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Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica

Jacqueline Britto Pólvora

University of Texas at Austin* * Doutoranda em Antropologia Social, bolsista do CNPq. - Estados Unidos

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Brasil

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Ford, 2003. 347 p.

Há muito tempo, a sociologia norte-americana vem discutindo a excepcionalidade ou não das relações raciais no Brasil. Este livro é mais uma contribuição aos debates, locais e internacionais, sobre as relações - e desigualdades - entre brancos e negros no Brasil. O autor é professor no Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e, além de pesquisador da realidade sociológica do Brasil há pelo menos uma década, publicou inúmeros artigos sobre o tema, especialmente em revistas norte-americanas, tendo várias passagens pelo Brasil, incluindo uma estadia no Rio de Janeiro onde trabalhou como Assessor de Programas em Direitos Humanos do escritório da Fundação Ford (p. 35).

O livro pode ser situado em torno de três grandes objetivos. O primeiro deles é a rediscussão das teorias - nacionais e internacionais - sobre as relações raciais no Brasil, as quais o autor divide em dois grandes grupos: o primeiro é o da tendência advinda desde Gilberto Freyre, e entendia as relações raciais como harmônicas e pouco conflituosas; o segundo grupo, crítico do primeiro, localizado na Escola Paulista de Sociologia e cuja referência maior é Florestan Fernandes, entendeu as relações raciais no contexto da industrialização e denunciou o racismo nas relações sociais no Brasil. O segundo objetivo do livro é o de apresentar uma análise "integrada" das relações raciais brasileiras (p. 24) na qual não se privilegia - como as anteriores fizeram - nem a miscigenação nem as tensões raciais, mas sim incorpora esses dois elementos, apresentando-os na forma estatística e discutindo-os na praticidade das vidas das pessoas. Finalmente, o terceiro objetivo, inevitável na posição onde o autor está situado, é comparar os modelos de relações raciais norte-americano e brasileiro, tarefa de que os estudiosos desse tema - em inglês ou em português - não podem se esquivar.

Esta é uma obra de fôlego sociológico, na qual o autor mescla dados estatísticos, majoritariamente do censo nacional, com obras antigas que já foram inúmeras vezes polemizadas, discutidas e criticadas por quase todos os estudiosos da questão racial no Brasil. A partir desses estudos propõe "uma nova perspectiva sociológica" para "a lógica interna do sistema racial brasileiro" (p. 27) e para as relações raciais daí advindas. O livro está organizado em dez capítulos que poderiam ser lidos em três partes. Na primeira parte, composta dos capítulos dois e três, o autor revê estatisticamente a formação racial do país e examina o papel do Estado e dos discursos científicos na construção histórica dos mitos e estereótipos nacionais, nomeadamente a "democracia racial" e a miscigenação. O autor propõe que estas verdades fundamentaram tanto as crenças sobre as relações entre negros e brancos no Brasil quanto as análises sociológicas sobre estas. A inovação dessa primeira parte se encontra menos na exposição detalhada da formação racial nacional e mais na visão macrossociológica sobre o papel e as políticas do Estado para minimizar ou apoiar as lutas anti-racistas das organizações negras.

A segunda parte consiste no desenvolvimento detalhado dos argumentos do autor, divididos em cinco capítulos (capítulos quatro a oito). Aqui o autor, referindo-se à sua posição mais "neutra" de análise (p. 25), disseca as relações "verticais" e "horizontais" entre brancos e não-brancos, e guia o leitor para a compreensão de pontos-chave na análise e na elaboração das políticas públicas que visem contribuir para a diminuição das desigualdades raciais. O ponto alto dessa seção é a incorporação de variáveis de classe e de região, através das quais o autor demonstra que as relações entre negros e brancos são mais heterogêneas do que parecem quando examinadas à luz desses eixos. Essa discussão será importante mais tarde, quando discutidas as possbilidades de implementar políticas especificas e contextualizadas regionalmente para os afro-descendentes brasileiros. Finalmente, a terceira parte, distribuída nos dois últimos capítulos, discute a formulação de políticas públicas adequadas de combate ao racismo e às desigualdades raciais, assim como revê as teses centrais do livro e reforça as conclusões.

Os debates trazidos pelo autor abrangem a revisão de uma das antigas discussões sobre as relações de raça no Brasil, bem como inserem a obra na controvérsia do momento, que é a discussão das políticas de ações afirmativas. A indagação sobre se as desigualdades entre negros e brancos no Brasil são provenientes da condição de raça ou da de classe foi amplamente debatida desde os estudos da UNESCO. O autor retoma aqui esse debate, complexificando-o com dados estatísticos, e vai no mesmo sentido que os órgãos oficiais têm divulgado para a sociedade brasileira nos últimos anos. Dados como nível de escolaridade, renda, ocupação, trabalho, acumulação de riqueza e mobilidade social nos levam aos índices numéricos das desigualdades entre brancos e não-brancos, de maneira que a raça - ainda que não por si só - aparece como fator fundamental na determinação da hierarquia socioeconômica do Brasil. A polêmica dessa sessão fica por conta do diálogo com o historiador norte-americano Carl Degler e sua tese de que as pessoas mulatas gozavam de status diferenciado e por isso teriam melhor "lugar" social do que as pessoas negras. Tendo sido severamente contestada por Nelson do Valle e Silva (p. 229), nesta obra essa tese é retomada e estimulada pela rediscussão dos resultados numéricos obtidos pela análise do censo.

Assim, aqui os pardos aparecem com vantagens ligeiramente acima daquelas das pessoas negras, mas ainda muito abaixo das pessoas brancas de classe média, dado que varia de região para região, mas cuja dinâmica nunca muda. Esse é o caminho trilhado pelo autor para, no penúltimo capítulo, formular as "políticas adequadas" (p. 263), cujo modelo sugerido passa pela legislação anti-racismo e outros usos alternativos do direito. A nacionalidade do autor também permitiu-lhe conhecer os efeitos das ações afirmativas para algumas gerações de afro-descendentes nos Estados Unidos, e este ponto é defendido como política necessária para diminuir a longo prazo as desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Como todo o resto do conteúdo do livro, a discussão e as proposições aqui vêm acompanhadas do rigor sociológico demonstrativo da necessidade dessas políticas. Mais ainda, o autor mostra para os que se opõem como os investimentos e políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para educação de parte do Estado brasileiro, não fizeram senão reforçar os privilégios das pessoas brancas de classe média e das regiões mais desenvolvidas do país (p. 274-277).

Finalmente, algumas questões mais abrangentes e importantes, especialmente para o público da antropologia. O livro é bastante intenso pelos dados e análises estatísticas, e quando se volta para dados menos quantificáveis não responde com a mesma eloqüencia. O autor faz rápidas incursões em temas não tão demonstráveis estatisticamente e, seguramente para os antropólogos, entendidas apropriadamente desde a ordem qualitativa mais do que quantiva. Ao discutir, por exemplo, identidade negra no Brasil, ou a ambigüidade desta conforme discutido no livro, o autor segue inúmeros outros de seus colegas norte-americanos na idéia de ausência, ou fraca presença, de consciência racial dos afro-brasileiros, especialmente se comparados com a "visibilidade" dessa consciência entre afro-norte-americanos. Essa é uma questão que não precisaria ser reduzida em termos de ausência ou presença, especialmente quando se trabalha com um pré-modelo de consciência racial e este é norte-americano. Por outro lado, considerar a cidade de Salvador - por causa de seus blocos afros e organizações negras - como a exceção na consolidação da identidade afro-brasileira é também cair mais uma vez nos estereótipos traçados pelo próprio Estado, pela elite local que, como o autor reconhece, administra a indústria de turismo na cidade. Além do mais, ter Salvador como modelo identitário é reforçar o senso comum construído também por intelectuais, antigos e contemporâneos, que persistem na idealização da cidade enquanto "o" centro identitário afro-brasileiro. Não se trata de discutir a magnitude das identidades afro-brasileiras em Salvador, mas sim de pensar que, se o Brasil é diverso em suas variadas dimensões, os afro-brasileiros também o são, porque além de brasileiros atualizam várias formas de ser na diáspora. Vale pensar que considerar um único modelo identitário é fazer tábula rasa de outras associações, organizações e lutas que se dão em diferentes centros urbanos e rurais de outras regiões do país, e que embora não explicitem insistentemente o discurso da negritude, reconhecem racialmente sua posição na sociedade. Em outras palavras, muitos afro-descendentes em outros lugares, ainda que não estejam carregando bandeiras de um modelo reconhecido - especialmente pela mídia - como sendo o modelo de "identidade afro-brasileira", sabem de sua história e relacionam em seu cotidiano os efeitos de ser negro neste país, quer em suas conquistas ou em suas derrotas. Por fim, a persistência na comparação às vezes rígida entre os dois sistemas raciais, norte-americano e brasileiro, mantendo um como modelo e ideal faz com que o livro, ainda que publicado em português, continue falando inglês ou, talvez, continue sobrecarregado por uma leitura com base maior na experiência em inglês. De qualquer forma, e indiscutivelmente, o livro é uma contribuição consistente e atualiza o debate para os interessados nas relações e nas desigualdades raciais no Brasil.

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    Doutoranda em Antropologia Social, bolsista do CNPq.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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