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Para uma psicologia clínico-institucional a partir da desnaturalização do sujeito

Towards a clinical-institutional psychology through the denaturalization of the self

Resumos

O campo do saber e poder da psicologia clínica, ao incorporar o "princípio da desnaturalização" operado por Foucault, redefine seu objeto e seus dispositivos ético-metodológicos. Trata-se de uma clínica institucional que problematiza a interioridade e a subjetividade instituída. Analítica por excelência a clínica não objetiva um retorno à totalidade. A análise pretende tornar visível a multiplicidade do ser. Visa constituir territórios nômades e múltiplos. Três princípios éticos fundamentam o tornar-se clínico: ser crítico de si mesmo e do si mesmo; revelar sua posição no espaço-tempo; situar seus objetivos, a fragmentação das formas instituídas, singularizando-compondo territórios existenciais, atualizando o pensamento do múltiplo.

Psicologia; Clínica-institucional; Desnaturalização; Michel foucault


The field of knowledge/power in clinical psychology, as it embraces Foucault's "principle of denaturalization", redefines not only its subject, but also redefines its ethical and methodological devices. 1) It becomes an institutional clinic which questions the interiority and the institutionalized subjectivity. 2) It is essentially analytical, once the clinic doesn't aim at a return to totality. The analysis intends to make visible the multiplicity of being. 3) It also envisages the constitution of multiple, nomadic territories, where thinking, knowing and acting are disjunctive and indissociable. Three ethical principles are the foundation of the becoming clinical: 1) To be auto-critical and critical of one's self; 2) To take into consideration one's own spatial-time condition; 3) To lay out one's objectives: fragmentation of institutionalized forms, singularizing/composing existential territories, actualizing the thought of the multiple.

Psychology; Clinical-institutional; Denaturalization; Michel foucault


Towards a clinical-institutional psychology through the denaturalization of the self

Liliana da EscóssiaI I Doutora em psicologia pela UFRJ, Mestre em psicologia clínica pela PUC/SP, professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFS, autoras do livro "Relação homem-técnica e processo de individuação", EDUFS/FOT, 1999. Consultora em saúde coletiva. Tel. (79) 2552121 99771879 Endereço: Rua Manoel Andrade, 2156 Coroa do Meio CEP. 49035-530 Aracaju SE. E-mail: liliana.em@infonet.com.br II Doutor em psicologia clínica pela PUC/SP, Mestre em psicologia social pela UFRJ, professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe e psicoterapeuta, autor do livro "Microfísica das criações parciais - pensamento, subjetividade e prática a partir de Nietzsche e Deleuze", EDUFS?FOT, 2000. Tel. (79)2552121 91363419 Endereço: Rua Manoel Andrade, 2156 Coroa do Meio CEP. 49035-530 Aracaju SE. E-mail: mauriciomangueira@infonet.com.br ; Maurício MangueiraII

RESUMO

O campo do saber e poder da psicologia clínica, ao incorporar o "princípio da desnaturalização" operado por Foucault, redefine seu objeto e seus dispositivos ético-metodológicos. Trata-se de uma clínica institucional que problematiza a interioridade e a subjetividade instituída. Analítica por excelência a clínica não objetiva um retorno à totalidade. A análise pretende tornar visível a multiplicidade do ser. Visa constituir territórios nômades e múltiplos. Três princípios éticos fundamentam o tornar-se clínico: ser crítico de si mesmo e do si mesmo; revelar sua posição no espaço-tempo; situar seus objetivos, a fragmentação das formas instituídas, singularizando-compondo territórios existenciais, atualizando o pensamento do múltiplo.

Palavras-chave: Psicologia. Clínica-institucional. Desnaturalização. Michel foucault.

ABSTRACT

The field of knowledge/power in clinical psychology, as it embraces Foucault's "principle of denaturalization", redefines not only its subject, but also redefines its ethical and methodological devices. 1) It becomes an institutional clinic which questions the interiority and the institutionalized subjectivity. 2) It is essentially analytical, once the clinic doesn't aim at a return to totality. The analysis intends to make visible the multiplicity of being. 3) It also envisages the constitution of multiple, nomadic territories, where thinking, knowing and acting are disjunctive and indissociable. Three ethical principles are the foundation of the becoming clinical: 1) To be auto-critical and critical of one's self; 2) To take into consideration one's own spatial-time condition; 3) To lay out one's objectives: fragmentation of institutionalized forms, singularizing/composing existential territories, actualizing the thought of the multiple.

Keywords: Psychology. Clinical-institutional. Denaturalization. Michel foucault.

Introdução

Após as obras de pensadores tais como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, a psicologia foi abalada por duas idéias: a primeira, aprofundando um princípio já enfatizado por pensadores do século XIX, é a de que o sujeito não é um dado preexistente e de que sua forma não é definitiva: sua natureza é fundada e re-fundada historicamente. A segunda, a de que a própria psicologia é produto e faz parte de uma trama de saberes e poderes voltada para a disciplina e controle dos corpos individuais e coletivos. No que se refere à primeira, o abalo se deve ao fato de a psicologia ter pautado suas práticas, desde o início, em uma crença substancialista do sujeito. O sujeito psíquico era concebido como entidade acabada, idêntica a si própria, imutável, a-histórico. Porém, o abalo maior se dá com a análise de que a psicologia, junto com outras ciências, constitui uma trama de saberes e poderes, ao mesmo tempo em que é efeito dessa mesma trama: até então a psicologia era considerada um campo de saber distanciado do político e do coletivo.

Se a própria psicologia, assim como seu objeto é um produto histórico-social, resulta disto, num movimento em cadeia, a problematização de dicotomias caras aos psicólogos, tais como, psíquico/político e individual/coletivo1 1 Para uma análise mais aprofundada de tal dicotomia, bem como proposta de superação (ESCÓSSIA, 2004). . Tornou-se evidente que tais dicotomias fazem parte de um mesmo projeto político-epistemológico: o projeto da modernidade, que produziu, separou e opôs dimensões do real e as respectivas disciplinas estanques.

A desnaturalização do sujeito e a politização da psicologia, se por um lado, desestabiliza o campo psi afastando a psicologia do almejado e cômodo lugar da neutralidade científica e colocando-a como exercício simultâneo de saber e poder, por outro lado, abre uma nova possibilidade de reconfiguração desse campo. Possibilita a emergência de práticas que tomam o caráter histórico, contingente, inacabado e múltiplo do sujeito como potência afirmadora e engendradora de novos modos de existência.

Situando-nos no interior desses pressupostos, extrairemos a seguir algumas conseqüências para a prática do psicólogo e, de forma mais geral, para as ciências do homem.

Inicialmente, podemos afirmar que o estudo do "homem" não pode pautar-se pela busca de um conhecimento sobre sua "natureza", haja vista que esta não possui nem a constância nem a universalidade necessárias a um conhecimento. Com a desnaturalização, a natureza humana passa a ser um efeito-processo de individuações emergentes da prática.

Em Foucault revoluciona a história, PaulVeyne (1982) afirma que o conceito de "prática", forjada por Foucault, opera uma revolução no modo de pensar a história e conseqüentemente, o sujeito. Este conceito deriva de uma filosofia da relação, na qual prática e relação se apresentam como sinônimos, operando como produtoras de mundo e de sentido. Há um primado da relação e da prática substituindo o primado dos sujeitos ou dos objetos. Citamos Veyne: "Os objetos parecem determinar nossa conduta, mas, primeiramente, nossa prática determina esses objetos". Ou: "A relação determina o objeto, e só existe o que é determinado". E ainda: "O objeto não é senão o correlato da prática; não existe antes dela" (VEYNE, 1982, p. 159).

A aproximação entre o conceito de prática e o de relação nos permite avançar rumo à questão da materialidade da relação, que, segundo Veyne, é também o problema da individualidade. Tomando a obra de arte como exemplo, o autor dirá que a obra, como individualidade que, supostamente, deve conservar sua fisionomia através dos tempos, "não existe" (só existe sua relação com cada um dos intérpretes), mas "ela é algo: ela é determinada em cada relação". Ou seja, existe "a matéria" da obra, mas esta só adquire sentido na relação com cada um de seus intérpretes. O mesmo podemos dizer do sujeito e da natureza humana. Recorrendo à noção de "desejo", tal como proposta por Deleuze (1996), Veyne (1982) define a natureza humana como uma forma de conteúdo puramente histórico. O desejo, na concepção deleuziana, aparece como produção de encadeamentos e mecanismos, como atualização de virtualidades, e se coloca para além das oposições individual-coletivo: não há um indivíduo desejante que cria objetos ou um objeto sociedade que produz indivíduos em série. Há uma máquina desejante e coletiva que transversaliza indivíduo e sociedade.

Sendo assim, afirmamos que qualquer "ciência" do "homem" e para o "homem" bifurca-se inevitavelmente em duas alternativas distintas, mas não excludentes.

Por um lado, o alvo é o instituído, o que foi constituído, o que é passado, prolongando-se no presente. Nessa trajetória, o objetivo é desenhar as paisagens históricas em que se desenrolaram as diversas constituições dos sujeitos, paisagens que incluem tempos, espaços, circunstâncias e forças que operaram para a sua proveniência e emergência2 2 Esse é o tipo de "conhecimento" que encontramos nos trabalhos de Nietzsche e Michel Foucault. Segundo Foucault (1979), no artigo "Nietzsche, a genealogia e a história", o "sentido histórico" comporta três usos que se opõem, palavra por palavra, às três modalidades platônicas da história. Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da história-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento. Ou então, nas palavras de Paul Veyne (1982, p. 164): "Tudo gira em volta desse paradoxo, que é a tese central de Foucault, e a mais original: o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito". .

Por outro, o alvo são as forças instituintes, é o instituinte, o que está em vias de constituição. Nesta trajetória, o objetivo é dirigir-se para "diante", para o "proximal", para o "devir", para a atualização de um corpo3 3 Sempre que ultilizarmos a palavra corpo estamos nos referindo a corpo-subjetividade, onde o termo homem, como bem mostrou Foucault, é apenas uma das suas máscaras. Por ora, podemos dizer que o corpo é um volume complexo e composto de idéias, afetos e perceptos, faculdades e ambientes associados. A nosso ver pode-se postular outros tipos de corpos: orgânico, físico, erógeno etc. Para uma melhor compreensão, ver Mangueira (2001). , tendo em vista que este é efeito de forças que se realizam em um aqui-agora ultrapando todo o presente, passado e futuro4 4 A respeito desse tempo e de outros, recomendamos a leitura do texto de Peter Pál Pelbart (1998). , em uma proximidade criadora.

Enquanto a primeira alternativa pode ser denominada "genealógica"5 5 Pensada por Nietzsche (1987), principalmente na sua Genealogia da moral e por Michel Foucault a partir da sua obra Vigiar e punir (1975). Ver também Roberto Machado, Ciência e saber A trajetória da Arqueologia de Foucault (1983) e F. Ewald, Foucault: a Norma e o Direito (1993). ou "arqueológica",6 6 Pensada por Foucault, principalmente na sua Arqueologia do saber. Foucault (1971) ao analisar unidades de discursos, tais como economia política, medicina clínica ou história natural visa mostrar a dispersão de elementos que as compõem. Dispersão que foi submetida a regras específicas e que formaram objetos, enunciações, conceitos. Se unidade há, ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados; reside, muito antes, nos sistemas que tornam possíveis e regem sua formação. Mas não se deve tomar esses sistemas de formação como formas estáticas que se imporiam do exterior para o discurso e definiria de uma vez por toda seus caracteres e possibilidades. Esses sistemas residem no próprio discurso, em suas fronteiras. Eles são um feixe complexo de relações que funciona como regra. "A arqueologia: este termo não incita a busca de nenhum começo; não aparenta a análise a nenhuma escavação ou sondagem geológica. Designa um tema geral de uma descrição que interroga o já-dito ao nível de sua existência: da função enunciativa que se exerce nele, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que provém. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo"(FOUCAULT, 1971, p. 163; MACHADO, 1983). a segunda é a que pautaria uma nova perspectiva para a psicologia, uma perspectiva clínico-institucional.

Tal perspectiva, assim como agenealogia e aarqueologia, deriva de um pensar que se situa no tempo, um pensar que se coloca no prolongamento da questão: o que é ser produto da história? Mas, enquanto no tempo, o genealogista do poder e o arqueologista do saber voltam-se para o passado, o clínico-institucional realiza uma articulação entre este passado - o instituído, o individuado - e o que devém, o que se encontra em vias de composição, o movimento das forças instituintes.

Cabe lembrar que todo processo de instituição emerge forçosamente em luta com as formas instituídas, revelando um estado paradoxal, pois expressa, de maneira exemplar, a coexistência, apontada por Deleuze (1996), da segmentaridade molar, da segmentaridade molecular e das linhas de fuga, constitutivas de todo processo.

Assim, os objetivos da psicologia clínico-institucional são, por um lado, permanecer atenta às naturalizações instituídas ao longo da história, por outro, perscrutar a constituição de um mundo próprio, oportunizar a afirmação de um ponto de vista, voltar-se para as "criações parciais".

Nessa dupla articulação, dizemos que seriam "criações", na medida em que: a) não há forma que não tenha sido e que não seja uma composição emergente, criada; e b) não pressupõe uma verdade arrancada do erro, nem remete a uma consciência despertada do seu sono, já que é um efeito de composição realizado à revelia dos corpos em contato.

Mas é importante frisar com Foucault (1971), que toda criação é sempre "parcial", pois situa-se na superfície do acontecimento. O que se expressa em um corpo não remete a uma pletora oculta, a uma totalidade transbordante que faria das emissões, sintomas manifestos. Dentro dessa perspectiva de pensamento os signos expressos não se encontram em excesso ou carência. O que há são sempre "expressões parciais" de um mundo constituído e em constituição, devir sempre perspectivado. O pouco, o oculto, o excesso ou a carência são palavras de uma perspectiva do pensamento totalitário, que se quer transcendente ou transcendental. Isso não quer dizer, no entanto, que tudo seja visível. As idéias, os perceptos e os afetos não são visíveis, mas também não são ocultos. Não são visíveis porque toda visibilidade encontra-se regrada por "zonas de existência"7 7 Conforme Deleuze e Guattari (1992) em O que é a filosofia, a zona de existência constitui os clichês, ou automatismos de um corpo-subjetividade. instituídas historicamente e tais componentes estão situados fora desta zona. São não-ocultos, pois eles se encontram sempre presentes, e não por detrás das coisas visíveis.8 8 É nesse sentido que Paul Veine (1982, p. 160) escreve: "A prática não é uma instância (como o Id freudiano) nem um primeiro motor (como a relação de produção). É por isso que não há nenhum inconveniente grave em denominar esta prática de 'parte oculta do iceberg', para dizer que ela só se apresenta à nossa visão espontânea sob amplos drapeados e que é grandemente preconceitual; pois a parte escondida de um iceberg não é uma instância diferente da parte emersa: é de gelo, como esta, também não é o motor que faz movimentar-se(sic) o iceberg; está abaixo da linha de visibilidade, e isso é tudo". Daí o termo "parcial", pois nenhuma composição é totalizadora e não remete a nenhuma totalidade. São parcialidades emergentes.

Entendemos que uma psicologia clínico-institucional deveria pautar-se por estes parâmetros microfísicos e molares. É bem verdade que a psicologia sempre almejou e mesmo postulou a existência de corpos fixos, naturalizados, passíveis de serem circunscritos e conhecidos por métodos adequados. Uma aposta reiterada na idéia de que se existe uma natureza a priori pode existir um método a posteriori para previsão e controle, espécie de procedimentototal ou geral, a guiar os mínimos passos dos que buscam o verdadeiro conhecimento da natureza humana. Depois do legado de Foucault, é impossível acreditar nisso. O máximo que pode ser prescrito são pistas utilizáveis para livrar-nos das tolices já conhecidas, mas que não ajudam em nada no processo de trilhamento de um mundo próprio, que apenas diz respeito, àqueles que o percorrem, não esquecendo que um mundo próprio não é um mundo privado. A constituição de um mundo "significativo" é sempre efeito de um acoplamento de forças de diversas naturezas, biológicas, sociais, políticas, econômicas etc. Toda criação é parcial e não é jamais dirigida a todos indistintamente. No máximo, a máxima nietzschiana: para todos e ninguém.

A partir do pensamento desnaturalizador, vivemos no paradoxo: somos e não somos ao mesmo tempo. Todo corpo é constituído e se encontra em constituição, carregando consigo uma zona indiferenciada, incerta, caótica mas que não é nem carente nem excessiva. Campo de pré-individualidades, como o afirma Gilbert Simondon (1964,1989).

Efeitos éticos

Nessa afirmação da "criação parcial", a clínica institucional se coloca como uma ética. O psicólogo clínico-institucional, enquanto sujeito histórico, também é um efeito parcial, como qualquer sujeito. Ele concebe-se como um corpo-subjetividade entre outros, composto e atravessado por forças em processo de atualização, isto é, constituindo-se e constituindo outros corpos. Trata-se de afirmar tal parcialidade, pois só afirmando-se enquanto força interpretativa é possível tornar os corpos afirmativos. Se a interpretação é um sentido dado e um valor afirmado, e não "O" sentido/valor verdadeiro, se ela não se esconde nas malhas do autoritarismo, então outras interpretações são possíveis, outras criações hão de advir. Desse modo, os corpos podem atentar para suas zonas de influência pré-individuais, para o que se encontra em vias de diferir de si, para afirmar suas infra-percepções, suas ínfimas idéias, seus quase imperceptíveis afetos em direção a uma nova composição.

Sendo assim, o problema das práticas psi não se encontra nelas mesmas, mas em seu grau de envolvimento com o tempo/espaço instituído/instituinte, em se afirmarem como verdades contingentes ou verdades eternas.

Situando-se no tempo/espaço, firma-se e afirma-se a parcialidade interpretativa proposta desde o século XIX por Nietzsche. Toda e qualquer composição, independente dos materiais empregados, é uma interpretação. E, como tal, é produtora de verdade, e não desveladora de verdade. Como nos diz Deleuze (1976, p. 4,5).

Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual[...]Toda força é apropriação, dominação, exploração de uma quantidade de realidade[...]. Mas o próprio objeto é força, expressão de uma força. Não há objeto (fenômeno) que já não seja possuído, visto que, nele mesmo, ele é, não uma aparência, mas o aparecimento de uma força.

Considerando e tornando explícito que toda interpretação é uma experimentação, um misto de zona de existência e zona de influência, tal feito só prossegue se servir para aos corpos em "contato". A categoria universal constitutiva da moral "é para seu Bem", deixa de fazer sentido. O que ocorre tem de ser um "bom, algo bom e interessante". Até quando, nunca se sabe.

Se um "contato" entre corpos enseja uma nova composição é, como dissemos acima, à revelia dos corpos que se encontram, pois cada corpo apenas afirma a si mesmo. O novo é a afirmação de uma força. Na afirmação, o corpo determina a si próprio, progride, constrói um mundo imanente. Tal mundo não pode ser avaliado do exterior. O critério para uma afirmação é sempre imanente a ela: é a criação de um mundo. Entende-se por que Deleuze e Guattari nos dizem que não há critério senão imanente, e que é preciso acabar com os juízos de julgamento. Dizem eles:

Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam e decidiriam que um é "melhor" que o outro. Ao contrário, não há critério senão imanente, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 98).

Questão de método

Compete ao clínico-institucional, por um lado, confirmar o duplo movimento inerente a todo corpo-subjetividade, que é o de "ser" e "tornar-se" ao mesmo tempo, e, por outro, a tarefa de permanecer atento ao que se encontra em vias de composição. Seu método não é nem formalizador isto é, o de encontrar as regras de uma composição nem hermenêutico o de desvelar os significados ocultos nas expressões. Também não seria o que recolhe a poeira do que é emitido, mas aquele que atua na funcionalidade de uma composição. Não se trata de unificar o disperso, pois compor não é jamais unificar. Uma clínica institucional assim, diz respeito a uma prática que faz surgir a multiplicidade na sua realidade. É bem verdade que este operador, inserido simultaneamente entre corpos (sem identidade ou unificação), além de ensejar novas composições, é por seu lado levado também a compor, a se compor.

Sendo assim, cabe ao psicólogo clínico-institucional firmar a descontinuidade de cada corpo, descontinuidade que abole a questão do progresso, do desenvolvimento como já nos disse Foucault na sua Arqueologia do saber.

A psicologia clínica-institucional não pergunta que pensamentos, que idéias, que fantasmas um corpo-subjetividade esconde nas suas expressões. Ela "oportuniza" composições. Não significa que uma frase expressa não possa ter duas ou mais significações diferentes, que os signos não sejam polissêmicos, que uma significação manifesta não possa ter outra significação. Pode-se sempre realizar esse tipo de análise. No entanto, ao fazê-la, corre-se o risco de perder o que pode advir de novo no expresso. Este é negligenciado em nome de um desde-sempre-aí. Para o clínico-institucional interessa principalmente o contrário, o que se encontra em vias de diferir: as criações parciais.

Como nos lembra Foucault, as interferências entre corpos comportam uma região privilegiada, a zona de influência: ao mesmo tempo presente em nós, mas distante das nossas zonas de existência instituídas. Ela envolve nossas atualizações, para abandoná-las em favor de um tempo por vir. As emissões de signos que a povoam desenvolvem novas composições que fazem os discursos já inertes deixarem de ser pertinentes. Ela nos diz que na nossa origem não se encontra uma identidade recuada e perdida, mas um volume complexo de forças que dita nossa sina: ser criatura composta em solo também composto.

Atenta ao que emerge, se a clínica institucional não é nem uma análise hermenêutica nem uma análise descritiva pois tais análises pressupõem naturezas dadas, mesmo dispersas, se o clínico encontra-se diante de uma expressão em vias de composição, sua atividade não dispensa o traçado e a configuração de uma certa composição dos corpos em ação: uma cartografia.

Para finalizar, resumiremos as linhas gerais de um projeto de psicologia clínico-institucional pautado num pensamento desnaturalizado e desnaturalizador.

a) É conseqüência de um pensar que se situa no tempo, um pensar que se coloca no prolongamento da questão: o que é ter uma história?

b) Problematiza a interioridade e a subjetividade instituída e se coloca para além da memória, enquanto depósito ou representação, e dos valores do sistema vigente.

c) Nega as dicotomias instituídas historicamente, tais como, psíquico/político, individual/social.

d) Enseja a criação de condições propícias para a emergência de novos territórios existenciais.

e) Encara as resistências não só como enrijecimentos de formas (memórias), mas também como afirmações de singularidades a serem cartografadas.

f) Analítica por excelência, tal psicologia fragmenta, mas não objetiva, um retorno à totalidade. A análise tem por objetivo tornar visível a multiplicidade do ser.

g) Transdisciplinar e criacionista, compõe-se com outras formas de saberes.

h) Visa constituir territórios nômades, múltiplos, onde pensar, conhecer e agir são disjuntivos e indissociáveis.

i) Três princípios éticos fundamentam o tornar-se psicólogo:

• Ser crítico de si mesmo e do si mesmo. Tal posição visa evidenciar "limites" sem cair nos psicologismos e intersubjetivismos. Situa-o no tempo do próprio pensamento criacionista. Todo psicólogo é um corpo-subjetividade naturalizado.

• Revelar sua posição no espaço-tempo. Situar-se em um ambiente/situação, entre as forças existentes (políticas, pulsionais, econômicas, institucionais, semióticas etc.).

• Situar seus objetivos. O psicólogo almeja a fragmentação das formas instituídas, singularizando-compondo territórios existenciais, atualizando o pensamento do múltiplo.

Notas

Recebido em novembro/2004

Aceito em abril/2005

  • DELEUZE, G. Mil Platôs. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão, Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.
  • ________. Nietzsche e a filosofia Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
  • ________. GUATTARI. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
  • ESCÓSSIA, L. da. O coletivo como plano de co-engendramente do indivíduo e da sociedade 2004. Tese (Doutorado)-UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
  • EWALD, F. Foucault: a norma e o Direito. Lisboa: Veja, 1993.
  • FOUCAULT, M. Arqueologia do saber Tradução brasileiro Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Vozes, 1971.
  • ________. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • ________. Vigiar e punir Tradução brasileiro. Petrópolis: Vozes,, 1975.
  • MACHADO, R. Ciência e saber: a trajetória da Arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
  • MANGUEIRA, M. Microfísica das criações parciais: pensamento, subjetividade e práticas a partir de Nietzsche e Deleuze. Sergipe: EDUFS/OT, 2001.
  • NIETZSCHE, F. A genealogia da moral Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998.
  • SIMONDON, Gilbert. L'individu et sa genèse psysico-biologique Paris: Presses Universitaires de France, 1964.
  • ________. L'individuation psychique et colletive. Paris: Aubier, 1989.
  • VEYNE, P. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília, DF: UnB, 1982.
  • Para uma psicologia clínico-institucional a partir da desnaturalização do sujeito
  • 1
    Para uma análise mais aprofundada de tal dicotomia, bem como proposta de superação (ESCÓSSIA, 2004).
  • 2
    Esse é o tipo de "conhecimento" que encontramos nos trabalhos de Nietzsche e Michel Foucault. Segundo Foucault (1979), no artigo "Nietzsche, a genealogia e a história", o "sentido histórico" comporta três usos que se opõem, palavra por palavra, às três modalidades platônicas da história. Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da história-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento. Ou então, nas palavras de Paul Veyne (1982, p. 164): "Tudo gira em volta desse paradoxo, que é a tese central de Foucault, e a mais original: o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito".
  • 3
    Sempre que ultilizarmos a palavra corpo estamos nos referindo a corpo-subjetividade, onde o termo homem, como bem mostrou Foucault, é apenas uma das suas máscaras. Por ora, podemos dizer que o corpo é um volume complexo e composto de idéias, afetos e perceptos, faculdades e ambientes associados. A nosso ver pode-se postular outros tipos de corpos: orgânico, físico, erógeno etc. Para uma melhor compreensão, ver Mangueira (2001).
  • 4
    A respeito desse tempo e de outros, recomendamos a leitura do texto de Peter Pál Pelbart (1998).
  • 5
    Pensada por Nietzsche (1987), principalmente na sua Genealogia da moral e por Michel Foucault a partir da sua obra Vigiar e punir (1975). Ver também Roberto Machado, Ciência e saber A trajetória da Arqueologia de Foucault (1983) e F. Ewald, Foucault: a Norma e o Direito (1993).
  • 6
    Pensada por Foucault, principalmente na sua Arqueologia do saber. Foucault (1971) ao analisar unidades de discursos, tais como economia política, medicina clínica ou história natural visa mostrar a dispersão de elementos que as compõem. Dispersão que foi submetida a regras específicas e que formaram objetos, enunciações, conceitos. Se unidade há, ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados; reside, muito antes, nos sistemas que tornam possíveis e regem sua formação. Mas não se deve tomar esses sistemas de formação como formas estáticas que se imporiam do exterior para o discurso e definiria de uma vez por toda seus caracteres e possibilidades. Esses sistemas residem no próprio discurso, em suas fronteiras. Eles são um feixe complexo de relações que funciona como regra. "A arqueologia: este termo não incita a busca de nenhum começo; não aparenta a análise a nenhuma escavação ou sondagem geológica. Designa um tema geral de uma descrição que interroga o já-dito ao nível de sua existência: da função enunciativa que se exerce nele, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que provém. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo"(FOUCAULT, 1971, p. 163; MACHADO, 1983).
  • 7
    Conforme Deleuze e Guattari (1992) em O que é a filosofia, a zona de existência constitui os clichês, ou automatismos de um corpo-subjetividade.
  • 8
    É nesse sentido que Paul Veine (1982, p. 160) escreve: "A prática não é uma instância (como o Id freudiano) nem um primeiro motor (como a relação de produção). É por isso que não há nenhum inconveniente grave em denominar esta prática de 'parte oculta do iceberg', para dizer que ela só se apresenta à nossa visão espontânea sob amplos drapeados e que é grandemente preconceitual; pois a parte escondida de um iceberg não é uma instância diferente da parte emersa: é de gelo, como esta, também não é o motor que faz movimentar-se(sic) o iceberg; está abaixo da linha de visibilidade, e isso é tudo".
  • I Para uma psicologia clínico-institucional a partir da desnaturalização do sujeito Doutora em psicologia pela UFRJ, Mestre em psicologia clínica pela PUC/SP, professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFS, autoras do livro "Relação homem-técnica e processo de individuação", EDUFS/FOT, 1999. Consultora em saúde coletiva. Tel. (79) 2552121 99771879 Endereço: Rua Manoel Andrade, 2156 Coroa do Meio CEP. 49035-530 Aracaju SE.
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    II Para uma psicologia clínico-institucional a partir da desnaturalização do sujeito Doutor em psicologia clínica pela PUC/SP, Mestre em psicologia social pela UFRJ, professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe e psicoterapeuta, autor do livro "Microfísica das criações parciais - pensamento, subjetividade e prática a partir de Nietzsche e Deleuze", EDUFS?FOT, 2000. Tel. (79)2552121 91363419 Endereço: Rua Manoel Andrade, 2156 Coroa do Meio CEP. 49035-530 Aracaju SE.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2005
    • Recebido
      Nov 2004
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