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A cidade e as crianças: desenhos e caminhos a partir do Morro do Estado (Niterói, RJ)

The city and the children: drawings and paths from Morro do Estado (Niterói, RJ)

Resumo

Este artigo propõe interlocução entre os estudos urbanos envolvendo crianças e a reflexão sobre políticas urbanas que considerem as multiplicidades de seus habitantes de forma mais democrática e inclusiva. O artigo aborda metodologicamente o uso do desenho na pesquisa etnográfica, promovendo a análise densa de narrativas e desenhos elaborados por crianças, de 6 a 12 anos (e um adolescente de 13 anos), moradoras do Morro do Estado, Niterói (RJ). O recurso serviu para a comunicação com as crianças e para disparar conversas, as estimulando a refletirem sobre os temas de seu cotidiano e sua visão sobre a cidade. Ao mesmo tempo, produziu conhecimento sobre o bairro, a cidade onde moram, suas ambiguidades e desejos.

Palavras-chave:
antropologia da criança; antropologia e desenho; cidade; etnografia com crianças

Abstract

This article proposes a dialogue between urban studies involving children and the reflection on urban policies that consider the multiplicity of its inhabitants in a more democratic and inclusive way. The article, methodologically, addresses the use of drawings in ethnographic research, promoting the dense analysis of narratives and drawings made by children aged 6 to 12 (and a 13 year old teenager), who live in Morro do Estado, Niterói (RJ). This resource served to communicate with the children and to trigger conversations, encouraging them to reflect on the themes of their daily lives and their view of the city. At the same time, it produced knowledge about the neighborhood, the city where they live, their ambiguities and desires.

Keywords:
anthropology of children; anthropology and drawing, city; ethnography with children

Introdução

Este artigo tem como objetivos iniciais pôr em interlocução diferentes áreas de conhecimento, com destaque para a antropologia urbana e a antropologia da criança, de modo a fomentar um diálogo com políticas públicas que buscam pensar a cidade de forma mais democrática e inclusiva, considerando as multiplicidades de seus habitantes e promovendo os direitos dos cidadãos. Trata-se aqui de um desdobramento de minha pesquisa de mestrado, na qual atuei simultaneamente como educadora popular e pesquisadora em um projeto socioeducativo,1 1 Projeto Socioeducativo Casa Reviver - IDE, fundado em 06/06/2006. localizado no Morro do Estado, situado na cidade de Niterói (RJ).

Entendendo que os moradores da metrópole, “em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc.”, constituem definitivamente aquilo que dá vida a ela (Magnani, 2002MAGNANI, J. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002., p. 15), no desenvolvimento a seguir, o presente artigo irá explorar dois aspectos. Primeiramente, aquilo que crianças moradoras do Morro do Estado (matriculadas no Projeto), sujeitos da minha pesquisa, revelaram a respeito do lugar onde moram: como veem a cidade e como ilustram os caminhos que percorrem. Em segundo lugar, o potencial e a relevância de suas ideias e demandas sobre questões relativas à cidade.

Para isso, o texto irá recorrer, principalmente, a quatro atividades que ocorreram nos encontros da oficina que elaborei e conduzi, semanalmente, no Projeto supracitado. Relatos e narrativas das crianças em atividades secundárias também integrarão as análises. No espaço da instituição (duas salas de aula, dois banheiros, uma cozinha, um quintal grande, uma brinquedoteca e uma antessala), mantive contato com aproximadamente 108 alunos, de 6 a 16 anos, de agosto de 2015 a agosto de 2018.

Diariamente, o Projeto Socioeducativo oferecia, em média, duas oficinas por turno, da manhã e da tarde; dividindo os alunos matriculados em dois grupos etários: de 6 a 12 anos e de 13 a 16 anos (podendo sofrer alterações de acordo com o número de alunos e com a afinidade entre eles). Cada grupo compartilhava com o educador, aproximadamente, 1 hora e 15 minutos de oficina em sala de aula.

Para os fins deste artigo, o recorte a ser analisado se manteve restrito aos encontros que tive com o grupo da primeira faixa etária, suas narrativas e produção material (com destaque para a presença de um aluno de 13 anos que acompanhou, no turno da manhã, as reuniões do grupo dos alunos menores).

A antropologia da criança apresenta múltiplas possibilidades de investigação, tendo como fundamento “o reconhecimento da criança como sujeito social ativo e atuante” (Cohn, 2005COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., p. 42). Frente a isso, meu trabalho adotou um caminho que foi ao encontro da atual percepção multidisciplinar da criança como um ser completo e dotado de agência. Ao atentar para a agência das crianças, a pesquisa buscou explorar suas capacidades de “pensar o mundo de forma diferente dos adultos e propor soluções, culturais diversas” (Pires, 2010PIRES, F. O que as crianças podem fazer pela antropologia?. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 137-157, jul./dez. 2010., p. 152). O que não significa afirmar que a agência infantil é absoluta. Produções atuais de antropologia da criança têm destacado a necessidade de relativizar essa característica desses sujeitos.

Em outras palavras, explorar em nossas pesquisas o caráter ativo - e autônomo - das crianças não nega sua dependência dos adultos. A antropóloga britânica Christina Toren (2013TOREN, C. Uma antropologia além da cultura e da sociedade: entrevista com Christina Toren. [Entrevista concedida a] Guilherme Fians. Revista Habitus, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 165-177, 2013., p. 175) argumenta nesse sentido:

Crianças têm que produzir significados a partir das condições no mundo criado por adultos, e se, como antropólogo, você descobre qual tipo de significado elas estão produzindo e como elas estão fazendo isso, você pode realmente demonstrar não só o processo que constitui as realidades vividas pelas pessoas, mas também sua necessidade histórica. […] Cada criança precisa dar significado por si mesma ao mundo habitado. Nos termos mais simples, o que a criança faz (o que cada um de nós faz) é produzir significados a partir dos significados que outros produziram e estão produzindo.

Tendo essas concepções em mente, a vivência em uma metrópole foi pensada a partir de um grupo de crianças moradoras de um bairro precarizado, próximo ao centro de uma cidade com mais de meio milhão de habitantes,2 2 População estimada em 2020 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: 515.317 pessoas (cf. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020). partindo dos seus próprios pontos de vista.

Entretanto, é importante ter em consideração o que constata a tese de Monique Voltarelli (2017)VOLTARELLI, M. A. Estudos da Infância na América do Sul: pesquisa e produção na perspectiva da sociologia da infância. 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., Estudos da infância na América do Sul: pesquisa e produção na perspectiva da sociologia da infância. A autora aponta para o fato de que muitos dos programas, políticas e demais ações voltadas para as crianças, formuladas até o final da década de 1990, aproximadamente, foram influenciadas por um paradigma já superado - que enxergava a criança através de um viés universal, naturalizado e normativo da infância, onde as crianças eram vistas em fase de espera, de preparação para a vida adulta (Voltarelli, 2017VOLTARELLI, M. A. Estudos da Infância na América do Sul: pesquisa e produção na perspectiva da sociologia da infância. 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 169).

A oficina que conduzi com as crianças foi criada por mim com base em um referencial teórico-metodológico que demarca forte contraste com essa concepção. Cada dinâmica e atividade que propus às crianças foram elaboradas considerando-as “capazes de agir e transformar o seu entorno, no momento presente de suas vidas” e não em “futuro distante para se tornarem cidadãos e, só então, poderem participar ativamente da sociedade” (Pérez; Jardim, 2013PÉREZ, B.; JARDIM, M. Vamos ouvir as crianças?: caderno de metodologias participativas do Projeto Criança Pequena em Foco. Rio de Janeiro: CECIP, 2013., p. 4). Assim sendo, o presente trabalho defende a inclusão das crianças (suas opiniões e necessidades) no planejamento urbano, principalmente no que concerne à “orientação de políticas públicas e projetos […] a elas destinados” (Pérez; Jardim, 2013PÉREZ, B.; JARDIM, M. Vamos ouvir as crianças?: caderno de metodologias participativas do Projeto Criança Pequena em Foco. Rio de Janeiro: CECIP, 2013., p. 4).

A antropóloga Clarice Cohn (2013COHN, C. Concepções de infância e infâncias. Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013., p. 241) afirma a necessidade de expandir a abrangência da área da antropologia da criança de maneira ampla na antropologia, e, na “atuação no mundo”, de maneira mais ampla ainda: “Uma atuação que seja efetivamente condizente com o que as crianças fazem e querem fazer.” A partir do estímulo da autora, fundamenta-se o entrecruzamento proposto. Finalizando esta introdução, cito uma das orientações, fundamentais na realização da minha pesquisa, dada pela antropóloga britânica Allison James àqueles que estão iniciando a pesquisar envolvendo as crianças:

Sigam seus interesses teóricos! Nós já temos descrições do dia a dia das crianças suficientes - o que não temos suficiente é a contribuição que os estudos das crianças e da infância podem dar aos grandes problemas e debates - o que acontece com esses problemas e debates quando você os estuda a partir da perspectiva dos estudos da infância? Muitos insights e novas ideias interessantes surgem… É isso que é necessário. (James, 2014JAMES, A. O propósito crítico: entrevista com Allison James. [Entrevista concedida a] Flávia Pires e Maria Letícia Nascimento. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 128, p. 629-996, jul./set. 2014., p. 944).

Recortes de uma investigação urbana com desenhos feitos por crianças

Enquanto educadora popular e antropóloga pesquisadora, ativamente atuante no contexto de pesquisa, pude utilizar métodos tradicionais ligados à observação participante (como o registro em caderno de campo), ao mesmo tempo que esta condição me proporcionou liberdade para elaborar e incorporar à minha análise estratégias não usuais na etnografia, buscando atender especificidades das crianças com as quais interagi. O recorte a ser trabalhado irá enfatizar a utilização do desenho elaborado no campo de pesquisa pelos interlocutores, tendo esse recurso desempenhado múltiplos papéis.

Ao apontar o estado da arte da relação entre antropologia e desenho, a autora Aina Azevedo (2016AZEVEDO, A. Desenho e antropologia: recuperação histórica e momento atual. Cadernos de Arte e Antropologia, Salvador, v. 5, n. 2, p. 15-32, 2016., p. 22), no texto “Desenho e antropologia: recuperação histórica e momento atual”, constata o crescimento de trabalhos nos quais essa ferramenta tem ganhado destaque como método de pesquisa e forma de exposição de conhecimento. A antropóloga Karina Kuschnir (2016)KUSCHNIR, K. A antropologia pelo desenho: experiências visuais e etnográficas. Cadernos de Arte e Antropologia, Salvador, v. 5, n. 2, p. 5-13, 2016. caracteriza esse movimento crescente como uma “redescoberta da prática de desenho etnográfico”.

Kuschnir (2016KUSCHNIR, K. A antropologia pelo desenho: experiências visuais e etnográficas. Cadernos de Arte e Antropologia, Salvador, v. 5, n. 2, p. 5-13, 2016., p. 8, grifo meu) afirma que o movimento atual se afasta da utilização técnica e clássica do desenho e se aproxima de uma reinvenção da produção antropológica, proposta por “autores do horizonte pós-moderno”; que expressa uma mobilização “por uma investigação mais sensível, subjetiva, criativa, e vivida”, em dívida com certas influências românticas. As características almejadas nesse cenário antropológico carregam grande potencial para que se expandam as etnografias envolvendo crianças, que, necessariamente, requerem criatividade e sensibilidade.

A antropóloga Flávia Pires (2007PIRES, F. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, p. 225-270, 2007., p. 42) afirma que “ao desenhar sobre um tema proposto, as crianças colocam no papel o que lhes é mais evidente”, orientando a observação do pesquisador. Porém, a autora pontua algumas ressalvas a respeito desse instrumento, uma vez que a investigação antropológica não está apta a tirar conclusões de um desenho em si mesmo (Pires, 2007PIRES, F. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, p. 225-270, 2007., p. 50, 61). Análise desse material deve estar conjugada com a observação participante e com as condições mais gerais da realização da investigação.

É preciso, então, tratar o desenho dentro de uma lógica etnográfica (ou seja, considerando, entre outros aspectos, a relevância do momento da sua realização, os recursos empregados na sua utilização, a experiência pessoal de seu autor), de modo a demonstrar inúmeras possibilidades desse recurso como um mediador do acesso ao contexto urbano vivido por seus autores. Dessa forma, antes de abordar os dois aspectos analíticos que o artigo explora a respeito da perspectiva das crianças sobre a cidade e o bairro onde moram, é preciso explicitar algumas condições da pesquisa e algumas características compartilhadas pelo grupo de crianças.

Os encontros da minha oficina no Projeto Socioeducativo chegaram a ser frequentados por quase 30 alunos a cada turno (manhã e tarde), entretanto a maioria dos dias não acumulava desenhos ou contribuições de todos eles. Nem todas as crianças que participavam dos encontros se empenhavam em realizar a atividade proposta; algumas de fato não a faziam (e eu não costumava insistir muito para isso). O grau de envolvimento e concentração da turma poderia variar de acordo com diferentes fatores, por exemplo: o quanto atrativo as crianças consideravam a atividade, se elas estavam empolgadas com algum evento futuro (como um passeio ou festa a ser promovido pelo Projeto), uma fofoca recente no Morro poderia afetá-las ao ponto de ficarem conversando sobre ela constantemente, entre outros.

Ao longo do trabalho, desenvolvi algumas dinâmicas de articulação da minha dupla atuação, que foram úteis tanto na pesquisa quanto no exercício de sala de aula. Por exemplo, como apontado, às vezes a atividade da oficina era realizada em meio a alguma agitação, ou seja, enquanto desenhavam não necessariamente as crianças se mantinham concentradas. Resolvi então explorar esse momento dando uma utilização paralela ao desenhar. Algumas vezes, deixava meu celular rodando pela turma para que, uma por uma, as crianças fossem escolhendo uma música para cantarem enquanto desenhavam. Em outros momentos, enquanto elas realizavam a atividade eu fazia alguma pergunta relacionada ao tema do encontro e pedia para que reservassem uns minutos em silêncio para pensarem e que em seguida fossem respondendo em voz alta.

Além disso, a prática de finalizar as atividades com as crianças compartilhando suas considerações a respeito dos seus próprios desenhos foi uma importante estratégia. Enquanto elas falavam, eu buscava entender (e anotar) o que os desenhos propunham. Outro fator que facilitou a utilização desse recurso material foi o fato de que algumas crianças, espontaneamente, escreviam nos seus desenhos algo que revelava o que haviam expressado na imagem. (Destaco que o desenho nunca foi uma imposição em minha oficina, toda vez que o solicitei em alguma atividade, deixei claro que aqueles que preferissem escrever poderiam ficar à vontade para isso.)

Ao atuar com as crianças em suas pesquisas, o antropólogo se depara com o desafio de ouvi-las efetivamente (Cohn, 2013COHN, C. Concepções de infância e infâncias. Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013., p. 241), haja vista que crianças se comunicam e compartilham suas ideias constantemente. Cabe ao pesquisador buscar aprimorar suas formas de ouvi-las e de se comunicar com elas. Em minha experiência, precisei estar atenta a dois tipos de escutas. Enquanto conduzia atividades e em seguida promovia debates, precisava ouvir aquilo que meus alunos me respondiam; enquanto pesquisadora, aquilo que eles falavam espontaneamente.

É relevante dizer que o Projeto Socioeducativo onde atuei exige que seus alunos estejam regularmente matriculados em uma escola para poderem frequentar semanalmente sua programação. Dessa forma, todas as crianças (e adolescentes) moradoras do Morro do Estado que integraram a presente pesquisa participavam do processo de escolarização regular (não obstante, havia uma quantidade significativa de alunos repetentes de série escolar). No Morro do Estado há apenas uma escola, municipal, onde a grande maioria dos alunos do Projeto estuda junto, pelo menos, até o término do ensino fundamental.

As crianças com que interagi moram bem próximas umas das outras, frequentam os mesmo lugares, muitas vezes se movimentam pela cidade juntas, etc. Outra característica comum a todas elas reside justamente no fato de serem assíduas em um Projeto Socioeducativo no bairro onde moram. Nesse espaço elas passam parte dos seus dias (no contraturno escolar), encontram amigos, brincam, lancham, usufruem da internet wi-fi… Além disso, o Projeto impacta diretamente suas experiências de viver a cidade. Ao longo de quase 14 anos, a instituição tem investido em ampliar os acessos que as crianças que atende possuem a diferentes espaços da cidade, buscando romper com lógicas excludentes que impõem determinados estigmas sobre seus alunos.

Conhecendo esses aspectos contextuais importantes acerca da produção material elaborada pelas crianças e um pouco do dia a dia que elas compartilham, é possível trazer a atenção para suas narrativas orais, escritas e visuais, acerca de como Niterói e o Morro do Estado são, e acerca de como elas gostariam que fossem. O cotidiano se torna uma chave importante para compreender o texto urbano que se segue (Certeau, 1998CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.). A análise consiste em conhecer e entender a cidade para além das noções “urbanística, estatística ou administrativa” (Agier, 2011AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011., p. 36). O trabalho incorpora uma perspectiva que aposta na possibilidade de

“desenhar” uma cidade múltipla, partindo do ponto de vista das práticas, das relações e das palavras dos citadinos tais como o próprio pesquisador as observa, as coleta e anota, direta e situacionalmente, e que esta cidade não é menos real que aquela dos urbanistas ou dos administradores. É outra. (Agier, 2015AGIER, M. Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 483-498, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v...
, p. 486).

Parte I

No texto “Desenhando cidades”, Kuschnir (2012KUSCHNIR, K. Desenhando cidades. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 295-314, 2012., p. 303) afirma que o olhar de quem desenha uma cidade é constituído por um processo que “produz, recorta, significa” a cidade por meio do desenho. Além disso, a autora apresenta a prática de desenhar como um mecanismo de organizar na memória as “experiências vividas” por aquele que desenha (Kuschnir, 2012KUSCHNIR, K. Desenhando cidades. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 295-314, 2012., p. 304). Ao desenharem pensando no lugar em que moram e que percorrem diariamente, as crianças realizaram esse movimento de recuperação de memória, constantemente revelando o que viram, conheceram, onde frequentaram.

Posto isso, os primeiros desenhos que trago no presente recorte da investigação urbana que realizei no mestrado são ilustrações feitas em cartões-postais,3 3 Atividade inspirada em uma das metodologias apresentadas no livro Como as crianças vêem a cidade (Vogel; Vogel; Leitão, 1995). confeccionados pelas crianças em alguns encontros da minha oficina. Em um primeiro momento, conversei com as crianças a respeito da utilização e de peculiaridades de um cartão-postal. Em seguida, mostrei exemplos de alguns formatos para que cada uma fizesse o seu. Propus às crianças que ilustrassem em seus postais aquilo que elas considerassem uma marca importante do lugar onde moram. Estimulei-as a selecionarem algo que considerassem bonito em seu cotidiano. (Vinte e oito cartões foram produzidos no total.)


Ponte Rio-Niterói, por uma aluna de 9 anos. Museu de Arte Contemporânea, por um aluno de 11 anos.

Os desenhos anteriores ilustram dois importantes marcos niteroienses que, de fato, configuram cartões-postais turísticos da cidade. Essas duas imagens foram as que mais se aproximaram da noção “adultocêntrica” do cartão-postal. Outras crianças também selecionaram lugares na cidade para ilustrar seus postais de Niterói. Uma aluna de 11 anos desenhou o colégio onde estuda e outra, de 8 anos, desenhou o cinema do maior shopping da cidade (exibindo o filme a que havíamos assistido na semana anterior, em um passeio promovido pelo Projeto Socioeducativo).

Contudo, chama bastante atenção nos desenhos elaborados pelas crianças que a cidade foi recortada por elas através do sentido da visão. Boa parte das crianças deu significado à proposta de representar a cidade através daquilo que elas, literalmente, veem de Niterói quando olham para a cidade do alto do Morro do Estado.

Os prédios ganharam destaque no cenário cotidiano compartilhado pelas crianças. O primeiro desenho do bloco acima, feito por um aluno de 11 anos, aponta a quantidade de prédios na cidade de uma maneira geral, e destaca um deles com hidrocor marrom. O postal em seguida, produzido por uma aluna de 11 anos, destaca o mesmo prédio, também ilustrado nos dois últimos postais, e identifica-o. Trata-se do Niterói Shopping (que apesar do nome, não configura um shopping e sim um centro comercial). O prédio se destaca no cenário da cidade devido a sua altura de 27 andares e seu formato distinto de torre, cilíndrico, demonstrado nos dois últimos desenhos.

O Niterói Shopping chama atenção na visão que se tem de Niterói quando se está em grande parte do Morro, inclusive no quintal do Projeto Socioeducativo (onde a atividade foi realizada). O mesmo ocorre com a Ponte Rio-Niterói, que aparece, pela segunda vez, no penúltimo desenho. É válido relatar que alguns responsáveis pelos alunos trabalhavam nesse estabelecimento à época (como ascensorista de elevador e atendente de quiosque, por exemplo).

No último postal do bloco anterior, o aluno de 11 anos compartilhou com seus colegas o destaque dado à presença dos prédios em Niterói ao mesmo tempo que imprimiu na ilustração um elemento de religiosidade.

O cotidiano das crianças é constantemente perpassado por manifestações religiosas, que se expressam até mesmo no cenário urbano, como em pinturas, grafites ou pixações nos muros e paredes pelos caminhos do Morro do Estado. Esse aspecto está impresso no primeiro cartão-postal acima, ilustrado por uma aluna de 10 anos - que remete aos dizeres pintados pelos caminhos.

Na orientação da atividade, deixei em aberto para cada aluno decidir se gostaria de desenhar algo relacionado ao Morro do Estado ou não. Dessa forma, um aluno de 12 anos, inicialmente, pensou em ilustrar o Museu de Arte Contemporânea - com seu formato de “disco voador”. Porém, ainda no processo de confecção da atividade acabou mudando de ideia e ajustou seu desenho inicial, entregando a segunda ilustração acima. Em voz alta, ele afirmou que como morador do Morro do Estado deveria valorizá-lo como um marco importante da cidade. Outros alunos, assim como o autor dos dois desenhos anteriores, também adotaram a postura de eleger o próprio bairro, o Morro do Estado - ou algum aspecto referente a ele - como o cartão-postal da cidade.

Ao olhar para as ilustrações, é preciso ter em mente que o modo como as crianças interpretam a cidade está intimamente ligado às suas práticas cotidianas. Nesse sentido, destaco uma praça, próxima ao Projeto, chamada “Praça da Paz” (ou apenas “Pracinha”) - ilustrada em um postal por um aluno de 12 anos. A respeito dela é preciso trazer importantes considerações, haja vista que esse lugar ganha sentido através da vivência das crianças (Certeau, 1998CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.).

As crianças relataram passar algumas horas dos seus dias na Pracinha, quando estão fora de suas casas e não estão na escola. Muitos pais permitem que as crianças que moram nas proximidades fiquem na Praça da Paz sem supervisão adulta, mesmo existindo em frente a ela (durante o período da pesquisa), a poucos passos de distância, uma boca de fumo. Muitas crianças utilizam a Pracinha para jogar futebol, ou para “rachar”, como costumam falar entre si. Diversas vezes, alunos do Projeto “mataram” oficinas para racharem na Praça.

Quando acabavam as atividades socioeducativas no turno da manhã, as crianças tinham o costume de ir para a Pracinha. Dessa maneira, a pedido de algumas mães e da coordenação do Projeto, inúmeras vezes eu precisei ir até a praça para apressá-las para suas casas, para que não se atrasassem para entrar na escola. Já no turno da tarde do Projeto, quando acabavam as oficinas, os alunos costumavam rachar no seu quintal até o último funcionário ir embora. Certa vez, em uma sexta-feira, eu estava cansada e queria ir embora, porém o quintal do Projeto permanecia lotado. Ao reclamar com a avó de algumas crianças que os alunos não iam embora, ela me respondeu: “Também, né, tia, tem que deixar, porque ninguém aqui tem quintal em casa!”

Através dos desenhos anteriores (e do relato da avó citado), é possível compreender a importância e valorização dada a espaços como o quintal do Projeto Socioeducativo e a Praça da Paz. As imagens apresentam os caminhos por onde as crianças andam diariamente. Nos dois cartões-postais aparecem pessoas andando no Morro do Estado, por caminhos que não aparentam ser propícios para o racha. No primeiro, feito por um aluno de 10 anos, aparecem também algumas casas, e o segundo, ilustrado por uma aluna de 8 anos, mostra ela mesma caminhando para o Projeto Socioeducativo. Na sequência, um aluno de 9 anos dividiu o seu postal ao meio: à esquerda casinhas no Morro, à direita um prédio na cidade.

A presença de numerosos e altos edifícios, de monumentos arquitetônicos, de grandes construções humanas e de contrastes habitacionais (prédios pela cidade versus casinhas pelo Morro) são alguns elementos trazidos pelas crianças que evidenciaram características de Niterói. Os cartões-postais elaborados por elas apresentaram “uma síntese de elementos marcantes da paisagem familiar”, revelando o caráter metropolitano da cidade. Ao mesmo tempo, seus desenhos ajudam a compreender o modo como interpretam e relatam a “experiência dos olhos e da emoção” frente à cidade vivida e contemplada por elas, de maneira compartilhada (Vogel; Vogel; Leitão, 1995VOGEL, A., VOGEL, V. L.; LEITÃO, G. Como as crianças vêem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas, 1995., p. 76-82).

Considerar a experiência visual e emotiva das crianças na cidade é importante, entre outros aspectos, pois possibilita ao pesquisador perceber múltiplos ordenamentos que ocorrem na cidade, e a partir dela (Magnani, 2002MAGNANI, J. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002.). Posto isso, gostaria de introduzir uma segunda atividade realizada com as crianças, que produziu imagens riquíssimas de caminhos percorridos por elas todos os dias.

Em um encontro da minha oficina, entreguei aos alunos uma folha de papel contendo cinco perguntas, com espaço para serem respondidas através de desenhos.4 4 Exercício elaborado por integrantes da ONG Bike Anjo Niterói, convidados parceiros em um curso de extensão promovido em 2018 pelo grupo de pesquisa ao qual faço parte, intitulado Criança e Território/Já Pra Rua! (DAC/IFCS/UFRJ). Logo na primeira questão, antes que eu conseguisse conversar sobre o exercício que estava propondo, o aluno mais velho da oficina (13 anos) falou bem alto, chamando a atenção de todos: “Tia, só tem um problema, eu não moro em rua!” A pergunta nº 1, “como é a rua da sua casa?”, começou a incomodar todas as crianças. O mesmo ocorreu no turno da tarde, com menos intensidade. Ao conseguir a atenção de cada turma, sugeri aos alunos que riscassem a palavra “rua” e a substituísse por outra, que considerassem mais apropriada.

Quando esse encontro ocorreu, estava prestes a completar três anos que eu vinha caminhando semanalmente pelo Morro do Estado, porém a questão que propus às crianças não despertou em mim o mesmo incômodo despertado nelas. Como moradora de Niterói, acostumada a andar a pé pelo centro da cidade, ainda havia questões que eu precisava relativizar. A contestação das crianças colocou em xeque uma escala de classificação espacial dominante.

Gilberto Velho (1978VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 127) afirma que a pesquisa em sociedades complexas, como as grandes cidades, fornece aos antropólogos, a princípio, “um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos”. Entretanto, esse mapa de que dispomos (como pesquisadores cosmopolitas), não nos dá garantia de conhecimento dos diferentes pontos de vistas e visões de mundo dos diversos atores sociais que coabitam essa cidade.

Ao considerarmos antropologicamente o mapa como um sistema de crenças e que tanto o mapeamento cognitivo quanto o produto que vem dele (que é colocado no papel) são seletivos, não correspondendo totalmente com o meio ambiente espacial (Niemeyer, 1998NIEMEYER, A. M. Indicando caminhos: mapas como suporte na orientação espacial e como instrumento no ensino da antropologia. In: GODOI, E. P.; NIEMEYER, A. M. (org.). Além dos territórios: para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 11-40., p. 13), as produções das crianças, que se seguem, podem ser encaradas como um mapa mental (capazes de servirem como um apoio visual à orientação espacial). Essas imagens artesanais - não técnicas - fornecem importantes “dicas perceptuais que estão sendo captadas [pelas crianças] no tocante à localização.” (Gell, 1986, p. 345 apudNiemeyer, 1998NIEMEYER, A. M. Indicando caminhos: mapas como suporte na orientação espacial e como instrumento no ensino da antropologia. In: GODOI, E. P.; NIEMEYER, A. M. (org.). Além dos territórios: para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 11-40., p. 21, grifo meu).

Ao pensar a cidade a partir de uma lógica “de perto e de dentro”, centrada nas crianças moradoras do Morro do Estado, novas possibilidades de nomear e renomear coisas escondidas ou dadas pelas lógicas hegemônicas (muitas vezes externas aos grupos que usam determinados lugares na cidade) aparecem. “Moro no beco”, escreveu uma aluna de 8 anos. Os alunos apresentaram, e ilustraram, duas categorias classificatórias: becos e escadas. É nesses espaços que eles reconhecem suas casas, são esses os termos que dão sentido à maneira como se organizam, e não “ruas”, como eu previamente havia estabelecido. Seus desenhos interpretaram e produziram uma paisagem urbana com a qual eu já estava “familiarizada”, porém através de outras lógicas e compreensões a respeito dela.

As contribuições de Niemeyer (1998NIEMEYER, A. M. Indicando caminhos: mapas como suporte na orientação espacial e como instrumento no ensino da antropologia. In: GODOI, E. P.; NIEMEYER, A. M. (org.). Além dos territórios: para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 11-40., p. 30) apontam para o fato de que, ao desenhar sobre questões espaciais (como os trajetos e locomoções), os autores dos desenhos “balizam” o espaço, ou seja, escolhem um ponto lógico a partir da posição que eles ocupam no espaço a ser representado. Ao realizar a atividade de ilustrar os caminhos, as crianças transmitiram essa ideia. Foi possível perceber os recortes que elas realizavam dos elementos da paisagem urbana a partir de si, através das suas subjetividades, falando e desenhando aquilo que é relevante para elas. Posto isso, apresento os desenhos referentes às perguntas nº 2 e nº 3 da atividade relatada, “como é o seu caminho até a escola?” e “como você vai para escola?”.

“Todo feito de escada e uma que eu vou para escola”, assim uma aluna de 9 anos descreveu seu trajeto cotidiano até o topo do Morro, onde está situada a escola frequentada pelos alunos que participaram da oficina.5 5 Apenas um aluno que participou da atividade não estudava na Escola Municipal Ayrton Senna, localizada na parte mais alta do Morro do Estado. Dessa forma, seu desenho se diferenciou bastante dos seus colegas, sobretudo pela presença de carros e comércios. Os desenhos dos caminhos pelo Morro do Estado apresentam peculiaridades do lugar, marcado por casinhas, subidas, escadas, animais, etc. “Eu vou para escola andando”, escreveu uma aluna de 8 anos. Alguns dos desenhos anteriores evidenciaram a locomoção das crianças por esses caminhos emblemáticos e apontaram o agrupamento que ocorre muitas vezes nesses deslocamentos.

Em um dos encontros da minha oficina, procurei compreender os caminhos que compõem os cotidianos das crianças através dos cinco sentidos. Os relatos das crianças, oriundos dos debates realizados através dessa atividade, enriquecem o presente mapa mental, aprofundando o conhecimento a respeito desses espaços e suas sociabilidades. Pessoas, lixo, beco, boca de fumo, casas, cocô, coisas, escada, fumaça, gato, bandidos, o caminho, o céu, a calmaria, o Niterói Shopping, bares e alguns pontos comerciais no Morro, a casa dos seus colegas foram alguns elementos dos caminhos cotidianos que as crianças associaram ao sentido da visão.

Diversos elementos que foram relatados sendo vistos também compõem os relatos daquilo que os alunos disseram que cheiram ao caminhar no Morro do Estado. Cheiro de cocô, cheiro ruim, cheiro de merda, cheiro de gato, cheiro de lixo, cheiro de maconha e cigarro se destacaram. Além deles, uma aluna relatou sentir um “aroma bom” e outra o “perfume cheiroso do seu tio”. Algumas crianças destacaram o “cheiro de pão saindo” ao passar perto de uma padaria ou ainda o cheiro de comida que sentem, às vezes, entre as casas.

A respeito do paladar, poucas são as crianças que comem quando estão indo para o Projeto (o que não se aplica a doces, balas e chicletes), considerando que elas irão lanchar na instituição. Algumas, no entanto, relataram que, vez ou outra, caminham comendo biscoitos, salgados, pães ou frutas.

Caminhando, as crianças afirmaram às vezes sentir calor, outras vezes, frio e vento. A respeito do tato elas pontuaram sentir, ainda, suas pernas andando, seus celulares em suas mãos e água em seus pés.

O cenário construído por esse mapa mental coletivo é completado por “gente chata falando”, “pessoas fofoqueiras (minha mãe) falando da vida dos outros” ou ainda “pessoa fofoqueira fofocando a vida dos outros”. Além dos sons oriundos das pessoas, “vários tipos de barulho” compõem o percurso das crianças de suas casas até o Projeto, cachorro, carro passando, bebê chorando, despertador, música e barulho de água são alguns deles.

Para finalizar a apresentação dos mapas mentais elaborados pelas crianças, gostaria de retomar a folha de exercícios citada e atentar para a questão nº 5, que indagava às crianças “como é a rua da sua escola?”. Nesse caso, a palavra “rua” não trouxe incômodo aos alunos.

A rua da escola é uma ladeira de acesso ao Morro do Estado, os desenhos, precisamente, apontam sua inclinação. As imagens permitem perceber que por ela passam automóveis. Fica claro o contraste com os becos e escadas da configuração interna dos caminhos do Morro (evidenciado no último desenho anterior). Algumas ilustrações indicam a existência de árvores no alto do Morro, nas proximidades da escola, elemento que não aparece nos desenhos respondendo as demais questões do exercício. Uma das características mais marcante da rua da escola é que ela é “toda feita de asfalto”, escreveu uma aluna de 9 anos.

Ao introduzir o bloco de desenhos referentes à rua da escola, é possível enxergar o que as crianças estão negando ao rejeitarem a classificação “rua”. Na cartografia mental elaborada por elas, a ausência de um fluxo de automóveis, de asfalto, de instituições, entre outros elementos, não permite a utilização do termo. As subidas e descidas, aqui ilustradas pelas crianças, com suas características próprias, apresentam a necessidade de serem pensadas em outros termos.

Além disso, trazer o foco etnográfico para a percepção das crianças de forma ativa permite constatar que, nos seus percursos singulares, elas “se deslocam de maneira menos previsível, ocupando lugares de cruzamentos de pontos de vista, de dobradiças que se abrem sobre novas perspectivas” (Opipari; Timbert, 2013OPIPARI, C.; TIMBERT, S. Cartografia imaginada da Mangueira. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 247-262, maio/ago. 2013., p. 249).

Quando comecei a atuar no Projeto Socioeducativo, eu morava a uma distância de, aproximadamente, uma hora de ônibus até o Morro do Estado. Depois de um ano, me mudei para o centro de Niterói, ficando mais próxima do Morro (20 minutos a pé). As crianças foram minhas guias enquanto aprendia a chegar ao Projeto por outra entrada do Morro do Estado. Nessa fase, elas me apresentaram mais de um caminho possível. Alguns mais evidentes e outros mais arriscados, porém mais rápidos, que nos levavam a pularmos algumas lajes e descermos alguns trajetos de terra.

Dessa forma, “a partir das significações percebidas e vividas” (Lefebvre, 2001LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001., p. 111) pelas crianças, utilizarei alguns dos seus desenhos, juntamente com relatos, para apontar possíveis transformações no contexto urbano onde estão inseridas. Não busco falar por elas (nem traduzir o que dizem), e sim demonstrar que atentar para as demandas desse grupo específico de “usuários da cidade” (Vogel; Vogel; Leitão, 1995VOGEL, A., VOGEL, V. L.; LEITÃO, G. Como as crianças vêem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas, 1995.) pode contribuir para a construção de uma cidade a partir de outras lógicas urbanas. A investigação etnográfica procurou introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade para além do olhar “competente”, que decide o que é certo e o que é errado, e para além do interesse daqueles que decidem o que é conveniente e lucrativo (Magnani, 2002MAGNANI, J. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002., p. 15).

Desde as contribuições de Henri Lefebvre, é sabido que, frente a um modelo e discurso de modernização, os processos de urbanização desenvolveram grandes cidades através de lógicas pautadas em torno do lucro. De modo que a cidade capitalista se desenvolveu estagnando algumas “relações sociais essenciais”, produzindo então lógicas que não permitem que seus moradores experimentem a cidade plenamente (Lefebvre, 2001LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.). Isso permite compreender que a lógica hegemônica do urbanismo capitalista não inclui as crianças ativamente na construção das cidades.

Através de iniciativas e pesquisas que invistam na centralidade daquilo que as crianças informam, acredito que seja possível desaliená-las dos processos de administração urbana.6 6 Nesse sentido, gostaria de apresentar a Iniciativa Internacional das Cidades Amigas das Crianças, liderada pelo Unicef desde 2000. Trata-se de um programa de colaboração entre governos nacionais, administrações locais e organizações não governamentais presente em mais de 30 países, com destaque em Portugal, onde atua na implementação de políticas locais voltadas para as crianças. Pautada na Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), o programa busca estimular ações que insiram as crianças nas tomadas de decisões e nas culturas organizacionais dos municípios (Unicef, 2017). Posto isso, embasada na perspectiva que considera a criança capaz de agir em sua própria realidade e no seu entorno, encaminho-me para a segunda parte do desenvolvimento do artigo.

Parte II

Os desenhos e demandas, a serem analisados adiante, integraram duas propostas de atividades realizadas em encontros da oficina onde debatemos a respeito do Morro do Estado e de Niterói, mas dessa vez o estímulo foi outro. Em um período próximo das eleições municipais, apresentei as atribuições do prefeito e dos vereadores para os alunos e em seguida propus que eles refletissem sobre seus desejos para o lugar onde moram. É importante ressaltar que, nesse período, as crianças estavam envolvidas na atmosfera das eleições. Elas estavam atentas aos debates que ocorriam ao seu redor, assistiam à propaganda eleitoral interrompendo a programação na TV. Várias mães trabalhavam em campanhas de políticos, muitas panfletando, diversos cartazes tomavam conta da cidade, etc.

Em um primeiro encontro, as demandas para Niterói foram elaboradas sob o guarda-chuva da indagação “o que queremos para nossa cidade”. Em um segundo encontro, o foco foi em propostas para o Morro, especificamente; pedi que cada aluno respondesse “como você acredita que deveria ser o Morro do Estado”, ilustrando ou escrevendo. Abordar a cidade pela perspectiva das crianças consistiu, entre outros aspectos, em compreender os espaços a partir de diferentes sistemas e lógicas imaginadas por elas.

Dessa forma, a reflexão se sensibilizou para o fato de algumas crianças terem escolhido adjetivos para qualificarem a cidade que vislumbravam. Em suas maneiras específicas de se expressarem, elas reivindicaram uma cidade bonita, limpa, linda, amigável, etc. Uma aluna de 8 anos afirmou que seu desejo era “tirar o roubo da cidade e colocar coisas boas”. Um segundo recurso da linguagem se destacou. Além da utilização de adjetivos, as demandas das crianças também foram expressas através de substantivos abstratos. Uma aluna de 9 anos afirmou que, se tivesse a seu alcance, tiraria todos os bandidos de Niterói e colocaria no seu lugar o respeito. Paz, amor e esperança são exemplos de abstrações que norteiam a criação de uma cidade mais próxima aos desejos das crianças.

Ao perguntar, em um dos encontros da oficina, o que os alunos gostariam de ver pelas suas janelas, a experiência do olhar das crianças revelou uma demanda por elementos da natureza. Se ao desenharem o que veem de Niterói os prédios se destacaram, ao desenharem o que gostariam de ver, eles deram lugar a inúmeras paisagens naturais (como árvore de sua fruta preferida, o mar, o céu, plantas, árvores diversas, praia ou o sol).

Além disso, as crianças relataram: “Eu queria ver minha vó e meu vô”, “Eu queria ver todos os dias as pessoas bem”, “Quero ver pessoas conhecidas dando barra de chocolate com morango”, “Queria ver uma pessoa dando bolo grátis”, “Eu queria ver uma pessoa ajudando”. Chama atenção a presença das pessoas (realizando atos de doar, ajudar) na paisagem que as crianças escreveram que gostariam de visualizar.


“Que os ricos não fossem mal-agradecidos”, 9 anos.

A ilustração e frase acima demonstram um incômodo da autora frente a um aspecto da realidade de Niterói. Um diagnóstico socioeconômico publicado pela prefeitura em 2013 revela que a cidade tem como características marcantes “alta renda domiciliar” e o fato de possuir uma das maiores “concentração de classes AB do Brasil” (Projeto…, 2013PROJETO Niterói que Queremos: diagnóstico socioeconomico de Niterói: síntese executiva. Rio de Janeiro: Macroplan, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.niteroiquequeremos.com.br/static/files/etapa3.pdf . Acesso em: 26 mar. 2020.
http://www.niteroiquequeremos.com.br/sta...
, p. 5). As narrativas acima revelam uma característica das crianças de compreensão, a sua maneira, da lógica dominante na estruturação da cidade (e de que elas são afetadas por ela).

Outro ponto que integra a síntese de características da cidade, publicada no diagnóstico citado, é a existência de uma “boa frota de ônibus, porém com sérios problemas de mobilidade urbana”. Nesse sentido, alguns desenhos-demandas das crianças demonstraram suas preocupações com o trânsito e sua ordenação (imagens a seguir, elaboradas por um aluno de 8 anos e uma aluna de 11 anos, respectivamente). Um aluno de 11 relatou desejar uma cidade onde possam circular tranquilamente “ônibus, pessoas, polícia e caminhão de bombeiro”.

Uma aluna de 11 anos se dedicou a elaborar uma lista de demandas abordando sete pontos. Acredito que eles sintetizam um pouco daquilo que, partindo de suas vivências, as crianças julgam ser relevante para melhorar a vida dos niteroienses.

  1. 1) Escolas melhores com armário para que os alunos não precisem carregar muito peso.

  2. 2) Atendimento melhores nos hospitais, UPAs.

  3. 3) Farmácia [em que] não faltem remédios.

  4. 4) Mais segurança para podermos andar com segurança.

  5. 5) Menos roubos, abusos sexuais, preconceitos.

  6. 6) Prefeitos certos sem roubos e desviações.

  7. 7) Menos salários atrasados e roubos de dinheiro.

Os últimos desenhos que gostaria de apresentar - que integram as demandas para a cidade elaboradas pelas crianças moradoras do Morro do Estado - constituem a mesma paisagem, desenhada duas vezes por uma aluna de 8 anos.


“Limparia água da praia da baía”, 8 anos.

A limpeza da cidade é uma questão que pareceu incomodar várias crianças. “Cidade limpa” foi um lema entre elas durante a atividade. Seus relatos deixaram claro que uma cidade sem poluição, sem desmatamento e sem maus-tratos aos animais contemplaria seus ideais urbanos. Porém, nenhum desenho elaborado nesse sentido foi tão significativo como as ilustrações acima. Ao retratar o contraste entre como a praia é e como a praia deveria ser, os desenhos revelaram características compartilhadas pelo grupo de usuários da cidade que estão aqui em interlocução.

Niterói possui diversas praias, situadas em diferentes regiões da cidade. A região chamada Oceânica, mais afastada do centro, abriga praias litorâneas e, portanto, as mais limpas da cidade e próprias para banho. Devido à distância e a precárias condições de mobilidade, essas praias não costumam ser acessadas pelos moradores do Morro do Estado. Diferentemente do que os desenhos anteriores mostram, nos arredores dessas praias não há muito fluxo de trânsito. Em algumas delas nem sequer há acesso através de ônibus.

As ilustrações revelam então que a praia em questão está localizada na região chamada Praias da Baía. Como o nome revela, as praias nessa região são banhadas pela Baía de Guanabara e, dessa maneira, não são apropriadas para banho, chegando a exibirem placas da prefeitura noticiando que o banho não é recomendado (embora seja comum ver pessoas nadando nessas praias, como os próprios moradores do Morro do Estado). Ao demandar a limpeza da praia, a aluna demonstra ter acesso às praias mais sujas de Niterói e de fácil acesso pelo transporte público, ou a pé (sendo esta a maneira como os moradores do Morro vão a praia). Sendo assim, os desenhos anteriores acabam evidenciando um aspecto de classe social.

Na atividade referente à elaboração de propostas voltadas para melhorias no Morro do Estado, três desenhos-demandas se destacaram como fontes visuais, revelando demandas compartilhadas pelas crianças de uma maneira geral. Cada um deles apresenta uma estratégia diferente. No primeiro, uma aluna de 9 anos escolheu ilustrar o que não queria que tivesse no Morro e, em seguida, riscou esses elementos.

A ilustração expressa um dos desejos coletivos que mais se destacaram na atividade. Algumas crianças preferiram escrever e suas frases reforçam a demanda expressa pelo desenho. “Que não tivesse bandido”, “Queria que não tivesse bandido, droga, roubo e matação. Queria que tivesse paz” foram frases redigidas por uma aluna de 10 anos e outra de 11 anos, respectivamente. Um aluno de 7 anos pediu que eu soletrasse para ele poder escrever: “Não tivesse droga, não tivesse arma.”

Ao investigar a urbanidade desejada pelas crianças moradoras do Morro do Estado, os desenhos assumiram uma segunda orientação mental. Se, até aqui, essa ferramenta estimulava um exercício de resgate de memória, ela demonstrou também estar apta a levar seus autores a uma reflexão sobre perspectivas de futuro. As suas experiências vividas continuam presentes nas ilustrações e frases, mas a atividade mental assume as duas temporalidades. O futuro desejado é imaginado em contraste com a realidade experimentada pelas crianças. Além dos elementos riscados, outra estratégia utilizada nesse sentido foi o uso das cores.

O desenho anterior, feito por um aluno de 9 anos, revela enorme contraste entre como o Morro do Estado é e como seu autor gostaria que ele fosse. Chama a atenção a seleção de múltiplas cores que ele utilizou para colorir as casas, tendo em vista que, na realidade do Morro, as casas, em sua grande maioria, não são pintadas, e sim com tijolos ou cimento expostos.

A demanda por árvores frutíferas, correspondentes aos gostos pessoais das crianças, apareceu. Assim como espaços voltados ao lúdico, ao lazer, à brincadeira, se destacaram. Nesse sentido, foram ilustradas, por exemplo, piscina, cachoeira e área pra andar de skate e patins. Além disso, alguns alunos desenharam prédios que afirmaram serem castelos e outros que afirmaram serem lojas. (Para terem acesso a essa última é preciso descer do Morro do Estado, considerando que no seu interior não há comércios classificados por esse termo pelos alunos.)

O último desenho-demanda que trago no artigo pode ser encarado como uma síntese do planejamento urbano, realizado pelas crianças do Morro Estado, voltada para seus interesse e necessidades coletivas enquanto moradoras.

O autor da imagem, de 7 anos, fez questão de esclarecer os sete elementos que integram a ilustração: lugar para batalha de Pokémon,7 7 Nesse período, não era incomum, ao caminhar pelo centro de Niterói, me deparar com grupos de pessoas (adultos, jovens e crianças) reunidas, conectadas através de seus celulares, em disputas virtuais visando “capturar” Pokémon. casa de Pokémon, parquinho, prédio, escola, loja e igreja. A imagem aponta para a demanda das crianças de habitarem os espaços urbanos buscando certa centralidade em torno do lúdico, da brincadeira, da relação com o outro. O que as crianças querem para a cidade? “BRINCAR”, escreveu um aluno de 6 anos com letras de forma bem grandes ocupando quase todo o espaço da folha que eu havia distribuído para a atividade.

Uma aluna de 9 anos expressou um desejo pessoal que remete a uma realidade coletiva na experiência urbana aqui observada, “que meu pai terminasse a laje” - cobertura de concreto recorrente e valorizada no Morro do Estado.8 8 Uma aluna do Projeto Socioeducativo morava em uma casa onde, da laje, se tinha uma visão privilegiada do pôr do sol da cidade. O Projeto utilizou essa cobertura diversas vezes, para realizar encontros com os alunos, para gravar vídeos de divulgação, para levar voluntários para fotografarem, etc. Por último, as crianças, que relataram morar em becos e escadas, afirmaram que uma cidade ideal seria com ruas largas. “Que eu pudesse carregar uma casa numa moto” e nela teria escadas rolantes.

Considerações finais

O presente recorte investigativo apresentou a compreensão específica de uma parcela de moradores, de 6 a 13 anos, do Morro do Estado - um bairro amplamente reconhecido pela cidade como “favela” - a respeito de determinados aspectos urbanos vividos por elas em Niterói.

Em constante diálogo com o campo da antropologia urbana, a pesquisa com as crianças provocou debates fortuitos. Entre as diversas inquietações pertinentes a esse campo, evocadas pelas crianças, a atemporal discussão a respeito de pesquisar o “familiar” (Velho, 1978VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.) foi destacada. Afirmo que a inclusão das crianças, enquanto sujeitos, nas pesquisas onde o pesquisador e os interlocutores moram na mesma cidade pode se tornar um mecanismo produtivo nos processos de estranhamentos necessários a essa situação.

Na antropologia, inúmeras pesquisas revelam que significados e usos das cidades estão em conflito constantemente e que a cidade não é um ordenamento autoevidente. Diferentes vivências e discursos urbanos permitem essa compreensão; atentar para o que dizem as crianças ressalta esse sentido.

Ao mesmo tempo que o trabalho de campo e a investigação etnográfica possuem papéis determinantes desse aspecto urbano, a prática etnográfica contribui com a quebra de aspectos de dependência e incompletude atribuídos às crianças e com o abandono do paradigma que apontava para a passividade delas. Dessa maneira, estudos sobre as experiências das crianças nas cidades podem contribuir com uma administração urbana que busque levar em consideração diferentes usos sociais da cidade - de seus espaços e equipamentos.

As maneiras pelas quais as crianças se expressam não impossibilita que elas apresentem demandas legítimas e compreensões efetivas a respeito da cidade. Pelo contrário, minha pesquisa demonstrou que os relatos das crianças (e os materiais produzidos por elas) permitem expandir os horizontes do estabelecido acerca da cidade, abrindo a possibilidade de confrontar normatividades a respeito do contexto urbano e de suas narrativas.

Ao adotar a postura de investigar significados e lógicas que as crianças produzem por si mesmas nos lugares que ocupam (planejados por adultos), como seu bairro ou cidade, o trabalho elaborou uma espécie de cartografia afetiva - utilizando-se de diferentes sistemas valorativos, noção inspirada pela ideia de “cartografia imaginada” (Opipari; Timbert, 2013OPIPARI, C.; TIMBERT, S. Cartografia imaginada da Mangueira. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 247-262, maio/ago. 2013.). Através de mapas mentais e do auxílio dos sentidos do corpo, a investigação se sensibilizou à subjetividade das crianças. Como visto, a urbanidade vivida e representada através de sentimentos e noções afetivas é uma marca da experiência citadina delas.

A dupla função que exerci, em certa medida, limitou os registros que pude fazer dos acontecimentos no Projeto Socioeducativo, espaço movimentado e com um fluxo constante de adultos e crianças, que não era, por diferentes motivos, propício para realizar gravações ou entrevistas. Desse modo, a estratégia de análise da produção material das crianças enriqueceu sobremaneira a pesquisa. Esses materiais se revelaram como ricas fontes não verbais, assumindo, alternadamente, os papeis de suporte à reflexão e de objeto de reflexão.

Seja como reveladores de marcadores sociais, de problemáticas e contrastes urbanos, de categorias nativas, de desejos, de maneiras de expressão, ou até mesmo como disparador de conversa e de aproximação, o desenho demonstrou ser um excelente recurso investigativo. Essa ferramenta serviu para me comunicar com as crianças, para me aproximar delas, para disparar nossas conversas, para estimulá-las a refletirem sobre os temas propostos. Ao mesmo tempo, tais imagens produziram conhecimento sobre a realidade urbana apresentada.

É importante ressaltar que o pesquisador deve respeitar as capacidades e vontades das crianças. Elas possuem diversas maneiras de participar ou não, e aquilo que impomos a elas muitas vezes acaba gerando uma reação pouco frutífera para a pesquisa.

Partindo de contribuições antropológicas contemporâneas a respeito da cidade (Agier, 2015AGIER, M. Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 483-498, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v...
; Magnani, 2002MAGNANI, J. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002.), procurei enxergar a criança como parte constitutiva da metrópole, dos espaços públicos e dos territórios coletivos. Dessa forma, argumento que elas não podem ser negligenciadas nas políticas públicas urbanas; como cidadãs, é indiscutível que seus direitos sejam atendidos. Encarar suas demandas urbanas buscando uma aproximação com a ideia clássica de “direito à cidade” - Le droit à la ville, 19689 9 Primeira edição de Lefebvre (2001). - é um movimento importante, que o presente artigo sugere.

O direito à cidade deve assegurar às crianças uma vida urbana plena. Muito além de morar, as crianças devem ter acesso livre e constante a espaços que lhes permitam brincar, rachar, bater cartinhas… Na perspectiva das crianças moradoras do Morro do Estado, o planejamento urbano deve favorecer relações de amizades, jogos e brincadeiras nos espaços públicos. Por esses meios elas ocupam a cidade, essas relações ocupam centralidade em suas sociabilidades.

A pesquisa permite afirmar que uma administração urbana que busca atentar para os desejos coletivos das crianças em contextos urbanos periféricos assume um caráter de contestação frente às lógicas capitalistas homogeneizantes nas metrópoles. Elas demandam por uma cidade onde, no lugar de construções humanas, seja possível enxergar pessoas e natureza. Além disso, o relacionamento com o outro (amigos, vizinhos, familiares, etc.) e a coletividade influenciam diretamente a vivência urbana das crianças. De maneira geral, atender aos desejos das crianças para a cidade é investir em espaços que favoreçam as relações interpessoais e o bem-estar coletivo dos seus moradores.

Lefebvre (2001LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001., p. 131) afirma que “nos interstícios da sociedade de consumo dirigida, nos buracos da sociedade séria que se pretende estruturada e sistemática, que se pretende tecnicista”, persistem as brincadeiras das crianças. Dessa forma, compreendo que as crianças ocupam, nos espaços urbanos, um lugar dotado de agência, com possibilidades criativas para essas cidades. Como visto, mesmo que as vivências do grupo de crianças com que interagi sejam permeadas por entraves da vida cotidiana, o encontro, o lúdico, a brincadeira resistem diante das possíveis inseguranças encontradas (como bandidos e armas, por exemplo).

Por fim, considero que, nos campos de produção de conhecimento e de gestão das estruturas urbanas, as cidades não devem seguir modelos prontos enraizados em ideais - cada vez mais superados - que não contemplam características de cada local, remetendo à máxima: “Para compreender antropologicamente a cidade, é preciso esquecer a cidade” (Agier, 2011AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011., p. 19). Um espaço de conflitos e lutas, a cidade não é um lugar estático. Compartilho com os ideais de David Harvey (2013HARVEY, D. A liberdade da cidade. In: HARVEY, D. et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 27-34., p. 33) ao afirmar que “nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito”. As crianças são capazes e devem contribuir para isso, possuindo capacidades criativas e imaginativas para expandir e acolher as relações sociais e humanas nas dinâmicas da cidade e em seus espaços.

Referências

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  • NIEMEYER, A. M. Indicando caminhos: mapas como suporte na orientação espacial e como instrumento no ensino da antropologia. In: GODOI, E. P.; NIEMEYER, A. M. (org.). Além dos territórios: para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 11-40.
  • OPIPARI, C.; TIMBERT, S. Cartografia imaginada da Mangueira. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 247-262, maio/ago. 2013.
  • PÉREZ, B.; JARDIM, M. Vamos ouvir as crianças?: caderno de metodologias participativas do Projeto Criança Pequena em Foco. Rio de Janeiro: CECIP, 2013.
  • PIRES, F. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, p. 225-270, 2007.
  • PIRES, F. O que as crianças podem fazer pela antropologia?. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 137-157, jul./dez. 2010.
  • PROJETO Niterói que Queremos: diagnóstico socioeconomico de Niterói: síntese executiva. Rio de Janeiro: Macroplan, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.niteroiquequeremos.com.br/static/files/etapa3.pdf Acesso em: 26 mar. 2020.
    » http://www.niteroiquequeremos.com.br/static/files/etapa3.pdf
  • TOREN, C. Uma antropologia além da cultura e da sociedade: entrevista com Christina Toren. [Entrevista concedida a] Guilherme Fians. Revista Habitus, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 165-177, 2013.
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  • VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
  • VOGEL, A., VOGEL, V. L.; LEITÃO, G. Como as crianças vêem a cidade Rio de Janeiro: Pallas, 1995.
  • VOLTARELLI, M. A. Estudos da Infância na América do Sul: pesquisa e produção na perspectiva da sociologia da infância. 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • 1
    Projeto Socioeducativo Casa Reviver - IDE, fundado em 06/06/2006.
  • 2
    População estimada em 2020 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: 515.317 pessoas (cf. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Niterói. In: IBGE. Brasília: IBGE, 2020. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/niteroi/panorama . Acesso em: 25 mar. 2020.
    https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/ni...
    ).
  • 3
    Atividade inspirada em uma das metodologias apresentadas no livro Como as crianças vêem a cidade (Vogel; Vogel; Leitão, 1995VOGEL, A., VOGEL, V. L.; LEITÃO, G. Como as crianças vêem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas, 1995.).
  • 4
    Exercício elaborado por integrantes da ONG Bike Anjo Niterói, convidados parceiros em um curso de extensão promovido em 2018 pelo grupo de pesquisa ao qual faço parte, intitulado Criança e Território/Já Pra Rua! (DAC/IFCS/UFRJ).
  • 5
    Apenas um aluno que participou da atividade não estudava na Escola Municipal Ayrton Senna, localizada na parte mais alta do Morro do Estado. Dessa forma, seu desenho se diferenciou bastante dos seus colegas, sobretudo pela presença de carros e comércios.
  • 6
    Nesse sentido, gostaria de apresentar a Iniciativa Internacional das Cidades Amigas das Crianças, liderada pelo Unicef desde 2000. Trata-se de um programa de colaboração entre governos nacionais, administrações locais e organizações não governamentais presente em mais de 30 países, com destaque em Portugal, onde atua na implementação de políticas locais voltadas para as crianças. Pautada na Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), o programa busca estimular ações que insiram as crianças nas tomadas de decisões e nas culturas organizacionais dos municípios (Unicef, 2017UNICEF. Programa Cidades Amigas das Crianças. Lisboa: Unicef Portugal, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.pt/o-que-fazemos/o-nosso-trabalho-em-portugal/programa-cidades-amigas-das-criancas/ . Acesso em: 26 mar. 2020.
    https://www.unicef.pt/o-que-fazemos/o-no...
    ).
  • 7
    Nesse período, não era incomum, ao caminhar pelo centro de Niterói, me deparar com grupos de pessoas (adultos, jovens e crianças) reunidas, conectadas através de seus celulares, em disputas virtuais visando “capturar” Pokémon.
  • 8
    Uma aluna do Projeto Socioeducativo morava em uma casa onde, da laje, se tinha uma visão privilegiada do pôr do sol da cidade. O Projeto utilizou essa cobertura diversas vezes, para realizar encontros com os alunos, para gravar vídeos de divulgação, para levar voluntários para fotografarem, etc.
  • 9
    Primeira edição de Lefebvre (2001)LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2020
  • Aceito
    31 Mar 2021
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