos dados, dos instrumentos de coleta - como em virtude de as pesquisas ocorrerem em períodos muito distintos - aspectos importantes para um fenômeno cujas características variam muito.

Soma-se a esses fatos a dificuldade em se dimensionar ou mesmo realizar estudos comparativos numa perspectiva mais geral. Muitas vezes, cada município, entidade ou organização trabalha com um conceito e, consequentemente, um público diferente. Isso se torna um grande complicador. Também no que se refere, propriamente, à identificação das crianças e adolescentes em situação de rua, ocorre uma série de problemas (Ferreira e Machado, 2007). Por exemplo, considerando-se as pesquisas oficiais, como os Censos Demográficos ou mesmo as Pesquisas Nacionais por Amostra Domiciliar (PNAD), é extremamente complexo definir quem de fato seriam essas crianças. Seja devido ao aspecto de não identificar o que elas fazem nas ruas, já que muitas estão nos setores informais da economia, seja porque muitas famílias que se mantém nas ruas também não possuem domicílio.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF - reconhece essa heterogeneidade e em sua principal definição de crianças de rua identifica pelo menos duas grandes categorias: "crianças na rua" e "crianças de rua" (UNICEF, 2009). Nesse sentido, "crianças na rua" seriam as crianças que passam grande parte do dia na rua, mas têm algum apoio familiar e geralmente voltam para casa à noite; "crianças da rua" seriam crianças que passam mais dias e noites na rua e não recebem apoio familiar.

No entanto, independentemente do tempo que as crianças permanecem nas ruas, ou se elas possuem ou não laços familiares, ou mesmo se vivem nas ruas, o "trabalho" é uma estratégia e um elemento comum a todas elas.

Assim, especificamente para a pesquisa em Minas Gerais, estabeleceu-se como ponto de partida que todas as crianças e adolescentes, com idade inferior a 18 anos, encontrados em logradouros públicos, morando nesses locais ou exercendo quaisquer tipos de atividade econômica (lícita ou ilícita), em quaisquer horários, seriam considerados como público-alvo e, por isso mesmo, entrevistados.

Nos casos em que as crianças eram muito pequenas (com idade inferior a 7 anos), o questionário foi respondido por algum adulto ou criança mais velha que as acompanhavam. Também foram incluídas aquelas crianças/adolescentes com trajetória de rua e que estivessem em instituições do tipo "casas de passagem" e "abrigos" a menos de três meses em relação à data da pesquisa.

Todas as ações foram acompanhadas por um grupo de trabalho e monitoramento, composto de várias entidades que, inclusive, têm assento junto ao Conselho Estadual da Criança e do Adolescente de Minas Gerais - CEDCA, dentre elas: Ministério Público Estadual, Delegacia Regional do Trabalho, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente - FECTIPA, além da Secretaria Estadual de Defesa Social de Minas Gerais - SEDESE, que comissionou a Fundação João Pinheiro para o desenvolvimento metodológico, realização e acompanhamento dos trabalhos de campo.

Durante a pesquisa, foram observados os compromissos éticos na abordagem de crianças vulneráveis. O Conselho Estadual da Criança e do Adolescente aprovou o projeto e as organizações locais da sociedade civil que trabalham com esse público foram consultadas. As identidades das crianças foram protegidas pelo anonimato dos dados. Na interpretação dos resultados foram levados em conta os padrões estabelecidos no livro de (Hungerland e col., 2007), onde, "acima de tudo", a investigação deve contribuir para a melhoria das condições de vida dessas crianças procurando sempre refletir o que de fato isso significa.

De acordo com a metodologia aplicada, observou-se que as crianças e adolescentes que exercem ocupações nas ruas não estão dispersos de forma aleatória no espaço. Essas crianças acabam por estar concentradas em determinados pontos, em certos horários (cruzamento de avenidas, semáforos, áreas de bares e restaurantes, próximos a estradas etc.). Esse aspecto permitiu que as prováveis áreas ocupadas com crianças fossem mapeadas e posteriormente visitadas pelos entrevistadores.

Especificamente nos municípios, a pesquisa foi realizada em conjunto com as respectivas Prefeituras Municipais e entidades locais, como: Organizações não governamentais, igrejas, Ministério Público, Política Militar etc., e que atuassem no nível local com o tema da criança e do adolescente. Essas entidades também tiveram papel fundamental na identificação e no mapeamento dos pontos de aglomeração e no processo de abordagem dessas crianças nas ruas.

Dessa maneira, para as diferentes áreas urbanas foram elaborados pelo menos três mapas em escalas que permitissem, no mínimo, a identificação do arruamento (nas cidades maiores foi necessário utilizar mapas por regiões e ou por bairros). Cada mapa se referia às concentrações de crianças em um período: manhã, tarde e noite/madrugada.

Por sua vez, os recenseadores foram selecionados entre profissionais (educadores de rua, estudantes de psicologia, serviço social, entre outros) das diferentes Prefeituras, e também pessoas de entidades públicas e não governamentais que, no seu dia a dia, lidavam com o público da pesquisa2 2 Mais detalhes sobre esses aspectos vide Ferreira, 2009. .

Após serem abordadas, as crianças que concordavam com a entrevista respondiam a um questionário3 3 O questionário, especialmente elaborado para o contexto das crianças e adolescentes pesquisados, passou por vários testes no sentido de verificar se as questões eram compreensíveis para as crianças. As perguntas foram deliberadamente diretas e simples: Você trabalha?; Você tem patrão?; Quantas horas você trabalha?; Você vai à escola? etc. Em média, as entrevistas tinham a duração de 35 minutos. com 25 questões, onde as perguntas foram organizadas em sete blocos: características individuais, educação, família, ocupação nas ruas, características do local onde morava, saúde/violência e expectativas em relação ao futuro (questão aberta).

Ao final dos trabalhos de campo, os questionários passaram por intenso processo de crítica e revisão, onde as respostas eram checadas no sentido de se averiguar, principalmente, se as crianças entrevistadas estavam ou não dentro do conceito estabelecido para o público-alvo e a existência de dupla contagem.

Como resultado, a pesquisa em Minas Gerais propiciou a obtenção de uma grande quantidade de dados, por meio de uma mesma metodologia e com um mesmo período de referência. A pesquisa abordou 3.020 crianças e adolescentes nos 20 municípios no período de 20 a 26 de agosto de 2007.

Alguns Aspectos Teóricos

Ao rever a literatura poderíamos classificar os trabalhos que tratam das causalidades do fenômeno das crianças e adolescentes em situação de rua em pelo menos três grandes grupos: os que levam em consideração influências "micro", "meso" e "macro ou estruturais" (Ferguson, 2006).

No que se refere às características "micro", estariam concentradas as teorias e análises relacionadas às características individuais e psicológicas das crianças e adolescentes e das famílias nas quais estão inseridas. Nessa vertente, os autores procuram determinar quais os fatores e determinantes que levam os jovens a sobreviver/permanecer nos logradouros públicos. Basicamente, essa literatura é proveniente de trabalhos elaborados nas áreas de psicologia social, medicina e serviço social.

Muitos estudos nessa perspectiva identificam a ida para as ruas como sendo um problema essencialmente individual e psicológico. Observa-se que muitas dessas crianças vêm de famílias vulneráveis, desestruturadas, cheias de necessidades e que não são capazes de se sustentar emocionalmente e financeiramente, inclusive apresentando dificuldades de adesão às regras comumente aceitas pela sua comunidade (Cosgrove, 1990; Duyan, 2005; Emerson e Souza, 2002).

Um segundo grupo de teorias ou "meso" estaria focado nas justificativas mais relacionadas às condições precárias de sobrevivência, à violência e à falta de recursos e oportunidades nas comunidades nas quais as crianças e adolescentes estão inseridas. Sob esse ponto de vista, as análises também se referem às especificidades do mercado de trabalho existente, como: a informalidade, a baixa qualificação, a pouca oferta de empregos e o baixo desenvolvimento humano (Panter-Brick, 2001; Basu, 2003; Pinzon-Rondon, 2008).

Finalmente, uma terceira vertente estaria relacionada a influências estruturais ou fatores "macro", como os processos de globalização econômica, urbanização acelerada e movimentos sociais, tendo, entre outras consequências, o aprofundamento de processos de exclusão e a marginalização dos grupos mais vulneráveis como os das populações de rua (Minayo, 1992; Rizzini e Butler, 2003; Rosemberg, 2005).

Mesmo identificando essas classificações é importante ressaltar que, muitas vezes, as delimitações teóricas são arbitrárias. Assim sendo, há também uma série de trabalhos que poderiam ser incluídos numa perspectiva de síntese.

Aqui, considera-se que a questão das crianças e adolescentes que se encontram nas ruas, muito provavelmente, envolve fatores e causalidades que acabam por mesclar considerações de várias abordagens, aumentando a complexidade do tema.

Alguns autores observam que a permanência das crianças e adolescentes nas ruas é resultado de um conjunto de forças de atração e de repulsão muito mais variado e distinto do que aquele observado em relação às opções existentes para os adultos. De acordo com Ribeiro:

Os relatos apresentados pelas crianças rompem com a ideia dos que acreditam que elas estão na rua por vontade própria. Na realidade, para elas, a rua é uma alternativa em função de uma situação circunstancial e de suas condições de vida. Mesmo quando as crianças buscam a rua para ter liberdade e diversão, essa escolha resulta das restritas possibilidades que encontram para integrarem-se ou manterem-se em atividades escolares ou desportivas (Ribeiro, 2003, p. 623).

Nesse mesmo sentido, é interessante a observação de Martins, onde:

Com a publicação de trabalhos sistemáticos, sejam contagens ou censos, encontramos um número muito pequeno de crianças e adolescentes (comparado com os primeiros números) usando o espaço da rua para a busca de sustento próprio ou próprio e família (Martins, 2000; Rizzini e Rizzini, 1996; Rosemberg, 1994, 2005). Esse fato nos obriga a refletir a questão da pobreza como única responsável pela situação desses indivíduos. A outra hipótese explicativa tem sido a violência doméstica, aliada ou não à pobreza, violência que pode vir de pais ou responsáveis mentalmente enfermos, usuários de drogas licitas ou ilícitas ou condições de vida desfavoráveis e, por último, a questão da modernidade tem sido vista pelo impacto das transformações que todas as culturas estão sofrendo, como o aumento crescente das populações das cidades, em detrimento do campo, novas tecnologias diminuindo o número de empregos (Martins, 2000, p. 253).

Dadas essas observações, procurou-se de forma exploratória testar algumas hipóteses sobre a influência de determinadas características agregadas dos municípios vis-à-vis a variação relativa do número de crianças e adolescentes encontrados em situação de rua.

É interessante observar que, sendo a pesquisa feita em várias cidades, ao mesmo tempo e com a mesma metodologia, os dados permitem testar fatores que levam em consideração características de caráter "comunitário" ou de "desenvolvimento humano" das localidades.

Ao se trabalhar com diferentes realidades, existe a necessidade de explicação que enfatize um ou outro aspecto individual, porém também deve-se levar em conta aspectos do "coletivo" nos quais esses jovens estão inseridos.

Aqui, considerou-se hipoteticamente que determinadas características comunitárias (agregadas) teriam influência no sentido da maior permissividade à ocorrência do trabalho de crianças e adolescentes nas ruas, inclusive apoiando o desenvolvimento dessas atividades.

Empiricamente, isso pode se refletir mais em determinadas comunidades do que em outras, num maior número de pessoas comprando os mais diversos artigos, maior quantidade de pessoas dando esmolas, empresários empregando, mesmo que informalmente, em atividades que se desenvolvem nas ruas (por exemplo, foi constatado em vários municípios que entre grandes empregadores de crianças e adolescentes que trabalhavam nas ruas estavam fábricas e revendedores de balas, picolés, gráficas, jornais, entre outros).

Metodologia

Para que os dados entre os municípios sejam comparáveis, foi necessário dissipar os efeitos do tamanho absoluto da população com idade inferior a 18 anos. A diferença no número de crianças e adolescentes por município poderia influenciar na quantidade de crianças encontradas em situação de rua.

Para se ter uma ideia dessa variação, a Tabela 1 indica a distribuição proporcional das crianças e adolescentes com idade até 18 anos incompletos estimados para 2007 por município analisado. Como se pode observar, existem variações consideráveis em seu número logicamente determinadas pelo porte populacional das localidades.

Para eliminar esse efeito foi necessário calcular o número relativo das crianças em situação de rua. Essa variável foi obtida a partir do quociente entre o número encontrado na pesquisa e o total da população com até 18 anos incompletos estimado para cada municipalidade no ano de 2007 vezes 100.

Relativamente, os municípios que apresentaram uma maior proporção de crianças e adolescentes em situação de rua não foram aqueles com maiores populações. Nesse caso, Almenara e Muriaé foram as cidades com maiores proporções de jovens em situação de rua. Ao contrário, localidades de grande porte como Belo Horizonte, Juiz de Fora, Montes Claros e Betim apresentaram porcentuais menores. Deve-se observar que a variação relativa do número de crianças é a variável que desejamos analisar (dependente).

Por sua vez, a Tabela 2 fornece um detalhamento do IDH-M para cada um dos municípios considerados. Os dados desse índice são referentes ao ano 2000.

Nessa perspectiva é importante registrar que, dado o caráter exploratório desse estudo, um dos principais objetivos foi identificar correlações entre as diversas variáveis analisadas que compreendem características municipais sintetizadas nos subíndices e componentes do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH (PNUD, 2003).

Basicamente, o IDH foi criado no início da década de 1990 para o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) combinando três componentes do desenvolvimento humano: a longevidade, que reflete as condições de saúde da população, medida pela esperança de vida ao nascer; a educação, medida pela combinação da taxa de alfabetização de adultos e a taxa combinada de matrícula; e a renda, medida pelo poder de compra da população (PIB per capita ajustado ao custo de vida local) (PNUD, 2003).

Nesse sentido e de acordo com Fukuda-Parr e Kumar:

A desagregação do IDH tem se mostrado particularmente útil para a defesa e análise de políticas. A construção de IDH subnacionais tem contribuído para chamar a atenção para níveis baixos e para desigualdades gritantes do processo de desenvolvimento - entre áreas urbanas e rurais, ao longo de estados e de províncias, e entre comunidades étnicas diferentes. Tentativas têm sido feitas também no sentido de avaliar progressos a curto prazo no desenvolvimento humano (Fukuda-Parr e Kumar, 2007, p. 30).

Assim, os modelos e seus respectivos testes de hipóteses foram formulados a partir das combinações dos componentes do IDH-M, que se mostraram mais significativos, e também de alguns indicadores que os compõem.

No processo de escolha dos melhores modelos, a regressão linear múltipla apresentou resultados bastante consistentes e com poucas restrições4 4 Não ocorreram restrições quanto à multicolinearidade, heterocedasticidade e autocorrelação. . Especificamente, foram utilizados como variáveis explicativas os dados de uma variante do IDH o IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal), cujos objetivos e estrutura são os mesmos que os do IDH, porém com pequenas alterações nos componentes utilizados no caso dos indicadores de educação e de renda. Basicamente, há uma substituição do indicador PIB per capita pela renda familiar per capita média do município. No caso da educação, a taxa bruta de matrícula combinada foi substituída pela taxa bruta de frequência combinada (Para uma justificativa mais detalhada dessas adaptações, vide PNUD (2003)).

Resultados e Discussão

A Tabela 3 contém os resultados relativos aos coeficientes estimados a partir da combinação dos diferentes componentes do IDH e seus respectivos coeficientes de determinação estimados em diferentes modelos.

Além da constante (ßo), os coeficientes calculados e relacionados ao componente Educação se mostraram bastantes significativos. Nesse caso, melhorias nesse subíndice significam reduções consideráveis no número relativo de crianças e adolescentes encontrados nas ruas.

Nos modelos, chama também a atenção o fato de os coeficientes estimados para a componente renda não serem significativos e nem os modelos que as levam em consideração serem robustos (existem coeficientes com sinais trocados).

Especificamente no caso da renda, como já observado por alguns autores na parte teórica, a pobreza não necessariamente seria um determinante para a permanência das crianças nas ruas.

Esses resultados podem estar indicando que se devem aprofundar as discussões da relação pobreza x crianças e adolescentes em situação de rua, tanto a partir dos impactos da pobreza enquanto categoria "individual", ou seja, domiciliar/familiar, quanto sob uma perspectiva mais geral, através de indicadores médios das comunidades nas quais essas crianças estão inseridas.

Dessa maneira, o componente refere-se à renda familiar média per capita do município, um indicador agregado que dilui as especificidades no caso dos domicílios/famílias que possuam crianças em situação de rua.

O mesmo argumento é válido para o caso da longevidade que, a principio, teria a função de representar as condições gerais de saúde da população e não de grupos ou domicílios, cujos membros possuam características específicas.

Porém, de forma bastante interessante, a componente longevidade, quando correlacionada de forma isolada, se mostrou significativa. Paralelamente, em todas as estimativas para longevidade, os sinais das variáveis indicam que variações positivas na esperança de vida da população municipal se correlacionam negativamente com o número relativo de crianças e adolescentes encontrados nas ruas.

Comparando os coeficientes de determinação ajustados, nota-se os valores mais altos nos modelos que envolvem a educação, também se destacando o modelo que apenas considera a longevidade.

Partindo-se da constatação de que a componente educação se mostrou a mais significativa e com uma boa capacidade explicativa, procurou-se decompor seus indicadores (taxa de alfabetização de adultos e taxa bruta de frequência combinada) e testar a contribuição específica de cada um.

É importante observar que, no cálculo da componente educação, a metodologia desenvolvida para o computo do IDH confere à taxa de alfabetização de adultos peso 2, e à taxa bruta de frequência peso 1. Ao calcularmos os modelos com essas variáveis essas ponderações não foram levadas em consideração.

A Tabela 4 indica as correlações desenvolvidas a partir das duas componentes do indicador Educação.

No modelo 8, que leva em consideração essas variáveis, o coeficiente estimado para a taxa de alfabetização de adultos mostrou-se muito significativo, ao contrário do componente taxa bruta de frequência combinada; sendo que o coeficiente de determinação desse modelo se mostrou elevado e superior a todos os outros modelos até então estimados.

Nota-se que o fato da taxa bruta de frequência combinada não se mostrar significativa em nenhum modelo vai de encontro aos resultados obtidos pela pesquisa, que podem ser verificados na Tabela 5.

Foi observado que a grande maioria das crianças e adolescentes que se encontravam nas ruas estava frequentando a escola.

Dessa maneira, por exemplo, Januária, onde foi encontrada a maior quantidade relativa de jovens nas ruas, também apresentou a maior proporção de crianças que declararam estar frequentando aulas. Por sua vez, Poços de Caldas obteve a menor proporção de crianças nas escolas, 60,71% do total pesquisado no município. Na média geral do público pesquisado, mais de 75% declararam estar frequentando escolas. Como a taxa bruta de frequência mensura exatamente a proporção de pessoas que frequentam a escola (ensinos fundamental, médio e superior) nas idades entre 7 a 22 anos, não foi surpreendente o fato de esse indicador não se mostrar significativo e os modelos serem pouco robustos.

Conclusões

De uma maneira geral, as ações envolvidas para as crianças e adolescentes em situação de rua são complexas e de média e longa duração. A atuação pública e os serviços ofertados devem observar essa característica dos problemas abordados. Nas palavras de Impelizieri:

Além dos determinantes macroscópicos da pobreza, há também circunstâncias como o infortúnio individual ou conflitos domésticos que não podem ser efetivamente influenciados por políticas governamentais. Ao lado da mera existência de instrumentos legais para proteger os direitos das crianças é preciso haver agentes imparciais e potentes para fazê-los efetivamente respeitados (Impelizieri, 1995, p. 121).

Nesse contexto, existe a necessidade de racionalização, principalmente na forma de ação dos órgãos públicos, tanto no que se refere à fiscalização do cumprimento da legislação, como no estabelecimento de políticas de planejamento, incluindo-se nesse aspecto a elaboração geral das políticas públicas. No entanto, para que isso ocorra a contento, são necessários, cada vez mais, dados, avaliações e estabelecimento de relações causais entre as variáveis sociais analisadas.

Esse trabalho caminha nessa perspectiva. No entanto, os modelos estimados e seus resultados devem ser considerados com cuidado.

Como já exposto, as estimativas são de caráter exploratório e, por isso mesmo, é muito complicado estabelecer relações diretas, como, por exemplo, explicando parte das causas da variação no número de crianças e adolescentes encontrados em situação de rua através das mudanças na alfabetização da população adulta; assim como a correlação imediata da variação das esperanças de vida dos municípios com hipóteses de redução da violência e do número de jovens em situação de rua.

O que se pode de fato afirmar é que parecem existir algumas funções com esses aspectos, o que incita a necessidade de mais análises e pesquisas a partir dessa perspectiva.

No entanto, esses resultados podem indicar alguns caminhos para a formulação e avaliação das políticas públicas. Basicamente, não adianta focarmos apenas nas características das crianças e adolescentes sem nos preocuparmos com seu entorno, aqui entendido como as especificidades das comunidades nas quais estão inseridas.

Identificar quais variáveis, de fato, interferem no comportamento comunitário e familiar é um grande desafio.

Em última análise, ao lidar com médias de características populacionais, ficam alguns aspectos que merecem ser mais bem analisados; por exemplo, seria importante definir como se dão as variações no número relativo de crianças em situação de rua a partir da alteração do padrão distribucional de renda das famílias.

Da mesma maneira, como a pesquisa não obteve os dados da escolaridade dos pais dessas crianças, não se pode desenvolver uma análise mais acurada relacionando as crianças e adolescentes em situação de rua com a escolaridade ou com outras características de seus genitores e/ou responsáveis adultos5 5 É interessante observar que alguns estudos já vêm demonstrando a relação entre escolaridade e experiência laboral prévia dos pais com a ocorrerência de trabalho entre os filhos ou trabalho infantil. Vide Emerson e Souza, 2002. .

Porém, mesmo assim, como pôde ser observado, em termos absolutos, o número de adultos analfabetos nos municípios e o número das famílias com pais analfabetos são muito maiores que o número de crianças encontradas nas ruas e, respectivamente, suas famílias, indicando provavelmente um efeito agregado.

Nessa perspectiva, o ideal seria verificar e mensurar como as características individuais e familiares interagem no sentido de gerar um determinado comportamento comunitário e como essa coletividade influencia o comportamento individual. As características sintéticas municipais, representadas por índices e médias de variáveis, podem até incluir esses últimos efeitos, porém com várias perdas de especificidade.

Recebido em: 23/03/2010

Reapresentado em: 11/02/2011

Aprovado em: 20/02/2011

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  • ROSEMBERG, F. Childhood and social inequality in Brazil. In: PENN, H. (Org.). Unequal childhoods: young children's lives in poor countries. New York: Routledlage, 2005. p. 142-170.
  • UNICEF. Situação da infância e da adolescência brasileira: o direito de aprender potencializar avancos e reduzir desigualdades. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/siab_capitulos.pdf>. Acesso em: 21 out. 2009.
  • 1
    Esta pesquisa foi financiada com recursos da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG, projeto Crianças e seus Domicilios na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
  • 2
    Mais detalhes sobre esses aspectos vide Ferreira, 2009.
  • 3
    O questionário, especialmente elaborado para o contexto das crianças e adolescentes pesquisados, passou por vários testes no sentido de verificar se as questões eram compreensíveis para as crianças. As perguntas foram deliberadamente diretas e simples: Você trabalha?; Você tem patrão?; Quantas horas você trabalha?; Você vai à escola? etc. Em média, as entrevistas tinham a duração de 35 minutos.
  • 4
    Não ocorreram restrições quanto à multicolinearidade, heterocedasticidade e autocorrelação.
  • 5
    É interessante observar que alguns estudos já vêm demonstrando a relação entre escolaridade e experiência laboral prévia dos pais com a ocorrerência de trabalho entre os filhos ou trabalho infantil. Vide Emerson e Souza, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      20 Fev 2011
    • Revisado
      11 Fev 2011
    • Recebido
      23 Mar 2010
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