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Oligarquia e processos de oligarquização: o aporte de Michels à análise política contemporânea

Oligarchy and processes of oligarchization: Michels' contribution to contemporary political analysis

L'oligarchie et les processus d'oligarchisation: la contribution de Michels à l'analyse politique contemporaine

Resumos

O termo "oligarquia" perdeu boa parte de sua utilidade analítica na Ciência Política em virtude de seu uso pouco rigoroso, tornando-se mais um adjetivo de aplicação subjetivamente orientada do que um conceito instrumentalizável para a pesquisa empírica e a reflexão teórica. Este artigo visa a retomar a contribuição fundamental de Robert Michels com vistas a obter maior clareza terminológica e serventia para a pesquisa empírica. A partir do conceito micheliano é possível elaborar um modelo institucional de análise que permita identificar e explicar processos de oligarquização de organizações sociais e políticas específicas, compreendendo sua lógica institucional de modo a entender como a vida coletiva organizada passa frequentemente a operar de um modo destoante dos princípios de legitimação válidos para determinadas coletividades capturadas por oligarquias.

oligarquia; oligarquização; Robert Michels; organizações políticas; representação política


The term "oligarchy" has lost most of its analytical usefulness in Political Science, in virtue of how loosely it has been employed, becoming more of a subjectively-applied label than a conceptual tool for empirical research and theoretical reflection. This article revisits Robert Michels' major contribution in search of greater conceptual clarity and usefulness for empirical research. Through Michel's concept we are able to suggest a model of institutional analysis that enables us to identify and explain processes of oligarchization of specific social and political organizations, understanding their institutional logic in such a way as to understand how organized collective life frequently operates in ways that run against the grain of the legitimation that particular collectivities bound to the oligarchy consider valid.

Oligarchy; Oligarchization; Robert Michels; Political Organizations; Political Representation


Le terme « oligarchie » a perdu une bonne partie de son utilité analytique dans la Science Politique à cause de son usage peu rigoureux, ce qui l'a rendu plutôt l'aspect d'un adjectif d'application subjectivement orientée au lieu d'un concept instrumentalisable pour la recherche empirique et la réflexion théorique. Cet article vise à reprendre la contribution fondamentale de Robert Michels avec le but d'éclairer la terminologie et servir à la recherche empirique. A partir du concept michelien, c'est possible d'élaborer un modèle institutionnel d'analyse pour l'identification et l'explication des processus d'oligarchisation de certaines organisations sociales et politiques, en comprenant leur logique institutionnelle, de façon à vérifier comment la vie collective organisée agit souvent d'une manière différente des principes de légitimation valables pour certaines collectivités prises par des oligarchies.

oligarchie; oligarchisation; Robert Michels; organisations politiques; représentation politique


DOSSIÊ "O CENTENÁRIO DE SOCIOLOGIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS, DE ROBERT MICHELS"

Oligarquia e processos de oligarquização: o aporte de Michels à análise política contemporânea1 1 A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do GV-Pesquisa. Agradeço a Leany Lemos pelos comentários a uma versão preliminar deste texto

Oligarchy and processes of oligarchization: Michels' contribution to contemporary political analysis

L'oligarchie et les processus d'oligarchisation: la contribution de Michels à l'analyse politique contemporaine

Cláudio Gonçalves Couto

Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). (claudio.couto@fgv.br)

RESUMO

O termo "oligarquia" perdeu boa parte de sua utilidade analítica na Ciência Política em virtude de seu uso pouco rigoroso, tornando-se mais um adjetivo de aplicação subjetivamente orientada do que um conceito instrumentalizável para a pesquisa empírica e a reflexão teórica. Este artigo visa a retomar a contribuição fundamental de Robert Michels com vistas a obter maior clareza terminológica e serventia para a pesquisa empírica. A partir do conceito micheliano é possível elaborar um modelo institucional de análise que permita identificar e explicar processos de oligarquização de organizações sociais e políticas específicas, compreendendo sua lógica institucional de modo a entender como a vida coletiva organizada passa frequentemente a operar de um modo destoante dos princípios de legitimação válidos para determinadas coletividades capturadas por oligarquias.

Palavras-chave: oligarquia; oligarquização; Robert Michels; organizações políticas; representação política.

ABSTRACT

The term "oligarchy" has lost most of its analytical usefulness in Political Science, in virtue of how loosely it has been employed, becoming more of a subjectively-applied label than a conceptual tool for empirical research and theoretical reflection. This article revisits Robert Michels' major contribution in search of greater conceptual clarity and usefulness for empirical research. Through Michel's concept we are able to suggest a model of institutional analysis that enables us to identify and explain processes of oligarchization of specific social and political organizations, understanding their institutional logic in such a way as to understand how organized collective life frequently operates in ways that run against the grain of the legitimation that particular collectivities bound to the oligarchy consider valid.

Keywords: Oligarchy; Oligarchization; Robert Michels; Political Organizations; Political Representation.

RESUMÉ

Le terme « oligarchie » a perdu une bonne partie de son utilité analytique dans la Science Politique à cause de son usage peu rigoureux, ce qui l'a rendu plutôt l'aspect d'un adjectif d'application subjectivement orientée au lieu d'un concept instrumentalisable pour la recherche empirique et la réflexion théorique. Cet article vise à reprendre la contribution fondamentale de Robert Michels avec le but d'éclairer la terminologie et servir à la recherche empirique. A partir du concept michelien, c'est possible d'élaborer un modèle institutionnel d'analyse pour l'identification et l'explication des processus d'oligarchisation de certaines organisations sociales et politiques, en comprenant leur logique institutionnelle, de façon à vérifier comment la vie collective organisée agit souvent d'une manière différente des principes de légitimation valables pour certaines collectivités prises par des oligarchies.

Mots-clés: oligarchie; oligarchisation; Robert Michels; organisations politiques; représentation politique.

I. INTRODUÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DE MICHELS

Talvez a contribuição teórica de maior alcance do clássico trabalho de Robert Michels (MICHELS, 2001 [1915]), Sociologia dos partidos políticos, tenha sido a de ter-nos legado um conceito descritivo de oligarquia, aplicável não somente aos partidos, mas a diversas formas organizacionais nas quais relações de poder se estabelecem. Michels superou as concepções clássicas do termo, centradas na preocupação normativa com o bom ou mal governo (PLATÃO, 1989; ARISTÓTELES, 1991), assim como o uso dessa palavra pelo senso comum, centrado na detratação de grupos políticos dos quais não se gosta (NAVARRO, 2007; MAGNOLI, 2009). O conceito micheliano de oligarquia permite identificar processos mediante os quais certos grupos apoderam-se do poder organizacional, entrincheirando-se e tornando-se infensos a controles, sejam eles democráticos ou meritocráticos. Tal aporte conceitual permite problematizar questões centrais da análise política contemporânea, como a representação, a accountability, a corrupção e a eficácia dos órgãos de ação coletiva, dentre eles, notadamente, o Estado e suas instituições representativas e de governo.

Contudo, a obra de Michels não se circunscreve aos estudos partidários ou à elaboração de um conceito de oligarquia de ampla utilização. É possível identificar no trabalho de Michels uma contribuição ao menos a quatro vertentes do debate político:

i. pela própria origem de Michels e pela evidente preocupação normativa que motiva o estudo, é um trabalho que se inscreve no fervilhante debate travado no interior do movimento socialista (em particular a socialdemocracia alemã) no início do século XX. Poderia assim ser lido ao lado dos textos de intervenção de Eduard Bernstein, Rosa Luxemburgo, Karl Kaustsky, Leon Trotsky e Lênin.

ii. Trata-se também de uma obra seminal dos estudos partidários, uma referência fundamental para os que desejam compreender o funcionamento de organizações partidárias, quaisquer que sejam elas.

iii. É uma obra seminal da assim chamada "teoria elitista" da política, ao lado dos trabalhos de Gaetano Mosca (1998), Vilfredo Pareto (1966; 1974) e - em uma chave algo distinta (que talvez se possa identificar como precursora do institucionalismo sociológico) - Weber (1977; 1979).

iv. É uma obra devotada ao estudo dos problemas da representação política e das dificuldades de fazer com que ela seja efetiva; de certa forma, Michels antecipa aquilo que mais recentemente foi denominado como o "problema da agência" (KIEWIET & MCCUBBINS, 1991).

Para tecer essa quádrupla contribuição, Michels logrou combinar em sua análise uma quadrupla influência teórica: uma compreensão materialista das motivações humanas (derivada de sua própria formação, no contexto socialdemocrata, fundamentalmente marcado pela orientação marxista do debate), a perspectiva elitista, de autores como Mosca e Pareto (à qual Michels aporta sua própria abordagem), um entendimento da burocracia na chave analítica de Max Weber (de quem Michels foi durante muito tempo um interlocutor e colaborador) e a descrença rousseauista na possibilidade da representação política (LIPSET, 1999; LINZ, 2006).

A remissão de Michels à concepção de classe política de Gaetano Mosca é crucial para que possa ser circunscrita com clareza a sua definição de "oligarquia". A oligarquia se compõe necessariamente daquele grupo minoritário que, por meio da divisão organizacional do poder, logra ocupar posições institucionais que lhe permitem tomar decisões que afetam os interesses coletivos de forma infensa a controle.

Essa concepção da "classe política" é importante na construção de um conceito descritivo de oligarquia porque é ela que permite pensar nos "oligarcas" como um grupo de poder específico e na "oligarquia" como a forma de predomínio desse grupo, que se distingue dos demais não por sua origem de classe, mas pelo papel organizacional específico que desempenha.

Em seu estudo sobre o partido socialdemocrata alemão, a compreensão do processo de oligarquização decorre da percepção de que a ocupação de posições de mando no partido é, - mais do que uma incumbência representa tiva -, uma oportunidade profissional. Aqueles que se profissionalizam como dirigentes partidários, retirando dessa condição seus ganhos e seu status, mas também desfrutando de condições diferenciadas de poder organizacional, rapidamente adquirem as condições para se formarem uma oligarquia. O que permite a sua transformação em oligarcas não é apenas a sua conversão em profissionais da política (embora esta seja uma condição necessária), mas a detenção de um poder na organização não desfrutado pelos demais. Noutros termos, a organização é capturada pelos dirigentes, e isto é o que lhes converte em oligarcas.

Mesmo o papel dos intelectuais nos partidos políticos (e na socialdemocracia em particular) é explicado nesta chave. Os intelectuais adquirem importância e poder no partido porque, em virtude de sua expertise, podem desempenhar um papel útil na divisão de trabalho organizacional. Em virtude desta diferenciação e dos incentivos que seu papel organizacional diferenciado lhes possibilita, os intelectuais de origem também podem se converter em profissionais políticos e, daí, em oligarcas.

Esse processo não é exclusivo dos partidos políticos. Ele pode ocorrer em diversas outras organizações nas quais a captura é possibilitada pela divisão do trabalho (e pela representação). O próprio Michels demonstra como a oligarquização ocorre, por exemplo, nos sindicatos - que dele recebem uma atenção especial no livro, até porque se tratavam de organizações representativas muito afeitas ao seu objeto de estudo principal, o partido socialdemocrata.

Aliás, o problema da representação possui, para Michels, uma importância crucial na emergência da oligarquia. A necessidade inelutável da representação requer a divisão do trabalho entre a coletividade mais ampla (os representados) e aqueles aos quais a incumbência da representação é atribuída (os líderes, representantes). Essa divisão gera o controle sobre os recursos organizacionais de poder e as recompensas materiais e simbólicas para os representantes. O apego a essas recompensas, associado ao poder organizacional dos líderes e à falta de instrumentos de controle pelos liderados é o que possibilita a oligarquização.

Paradoxalmente, a instituição da representação é o primeiro passo para que se estabeleçam interesses antagônicos entre representantes e representados. É explícita em Michels a influência rousseauista acerca da impossibilidade da representação, embora a construção de seu modelo analítico seja materialmente (ou empiricamente) informada, o que não ocorria com Rousseau.

Isso indica a utilidade do problema e do conceito michelianos para a análise das hodiernas instituições representativas - inclusive o próprio Estado. Afinal, se é verdade que a divisão do trabalho pela representação acarreta o risco da oligarquização, este risco não se dá apenas no interior de organizações como partidos ou sindicatos, mas também no âmbito das próprias instituições representativas mais amplas. E a competição interpartidária não é suficiente como antídoto para esse processo (MAIR & KATZ, 1997; FEREJOHN & ROSENBLUTH, 2009).

Nas próximas seções deste artigo empreenderei uma discussão acerca do conceito de oligarquia que busca retomar o conceito micheliano, atualizando-o. Para isto, lançarei mão não somente do trabalho original de Robert Michels, mas também trabalhos posteriores, que utilizaram as categorias michelianas e debateram-nas. Ademais, será feita a crítica de alguns usos pouco rigorosos do termo "oligarquia" na literatura das ciências humanas e na linguagem escrita não acadêmica. Creio que esse uso negligente reiterado tem contribuído para a vulgarização do conceito e seu relativo abandono em trabalhos de ciência política e disciplinas afins. Defenderei a utilidade científica do conceito e procurarei estipular uma definição mais precisa do mesmo.

II. O PROBLEMA DA OLIGARQUIA

"Oligarquia" é comumente referido como um termo cujo sentido é dado, implicitamente, como óbvio - daí não carecendo de qualquer explicação. O problema é que diferentes autores tomam o termo de formas muito distintas. Considero que o uso mais rigoroso desse conceito, dando-lhe tratamento teórico ao mesmo tempo mais preciso e complexo, pode se mostrar bastante útil para ao menos três fins: a melhor compreensão (a) do funcionamento efetivo de regimes democráticos, (b) das questões atinentes à qualidade da democracia e (c) das limitações concretas de operação, não só desse regime, como de outras formas organizacionais de vida coletiva nas quais se estabelecem relações de poder e conflitos de interesse entre tomadores de decisão e os demais membros da coletividade em questão.

É relevante resgatar um conceito que, mais do que propriamente esquecido pela ciência política contemporânea, tem dela recebido um tratamento pouco rigoroso - o que talvez seja uma das causas do seu relativo abandono. Ao ter conferido centralidade teórica ao conceito de autoritarismo e outros termos que ganharam significado análogo (como ditadura e autocracia), a ciência política contemporânea deixou de lado o conceito de oligarquia, desprezando um termo que também pode ser utilmente trabalhado como um oposto negativo da democracia, embora com significado distinto dos demais termos mencionados neste parágrafo, dos quais a oligarquia seria um oposto não-negativo. Aliás, é justamente por conta deste significado distinto - o qual permite revelar e analisar situações políticas de natureza diversa e peculiar - que o resgate do conceito de oligarquia pode se mostrar útil.

Quando o conceito de oligarquia não é simplesmente desprezado, notam-se três formas mais comuns de sua utilização na literatura contemporânea das Ciências Sociais:

1. "Oligarquia" como termo para designar grupos políticos tradicionais que dominam determinadas regiões, ou, por derivação, seu governo. Como na seguinte passagem (CERRI, 1998, passim; sem grifos no original): "Por sua atuação na política paulista, na ocupação de cargos eletivos e por nomeação, ambos podem ser considerados membros efetivos da elite política estadual, estando ligados cada um a um setor da oligarquia paulista: Alfredo Ellis Jr., seguindo a tradição paterna, é participante e convicto defensor do Partido Republicano Paulista, e Aureliano Leite é membro fundador e participante do Partido Democrático, além de participante da bancada federal do Partido Constitucionalista. [...]

[...] Não selecionamos Cassiano Ricardo, por exemplo, pois ele busca nos bandeirantes prioritariamente uma expressão de brasilidade, e além de tudo não tem relações partidárias ou pessoais com a oligarquia regional".

2. "Oligarquia" como termo tomado na sua acepção clássica, platônica e aristotélica, de governo dos ricos ou, por derivação, como o grupo dos ricos. Trata-se de um uso que - note-se - não se distingue completamente do primeiro. É o que consta da passagem a seguir (GAZMURI, 2004, p. 65; sem grifos no original): "Sin embargo, hasta la segunda década del siglo XX, pese a su crecimiento, los sectores medios no tuvieron una fisonomía definitiva. En su origen, la clase media chilena, lejos de aceptar una identidad propia, adoptó una actitud imitativa del sector alto. Se encontraba en una posición de tránsito entre el elemento popular y la oligarquía, estrato al que aspiraba incorporarse aunque sus integrantes fueran menospreciados y tildados de 'siúticos' por esta.

Se comprende que esta clase media, siempre huyendo de sí misma, no pudiera mostrar una posición política consistente ni estuviera en condiciones de atacar el sistema creado y monopolizado por el sector social alto. Por otra parte, se trataba de un sector pobre. Aquellos miembros que lograban enriquecerse, generalmente intentaban y lograban llegar a formar parte de la oligarquía".

3. "Oligarquia" como um grupo minoritário dotado de grande poder dentro de organizações, principalmente (mas não só) as de caráter representativo, ou o seu governo. O exemplo clássico deste terceiro uso é o que pode ser visto a seguir (MICHELS, 2001 [1915], p. 26; sem negritos no original): "Organization implies the tendency to oligarchy. In every organization, whether it be a political party, a professional union, or any other association of the kind, the aristocratic tendency manifests itself very clearly. The mechanism of the organization, while conferring a solidity of structure, induces serious changes in the organized mass, completely inverting the respective position of the leaders and the led. As a result of organization, every party or professional union becomes divided into a minority of directors and a majority of directed"2 2 "A organização implica a tendência à oligarquia. Em toda organização, seja um partido político, seja um sindicato profissional, seja qualquer outra associação do tipo, a tendência aristocrática manifesta-se muito claramente. O mecanismo da organização, enquanto confere a solidez de uma estrutura, induz sérias mudanças na massa organizada, invertendo completamente a posição respectiva dos líderes e dos liderados. Como um resultado da organização, cada partido ou sindicato profissional torna-se dividido em uma minoria de dirigentes e uma maioria de dirigidos" (nota do revisor). .

Pode-se notar com muita frequência na literatura que utiliza o conceito de oligarquia nas duas primeiras acepções aqui apresentadas o aparecimento do termo sem qualquer explicação acerca de seu real significado ou sobre o seu estatuto teórico. Neste sentido, os dois primeiros trabalhos citados acima são exemplares. Vasculhando-se ambos os textos é impossível encontrar qualquer definição sobre o que se entende efetivamente por oligarquia, de modo que um leitor que se dedicasse à leitura de ambos tanto poderia ser levado a pensar que as oligarquias paulista e chilena têm naturezas equivalentes, como poderia supor que os autores se referem a coisas distintas.

De fato, lendo-se os dois trabalhos percebe-se que as oligarquias são compostas de ricos, mas embora no trabalho de Gazmuri sobre o Chile fique claro que ser rico significa o mesmo que ser membro da oligarquia, no caso paulista analisado por Cerri esta vinculação não parece ser automática e a noção ora aparece jungida à de elite política (também não definida), ora à de classe social - desta vez em chave marxista, embora também não se deixe claro de que marxismo se trata, já que não se formula com clareza o conceito de classe social utilizado e se faz menção simultaneamente a autores com perspectivas bastante distintas, como E. P. Thompson, Adam Przeworski e Antônio Gramsci. Pode-se, contudo, ser indulgente com os dois autores, já que esta vaguidão conceitual não é peculiar aos seus trabalhos, mas a uma vasta literatura que utiliza o conceito de oligarquia sem precisá-lo em nenhum momento.

Na formulação grega clássica de Platão (1989) e Aristóteles (1991), o conceito de oligarquia aparece no âmbito da discussão sobre formas de governo, sendo pelos dois autores definido como o governo dos ricos. Tão importante é o peso da riqueza na definição do governo oligárquico que Aristóteles chega a afirmar que é possível uma oligarquia na qual os governantes sejam uma maioria de ricos que oprime uma minoria de pobres, muito embora se deva reconhecer que tal situação é altamente improvável, já que usualmente os ricos é que são minoritários3 3 Diz Aristóteles (1991, p. 95): "A minoria e a maioria devem ser encaradas apenas como acidentes, um da oligarquia, outro da democracia, sendo comum em todos os lugares que haja poucos ricos e muitos pobres. A esquisitice destes casos particulares não deve, portanto, impedir que a oligarquia se distinga pela riqueza e a democracia pela pobreza. Assim, quer formem a minoria ou a maioria, se são os ricos que comandam, será sempre a oligarquia; se são os pobres, a democracia. Mais uma vez, é um acaso muito raro que haja poucos pobres e muitos ricos. Mas todos podem ser livres. Ora, a administração da coisa pública é disputada pela liberdade e pela opulência". . É isto que fez com que na conhecida tipologia criada por Aristóteles, dividindo as formas de governo entre boas e más, o critério numérico acabasse por prevalecer na sua especificação: divididas as formas em boas ou más, teríamos os governos geridos por um (monarquia, tirania), poucos (aristocracia, oligarquia) ou muitos (república, democracia). Nesse caso, a oligarquia seria a forma depravada do governo de poucos (cuja forma boa é a aristocracia), já que é improvável que os ricos sejam os mais numerosos.

Em boa medida, foi a noção numérica para definir um governo ou um grupo como uma oligarquia que sobreviveu com maior força até nossos tempos. O pequeno número foi considerado por diversos autores modernos e contemporâneos como algo mais relevante do que a riqueza - muito embora esta possa permanecer como um aspecto distintivo das oligarquias. Ora, a riqueza tanto pode ser uma consequência da condição de oligarca, quanto um elemento facilitador da mesma, isto é, uma causa - ainda que não exclusiva ou determinística - da oligarquização. Dada esta indefinição do estatuto da riqueza em relação à oligarquia, este termo tendeu a ser substituído pelo de plutocracia, que ganhou prevalência na definição de um grupo de ricos poderosos. A mais relevante indicação desta mudança do significado de oligarquia no sentido enfatizar o aspecto "menor número" em detrimento do elemento "riqueza" é o uso do conceito por Robert Michels (citado acima, no exemplo do terceiro uso do termo), que incorporou à sua concepção de oligarquia a ideia de que oligarcas são uma minoria de dirigentes que lidera uma maioria de dirigidos.

A concepção de Michels era fortemente influenciada pelos teóricos elitistas que lhe antecederam, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, para os quais toda sociedade se caracterizava pelo predomínio de um grupo minoritário - uma classe política, ou uma elite governante - sobre os demais. Mosca (1998, p. 110) formula essa noção de maneira especialmente precisa. Segundo ele: "A força de qualquer minoria é irresistível frente a cada indivíduo da maioria, que se encontra sozinho ante a totalidade da minoria organizada. E ao mesmo tempo se pode dizer que esta se acha organizada precisamente porque é minoria".

Para Mosca, o que permite às minorias prevalecer sobre as maiorias não é, evidentemente, apenas seu pequeno número - embora ele seja um fator importante, já que facilita as interações entre seus membros e, consequentemente, sua organização mais eficaz. É determinante para este sucesso o controle pelas minorias de "forças políticas" (ou recursos) que não estão acessíveis aos demais, tornando-se desta forma um diferencial vantajoso no estabelecimento das relações de sujeição. Assim, se voltarmos à questão acima referida, sobre ser a riqueza causa ou consequência da condição oligárquica, considerando-se que ela é um possível fator diferencial que contribui para a minoria organizada se impor à maioria desorganizada, então ela se converte em causa. Mas Mosca se afasta da discussão clássica sobre ser a oligarquia um governo de ricos ao apontar que a "classe política" ou "classe dirigente" pode ter como fatores distintivos também o "valor militar", o domínio sobre "crenças religiosas" ou o "saber científico" e a "herança familiar".

Pareto também aponta a "riqueza", a "família" e os "contatos sociais" como instrumentos de acesso à elite em geral e, particularmente, à elite governante. Note-se, contudo - e isso é importante -, que Mosca e Pareto falam, respectivamente, em "classe política" (ou "classe dirigente") e "elite" (em particular a "elite governante"), não em oligarquia. Nem toda "classe política" ou "elite governante", portanto, é necessariamente uma oligarquia, muito embora toda oligarquia seja necessariamente uma elite - e uma elite dirigente ou governante - no sentido de que se compõe de um grupo minoritário que ocupa uma posição distinguida e politicamente vantajosa em relação aos demais membros de uma coletividade. É a percepção deste aspecto que permite a Michels tomar como ponto de partida as descobertas dos dois teóricos elitistas que lhe precederam, mas ir além deles ao elaborar uma teoria que se ocupa especificamente do processo pelo qual elites dirigentes se transformam em oligarquias.

Michels confere importância, sobretudo, a um aspecto da relação desigual entre minorias e maiorias que contribui para o surgimento de uma oligarquia: o controle exercido sobre o aparato organizacional4 4 Cassinelli (1953) observa que Michels não define com clareza em seu trabalho tanto o conceito de organização como o de oligarquia. Buscando superar essa deficiência ele propõe a seguinte definição de organização: "An organization is a group of human activities ordered by a system of specialization of function; a sub-group of these activities has as its goal the maintenance of this order or of an order very similar to it" ("Uma organização é um grupo de atividades humanas ordenadas por um sistema de especialização de funções; um subgrupo dessas atividades tem como seu objetivo a manutenção dessa ordem ou de uma ordem muito similar a ela") ( idem, p. 777). . Minorias, ou elites, que controlam organizações dos mais variados tipos, liderando os demais membros, tenderiam inelutavelmente a converterem-se em oligarquias, pois seus interesses distanciam-se cada vez mais daqueles do restante da coletividade. Esse distanciamento gera uma apartação entre a coletividade como um todo e seus membros que passaram a ocupar cargos de direção organizacional. Segundo Michels, uma "lei férrea da oligarquia"5 5 Essa expressão de Michels tornou-se célebre e muito repetida ao longo dos anos por diversos autores que debateram suas idéias. Curiosamente, contudo, a expressão "lei férrea" só aparece uma única vez em seu livro, justamente no título de um capítulo da parte final da obra, dedicada a uma síntese geral de sua teoria. Afora isto, a expressão "férrea" numa acepção similar é encontrada em apenas duas passagens. A primeira, quando o autor afirma que a dependência que têm os líderes partidários da remuneração recebida do partido ata a organização com "cadeias férreas", reforçando a burocracia partidária e a centralização do poder nas mãos dos líderes ((MICHELS, 2001 [1915], p. 75). A segunda, quando ele observa que durante anos a direção do Conselho Geral da Internacional dos Trabalhadores esteve sujeitada à "vontade férrea" de um único homem, Karl Marx, o que ocasionou a crítica dos anarquistas àquilo que seria a introdução do princípio da autoridade na política dos trabalhadores ( idem, p. 120). marcaria todas as organizações. Em seus termos (MICHELS, 2001 [1915], p. 233; sem grifos no original): "By a universally applicable social law, every organ of the collectivity, brought into existence through the need for the division of labor, creates for itself, as soon as it becomes consolidated, interests peculiar to itself. The existence of these special interests involves a necessary conflict with the interests of the collectivity. Nay, more, social strata fulfilling peculiar functions tend to become isolated, to produce organs fitted for the defense of their own peculiar interests. In the long run they tend to undergo transformation into distinct classes"6 6 "Com base em uma lei social universalmente aplicável, cada órgão da coletividade, trazida à existência por meio da necessidade da divisão do trabalho, tão logo ele consolida-se, cria interesses peculiares a si. A existência desses interesses especiais envolvem um conflito necessário com os interesses da coletividade. Não somente isso, mas, além disso, estratos sociais cumprindo funções peculiares tendem a tornar-se isolados, a produzir órgãos específicos para a defesa de seus próprios interesses peculiares. No longo prazo eles tendem a incorrer numa transformação em classes distintas" (N. R.). .

Embora seja inadequada a ideia de "lei científica" (ainda por cima férrea) nas Ciências Sociais, o fato é que Michels apontou com argúcia uma tendência fortíssima da vida política nas organizações. Na medida em que a complexidade da vida coletiva requer uma divisão do trabalho e esta, por sua vez, requer a delegação a alguns não só do poder de decidir por outros, mas também de recursos organizacionais que lhes permitam tomar essas decisões, abre-se a possibilidade de que os delegados extrapolem a delegação recebida e, consequentemente, utilizem a organização em proveito próprio. Isto significa que os líderes organizacionais deixam de operar a organização com um meio para a busca dos fins que levaram à sua instituição, tornando-a um fim em si mesmo, na medida em que é seu status organizacional que lhes assegura ganhos materiais e simbólicos distintivos com relação aos demais membros7 7 Este problema da divisão do trabalho, que engendra um grupo social potencialmente autônomo em relação aos que lhe conferiram poder organizacional, é também apontado por Weber (1979) em seu estudo sobre a burocracia. Segundo ele, a burocracia moderna, ao assumir um caráter estamental, entra em conflito com o "nivelamento dos governados", promovido pela democracia. Aponta esse autor (idem, p. 262) que o "grupo burocraticamente articulado [...] pode ocupar uma posição bastante autocrática, tanto de fato como na forma". .

Para Michels há ainda um segundo problema importante decorrente disto: a organização, deixando de buscar os fins para os quais foi criada, ou aqueles desejados pela maioria de seus membros, passa a buscar outras metas, estabelecidas por seus líderes à revelia do mandato recebido e da vontade dos demais. A oligarquização engendra, assim, um sério problema de legitimidade8 8 A "legitimidade" é considerada neste artigo como o conjunto de princípios abertamente aceitos por uma dada coletividade para o seu funcionamento e, portanto, para as ações de seus membros. Ações que contrariem a esses princípios abertamente aceitos na coletividade serão consideradas ilegítimas. Considerando-se que perseguir determinados objetivos vinculados a um mandato é uma imposição legitimada por princípios da organização, não o fazer gera um problema de legitimidade. .

A questão da perda de legitimidade no processo de oligarquização é, aliás, o ponto desenvolvido também por Darcy Leach (2005) em sua análise acerca da lei férrea da oligarquia. Para esse autor, a oligarquia se define como "uma concentração de poder ilegítimo nas mãos de uma elite entrincheirada" (idem, p. 312) que lança mão de seu poder organizacional para impedir qualquer oposição interna à sua autoridade. Para Michels, nos termos originais da "lei férrea da oligarquia", o problema da ilegitimidade do poder é o uso da organização pelos seus líderes de forma a buscar objetivos novos, rejeitados pelos demais; já para Leach, mais importante do que a redefinição dos fins da organização pelos dirigentes, é como se estabelece o poder (ou a influência) deles. Considerando isto, os tipos de ilegitimidade do poder seriam três: (1) a ilegitimidade das pessoas, que exercem o poder, mas não teriam recebido um mandato para fazê-lo; (2) a ilegitimidade da jurisdição, que ocorre quando mesmo pessoas dotadas de um mandato legitimamente obtido excedem o âmbito daquilo que lhes é lícito fazer; (3) a ilegitimidade dos meios, quando o poder é exercido de uma forma não sancionada pelo grupo (idem, p. 326).

Assim, a busca de fins distintos daqueles desejados pelos membros é antes uma consequência do processo de oligarquização do que uma causa dele. Isto é, na forma extrema, seriam oligárquicas organizações nas quais (a) pessoas sem autoridade para decidir decidem (b) para além do que seria aceitável fazer e (c) lançando mão de procedimentos inaceitáveis. Ou, mais parcimoniosamente, são oligárquicas organizações nas quais ao menos uma destas três condições de exercício ilegítimo do poder for satisfeita. Como decorrência disso, pouco importa o que os demais membros da coletividade tenham a dizer ou desejem, pois "Oligarchy, then, is a concentration of entrenched illegitimate authority and/or influence in the hands of a minority, such that de facto what that minority wants is generally what comes to pass, even when it goes against the wishes (whether actively or passively expressed) of the majority"9 9 "A oligarquia, então, é uma concentração de autoridade entrincheirada e/ou influência ilegítimas nas mãos de uma minoria; tal poder de facto consiste em que o que a minoria deseja geralmente é aprovado, mesmo quando ele vai contra as vontades (sejam elas expressas ativamente, sejam expressas passivamente) da maioria" (N. R.). (idem, p. 329).

Uma definição como esta, que identifica a oligarquia com base na oposição entre o que é feito por uma minoria entrincheirada àquilo que deseja uma maioria impotente, prontamente sugere que a oligarquização seja o resultado do desvirtuamento de uma organização (ao menos pretensamente) democrática em relação aos princípios legitimadores da democracia. Afinal, esta, entendida como regime político, requer que a minoria que decide seja responsiva às preferências da maioria (DAHL, 1997). Contudo, defende-se neste artigo a possibilidade de estender a aplicação do conceito de oligarquia a outros contextos organizacionais, cujos critérios de legitimidade sejam distintos daqueles que caracterizam um regime democrático.

Uma instituição pretensamente meritocrática, por exemplo, supostamente balizaria suas decisões de distribuição de oportunidades, ganhos e perdas com base no merecimento funcional de seus membros, pois este é o princípio de legitimidade válido num tal contexto. Entretanto, uma meritocracia pode ser oligarquizada na medida em que o critério de mérito ceder espaço ao de favorecimento dos interesses da minoria entrincheirada nas posições de comando. Nesse caso, o mérito funcional é substituído pelo pertencimento das pessoas ao grupo dos oligarcas e seus protegidos10 10 A minoria oligárquica pode ser entendida estritamente, como composta de um "núcleo duro" de dirigentes principais, ou mais amplamente, de modo a abarcar os apaniguados desse núcleo duro, os quais, embora não possuam poder decisório eles próprios, contribuem para a manutenção do sistema oligárquico (inclusive para sua legitimação) e são recompensados por isso. como fundamento para definir a ascensão profissional, a promoção na carreira, o acesso a certas posições na organização, os ganhos pecuniários, as prerrogativas funcionais e demais benefícios que, em tese, seriam auferidos pelos que se mostrassem mais meritórios ou competentes.

Num caso como este, portanto, "oligarquia" não se contrapõe a "democracia", mas a algo que pode ser considerado inclusive como um outro contraposto desta última. Afinal, é possível opor "meritocracia" a "democracia" tendo em vista serem formas bastante distintas de legitimação do poder organizacional. No caso da primeira, são legítimas as decisões tomadas considerando o mérito funcional e por quem for considerado melhor na hierarquia do merecimento. No caso da segunda, são legítimas as decisões tomadas por quem for escolhido pela maioria (senão tomadas por ela mesma, diretamente), respeitando-se a sua vontade. O critério meritocrático é, portanto, estranho à democracia, assemelhando-se à aristocracia (ainda que a uma versão racional-legal dela) - o governo dos melhores, entendidos aqui como os mais merecedores.

Entretanto, é possível que organizações concretas combinem em suas estruturas institucionais ambos os princípios - o meritocrático e o democrático - por meio do estabelecimento de regras que expressem soluções de compromisso entre a satisfação de preferências majoritárias e requisitos de competência funcional. Teríamos um exemplo disto em eleições nas quais os votantes pudessem optar unicamente por candidatos que atendessem a determinados requisitos de competência profissional, como na escolha de juízes apenas entre bacharéis em direito; ou em universidades, numa eleição para reitor em que apenas pudessem competir professores titulares, mas cujos votantes fossem todos os membros da coletividade acadêmica. De qualquer forma, tendo em vista o caráter aristocrático das meritocracias, a sua oligarquização equivaleria precisamente àquilo que na discussão clássica é a degeneração da aristocracia em sua forma depravada. Portanto, nada mais natural que se possa opor a oligarquia não apenas à democracia, mas também à meritocracia.

É importante chamar a atenção para isto porque se deixa nítida a utilidade do conceito de oligarquia para a análise política de diversos tipos de contextos organizacionais. O aspecto comum a todos os casos é que o processo de oligarquização implica num funcionamento de facto da organização segundo princípios que não são aqueles formalmente considerados legítimos. Em outras palavras, não há princípios de legitimidade que sejam propriamente oligárquicos, pois a oligarquia sempre funciona segundo regras que mesmo sendo aceitas por seus integrantes e pelos apaniguados não são abertamente assumidas como válidas perante os demais membros da coletividade; para esses normalmente se alega que a organização funcionaria, pretensamente, de uma forma não oligárquica. Esta constatação vai ao encontro da definição de oligarquia proposta por Leach (2005), pois se não há uma legitimidade oligárquica, o poder oligárquico é sempre ilegítimo11 11 Tendo isto em vista, nota-se um equívoco de Leach (2005, p. 326, n. 15) quando ele aponta que empresas privadas ( business firms) seriam "estruturalmente oligárquicas". Ora, empresas privadas não são nem oligárquicas, nem democráticas, elas são simplesmente hierárquicas: elas têm um dono (ou mais de um) que manda na organização porque lhe pertence. Seus empregados devem obediência a ele e devem acatar suas ordens simplesmente porque essa é a regra do jogo aceita (e, portanto, legítima) na relação entre patrões e empregados no âmbito da empresa. Por isso mesmo, não haveria nada de ilegítimo e, portanto, de "estruturalmente oligárquico" em uma empresa; simplesmente, o princípio é outro. .

Esse modus operandi - da simulação de legitimidade - é válido mesmo nas situações em que o grupo oligárquico vale-se de sua posição institucional para moldar as regras formais de operação da organização de maneira a reforçar o entrincheiramento do grupo oligárquico. Vejamos como seria isso possível por meio de um exemplo hipotético.

Um determinado grupo pode chegar à direção de uma organização mediante eleições, obtendo nas urnas a maioria em órgãos colegiados e ocupando instâncias executivas. Com isto, contará com força suficiente para alterar as regras institucionais de sucessão, permitindo a um determinado mandatário indicar membros vitalícios para órgãos colegiados com poderes eleitorais. Esses órgãos poderiam, assim, reconduzir ao poder continuamente esse mesmo mandatário ou alguém que faça parte de seu grupo de apoiadores, perpetuando-lhes no poder de forma absolutamente legal. Como o mandatário seguidamente reeleito continua a nomear membros vitalícios para órgãos com poderes eleitorais, o poder dele e de seu grupo tenderá a se tornar inexpugnável, a despeito do que possam pensar disto os demais membros da organização. Desta forma, gerou-se uma oligarquia perfeitamente respaldada pelas regras formais.

O sistema de poder apontado no exemplo certamente não é democrático se tomarmos em conta os critérios operacionais que balizam qualquer regime que possa ser reconhecido como tal. Todavia, é muito provável que o grupo oligárquico que se instalou no poder reivindique o caráter democrático desse sistema, convertendo num problema de semântica a discussão sobre haver ou não uma democracia em vigor: alguns chamam de democracia algo que outros (e a teoria democrática em geral) certamente não reconheceriam como tal. Um processo deste tipo cria uma situação complexa na qual, apesar da presença de alguns elementos constitutivos da democracia (como eleições), o formato particular que eles assumem não permite que se considere o regime em vigor uma democracia de fato. Exemplificando: se as regras eleitorais num dado regime tornam praticamente impossível à oposição se tornar vitoriosa, mesmo que alguém alegue haver eleições nas quais a oposição possa concorrer, não há como falar seriamente em democracia. É de oligarquia que se trata.

Esse exemplo hipotético permite vislumbrar com clareza o que Leach (idem, p. 329) aponta como duas etapas necessárias para a emergência da oligarquia em democracias: (1) um movimento do exercício legítimo para o exercício ilegítimo do poder; (2) "a concentração de poder nas mãos de uma minoria de tal modo que ela se torna capaz de manter a sua posição ao longo do tempo contra os desejos da maioria", que resiste passiva ou ativamente. No exemplo, a etapa (1) corresponde à criação das regras que permitem o entrincheiramento de um grupo em particular no poder, abrindo espaço para a etapa (2), na qual se anularão as chances de vitória da oposição. A criação das regras de entrincheiramento corresponde a um exercício ilegítimo do poder nos termos do segundo tipo de ilegitimidade apontado por Leach - a ilegitimidade da jurisdição. Isso porque, em uma democracia, não é lícito mudar as regras eleitorais de modo a anular a competição política pelo congelamento das preferências majoritárias de um momentot0, impedindo assim que sejam satisfeitas futuras preferências majoritárias diferentes daquelas do momento t0.

A pretensão de legitimidade dos oligarcas de nosso exemplo hipotético não seria inválida apenas no caso da oposição entre oligarquia e democracia; ela também o seria para a contraposição entre oligarquia e meritocracia. De nada adianta haver uma retórica que reivindica critérios de merecimento para a ascensão profissional e outros benefícios funcionais em uma organização se, na prática, o que existe são mecanismos (formais ou informais) de favorecimento privilegiado dos oligarcas e de seus apaniguados.

É preciso, contudo, distinguir duas situações. A primeira, que podemos chamar de "ilusionismo semântico", é a descrita logo acima, no âmbito de nosso exemplo hipotético: criam-se regras oligárquicas que são, todavia, defendidas retoricamente como se fossem de outra natureza (democráticas, meritocráticas etc.). A segunda, que podemos chamar de "usurpação de autoridade", divide-se em dois subtipos: 1º) uma situação na qual se utiliza a autoridade legitimamente obtida para modificar as regras formais de modo a torná-las oligárquicas (nosso exemplo hipotético também abarca esta situação); 2º) uma situação na qual são mantidas as regras formais em vigor, que não são oligárquicas, mas elas são ignoradas ou dribladas pelos oligarcas12 12 Procuro neste texto seguir a distinção feita por Cassinelli (1953, p. 779) entre os "oligarcas" (ou grupo oligárquico) como a minoria de pessoas que possui o poder decisório na organização e a "oligarquia" como a própria organização que possui oligarcas, ou seu regime de funcionamento. De qualquer modo, é possível, por razões de estilo, referirmo-nos à "oligarquia" como o grupo dos "oligarcas", sendo o sentido preciso dado no contexto. , pois (a) só podem ser aplicadas por eles mesmos, que ocupam postos dotados de autoridade organizacional; (b) não são formalmente burladas, mas evita-se o seu cumprimento utilizando-se para isto de lacunas, omissões ou imprecisões das normas. Tanto no caso (a) como no (b), o que prevalece são regras informais oligárquicas, aplicadas pelo grupo entrincheirado no poder e seguidas pelos demais - de bom ou mau grado, a depender de sua posição na estrutura de autoridade organizacional.

Como se poderiam ignorar regras formais num pretenso Estado democrático de Direito? Vejamos um exemplo: postos no judiciário são ocupados por indivíduos vinculados a pessoas que cometem ilegalidades; no momento em que estas vierem a ser julgadas, poderão ser beneficiadas pela parcialidade dos juízes, que tornam letra morta a lei vigente, seja por sua mera burla, seja pelo aproveitamento ardiloso dos interstícios legais. Teríamos assim um Estado oligárquico, pois seus princípios legitimadores oficiais são postos de lado.

Alternativamente, no caso de uma organização supostamente meritocrática, o acesso a certas posições por postulantes meritórios requeria que ocupantes de postos dotados de autoridade organizacional tomassem decisões com base em regras objetivas na atribuição de benefícios funcionais. Estas autoridades, contudo, podem ignorar tais regras e fazer valer suas preferências pessoais ao decidir, colocando o pertencimento ao grupo oligárquico como fator que sobrepuja o mérito. Teríamos assim uma organização oligárquica, pois seus princípios legitimadores oficiais são postos de lado.

Em contextos oligárquicos tendem a piorar ainda mais sua situação os injustiçados que decidem recorrer contra decisões arbitrárias. Afinal, precisam apelar muito provavelmente para outros membros da mesma estrutura de autoridade, os quais ou tendem a ser aliados dos primeiros decisores ou, simplesmente, utilizam os mesmos critérios decisórios daqueles - isto é, são oligarcas também. A situação de quem se insurge contra decisões formalmente ilegítimas tende a piorar porque, ao se agir assim, afronta-se tanto a estrutura de poder real vigente (a oligarquia), como as preferências dos membros do grupo que dispõe de poder decisório (os oligarcas). Tal insolência dificilmente fica impune e cria-se uma situação kafkiana, na qual é punido quem requer o respeito às regras legítimas da coletividade em questão. No limite, pode-se falar aqui de uma "legitimidade de segunda ordem", referente às regras informais da organização, que contrariam a normatividade formal. Essas regras informais seriam as da oligarquia, "legítimas" apenas para um grupo particular - o dos oligarcas e seus apaniguados. Tratar-se-ia, portanto, de uma legitimidade excludente com relação aqueles que, segundo às regras formais, deveriam estar incluídos.

Tal situação kafkiana revela um aspecto importante da oligarquia. Trata-se de um sistema no qual as autoridades com poder decisório agem de forma consideravelmente livre de controles efetivos por parte dos que são objeto de suas decisões. Nem mesmo o apelo ao respeito às regras formais serve como instrumento de limitação do uso do poder. Este é um ponto notado por Cassinelli (1953, p. 779), que propõe a seguinte definição de oligarquia: "An oligarchy is an organization characterized by the fact that part of the activities of which it consists, viz., the activities having the highest degree of authority (which have been called 'leadership' or 'executive' activities), are free from control by any of the remainder of the organizational activities. This concepts leads to a generalization which might be called 'a theory of irresponsible leadership'"13 13 "Uma oligarquia é uma organização caracterizada pelo fato de que parte das atividades das quais ela consiste - por exemplo, as atividades tendo o maior grau de autoridade (que são chamadas de atividades 'de liderança' ou 'executivas') - é livre do controle de qualquer uma das atividades organizacionais restantes. Esse conceito leva a uma generalização que poderia ser chamada de 'uma teoria da liderança irresponsável'" (N. R.). .

A definição anterior de Leach dá conta dessa idéia de falta de controle ao observar que a oligarquia se caracteriza pelo poder entrincheirado de uma minoria que age à revelia do que desejam os demais. A diferença entre as duas definições é que Cassinelli dá uma abordagem estruturalista ao problema, falando em "atividades" que controlam "atividades", de modo que a liderança seria um atributo estrutural delas, e não uma característica de indivíduos concretos. Já Leach, fazendo referência clara a uma minoria cujas decisões têm curso a despeito do que possa desejar a maioria, estipula-se claramente sujeitos das ações, evitando-se uma abordagem na qual seria possível a existência da oligarquia apenas como o fruto de determinações estruturais, sem atores claros a laborar em prol de sua instauração, manutenção e funcionamento. Noutros termos, considerar os sujeitos, como faz Leach parece-nos a opção teórica mais vantajosa (se não correta) por permitir identificar quais comportamentos dos atores conduzem à estruturação de uma oligarquia. Afinal, "atividades de liderança" não ocorrem na ausência de líderes, mesmo que se possa admitir que líderes se adéquem a condições estruturais postas de antemão e tenham de agir de acordo com elas.

Procurando esmiuçar este ponto: a oligarquia pode não surgir como o resultado da ação de determinadas lideranças organizacionais, as quais podem apenas tê-la herdado de seus predecessores. Todavia, ao manter em funcionamento a mesma lógica organizacional oligárquica, os novos líderes não apenas se convertem em oligarcas também, mas contribuem ativamente para a preservação dessa lógica e sua transmissão aos pósteros. Isto significa que as estruturas oligárquicas são, tanto no seu surgimento como na sua manutenção, um resultado das ações de atores relevantes - isto é, de sujeitos. Portanto, é mais acertado considerar que a liderança irresponsável a que alude Cassinelli é um atributo não apenas estrutural de organizações oligárquicas, mas também pessoal - dos oligarcas. São oligarcas de carne e osso que agem de forma infensa a controles; são seus interesses (ainda que estruturalmente determinados ou reforçados) os perseguidos por meio de expedientes contra os quais os demais pouco podem fazer; e são eles os principais defensores ativos da manutenção do status quo institucional - já que este lhes favorece.

Podemos, então, elaborar uma nova definição de oligarquia, buscando contemplar os aspectos úteis das duas definições antes citadas (de Leach e Cassinelli). Ela é a seguinte: a oligarquia é um regime organizacional no qual os indivíduos que detêm postos de comando conseguem agir continuamente de forma não subordinada aos princípios de legitimidade vigentes, pois não são controláveis pelos demais membros da coletividade organizada, podendo assim dirigi-la de modo a favorecer seus próprios objetivos em detrimento do que desejam os demais e/ou do que são os princípios legítimos de funcionamento da organização.

A especificação de que os comandantes da coletividade conseguem agir continuamente de maneira não controlada é importante nessa definição. Ela se deve ao fato de que uma coletividade organizada não pode ser considerada propriamente oligárquica quando apenas de modo esporádico seus líderes agem de uma forma contrária aos princípios aceitos de legitimidade e infensos aos controles que sobre eles possam exercer os demais membros. Noutros termos, é necessário que esta liderança irresponsável seja institucionalizada, isto é, caracterize uma situação inerente à própria estrutura da organização, embora destoante de seus propósitos legítimos.

Assim, teremos um sistema político oligárquico quando as práticas da liderança irresponsável reiterarem-se ao longo do tempo, a despeito dos princípios de legitimação política proibirem-nas. Note-se que nem sempre essa proibição é estipulada formalmente, por exemplo, mediante regras escritas. Fosse este o caso, não poderíamos enquadrar como oligarquias sistemas nos quais se lança mão do "ilusionismo semântico" aludido acima. Vale reforçar esse ponto: há sistemas cujas regras formais são forjadas pelos líderes de modo a viabilizar na prática seu domínio oligárquico, mas esses líderes procuram revestir-se de uma legitimidade aparente cujos princípios abertamente aceitos não são, de modo algum, consonantes às regras formalizadas. O que esses líderes fazem é imprimir à organização um funcionamento esquizofrênico, no qual a operação prática da organização é dissociada do discurso oficial: exige-se o cumprimento das regras formais oligárquicas (pois este viabiliza o domínio oligárquico), mas retoricamente se reivindica que o regime é não-oligárquico (afirmando-se que na verdade ele operaria segundo outros princípios: democráticos, meritocráticos etc.).

Um exemplo interessante de "ilusionismo semântico" provém de uma experiência que, mais do que propriamente oligárquica, era autoritária. Trata-se de um caso no qual a defesa retórica do pretenso caráter democrático do regime se dava pelo próprio nome da organização: a antiga República Democrática Alemã. Evidentemente, era um Estado que absolutamente nada tinha de democrático, tratando-se de um regime autoritário que, por sua vez, entronizava uma oligarquia unipartidária no governo. Apesar de seu nítido caráter antidemocrático, assegurado inclusive pelas regras formais do jogo político, a reivindicação de legitimidade democrática permanecia, alegando seus defensores tratar-se inclusive da "verdadeira democracia"14 14 A este respeito é interessante o texto intitulado "Duas revoluções, dois resultados", de Wilhelm Pieck (2007), Presidente do Partido Socialista Unificado da Alemanha e presidente da Alemanha Oriental. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/tematica/rev_prob/27/revolucoes.htm . Isto é frequente em regimes de partido único que se reivindicam democracias.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM BUSCA DE UM CONCEITO EMPIRICAMENTE ÚTIL

Este artigo visa a contribuir para uma reflexão que tem dois objetivos, um teórico-conceitual, outro empírico.

O objetivo teórico-conceitual é o de fixar um conceito de oligarquia dotado não só de clareza terminológica, mas também - e até por isso mesmo - de serventia para a pesquisa empírica. Como foi apontado nas seções anteriores deste artigo, enten-de-se que o termo "oligarquia" perdeu boa parte de sua utilidade analítica em virtude de seu uso pouco rigoroso na literatura de ciência política e de disciplinas afins, tornando-se mais um adjetivo de aplicação subjetiva e normativamente orientada do que um conceito instrumentalizável para a pesquisa empírica e a reflexão teórica.

Um exemplo do uso de senso comum, normativo e pouco rigoroso do conceito pode ser notado na passagem abaixo: "Para além das críticas contrárias, a reforma [constitucional venezuelana] se inseria num processo de mudanças que modificaram o mapa político da América Latina. Na região avançam os projetos políticos que buscam refundar os Estados-nação, desarticular a democracia oligárquica, impulsionar a democracia participativa, sair do neoliberalismo e fazer progredir processos de integração econômica que não têm como eixo o livre-comércio" (NAVARRO, 2007; sem grifos no original).

O autor tece aqui uma crítica aos regimes democráticos latino-americanos que precederam as "revoluções bolivarianas" deflagradas por Hugo Chávez e outras lideranças de perfil similar na região. Neste contexto, todos os regimes que lhe precederam são apontados como "oligárquicos", sem que se detalhe exatamente o porquê disto, bastando apresentar o "oligárquico" como a forma alternativa ao "participativo" na adjetivação da democracia. Esta mera contraposição entre uma forma presumidamente ruim e sua alternativa supostamente benévola é analiticamente insuficiente, embora se possa até mesmo admitir que os regimes desarticulados pelas reformas bolivarianas fossem de fato oligárquicos. Seria preciso, contudo, demonstrar porque o seriam, pois o mero fato de não serem "participativos" é insuficiente para tal definição. Afinal, há regimes representativos que não são oligárquicos, embora neles as formas participativas de democracia não tenham relevância.

O conceito é novamente usado como um adjetivo pouco explicado na passagem abaixo, de um autor cuja perspectiva é oposta à do articulista supracitado. Enquanto Navarro é um defensor das "revoluções bolivarianas", Demétrio Magnoli é um ácido crítico das mesmas. Por isso mesmo, é interessante observar como, apesar de ter um parti pris oposto, ele utiliza o mesmo conceito de "oligarquia" para referir-se a regimes equivalentes aos criticados por Navarro, e que são alvo de ações desestabilizadoras por parte dos "bolivarianos": "Honduras condensa o conflito, repetido vezes sem conta na História da América Latina, entre uma democracia oligárquica e o impulso do caudilhismo. A primeira singularidade da crise atual encontra-se no seu enquadramento no cenário da 'revolução bolivariana' de Hugo Chávez, que conferiu dimensões internacionais ao confronto entre o pretendente a caudilho e as instituições políticas do sistema oligárquico hondurenho. A segunda singularidade, nos erros crassos cometidos pela política externa brasileira, que contribuíram para a espiral de violência em que ingressa o país centro-americano. [...] A crise foi desatada pela tentativa de Manuel Zelaya de circundar o ferrolho constitucional armado para perpetuar o sistema oligárquico" (MAGNOLI, 2009; sem grifos no original).

Novamente aqui é possível admitir que o sistema político em questão seja oligárquico. A questão, entretanto, é de novo saber o porquê de ele ser definido assim. Todavia, o termo oligarquia tem sido tão vezeiramente utilizado no linguajar político cotidiano (e estas duas citações são provenientes de artigos opinativos saídos na imprensa) que se abdicou da necessidade de explicá-lo. Se no linguajar cotidiano ou jornalístico esta confusão já não contribui para a clareza do debate, o caso é ainda mais grave quando se trata de trabalhos acadêmicos, como os dois primeiros citados na seção anterior deste artigo, de Cerri (1998) e Gazmuri (2004), ou os estudos de Nunes (1997) e Avelar e Walter (2008).

Veja-se o uso do termo "oligarquia" ou seus derivativos nas seguintes passagens (os negritos são meus). Para Nunes (1998, p 26) a oligarquia seria o resultado de uma sobrevivência tradicionalista solapada pelo processo de modernização: "Pensemos na industrialização. Ela cria novas oportunidades para coalizões políticas assim como novos tipos de conflitos, oferece novas bases para a competição política, mina o poder das elites fundiárias e torna impossível para elas governar de forma oligárquica".

Já para Avelar e Walter (2008, p. 104), oligarquia é manutenção do mesmo partido no poder, sobretudo se for uma agremiação de direita: "Nas eleições de 2004, menos estados mantiveram o partido em 30% ou mais dos municípios. Isso ocorreu em apenas sete, sendo quatro deles estados nordestinos, apontando para o fato da continuidade oligárquica nos municípios menores e com piores qualidades de vida. [...] Os partidos de direita, de configuração tradicional e oligárquica dominam nos municípios menores e de baixa qualidade de vida; os partidos de centro dominam nas regiões de melhor qualidade de vida e, sobretudo, nos municípios micro e pequenos, enquanto os partidos de esquerda são urbanos, ali têm sua origem e, como os dados sugerem, conquistam eleitores dos municípios maiores para os de tamanho médio."

Todos estes usos são pouco precisos e, pior, não convergem. Afirmar que o tradicionalismo tem a ver com oligarquização é algo que precisaria ser provado, não apenas afirmado. Pior ainda é a associação pura e simples entre a direita partidária e a oligarquização. Novamente, não é possível estabelecer uma relação automática entre essas duas coisas - e vale lembrar que o trabalho seminal de Michels (1915) tratava da oligarquização num partido de esquerda, a Socialdemocracia alemã.

Tanto no caso do uso de "oligarquia" na linguagem política cotidiana ou jornalística, como na sua apropriação acadêmica, seria de grande serventia clarificar o significado deste termo, reconvertendo-lhe propriamente num conceito da análise política cientificamente fundada. Daí a justificativa do objetivo de investigação teórico-conceitual aqui proposto - trata-se de uma contribuição ao aprimoramento conceitual das Ciências Sociais, e da ciência política em particular.

Já o objetivo empírico, para cuja busca esta discussão pretende contribuir, é o de elaborar ummodelo de análise que permita identificar e explicar como o processo de oligarquização se constrói em organizações específicas da vida social e política, compreendendo sua operação efetiva. Com isto, será possível compreender concretamente como a vida coletiva organizada pode, em diversas situações, operar de um modo destoante dos princípios de legitimação válidos para determinadas coletividades, por serem elas capturadas por oligarquias.

São diversas as organizações da sociedade que podem se tornar oligárquicas. Notadamente, são passíveis de oligarquização todas aquelas organizações de caráter representativo, que possuem em seu interior estruturas de representação, ou que simplesmente engendram algum tipo de assimetria de poder entre líderes e liderados. Em todos esses casos o risco da oligarquização decorre da perda de controle da coletividade sobre seus membros com mais poder. Não casualmente, Michels (1915) desenvolveu seu estudo clássico sobre os partidos políticos, tendo em vista especialmente o caso do Partido Socialdemocrata alemão; todavia, esse autor também notou que sindicatos e outras formas associativas são propensos a se oligarquizarem. Leach (2005) ocupa-se de organizações informais de ativistas (que ele também denomina "coletivistas") na sociedade civil alemã, assim como de um grupo religioso (os quacres).

Desse modo, partidos, sindicatos e organizações políticas da sociedade civil são exemplos de coletividades organizadas que podem se tornar oligárquicas e, portanto, são potenciais objetos de pesquisa. Mas considero que também podem ser analisadas outras estruturas não tão claramente "políticas" como, por exemplo, universidades (que em princípio se assentariam sobre o princípio legitimador da meritocracia), clubes esportivos (que operariam de uma forma análoga à da democracia) ou comunidades religiosas (que se assentariam sobre algum tipo de comunitarismo igualitário, ou ao menos sobre uma meritocracia do exercício da fé).

Por fim, certamente são passíveis de oligarquização estruturas do aparelho organizacional do Estado, propriamente representativas ou não. Assim, casas legislativas, por exemplo, são estruturas bastante propícias a se oligarquizarem, tanto no que concerne à relação entre seus próprios membros, como no que diz respeito à representação da sociedade. Também estruturas da burocracia pública podem se tornar oligárquicas, quando são capturadas por algum grupo que, controlando-lhes, leva um órgão qualquer do Estado a operar de uma forma não legitimada por princípios publicamente aceitos de funcionamento e infensa a controles internos ou externos.

A oligarquização de uma casa legislativa com respeito a seus próprios membros ocorreria em função da captura da organização por uma parte dos parlamentares, os quais passariam a operar a instituição à revelia do que é desejado pelos demais, tornando proibitiva qualquer tentativa de controlá-los ou de contra-arrestar sua atuação. Já a oligarquização do legislativo com relação à sociedade ocorreria no caso de uma conduta dos parlamentares contrária àquela que é amplamente percebida como desejável pelo eleitorado. Neste caso, a oligarquização se efetivaria porque os eleitores não seriam capazes de evitar que seus representantes se conduzissem de uma forma indesejada por eles. Certamente, este é um tipo de situação que coloca problemas sérios para a representação democrática, já que os mecanismos de accountability (ou, ao menos, de responsividade) tornam-se inoperantes. O problema empírico relevante a ser desvendado neste caso é identificar que mecanismos institucionais oligárquicos impedem que funcionem a contento os instrumentos institucionais de accountability (no caso, as eleições).

No estudo tanto do primeiro como do segundo casos de oligarquização parlamentar, a clássica discussão originada em Michels (1915) pode se beneficiar de contributos mais contemporâneos da ciência política, como aqueles acerca de processos de delegação e perda de controle sobre mandatários (KIEWIET & MCCUBBINS, 1991), ou das análises atinentes à accountability (PRZEWORSKI, STOKES & MANIN, 1999). Mas a análise sobre oligarquização também pode contribuir para essas discussões contemporâneas, agregando-lhes uma problemática conceitual, teórica e empírica que se não é propriamente nova (considerando-se que a contribuição de Michels já tem um século), tem sido negligenciada pela literatura contemporânea de ciência política. Um aporte teórico particularmente importante para este tipo de investigação é o concernente à análise organizacional. Dentre os autores contemporâneos, Angelo Panebianco (1982) contribuiu significativamente para isso, seguindo a senda de Michels na análise dos partidos políticos. O trabalho de Panebianco, contudo, transcende a contribuição estrita aos estudos partidários, propiciando instrumentos bastante úteis para a compreensão das organizações em geral. Diz ele: "As organizações diferem enormemente entre si. Porém, quaisquer que sejam as diferentes atividades que desenvolvam e os benefícios ou malefícios que proporcionem aos homens, cada uma delas, invariavelmente, também serve para garantir, perpetuar ou aumentar o poder social daqueles que as controlam, daquelas elites mais ou menos restritas que as comandam".

Também a discussão sobre os partidos cartel, de Mair e Katz (1997) é relevante para a compreensão do problema da oligarquização em contextos que seriam, em princípio, de competição política. Para os autores, é o fato dos partidos serem compostos de profissionais da política, com interesses comuns, que faz com que na busca de seus objetivos próprios eles se apartem de seus representados.

Pois bem: compreender melhor como ocorrem esses processos é o que pode ser proporcionado por estudos empíricos acerca de processos de oligarquização focados na análise de casos concretos, cujo esmiuçamento permita detalhar os mecanismos que conduzem à conversão de elites dirigentes em grupos de oligarcas15 15 A melhor compreensão do fenômeno oligárquico em organizações sociais e políticas, estatais ou não estatais, oferece subsídios importantes também para o entendimento de outro aspecto central da contemporaneidade: a corrupção. É plausível afirmar que a corrupção se instala em determinadas estruturas organizacionais porque essas foram capturadas por oligarquias. Assim, compreender a oligarquia pode ser um importante passo para que se entenda melhor a corrupção. .

Recebido em 17 de agosto de 2012.

Aprovado em 1º de outubro de 2012.

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  • WRIGHT MILLS, C. 1981. A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar.
  • 1
    A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do GV-Pesquisa. Agradeço a Leany Lemos pelos comentários a uma versão preliminar deste texto
  • 2
    "A
    organização implica a tendência à oligarquia. Em
    toda organização, seja um partido político, seja um sindicato profissional, seja qualquer outra associação do tipo, a
    tendência aristocrática manifesta-se muito claramente. O mecanismo da organização, enquanto confere a solidez de uma estrutura, induz sérias mudanças na massa organizada, invertendo completamente a posição respectiva dos líderes e dos liderados. Como um resultado da organização, cada partido ou sindicato profissional torna-se dividido em
    uma minoria de dirigentes e uma maioria de dirigidos" (nota do revisor).
  • 3
    Diz Aristóteles (1991, p. 95): "A minoria e a maioria devem ser encaradas apenas como acidentes, um da oligarquia, outro da democracia, sendo comum em todos os lugares que haja poucos ricos e muitos pobres. A esquisitice destes casos particulares não deve, portanto, impedir que a oligarquia se distinga pela riqueza e a democracia pela pobreza. Assim, quer formem a minoria ou a maioria, se são os ricos que comandam, será sempre a oligarquia; se são os pobres, a democracia. Mais uma vez, é um acaso muito raro que haja poucos pobres e muitos ricos. Mas todos podem ser livres. Ora, a administração da coisa pública é disputada pela liberdade e pela opulência".
  • 4
    Cassinelli (1953) observa que Michels não define com clareza em seu trabalho tanto o conceito de organização como o de oligarquia. Buscando superar essa deficiência ele propõe a seguinte definição de organização: "An organization is a group of human activities ordered by a system of specialization of function; a sub-group of these activities has as its goal the maintenance of this order or of an order very similar to it" ("Uma organização é um grupo de atividades humanas ordenadas por um sistema de especialização de funções; um subgrupo dessas atividades tem como seu objetivo a manutenção dessa ordem ou de uma ordem muito similar a ela") (
    idem, p. 777).
  • 5
    Essa expressão de Michels tornou-se célebre e muito repetida ao longo dos anos por diversos autores que debateram suas idéias. Curiosamente, contudo, a expressão "lei férrea" só aparece uma única vez em seu livro, justamente no título de um capítulo da parte final da obra, dedicada a uma síntese geral de sua teoria. Afora isto, a expressão "férrea" numa acepção similar é encontrada em apenas duas passagens. A primeira, quando o autor afirma que a dependência que têm os líderes partidários da remuneração recebida do partido ata a organização com "cadeias férreas", reforçando a burocracia partidária e a centralização do poder nas mãos dos líderes ((MICHELS, 2001 [1915], p. 75). A segunda, quando ele observa que durante anos a direção do Conselho Geral da Internacional dos Trabalhadores esteve sujeitada à "vontade férrea" de um único homem, Karl Marx, o que ocasionou a crítica dos anarquistas àquilo que seria a introdução do princípio da autoridade na política dos trabalhadores (
    idem, p. 120).
  • 6
    "Com base em uma lei social universalmente aplicável, cada órgão da coletividade, trazida à existência por meio da necessidade da divisão do trabalho, tão logo ele consolida-se, cria interesses peculiares a si. A existência desses interesses especiais envolvem um conflito necessário com os interesses da coletividade. Não somente isso, mas, além disso,
    estratos sociais cumprindo funções peculiares tendem a tornar-se isolados, a produzir órgãos específicos para a defesa de seus próprios interesses peculiares. No longo prazo eles tendem a incorrer numa transformação em classes distintas" (N. R.).
  • 7
    Este problema da divisão do trabalho, que engendra um grupo social potencialmente autônomo em relação aos que lhe conferiram poder organizacional, é também apontado por Weber (1979) em seu estudo sobre a burocracia. Segundo ele, a burocracia moderna, ao assumir um caráter estamental, entra em conflito com o "nivelamento dos governados", promovido pela democracia. Aponta esse autor (idem, p. 262) que o "grupo burocraticamente articulado [...] pode ocupar uma posição bastante autocrática, tanto de fato como na forma".
  • 8
    A "legitimidade" é considerada neste artigo como o conjunto de princípios abertamente aceitos por uma dada coletividade para o seu funcionamento e, portanto, para as ações de seus membros. Ações que contrariem a esses princípios abertamente aceitos na coletividade serão consideradas ilegítimas. Considerando-se que perseguir determinados objetivos vinculados a um mandato é uma imposição legitimada por princípios da organização, não o fazer gera um problema de legitimidade.
  • 9
    "A oligarquia, então, é uma concentração de autoridade entrincheirada e/ou influência ilegítimas nas mãos de uma minoria; tal poder
    de facto consiste em que o que a minoria deseja geralmente é aprovado, mesmo quando ele vai contra as vontades (sejam elas expressas ativamente, sejam expressas passivamente) da maioria" (N. R.).
  • 10
    A minoria oligárquica pode ser entendida estritamente, como composta de um "núcleo duro" de dirigentes principais, ou mais amplamente, de modo a abarcar os apaniguados desse núcleo duro, os quais, embora não possuam poder decisório eles próprios, contribuem para a manutenção do sistema oligárquico (inclusive para sua legitimação) e são recompensados por isso.
  • 11
    Tendo isto em vista, nota-se um equívoco de Leach (2005, p. 326, n. 15) quando ele aponta que empresas privadas (
    business firms) seriam "estruturalmente oligárquicas". Ora, empresas privadas não são nem oligárquicas, nem democráticas, elas são simplesmente hierárquicas: elas têm um dono (ou mais de um) que manda na organização porque lhe pertence. Seus empregados devem obediência a ele e devem acatar suas ordens simplesmente porque essa é a regra do jogo aceita (e, portanto, legítima) na relação entre patrões e empregados no âmbito da empresa. Por isso mesmo, não haveria nada de ilegítimo e, portanto, de "estruturalmente oligárquico" em uma empresa; simplesmente, o princípio é outro.
  • 12
    Procuro neste texto seguir a distinção feita por Cassinelli (1953, p. 779) entre os "oligarcas" (ou grupo oligárquico) como a minoria de pessoas que possui o poder decisório na organização e a "oligarquia" como a própria organização que possui oligarcas, ou seu regime de funcionamento. De qualquer modo, é possível, por razões de estilo, referirmo-nos à "oligarquia" como o grupo dos "oligarcas", sendo o sentido preciso dado no contexto.
  • 13
    "Uma oligarquia é uma organização caracterizada pelo fato de que parte das atividades das quais ela consiste - por exemplo, as atividades tendo o maior grau de autoridade (que são chamadas de atividades 'de liderança' ou 'executivas') - é livre do controle de qualquer uma das atividades organizacionais restantes. Esse conceito leva a uma generalização que poderia ser chamada de 'uma teoria da liderança irresponsável'" (N. R.).
  • 14
    A este respeito é interessante o texto intitulado "Duas revoluções, dois resultados", de Wilhelm Pieck (2007), Presidente do Partido Socialista Unificado da Alemanha e presidente da Alemanha Oriental. Disponível em
  • 15
    A melhor compreensão do fenômeno oligárquico em organizações sociais e políticas, estatais ou não estatais, oferece subsídios importantes também para o entendimento de outro aspecto central da contemporaneidade: a corrupção. É plausível afirmar que a corrupção se instala em determinadas estruturas organizacionais porque essas foram capturadas por oligarquias. Assim, compreender a oligarquia pode ser um importante passo para que se entenda melhor a corrupção.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Nov 2012

    Histórico

    • Recebido
      17 Ago 2012
    • Aceito
      01 Out 2012
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