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Brazilian dancers: corpos exibíveis em um circo norte-americano

Brazilian Dancers: bodies exhibited in an American circus

Resumo

Neste trabalho, analiso o processo de materialização de corpos que se dá no interior de um regime estético circense, cujo pilar é a celebração de diferenças. Em outras palavras, chamo atenção às normas de exibição, veiculadas por um dos maiores e mais tradicionais circos dos Estados Unidos, enquanto constitutivas de corpos nacionalizados para fins de comercialização. Exploro, por meio de uma abordagem interseccional, os discursos sobre o Brasil veiculados em catálogos publicitários vendidos durante quinze anos; delimito práticas de recrutamento levadas a cabo durante uma audição para bailarinos e bailarinas que aconteceu no Rio de Janeiro em 2013; e, por fim, descrevo agenciamentos individuais no sentido da fabricação de corpos belos e virtuosos, isto é, sujeitos que se identificam com as normas de exibição em questão. Argumento que se, por um lado, o exibível é o corpo enérgico brasileiro, por outro, o treino em modalidades técnicas de dança e a semelhança a ícones da indústria pop norte-americana são condições de produtividade determinantes. Vejo emergir assim um nexo entre a noção de energia brasileira como potência para excitabilidade de plateias e a constituição de uma força de trabalho eficaz porque criada em consonância a padrões estéticos e técnicos globalizados.

Brasil; Corpo; Insterseccionalidade; Dança; Circo

Abstract

In this paper, I analyze the materialization processes of bodies within an circus aesthetic regime whose pillar is the production and celebration of differences. In other words, I call attention to the rules established by one of the largest and most traditional circus of the United States as constituting not only nationalized bodies, but also the marketable ones. I will explore through an intersectional approach discourses about Brazil forward on advertising catalogs sold during the last fifteen years; I will describe practices carried out during a audition that took place in Rio de Janeiro in 2013; and finally analyse the individual efforts towards making themselves beautiful, virtuous and normative bodies. If, on the one hand, the marketable is the Brazilian energetic body, on the other, the training in dance in terms of the similarity to the icons of pop American industry are critical to the productivity. In this way emerges a link between the notion of Brazilian energy as power to excitability of the audience and the establishment of an effective labor force created in line to globalized standards.

Brazil; Body; Intersecionality; Dance; Circus

Introdução

Museus “etnológicos” costumam causar-me certo desconforto, especialmente aqueles onde reconheço que as coleções se dispõem, em sintonia aos preceitos estéticos ocidentais, de modo belo. Poucos minutos se passam até que deixe de focalizar objetos, imagens e povos e comece a indagar sobre o próprio trabalho de curadoria. Não foi diferente quando visitei, em 2012, o Museu Quai Branly. Eu não imaginava, porém, que me surpreenderia. Acontecia, no segundo andar desse mesmo museu, uma exposição temporária chamada L’Invencion Du Sauvage: Exbitions. Vi zoológicos humanos; índios tupinambás; crianças, homens e mulheres de vários países da África apresentados por intermédio de um discurso que produzia, conforme acreditava, uma crítica à exibição dos ditos selvagens mundo afora. Foi especificamente quando cheguei na seção destinada aos freak shows – refere-se basicamente à apresentação de corpos ou criaturas julgadas bizarras para diversão e lucro durante meados dos séculos XIX e XX (Bogdan, 1988Bogdan, Robert. Freak Show: presenting human oddities for amusement and profit. Chicago, Chicago Press, 1988.) – que me deparei com as fotografias de diversos circos norte-americanos que fizeram sucesso, no período citado, comercializando diferenças. Eu, instantaneamente, senti o desconforto inicial. Um daqueles circos1 1 A empresa circense sobre a qual escrevo é o resultado de operações de compra e venda que recuam muito no tempo. Dentre os muitos circos que existiram nos Estados Unidos do século XIX, dois deles se tornaram um só em meados do século XX. No século XXI, uma família de empresários potencializou a existência dessa empresa ao atrelá-la a uma incorporação, cujos empreendimentos no mercado do entretenimento global são frequentados, a cada ano, por milhões de pessoas. Os empreendimentos dessa incorporação já cruzaram 75 países, o que inclui o Brasil. empregava, no exato dia em que eu visitava essa exposição, a minha mãe como bailarina.2 2 As questões metodológicas relativas ao vínculo maternal que tornou possível a minha pesquisa enquanto filho nos bastidores do circo, bem como a análise dos laços que estabeleci em campo com aqueles que me queriam bem por querem bem a minha mãe, podem ser encontradas em Rangel (2016). Defendo ali a possibilidade de “forjar conhecimento sobre o cotidiano da relação entre familiares (...) a partir da posição de filho. Se a noção de posição refere-se não apenas a um lugar de fala, mas qualifica também experiências de vida particulares, então o que está em questão, como demarca Rosaldo (1993), são os tipos de insight que determinadas posições habilitam” (Rangel, 2016:149-150). Aqui, esses insights dirigem-se menos ao conhecimento das relações que os facultaram do que ao conhecimento das normas que constituíram a viabilidade da presença de familiares, amigos e outros no circo.

Passei meses fantasiando que tanto a minha mãe quanto as suas colegas de trabalho brasileiras com as quais eu convivia, ainda que à distância, dramatizavam nos Estados Unidos uma nova versão dos corpos bizarros. Eu aproximava momentos históricos distintos com facilidade. Estava certo de que o colonialismo permanecia em marcha. De volta ao Brasil, gastei algum tempo em telefonemas ou chamadas no skype tentando convencer pessoas próximas a viverem no presente o horror que eu projetava no passado circense. De certa maneira, eu esperava que as dançarinas reduzissem as versões de si que elas mesmas cultivavam à brasilidade como identidade a ser comercializada. Espero, ao longo deste artigo, demonstrar o que fez com que elas recusassem o meu anseio. Minha mãe e suas amigas pareciam dizer que eu estava olhando para o trabalho que elas executavam a partir de uma perspectiva que não era compatível com a delas: acusavam o meu anacronismo, bem como a minha tentativa de colonizar a pluralidade das histórias de vida em uma única versão de mundo.

Cheguei à conclusão de que não poderia ignorar o conjunto de estratégias empresariais que possibilitou a existência de brasileiras nessa empresa e, portanto, a conformação do ponto de vista segundo o qual os meus anseios eram acusáveis. Afinal, por que bailarinas brasileiras passaram a compor o elenco dos shows, anos atrás? Por que, posteriormente, dançarinos brasileiros receberam contratos? Tendo essas perguntas em vista e seguindo postulados de antropólogas (Ferreira, 2009Ferreira, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos autos da cova rasa: a indentificação de cadáveres não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro, Laced/Epapers, 2009.; 2011Ferreira, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.; Vianna, 2014Vianna, Adriana. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho, Sérgio; Souza Lima, Antonio Carlhos de; Texeira, Carla Costa (orgs.). Antropologia das Práticas de Poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro, Contra Capa/FAPERJ, 2014, pp.43-70.) que defendem a importância de levarmos a sério os documentos, tomo aqui as peças publicitárias, catálogos circenses produzidos e divulgados durante 15 anos, como

artefatos etnográficos especialmente reveladores de técnicas e procedimentos (...) [empresariais] e, ao mesmo tempo, de representações [nacionais] e marcas sociais produzidas e perpetuadas por tais técnicas e procedimentos (Ferreira, 2011Ferreira, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.:11).3 3 As expressões em colchetes são acréscimos ou deslocamentos produzidos por mim.

Combinei a análise desses artefatos etnográficos aos atos de fala de profissionais diversos sobre a contratação de dançarinas e dançarinos brasileiros, entendendo que juntos, documentos e versões, não simplesmente descrevem os corpos passíveis de serem exibidos em um circo norte-americano, mas os produzem. Nesse sentido, em consonância às proposições de Butler (1993)Butler, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Nova York, Routledge, 1993., atento ao longo de todo este artigo para os processos de materialização de corpos como sendo o efeito mais produtivo das relações de poder. Se, no primeiro momento, invisto numa análise interseccional (Brah, 2006Brah, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376.; Mcclintock, 2010McClintock, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. São Paulo, Editora Unicamp, 2010.; Piscitelli, 2012Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, direitos humanos e vítimas. In: Miskolci, Richard; Pelúcio, Larissa (org.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo, AnnaBlume, 2012, pp.199-226.) das normas de exibição – juventude, brasilidade/afetividade, magreza e etc. – veiculadas pela empresa circense em questão e materializadas nos corpos dos profissionais contratados; no segundo, na esteira de Saba Mahmood (2005)Mahmood, Saba. Politics of Piety. The Islamic revival and the feminist subject. Princeton, Princeton University, 2005., qualifico a maneira como as bailarinas e os bailarinos brasileiros “habitam”4 4 Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por Bultler (2008), Saba Mahmood (2005) infere que há uma inclinação dualista na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora por sua subversão. O problema estaria no fato de a agência ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso não delimitar a priori os modos de agência, já que eles revelam-se não apenas como uma capacidade de resistir ou subverter, mas também como algo que se realiza nas múltiplas maneiras de habitar as normas. Partindo desse ponto de vista, a autora demonstrou em seu livro Politics of Piety (2005) como mulheres adeptas a um movimento político religioso no Egito trabalhavam sobre si mesmas de modo a constituírem as suas condutas como virtuosas. tais normas.

Busco assim abrir espaço para pensar como os sujeitos conduzem a si mesmos em relação às operações discursivas que os constituem. Isso interessa na medida em que admito que “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’ moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar como sujeito moral dessa ação” (Foucault, 2012Foucault, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. São Paulo, Graal, 2012.:34). Descrevo especificamente o cuidado de si que não se faz em oposição às normas, mas no seu interior enquanto miríade de movimentos corporais ritmados ou maneiras de ser e de se portar boas e belas. Desse ângulo,

o conjunto de capacidades inerentes ao sujeito, ou seja, as capacidades que definem os modos da sua agência não são o resíduo de um self não domesticado, existente antes das operações de poder, mas são, em si mesmas, produto dessas operações (Mahmood, 2006Mahmood, Saba. Teoria Feminista, Agência e Sujeito Liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto. Etnográfica, vol. 10, n°1, 2006, pp.121-158.:133).

Como bailarinas e bailarinos ativamente habitam normas de exibição? Qual o Brasil do circo?

Materializando corpos, fazendo o Brasil

Desde 2000, o circo realiza anualmente audições no Brasil e emprega, sobretudo, bailarinas nascidas nesse país. A preferência por esses corpos começou a ser animada após ser definida a estratégica artística e empresarial de incorporar passos de samba aos shows realizados entre 2001 e 2002 por uma das três unidades do circo.5 5 Em dois trens privados de mais de um quilometro e meio de extensão, duas unidades do circo percorrem em direções opostas o território dos Estados Unidos e algumas cidades do México. Residem nesses trens artistas, funcionários e familiares. Animais também são transportados nesses veículos: elefantes, cavalos, cachorros. Tigres e leões são levados de uma cidade a outra em automóveis. Na terceira e menor unidade, os artistas e demais membros da companhia circense viajam de ônibus e residem em hotéis. Em um dos catálogos publicitários vendidos ao público nesse período, conta-se que, quando um dos diretores do circo se viu frente à necessidade de contratar “samba dancers”, ele sabia que só havia um lugar para ir: Rio de Janeiro. Disse ele: “No Rio, garçons, taxistas – todos sambam. Eu estou entusiasmado com o talento e a energia dessas jovens brasileiras”.6 6 “In Rio, waiters, cabbies – everybody samba. I’m thrilled by the talent and energy of these young Brazilians”. Todas as traduções efetuadas ao longo deste artigo são de responsabilidade do autor. Se, por um lado, o samba é descrito nesse material como particularidade do cotidiano dos cariocas, por outro, o uso de termos como “energia” e “talento” prepara e autoriza o leitor a perceber as dançarinas contratadas como jovens7 7 A maioria das brasileiras aprovadas nas audições do circo estava acima dos 18 anos e abaixo dos 30. Não são muitas aquelas que imigraram sendo mais velhas e são poucas as que continuaram nos shows como bailarinas após os 30 anos de idade. brasileiras. Ao passo em que o Rio de Janeiro passa a operar simbolicamente como metonímia do Brasil, o samba é associado a uma brasilidade enérgica, jovial e talentosa.

Ainda que a palavra inglesa brazilians não discrimine gênero como na língua portuguesa fariam os adjetivos pátrios brasileiro ou brasileira, o conteúdo textual dos impressos citados conjuga-se às fotografias das dançarinas. Elas aparecem vestindo trajes compostos por adereços que remetem ao carnaval: plumas, esplendores e costeiros. É na fusão entre texto e imagem que é produzida uma versão da feminilidade brasileira centrada na ideia de temperamento e firmada pela coerência entre sexo e gênero. Em outras palavras, as marcas de gênero aparecem não dissociadas da anatomia do corpo: são as mulheres brasileiras que ali encarnam a energia da nação.

Foi também no material publicitário publicado em 2001 que encontrei a seguinte informação: oito “folkloric samba dancers” foram selecionadas dentre as 162 mulheres que compareceram ao primeiro teste de habilidade técnica realizado pelo circo no Rio de Janeiro. O uso da locução “folclórico” é nesse contexto um recurso para nativização dos corpos e do samba, pois, como ficará claro adiante, torna as dançarinas brasileiras importantes no interior de uma economia estética circense apoiada na celebração de diferenças nacionais como forma de divertir plateias e de produzir lucro. Esse procedimento não era exclusivo ao Brasil e suas nativas.

Dentre os catálogos a que tive acesso, um deles, publicado em 2004, apresenta bailarinas do circo com o título “Tango de Argentina” e com uma frase dita pelo então coreógrafo dos shows: “Foi uma grande emoção trabalhar com essas garotas e ver elas se envolverem em um grupo tão dinâmico e apaixonado”.8 8 “It was a great thrill to work with these girls and watch them involve into such a dynamic and passionate group”. Esse “apaixonado grupo de tango” foi composto por mulheres argentinas, mas também por russas e brasileiras. Evidencia-se assim o uso de uma estratégia discursiva que oblitera os países de origem de algumas dançarinas, visando fomentar identidades nacionais específicas.

Adiante, discorro sobre essa estratégia levando em consideração o caso brasileiro. Por ora, importa dizer que soube da existência de um único teste de habilidade técnica realizado fora Brasil – na Argentina. Poucas bailarinas teriam sido selecionadas. Diversas brasileiras alegaram que as argentinas “não deram certo” nos shows e que faltou a elas “essa coisa brasileira”. Ainda que os motivos possam ter sido outros, a identidade argentina aparece nos catálogos a que tive acesso9 9 Dentre os 14 catálogos que estimo terem sido publicados entre 2001 e 2014 (um para cada turnê de dois anos das duas maiores unidades do circo), consegui ter acesso a nove deles. uma única vez e, pouco a pouco, essas bailarinas deixaram o circo. Algo semelhante aconteceu com as dançarinas russas. As brasileiras preponderaram e, paulatinamente, tornaram-se maioria nessa empresa. O que garantiu essa primazia?

Nos catálogos de uma das turnês realizadas entre 2003 e 2004, as dançarinas brasileiras recebem destaque considerável. Além de terem os seus nomes associados às suas fotografias em duas páginas totalmente dedicadas ao samba e ao Brasil, elas aparecem já no início do programa do espetáculo: primeiro é apresentado o palhaço que narrava os shows; depois “as criaturas mais ferozes da terra” – os tigres de bengala – e o seu domador; os “exóticos” cavalos – árabes, frisões e palominos; e, então, a “legendária” trupe de samba do Brasil. O slogan dessa turnê – “can you feel it?” – foi divido ao longo de oitos páginas, duas para cada uma dessas quatro atrações. A alternância entre espécies, raças de animais, habilidades extraordinárias (divertir, domesticar e sambar) dá cor e forma à ideia tradicional do que é um circo, e faz também a brasilidade precipitar-se em relação às nacionalidades dos demais performers apresentados nas folhas seguintes desses catálogos: russos, chineses, colombianos, norte-americanos e outros. Esse enaltecimento da brasilidade não reflete adequadamente a hierarquia de prestígio dos cargos e das funções, mas reafirma que a proliferação de identidades nacionais era um recurso utilizado para a instauração do significado dos corpos dos artistas.

No entanto, é preciso lembrar que a constituição dos corpos a serem exibidos em um show circense tinha como condição de possibilidade um emaranhado de relações e de escalas (entre Estados nacionais; entre uma empresa privada e diferentes legislações trabalhistas; entre empregadores e funcionários; entre amigos de profissão, etc.) que não se esgota em peças publicitárias. Em termos mais táteis: no caso das brasileiras, desde o início, o visto concedido pelo consulado norte-americano do Rio de Janeiro a elas foi o de artista ou esportista de reconhecimento internacional – (P1).10 10 Com esse tipo de visto, essas profissionais de dança estavam atreladas à companhia na qual trabalhavam e não podiam prestar serviços para nenhuma outra empresa em solo norte-americano. Isso significa que, enquanto conteúdo da relação entre Estados nacionais, essas dançarinas saíam do Brasil e entravam nos Estados Unidos sob a justificativa de comporem um grupo folclórico. A atribuição do direito de trabalhar nessa companhia norte-americana implicava, por conseguinte, que a associação entre folclore e mulheres brasileiras fosse legalmente afirmada e, concomitantemente, elevada ao plano do reconhecimento internacional.

Contudo, essa é apenas uma das feições dessa busca por bailarinas. Para Suzana, produtora responsável pela organização das audições do circo no Rio de Janeiro, a categorização dessas dançarinas como grupo folclórico seria uma forma de justificar aos sindicatos de dança estadunidenses a excepcionalidade e a necessidade dessas em detrimento das bailarinas norte-americanas. Para Joana, umas das brasileiras que mais tempo trabalhou no circo, essa empresa contrata brasileiras principalmente porque “sai mais barato do que pagar as americanas”. Pergunto: a contratação dessas bailarinas, se alegada aos sindicatos norte-americanos a partir da classificação “grupo folclórico”, seria apenas uma forma de poupar recursos? Ou estamos falando de uma complexa intersecção entre dinheiro e nacionalidade em uma dinâmica transnacional contemporânea? De um Brasil feminino, barato, jovem e enérgico?

Em sintonia ao trabalho de McClintock (2010)McClintock, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. São Paulo, Editora Unicamp, 2010., reconheço que gênero, juventude e nacionalidade não são compósitos passíveis de serem adicionados, como se compusessem uma totalidade. Considero ainda que é contra-produtivo pensá-los apenas em termos de desigualdade e subordinação. Trata-se de marcadores sociais da diferença que constituíam o modo de imigração dessas dançarinas e que devem ser analisados em sua interação, pois “existem em relação entre si e através dessa relação – ainda que de modos contraditório e em conflito” (McClintock, 2010McClintock, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. São Paulo, Editora Unicamp, 2010.:19). Ao mobilizar o conceito de interseccionalidade, busco perceber quais discursos sobre a diferença são colocados em ação na busca por dançarinas brasileiras e quais as noções, classificações e práticas são trazidas à vida pelos sujeitos imersos em relações diversas. Ou seja, na esteira de Avtar Brah (2006)Brah, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376., me interessa qualificar como a diferença é construída no contexto que analiso via relações contingentes entre categorias articuladas. E isso não quer dizer que priorizo eixos classificatórios em detrimento da experiência, mas sim que considero, conforme sugere Piscitelli a respeito das contribuições de Anne McClintock, que “os sujeitos são constituídos através de experiências que permanentemente articulam diferenças” (Piscitelli, 2012Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, direitos humanos e vítimas. In: Miskolci, Richard; Pelúcio, Larissa (org.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo, AnnaBlume, 2012, pp.199-226.:207). Passo agora a destrinchar como entendo que a ideia de “energia”, tomada aqui sempre em relação a um corpo jovem, era viabilizada em referência ou não a gênero, nacionalidade, “cor” e/ou “raça”.

Treze anos após o primeiro teste de habilidade realizado no Rio de Janeiro, o então diretor de talentos, Bob, ao justificar para algumas pessoas presentes na sala de audição a razão de há tantos anos virem ao Brasil para recrutarem profissionais da dança, disse que havia “algo mais” no país: “Carisma, energia e atitude que nós encontramos apenas aqui”.11 11 “Charism, energy and attitude that we find just here”. Essa afirmação se coaduna às informações que constam nos catálogos que, publicados entre 2001 e 2004, fazem referência à energia brasileira. Nota-se assim que os corpos das dançarinas foram especificados continuamente a partir de gestos e temperamentos tornados nacionais.

Nesse mesmo material publicitário, Priscila, que ocupava o cargo de capitã das dançarinas, aparece enquanto porta-voz das mulheres que representava e liderava. Disse ela: “Nós amamos compartilhar a energia positiva que faz com que você queira sorrir, aplaudir, se sacudir em seu lugar ou dançar com a gente”.12 12 “We love sharing the positive energy that makes you want to smile, clap, shake in your seat, or dance with us”. Se, por um lado, a energia positiva é tomada como própria das dançarinas brasileiras, por outro, supõe-se que elas estão habilitadas a compartilhar estados emocionais: afetariam plateias fazendo uso dos seus corpos. Essas formulações perpassam a ideia de que a alegria, a afabilidade e a disposição para a sociabilidade qualificam espécie de ethos nacional. Ou, conforme parece mais adequado a esse contexto, a noção de energia refere-se a uma feminilidade nacional produtiva, economicamente rentável, uma vez que o temperamento associado à performance das dançarinas em cena é tomado como capaz de contagiar aqueles que pagam ingressos e esperam por diversão. A evidência concreta do carisma encontrado apenas no Brasil, como parece sugerir Bob e as informações veiculadas nas peças de divulgação dos shows, são os risos e as palmas da audiência. Se o ato de satisfazer a clientela é também o ato gerador da lucratividade dos shows, a identidade nacional materializada nos corpos das dançarias figura como estratégia acionada por uma empresa circense em dinâmicas transnacionais que são, ao mesmo tempo, simbólicas e econômicas.

Adriana Piscitelli desenvolve argumentos que considero importantes para levar essa discussão adiante. A autora demonstra que, em certos contextos da prostituição de brasileiras fora do país, a feminilidade nacional não é necessariamente associada às “cores” de pele escura. A construção da brasilidade poderia se processar “relativamente autônoma dos traços fenotípicos” (Piscitelli, 2007Piscitelli, Adriana. Corporalidade em Confronto: brasileiras na indústria do sexo na Espanha. RBCS, vol. 22, n° 64, junho/2007, pp.17-32.:19). Algo semelhante acontece nas dinâmicas a que venho me referindo. Segundo Glória, que foi uma das primeiras dançarinas contratadas, as “samba dancers” não eram tão somente “negras” e “mulatas”. Mulheres autoclassificadas, ou assim definidas por seus colegas e outros companheiros de trabalho, como “brancas”, “negras”, “pardas” ou “morenas” fizeram parte do elenco. Tendo isso em vista, é possível dizer que o investimento do circo em nacionalizar os corpos das dançarinas está para além da aparência, balizada pela pele, porque reclama sobretudo que a brasilidade esteja imbuída no vigor e na afetividade da performance delas. Não quero, dessa forma, sugerir a inexistência de processos que racializem os corpos das bailarinas, mas sim afirmar que a busca e a produção da brasilidade parecem ter sido baseadas desde o princípio na diversidade de fenótipos. Piscitelli, em sintonia a diferentes estudos sobre deslocamentos internacionais de brasileiras, indica que:

Independentemente de serem consideradas no Brasil, brancas ou morenas, nos fluxos migratórios para certos países do Norte as brasileiras são racializadas como mestiças. No lugar desigual atribuído ao Brasil no âmbito global, a nacionalidade brasileira, mais do que a cor da pele, confere-lhes essa condição. E essa racialização é sexualizada (Piscitelli, 2008Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasilerias. Sociedade e Cultura, vol. 11, n° 2, dezembro/2008, pp.263-274.:269).

É por motivos semelhantes que Beserra (2006) argumenta que mulheres oriundas da classe média no Brasil vivem em Los Angeles sob a sombra de Carmem Miranda e do carnaval. Elas se veem frente à necessidade de atuar em suas vidas cotidianas em relação a erotização a que estão sujeitas. Algumas enxergam esse estereótipo de modo positivo e o manipulam de modo a conquistar bens simbólicos e materiais; outras, porém, sentem-se limitadas pela imagem da “mulher brasileira” nos Estados Unidos e elaboram críticas contundentes quanto a sexualização de seus corpos. A autora defende que a concretude dessa versão da feminilidade brasileira passou a existir

desde que Hollywood usou Carmen Miranda para difundir o mito da sensualidade e graça da mulher brasileira, posteriormente alimentado pela transmissão do carnaval, especialmente o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro (Beserra, 2006:329).

Ainda que seja justificável a eleição de marcos outros para a definição do momento a partir do qual as brasileiras foram erotizadas e associadas à disposição afetiva, é fundamental reter a importância da fabricação e da divulgação massiva de ícones nacionais. Tanto a figura de Carmem Miranda quanto a das mulatas (Correa, 2006) operam inscrevendo reiteradamente as “mulheres brasileiras” como sensuais, alegres, simpáticas, dóceis e/ou mestiças.

Quando perguntei para algumas bailarinas que fizeram parte da trupe das “samba dancers” como era a atuação delas em cena, recebi as seguintes respostas: “no meu tempo era jazz, meio Broadway, Bob Fosse”; “não era para fazer a passista de escola de samba e nem a sexy”; “a gente mal sambava, só dava uma pinta”. Descrevo esses argumentos não para me opor a Piscitelli (2008)Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasilerias. Sociedade e Cultura, vol. 11, n° 2, dezembro/2008, pp.263-274. a respeito da recorrente racialização sexualizada das brasileiras, mas para demarcar que, nesse contexto circense, o sexo era considerado um elemento poluidor se simplesmente colocado à vista. Em nenhum material publicitário que mencione as “samba dancers” existe uma sexualização explícita dos corpos dessas brasileiras. Dito de outro modo, as dançarinas aparecem nesses impressos em alusão ao samba e ao carnaval, mas o erotismo associado a “festa carne” é borrado, dissipado em nome do altear da alegria. Há um investimento sistemático em apresentá-las como carismáticas e felizes ao mesmo tempo que os próprios shows são insistentemente designados como feitos por uma grande família circense e para famílias. Não é ilegítimo argumentar que as peças publicitárias revelam um escrutínio moral que não se limita aos corpos das dançarinas, pois centra-se na imagem de uma empresa que disputa mercado se apresentando como familiar. O que estou sinalizando é que a feminilidade brasileira era feita existir em relação ao modo como uma grande companhia se posicionava no interior da indústria do entretenimento norte-americana.

Mesmo que não seja o meu intento explorar aqui as minúcias da atuação desse circo enquanto agente moral, indico fatores que me parecem relevantes para a compreensão do modo como diferença era construída nos canais de comunicação com o público. O samba é vangloriado, bem como as dançarinas aparecem vestindo adereços carnavalescos, mas isso é feito junto à criação de um fundo emotivo transbordante. Os sorrisos nos rostos de todas as bailarinas fotografadas não é sem propósito. A estratégia empresarial utilizada é a produção afetiva e moral da feminilidade brasileira para o consumo familiar. Os catálogos revelam um trabalho que objetiva menos negar a sexualização comumente associada às mulheres brasileiras através das fronteiras do que implantá-la em uma zona de nebulosidade. Trata-se de uma maneira de tornar a erotização desses corpos um compromisso de quem os vê ou os deseja, e não de quem os exibe. Ou seja, quando essa estratégia é posta em ação, a possibilidade da associação entre as brasileiras e o erotismo não é extirpada das interações cotidianas, mas é continuamente borrada nas peças publicitárias. Reitero: isso acontece essencialmente porque a linguagem do sexo é obliterada ou velada em qualquer comunicação do circo com o seu público: “children of all ages”.

Ainda que as brasileiras apareçam nesses catálogos usando fantasias que deixam suas pernas expostas ou que exibam suas barrigas malhadas, os textos produzidos pela empresa contratante não mencionam o sexo. E sim, como descrevi, falam repetidamente sobre alegria. Isso deve ser considerado, pois, se o observador desses catálogos pode associar os corpos das bailarinas nas posições em que aparecem ao erotismo (pernas jogadas ao ar; corpo eretos de costas e sorrindo; mão na altura dos joelhos e bunda levemente empinada; entre outras poses), ele não pode dizer que qualquer encarregado pela contratação dessas dançarinas explicita com palavras a sexualização de seus corpos. Trata-se, na verdade, de uma sugestão visual produzida pela empresa, e não de um sentença. Estou, portanto, chamando atenção para um jogo entre o que de fato se diz e o que se deixa para que o observador conclua. Nesse sentido, tornar a sexualização dos corpos algo velado é dizer que a erotização da femilidade brasileira é mais fruto do ato de olhar do que do ato de exibir. Se levarmos isso ao extremo, o que a publicidade conduz ou impele é a conversão do espectador em um voyeur sem que isso seja também explicitado. Sendo realizada dessa maneira, a comunicação com as crianças de toda as idades não polui quem contrata e apresenta corpos nativos dançantes.

Se, por um lado, a infantilização da audiência produz restrições quanto à possibilidade de recorrer verbalmente ao erotismo, por outro, a feminilidade nacional é tornada étnica pela invocação do samba, do folclore, da energia e seus correlatos. Assim sendo, a recorrente racialização das brasileiras como mestiças nos fluxos para o Norte acaba sendo direcionada pelos catálogos a uma noção de temperamento enfatizada em demasia. É como se houvesse nesse material publicitário uma orientação ao público, uma educação dos olhares, que visa menos evitar a sexualização dos corpos das dançarinas do que construir uma imagem moral da própria empresa. Proponho ainda que o apelo aos signos do carnaval é tanto um veículo para a etnização das brasileiras quanto um caminho possível à racialização delas como mestiças. Digo, como símbolo do encontro entre “raças” no Brasil e objeto de desejo, a mulata habita o imaginário relativo ao samba, ao carnaval e ao país como um todo e, por isso, circunda os catálogos. A presença possível dessa cobiçada mestiça nos corpos das “samba dancers” de todas as “cores” não é negada, mas é moralizada. Nesse sentido, a racialização das brasileiras aparece nos impressos publicitários como um espectro ou uma porta entreaberta. No cenário afetivo-moral criado pela propaganda, a mestiçagem espreita, mas o erotismo é envelopado pela alegria. Essas eram as duas maiores particularidades dessa caça às jovens bailarinas brasileiras, produtivas porque enérgicas e baratas se comparadas às dançarinas estadunidenses.

Reconheço, contudo, que a própria ideia de energia nacional versa nesses registros circenses como um estado de euforia e excitação. Há algo em torno dos sorrisos e das performances entusiasmadas que remete a um conteúdo sexual, e não nego que ele possa ser valioso para uma companhia como essa. Enfatizo apenas que a estratégia empresarial utilizada é moral na medida em que visa tornar implícita qualquer referência a sexo. A fabricação de uma zona de nebulosidade e o direcionamento das dançarinas para o seu interior possibilitam que a sexualização dos corpos perpetue sem poluir diferentes famílias ou mesmo gerar perturbações na comunicação aqueles observam e aqueles que exibem. Acredito que, se Piscitelli (2008)Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasilerias. Sociedade e Cultura, vol. 11, n° 2, dezembro/2008, pp.263-274. está correta ao afirmar que a racialização das brasileiras é sexualizada no âmbito global, as dinâmicas que descrevo apontam então certa competência empresarial no reconhecimento de tal tendência e na definição de um modo de atuar em relação a ela. O carnaval aparece nos catálogos mencionados vinculado à diversidade dos fenótipos. Brasileiras que se consideram “brancas”, “negras” e “morenas” estão ali representadas. E, se de um modo ou outro, a figura da mulata paira no ar ou recai sobre esses corpos, o desejo por eles é produzido como responsabilidade alheia e apenas assim torna-se bem vindo. Esse é um jogo de excitação velado, uma prática de exibição moralmente controlada.

Transformando o exibível

Certamente, ao longo de mais de uma década, ocorreram transformações no modo como o circo apresentava profissionais da dança. Primeiro, a feminilidade brasileira, tal como descrita, deixou de ser exaltada. Nos programas de uma das turnês realizadas de 2005 a 2006, as “samba dancers” já não existem. As bailarinas emergem, dessa vez, combinadas às elefantas asiáticas. No topo das duas páginas dedicadas a essa correlação estão posicionadas 16 bailarinas e, na parte inferior, 10 elefantas. No centro, está escrito em tamanho grande o título “dancing divas” e em tamanho pequeno os nomes dessas mulheres e desses animais. Há ainda nessa região um texto curto que informa ao leitor que as “ladies of the circus” são as mais pesadas de todas e que elas não têm vergonha de contar as suas idades. As três elefantas mais velhas tinham à época 48 anos e as mais novas quase três. As dançarinas, por sua vez, tinham entre 20 e 35 anos. Todas eram esbeltas.

Enquanto a fotografia destaca as bailarinas dobrando suas dimensões em relação às “biggest ladies”, o texto invoca ao leitor: “Assistam às belas senhoras audaciosas dançarem com outras fabulosas fêmeas”.13 13 “Watch the bodacious beauties ladies dance with the other fabulous females”. Revela-se assim um jogo de sobreposição entre humanos e animais, cujo intento é produzir a dança como uma atividade na qual fêmeas se encontram. Acredito que esse jogo pode ser melhor compreendido em alusão aos shows, pois na hierarquia simbólica circense as elefantas eram produzidas continuamente como a atração mais esperada pela plateia enquanto as bailarinas sequer tinham um ato. Elas comumente entravam em cena durante ou entre atos, ou seja, não foram tornadas foco da atenção do público. Aparentemente, a comparação entre mulheres e elefantas nos impressos publicitários implica principalmente dois efeitos indissociáveis: a humanização dos animais e o nivelamento de atrações mais e menos importantes. Se ocorre concomitantemente uma animalização das mulheres, deve ser entendida como um efeito contra-produtivo da estratégia comparativa, uma vez que esse tipo de declaração tende a ser considerada negativamente no cenário político contemporâneo. Vale dizer que existe um esforço empresarial constante para neutralizar o impacto negativo das constantes críticas ao trabalho realizado por elefantes, tigres, leões ou cavalos. Ainda que escape a este artigo uma discussão centrada na relação entre humanos e animais, indico que a estratégia de humanização das elefantas situa-se em um contexto de disputas acirradas entre diversos circos nos Estados Unidos e ONGs dedicadas à proteção dos animais.

Há mais. A última frase desse parágrafo publicado em 2005 anuncia uma trupe internacional cuja habilidade técnica não se limita ao samba: “A deslumbrante trupe de dança, que vem de todos os lugares do mundo, incluindo Brasil, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos. Elas podem dançar hip-hop, sambar e rolar - e podem pular cordas também”.14 14 “The dazzling dance troupe, who hail from all over the world, including Brazil, Russia, England and the U.S. They can hip-hop, samba, and tumble – and they can jump rope, too!”. Pela primeira vez, desde 2001, países, que não Brasil – ou a Argentina –, foram nomeados nos catálogos como sendo o local de nascimento das bailarinas. Ainda que mulheres russas, argentinas e estadunidenses tenham feito parte das “samba dancers”, suas nacionalidades simplesmente não eram apresentadas. Somente um leitor atento poderia supor a partir da divulgação de nomes os países de origem dessas bailarinas. Essa foi também a primeira vez que modalidades técnicas diversas foram citadas, mesmo que tivessem sido executadas desde o princípio. Os catálogos vendidos entre 2005 e 2006 são particularmente significativos. Eles assinalam o germinar do estabelecimento de um modo de exibição das bailarinas distante do apelo à “energia” das mulheres brasileiras e mais ainda do samba. Em 2007, esse processo assumiu qualidade outra. A nacionalidade das bailarinas deixou novamente de ser mencionada. Elas passaram a serem classificadas compondo um grupo chamado “international folkloric dancers” e perderam espaço nos catálogos. Se antes eram apresentadas em duas ou mais páginas, passaram a ocupar apenas um terço de página. Essa tendência pode ser observada nos impressos vendidos de 2007 até 2014.

Entretanto, isso não culminou no cessar das audições no Brasil. Ao contrário, houve uma expansão do interesse pelo país. Ano após ano, ocorreram testes para dançarinas no Rio de Janeiro e, especificamente em julho de 2013, as audições aconteceram também durante o Festival de Dança de Joinville, em Santa Catarina – um dos maiores do mundo e, certamente, o mais importante do país. Nesse mesmo mês, durante audição realizada em uma famosa casa de show carioca, ouvi um dos produtores do circo, que é responsável por viajar pelo mundo em busca de novos talentos, dizer que naquela data fazia dois anos que dois rapazes brasileiros foram selecionados pelo circo. A atuação deles teria gerado resultado positivo nas apresentações realizadas em 2011, o bastante para que fosse tomada a decisão de, no mesmo ano, recrutar mais dois brasileiros. O número de bailarinos cresceu até atingir a soma de oito em 2014, quando as duas maiores unidades do circo contavam unicamente com bailarinas brasileiras – ao todo, cerca de 26 – e a terceira apenas com australianas – não mais que quatro. Diz-se que estas últimas dançarinas foram contratadas em função de uma preferência pessoal de um dos diretores artísticos dos shows. Ele é um coreógrafo que, ao longo de sua carreira, esteve repetidas vezes na Austrália ministrando workshops de dança.

Anteriormente mencionei que, na audição realizada no Rio em 2013, a contratação de brasileiras foi justificada em torno do temperamento delas: carisma, atitude e talento. No entanto, omiti, para facilitar a compreensão da sucessão das estratégias empresarias, que Bob referia-se também aos rapazes brasileiros. Acrescentada essa informação, interessa demarcar que os anos investidos na produção da feminilidade nacional criaram as condições para que a exigência dessa “energia” particular pudesse ser feita primeiro às bailarinas não brasileiras e apenas depois aos bailarinos brasileiros. Foi como resultado da fabricação das “samba dancers” que surgiram outras categorias classificatórias para definir um grupo de bailarinas formado majoritariamente por brasileiras e foi também essa a porta de entrada dos bailarinos nos shows. Em outras palavras, o desaparecimento das “samba dancers” culminou na (des)importância publicitária da energia nacional e na expansão da busca pelo temperamento associado primeiramente às bailarinas brasileiras. Houve um deslocamento crucial. Distante do enfoque publicitário e descolada de uma noção de feminilidade firmada na coerência entre sexo e gênero, a ideia de energia nacional passou especificamente a habitar os bastidores dessa empresa.

Os catálogos divulgados entre 2007 e 2014 apresentam dançarinos e dançarinas exclusivamente como “international folkloric dancers” e, além das imagens15 15 Nesse material, bailarinos e bailarinas aparecem divididos em duas linhas ou filas (a primeira está agachada; a segunda de pé), vestindo figurinos não associáveis ao Brasil (vestidos brilhantes, capas, calças coloridas e ornamentos, como chapéus que imitam cabeças de cavalo). Todos sorriem. , tudo o que descreve homens e mulheres são os seus nomes; ou seja, nenhuma menção verbal a nacionalidades, elefantas ou gênero é feita. Contudo, tanto a afabilidade quanto o carisma nacional continuavam a interessar a essa companhia. A relevância da brasilidade na conformação dos atuais “international folkloric dancers” é inegável não somente porque, como disse, os brasileiros e as brasileiras eram maioria dentre os “dancers”; ouvi diversas justificativas: custam menos que os norte-americanos; o “algo mais” da brasilidade os colocava em posição de vantagem simbólica a latinos, estadunidenses e pessoas do leste europeu; bailarinos de outras nacionalidades não aceitariam os valores pagos aos brasileiros. Não nego nenhum desses fatores. Acredito que eles aparecem nos discursos daqueles que foram contratados para dançar porque a brasilidade, mesmo após todas as modificações citadas, continuou sendo rentável economicamente e simbolicamente para esse circo. Essa rentabilidade deixou de ser expressa nos catálogos em termos de identidade nacional feminina, mas perseverou como um “conhecimento ordinário” relativo à corpos nativos. Era sabido que as brasileiras eram “boas” para o trabalho, bem como passaram a ser os brasileiros. A ideia de uma atitude nativa, barata em termos comparativos e eficiente em cena, passou a habitar os bastidores na medida em que informava os responsáveis por decidir onde e como seriam selecionados os corpos a serem exibidos. Talvez resida aí ao menos uma das razões para as audições terem continuado a acontecer no Brasil, mesmo quando a classificação passou a ser “international folkloric dancers”.

De tudo o que é “fazer o perfil do show”

Passo agora a uma descrição do modo com que a categoria dos dançarinos folclóricos internacionais foi composta durante uma audição do circo no Rio de Janeiro. Considero fundamental vincular os discursos sobre o Brasil veiculados nos catálogos aos procedimentos técnicos, retóricos e estéticos de seleção. Espero delimitar, a partir de ângulos diversos e combinados, o processo de materialização dos corpos exibíveis. Dado que as dançarinas e os dançarinos passaram a ser apresentados ao público a partir de 2007 como profissionais nascidos em vários países, ainda que nem sempre o fossem, o que produtores, coreógrafos e assistentes de produção requeriam ao se dirigirem, anos após ano, ao Brasil? Pode-se dizer que, se anteriormente desdobrei caminhos para responder de forma sempre inconclusa a pergunta “por que o Brasil?”, volto-me agora ao “como” dos discursos empresariais e às motivações de brasileiros e brasileiras para o circo.

Cheguei à Lapa, bairro onde aconteceu a audição em 2013, por volta de uma hora da tarde. Alguns dançarinos e algumas dançarinas estavam tão nervosos que mal falavam. Seus rostos se contorciam; eles evitavam conversar entre si, principalmente oferecendo respostas evasivas para as perguntas que lhes eram feitas por aqueles que viam como sendo os seus concorrentes. A competição era flagrante. Outros, no entanto, pareciam mais relaxados. Um grupo de meninas entre 18 e 20 anos conversava sobre como seria trabalhar e morar no circo: “amiga, imagina a gente em Nova Iorque? Na Broadway? Ficar viajando juntas pelos Estados Unidos”?. Esse tipo de possibilidade ofertada pelo trabalho que executariam de fato foi considerado por bailarinas e bailarinos. Todos pareciam concordar que um dos pontos positivos do ingresso nesse circo seria o de a cada semana estar em um lugar novo. Muitos foram os que pensaram as viagens como uma aventura, ao menos enquanto ainda estavam no Brasil. Também foi frequente o argumento de que passar na audição seria fundamental para que pudessem “juntar algum dinheiro” e consumir bens como “roupas de marca” e eletrônicos. Duas candidatas, que conheciam um dos dançarinos contratados em 2012 e uma dançarina recrutada ainda antes, diziam saber que a vida no circo “não seria moleza”, mas que ainda assim “valeria a pena”. Pensavam no que poderiam comprar, em visitar pontos turísticos e também em fazer aulas em escolas de dança famosas: Miami City Ballet e Alvin Ailey. Ambas tinham 23 anos, trabalhavam com dança e se diziam felizes com suas carreiras no Brasil, porém viam no circo a possibilidade de conquistarem alguma autonomia: não dependerem financeiramente de seus pais e morarem sós.

Duas antigas bailarinas do circo presentes no primeiro dos dois dias audição procuraram alertar as dançarinas selecionadas que o cotidiano no circo seria de muito trabalho e que, repetidas vezes, elas estariam no “meio do nada” esgotadas. A dureza da experiência circense se converteria em “amadurecimento”. Bob, produtor artístico norte-americano, explicou, somente aos aprovados, que haveria dias em que todos acordariam exaustos, desgostosos da rotina de shows, mas que seria preciso ser profissional e honrar o compromisso que assumiram. Monique, brasileira assistente de produção, traduziu cada palavra dita por seu chefe. Mal foi ouvida. A alegria dos jovens selecionados sobrepunha-se. Eles falavam sobre malas, churrascos que marcariam e possíveis encontros em aulas de dança ofertadas na cidade. Discutiam sobre o contrato com o circo como um passo importante em suas carreiras artísticas. Para além de um posto de trabalho associado ao ganho monetário, o circo era visto como uma ponte para novas experiências. O futuro era vivido no presente como uma grande promessa por cerca de 15 “dancers”.16 16 Aproximadamente 140 bailarinos e 50 bailarinas participaram do processo seletivo.

Ao perguntar aos candidatos, homens e mulheres, e às antigas “dancers” qual era o fundamento do interesse no Brasil, pude perceber que todos enxergavam as suas contratações de modo otimista. Falavam que havia “algo mais” em suas performances, que isso era “bom em cena”. Eles viam o interesse por seus corpos tanto como um reconhecimento do trabalho de dança desempenhado no Brasil quanto como uma “oportunidade” na indústria do entretenimento norte-americana. Muitos foram os que tomaram esse vínculo empregatício como uma maneira de serem identificados positivamente pelos seus pares, afinal, teriam trabalhado em uma grande produção no exterior. Diziam que isso seria especialmente produtivo quando, de volta ao Brasil, tivessem de procurar emprego. Notem: a brasilidade versa nesses registros como um profissionalismo sui generis e as dinâmicas simbólicas e econômicas que levam um circo a contratar esses profissionais são percebidas em termos de dinâmicas outras, cujo conteúdo é também simbólico e econômico: promessa de reconhecimento; possibilidade de mais trabalho; novos empregos. Fica claro, portanto, que a estratégia artística e empresarial de contratar brasileiras e brasileiros tornou-se significativa, nesse momento, via idioma das “oportunidades”: passeios, dinheiro e afins.

Considerando que a realização de qualquer desejo pessoal relativo ao circo implicava a aprovação no teste, não é difícil perceber a própria audição como um ritual que exigia a produção do ajustamento dos candidatos e de seus corpos aos propósitos da empresa para a qual pretendiam trabalhar. Durante o teste de habilidade, uma das afirmativas que mais foi repetida era que somente seriam selecionados aqueles que “fizessem o perfil do show”. Ou seja, a brasilidade manifesta via perfomance e marcada em um corpo jovem de custo econômico reduzido ganha aqui uma tonalidade particular. “Fazer o perfil do show” era um trabalho realizado em via dupla: dependia de práticas específicas de recrutamento e demandava das bailarinas e dos bailarinos um exercício de automodelação anterior à própria audição e condição de possibilidade para a efetivação de seus desejos.

O coreógrafo, auxiliado por Monique e Bob, era responsável pela avaliação técnica e pela mensuração das proporções dos corpos; em síntese, pela produção da congruência entre a performance dos dançarinos e das dançarinas e o projeto artístico designado para a temporada de shows em questão. Para tanto, ele adotava um longo procedimento produtor dos corpos passíveis de serem exibidos e excludente de todos os demais. “Fazer o perfil” era, nesse sentido, constituir corpos exibíveis a partir de práticas de hierarquização. Provar que se está apto ao show exigia a virtuosidade da conduta, exigia que cada candidato tivesse frequentado escolas de dança, participado de aulas de modalidades técnicas diversas (especialmente balé, jazz e hip-hop) e fosse capaz de executar a sequência coreográfica no tempo julgado adequado e sorrindo. A lista era longa e requeria recursos financeiros, disponibilidade de tempo e habilidade para vislumbrar os modos bons e belos de ser e se portar.

“Fazer o perfil” denotava exatamente todo o trabalho que profissionais diversos – coreógrafo, produtores e bailarinos – tinham de cumprir. Proponho ser possível considerar o “fazer o perfil como um chamado performativo aos dançarinos e às dançarinas a ativamente se constituírem como sujeito-corpo virtuoso o bastante para “habitar as normas” (Mahmood, 2005Mahmood, Saba. Politics of Piety. The Islamic revival and the feminist subject. Princeton, Princeton University, 2005.) de exibição veiculadas pelo circo. Ao fim e ao cabo, o que está em cena é o paradoxo da subjetivação: o sujeito é habilitado por relações de subordinação específicas e apenas por elas se torna apto a agir de uma dada maneira. Não se trata da conceituação da agência como livre escolha e nem mesmo da suposição de que sujeitos são aqueles que somente seguem ordens.

Para esclarecer esse paradoxo, podemos considerar o exemplo da pianista virtuosa que se submete ao, frequentemente, doloroso regime da prática disciplinar, bem como às estruturas hierárquicas de aprendizado, visando adquirir a habilidade – a agência requisitada – de tocar o instrumento com maestria. Importante, sua agência se baseia em sua capacidade de ser ensinada, uma condição classicamente referida como “docilidade”. Embora nós tenhamos vindo a associar a docilidade com o abandono da agência, o termo literalmente implica a maleabilidade requerida a alguém para que ela seja instruída em uma habilidade ou conhecimento particular – um significado que carregado menos o senso de passividade do que o de luta, empenho, esforço e realização (Mahmood, 2005Mahmood, Saba. Politics of Piety. The Islamic revival and the feminist subject. Princeton, Princeton University, 2005.:29).17 17 “To clarify this paradox, we might consider the example of a virtuos pianist who submits herself to the often painful regime of disciplinary practice, as well as to the hierarchical structures of apprenticeship, in order to acquire the ability - the requisite agency - to play the instrument with mastery. Importantly, her agency is predicated upon her ability to be taught, a condition classically referred to as "docility." Although we have come to associate docility with the abandonment of agency, the term literally implies the malleability required of someone in order for her to be instructed in a particular skill or knowledge - a meaning that carries less a sense of passivity than one of struggle, effort, exertion, and achievement” (Mahmood, 2005:29).

Do ponto de vista ótimo, tanto produtores quanto bailarinas e bailarinos buscavam arregimentar as condições ideais para a fabricação de um corpo produtivo, aquele capaz de ofertar resultados: contemplar sonhos; transmutar-se em viagens; dançar com “energia”; fazer dinheiro. Estou me referindo ao modo como as normas de inclusão aos shows eram aspiradas, vividas ou habitadas pelos candidatos, principalmente por aqueles que foram julgados viáveis. Melhor dizendo, conquistar a aprovação na audição requeria dos bailarinos e das bailarinas uma conduta disciplinada que implicava um modo particular de subjetivação porque fundado no trabalho cotidiano de fazer a si mesmo sujeito-corpo virtuoso. Dar início à audição pressupunha, portanto, a existência dos jovens profissionais devotados aos modos considerados bons e belos.

No decorrer do teste, a ideia de “energia” que dava vida à brasilidade, perdurada como um conhecimento ordinário, foi tornada inextrincável à eficiência dos corpos. A singularidade do temperamento nacional não era por si só a garantia da rentabilidade da performance das dançarinas e dos dançarinos. Era preciso que o escrutínio de si e do corpo tivesse sido desempenhado com algum vigor ao longo do tempo para que pudesse ser glorificado durante o processo seletivo. A brasilidade pode ser lida aqui como uma promessa de carisma, afeto e energia que depende do cultivo de técnicas e estéticas específicas para que possa ser afirmada e elevada à condição material de sujeito-corpo exibível nesse contexto circense.

O conselho como ato persuasivo

No final do dia de teste ouvi Peter, o coreógrafo, dizer para um dos rapazes não selecionados que ele era um ótimo dançarino. Seus passos, porém, soavam inseguros e, quando se está no palco, era preciso não ter dúvida de quem se é. “Be a star!”. Horas antes, Peter havia perguntado aos candidatos e às candidatas, sorrindo, mas em tom assertivo, se eles achavam que Beyoncé, Madonna ou Britney contratavam dançarinos em dúvida de que eram os melhores. “Eles sabem quem eles são”.18 18 “They know who they are”. Não era prosaico o fato desses artistas serem citados. Essa era um maneira de anunciar figuras exemplares, de qualificar os modelos a serem perseguidos. Bailarinas e bailarinos de sucesso dançam, nesse sentido, com tais artistas. Peter foi um deles. Isso demonstra a relevância e a pujança dos discursos mobilizados durante a audição e também sinaliza quais eram os padrões coreográficos em voga. Os passos ritmados que as brasileiras e os brasileiros dançavam em 2014 estavam em muito informados pelo que a indústria do entretenimento norte-americana divulgava e tornava ícone global naquele momento.

Peter insistiu durante os dias de audição: “Isso não é uma aula, meninas. É a hora do show. Façam o seu melhor!”.19 19 “This is not a class, girls. It’s show time. Do your best!” Ao ouvir essas palavras, algumas dançarinas alongaram seus corpos, suspiraram e logo se posicionaram de modo a recomeçar a sequência coreográfica. Outras sorriram e ergueram as sobrancelhas como se duvidassem do que era dito. Em seguida, ouvi reclamações: “bicha, estou destruída já. Como vou fazer isso?. Foi sistematicamente pedido aos competidores que lembrassem que aquele era um momento decisivo. Era preciso que não dançassem olhando para o chão e que não parecessem sentir raiva ou desconforto. Monique quase sempre traduzia os conselhos ofertados em inglês e, por vezes, incluía os seus: se esquecer a coreografia, segue, faz o que vier na hora. Carão gente, segura no carão! Se está atrasado [no tempo da música] não é para parar. Segue. Segura!”. Ao dizer isso, ela se levantou da mesa posicionada em frente ao palco, subiu as escadas, encenou de costas passos de dança e girou o corpo em direção à plateia. Sua expressão assumiu feição caricatural, seu sorriso era interminável. Em seguida, Monique alertou também que as arenas onde os shows aconteciam eram enormes e, por isso, a expressão corporal, principalmente facial, deveria ser “grande”. “Se você fizer pequeno, o cara lá no final não vê”. A assistente de produção demandava que os candidatos exibissem “energia” em seus corpos e rostos. O que estava em jogo era o aconselhamento do uso tático20 20 Refiro-me a Bailey em sua defesa das emoções como dispositivos de persuasão. Diz o autor: “a exibição de emoções é (entre outras coisas) também modos de suscitar confiança” (Bailey, 1983:12). das emoções como forma de encantamento dos avaliadores, uma vez que cabia a eles perceber quais dentre tantos “dancers” iriam “funcionar em cena.

Para uma dada bailarina mostrar o melhor de si não bastava apenas dançar conforme as regras que definem modalidades técnicas (balé, jazz, hip-hop e etc.), pois era preciso suscitar a confiança na disposição corporal, isto é, na capacidade de contagiar afetivamente com o corpo. A dica “segurar no carão era um chamado à demonstração eficaz de paixões. Nenhum dos produtores ou mesmo o coreógrafo almejava contratar “dancers” que expressassem emoções passíveis de serem desacreditadas. Sugerir o uso tático das emoções era um modo de deflagrar e acentuar a busca pela vitalidade dos corpos enquanto capacidade de afetar. Os bailarinos hábeis a “segurar no carão” eram aqueles cuja virtuosidade técnica, mesmo se questionada, havia sido assegurada devido à confiança dos avaliadores na expressão emotiva desempenhada.

Esses e outros conselhos foram repetidos, alternados e inovados durante os dois dias de audição. Eles operavam enquanto um gênero de ato de fala cuja autoridade era construída conforme eram citados. Dito de outro modo, era justamente o ato de proferir e repeti-los que produzia e resguardava a competência dos conselhos. Não estou fazendo alusão a um sistema codificado de regras capaz de conformar o comportamento em todas as suas cores e amplitudes, e sim a uma série de práticas discursivas performativamente constituídas.

Evidentemente, cabia às bailarinas e aos bailarinos o reconhecimento da verdade dos conselhos. Não era suficiente que Peter, Bob e Monique ocupassem posições superiores na hierarquia do teste, as de mandato, já que a efetividade do conselho se revelava na capacidade dos candidatos (in)formados pelos modos bons e belos performarem o que fora solicitado. O conselho demandava a habilidade de ouvir, reconhecer e executar imediatamente. Ele operava enquanto “tática de persuasão” reiterativa. Era um modo competente de impelir ou seduzir os dançarinos e as dançarinas a habitarem as normas de exibição. A imperiosidade do chamado era estabelecida a partir do modo pelo qual era professado: sorriso no rosto e tom de voz assertivo. A natureza desse ato de fala revela-se impositiva e sedimentada em afetividade. É possível pensar os conselhos como vinculados “à imagem da babá ou governanta e sua bondade opressiva” (Souza Lima, 2002Souza Lima, Antonio Carlos de. Introdução – Sobre o gestar e o gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo. In: Souza Lima, Antônio Carlos de (org.). Gestar e Gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/NUAP/UFRJ, 2002, pp.11-22.:16).

Dentre muitos, Júlia

“Pernão escândalo, cabelão e é linda. Essa já está dentro”. Foi assim que Joice – proprietária de uma escola de dança, professora de diversas modalidades técnicas e mãe de uma então “dance captain” [chefe imediata das dançarinas e dos dançarinos no circo] – respondeu a minha pergunta: como você sabe quem faz o “perfil” do show? Ela referia-se à Júlia, bailarina que tinha chamado a atenção de muitos desde que chegou, pois foi uma das primeiras a subir no palco para se aquecer e era alta, magra, negra, além de bastante alongada. Quando Joice comentou sobre Júlia, sequer havia ocorrido a primeira eliminação, mas ela estava certa. A candidata, tal como outras, foi bem sucedida em todas as etapas da audição. Foi, no entanto, singular o fato de ela ter participado de todo o “teste de composição” – momento em que as candidatas pré-selecionadas subiram ao palco para dançarem uma mesma coreografia até que os avaliadores produzissem alguma sintonia entre os corpos. Enquanto algumas dançarinas eram substituídas, Júlia permanecia dançando na linha de frente. Na terceira ou quarta vez em que a coreografia foi repetida, uma bailarina de formas e expressões corporais próximas as dela foi posicionada ao seu lado. O processo continuou até que corpos outros fossem combinados. Havia ali espécie de modelo vivo composto por frente e fundo, escalado das mais altas às mais baixas e firmado via preceito da semelhança entre os corpos e seus movimentos. Fiquei surpreso por Joice não ter titubeado e, sobretudo, intrigado pelo fato de o coreógrafo ter feito da afirmação dita por ela uma verdade. O que faz esse sujeito-corpo tão acreditável? O que torna Júlia óbvia?

Simpática e sorridente, ela logo me contou que aquela não era a primeira vez que participava da audição para o circo. Disse que no ano anterior foi eliminada já no início do teste porque estava um tanto insegura e não sabia hip-hop como agora. Ainda que Júlia tenha ou não levado à risca os conselhos de Peter, é irrevogável: ela retornou competente a ponto de assumir a linha de frente e atrair atenção. Lembro que, meses depois da audição, ouvi uma antiga “dancer” dizer que Júlia havia conquistado a aprovação em 2014 antes mesmo de mostrar que era tecnicamente capaz. Sem dúvida, seu cabelo e seu corpo esguio eram núcleos de atratividade, mas vale frisar que eram também objetos de cuidado. A citar por duas situações triviais: assim que foi contratada, Júlia ficou aflita ao questionar a si mesma e aos seus colegas de trabalho se seria possível manter os seus cachos nos Estados Unidos; e, quando a encontrei em um shopping na zona norte do Rio de Janeiro, ela estava vestindo trajes apropriados para malhação. A beleza revela-se assim não somente como uma busca pessoal, mas também como um critério que, se não foi necessariamente eliminatório no decorrer da audição, parecia ser suficiente para criar certa condição de visibilidade transformada em vantagem, caso alguma virtuosidade fosse enxergada especialmente pelo coreógrafo.

Há algo bastante redundante no fascínio desperto por Júlia, algo que se estende. Exatamente 12 dias após o processo seletivo, não me espantei ao ver Júlia ser exibida em um programa televisivo matinal como signo da beleza negra. Seu longo cabelo crespo era novamente foco da atenção. Nesse programa específico, ela não dançou. Mas foi comum vê-la, bem como a outras bailarinas contratadas pelo circo, dançando em programas de auditório ou em shows de artistas famosos. Esses encontros súbitos com Júlia aconteceram até pouco depois de ela ter viajado para os Estados Unidos. As gravações a faziam estar presente no Brasil e nos Estados Unidos. Sua imagem não era exibível apenas no contexto circense norte-americano, já que seu corpo circulava e repetia-se enquanto beleza e virtuosidade verossímeis.

Interessa sinalizar que o fato de Júlia “fazer o perfil” do show entranha-se em dinâmicas que dizem respeito aos discursos, padrões estéticos e técnicos globalizados que trazem à vida certos sujeitos e no interior dos quais é cultivada a atenção a si. Quando adicionei Júlia no facebook, notei que ela costumava postar fotos acompanhadas por variações da legenda “#blackgirl, #beauty, #loveit, #happiness, #dancer”. Essas imagens e palavras não eram banais, pois diziam sobre o modo como essa dançarina se apresentava aos outros e percebia a si. Os ícones em que ela se inspirava combinavam a valorização da identidade negra ao sucesso profissional em seu ramo de trabalho: Alvin Ailey e Beyoncé. A relevância desta última artista na vida de Júlia tornou-se clara quando soube que ela e dois dançarinos aprovados no teste do circo participaram, em 2013, de um workshop ofertado em uma famosa escola de dança carioca por profissionais de dança que trabalhavam com Beyoncé. Não bastava para Júlia tomar certos ícones como relativos a si. Era preciso que ela participasse de workshops, visando habilitar a si mesma a fazer de seu próprio corpo um objeto de exibição. A materialização de um sujeito-corpo óbvio resulta, por conseguinte, da produção da semelhança entre sujeitos e ícones por intermédio das práticas de si e das técnicas artísticas e empresariais que atuam na confecção do belo e de suas fronteiras. O processo de subjetivação aqui descrito não se reduz ao universo profissional em que Júlia circula, afinal, milhares de pessoas vivem e consomem os mesmos discursos que ela, mas é amplamente impulsionado por ele. A obviedade é uma identificação profunda com as normas de exibição, uma sujeição vivida enquanto trabalho cotidiano realizado em nome da glória.

Considerações finais

Através de Júlia vejo emergir um nexo entre a noção de “energia brasileira” como potência para excitabilidade de plateias norte-americanas e a constituição de uma força de trabalho eficaz porque criada em consonância a padrões estéticos e técnicos globalizados. Estamos frente a um processo de produção moral da identidade nacional que é indissociavelmente uma economia dos corpos belos e produtivos. A própria ideia de “energia brasileira” é, nesse sentido, a designação de uma força de trabalho sui generis. As dinâmicas descritas sugerem que o “algo mais da brasilidade” somente podia ser exaltado na medida em que a virtude dos dançarinos e das dançarinas fosse não apenas cotidianamente trabalhada, mas também reconhecida durante a audição.

O apelo à brasilidade se transformou ao longo dos últimos 15 anos, mas essa transformação manteve um princípio moral ordenador: a sexualização dos corpos não era compatível com uma empresa familiar e com a infantilização do público. Quando as/os “international folkloric dancers” surgiram, o Brasil continuou sendo o país onde as audições aconteciam e a afetividade seguiu sendo exigida e produzida. Embora os catálogos sugerissem a diversidade das nacionalidades, as brasileiras e os brasileiros eram maioria. O “conhecimento ordinário” da efetividade desses corpos garantiu a empregabilidade desses bailarinos e bailarinas ainda que outros fatores pudessem estar em jogo.

Acredito ser possível interpretar essas dinâmicas em relação ao mercado do sexo (Piscitelli, 2013Piscitelli, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro, Eduerj, 2013.) porque em ambos os casos existe um vínculo profundo entre diversidade e singularização. Se os clubs espanhóis ofertam a seus clientes uma variedade de corpos femininos, o circo parece querer fazer o mesmo ao propalar a partir de 2007 a categoria “international”. “Folkloric”, por sua vez, é o termo que aponta a necessidade de singularização. Enquanto no caso circense essas dinâmicas redundam numa celebração pública das diferenças de ordem nacional, nos clubs existe uma escala de valorização dos corpos capaz de situar as mulheres negras africanas no extremo inferior e homogeneizar, sob certas circunstâncias, brasileiras e colombianas enquanto latinas. Não estou querendo dizer que seja impossível reconhecer hierarquias nos modos de apresentar corpos e países no circo, e sim que as estratégias empresariais buscavam produzir continuamente uma espécie de festa multicultural na qual a diferença aparece como valor comercial. Talvez tenha sido isso o que minha mãe e suas amigas queriam me dizer ao não aceitarem que eu recriasse em 2012 os seus postos de trabalho como fruto de uma marcha colonial. Assim, elas me fizeram perceber, novamente em paralelo ao mercado do sexo, que “a incorporação da diversidade é acompanhada pela tendência a controlá-la mediante a homogeneização da produção corporal” (Piscitelli, 2013Piscitelli, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro, Eduerj, 2013.:196), isto é, mediante ícones, estéticas e técnicas que trazem à vida dançarinos e dançarinas virtuosos. A diversidade reclama um padrão global.

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  • Waicquant, Loic. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro, Relume Dumurá, 2002.
  • 1
    A empresa circense sobre a qual escrevo é o resultado de operações de compra e venda que recuam muito no tempo. Dentre os muitos circos que existiram nos Estados Unidos do século XIX, dois deles se tornaram um só em meados do século XX. No século XXI, uma família de empresários potencializou a existência dessa empresa ao atrelá-la a uma incorporação, cujos empreendimentos no mercado do entretenimento global são frequentados, a cada ano, por milhões de pessoas. Os empreendimentos dessa incorporação já cruzaram 75 países, o que inclui o Brasil.
  • 2
    As questões metodológicas relativas ao vínculo maternal que tornou possível a minha pesquisa enquanto filho nos bastidores do circo, bem como a análise dos laços que estabeleci em campo com aqueles que me queriam bem por querem bem a minha mãe, podem ser encontradas em Rangel (2016)Rangel, Everton. Circulando como filho: etnografando relações familiares através dos bastidores de uma empresa circense. Revista de @ntropologia da UFSCAR, vol. 8, n° 1, São Carlos-SP, 2016, pp.147-163.. Defendo ali a possibilidade de “forjar conhecimento sobre o cotidiano da relação entre familiares (...) a partir da posição de filho. Se a noção de posição refere-se não apenas a um lugar de fala, mas qualifica também experiências de vida particulares, então o que está em questão, como demarca Rosaldo (1993)Rosaldo, Renato. Culture and Truth: the remaking of social analysis. Boston, Beacon Press, 1993., são os tipos de insight que determinadas posições habilitam” (Rangel, 2016Rangel, Everton. Circulando como filho: etnografando relações familiares através dos bastidores de uma empresa circense. Revista de @ntropologia da UFSCAR, vol. 8, n° 1, São Carlos-SP, 2016, pp.147-163.:149-150). Aqui, esses insights dirigem-se menos ao conhecimento das relações que os facultaram do que ao conhecimento das normas que constituíram a viabilidade da presença de familiares, amigos e outros no circo.
  • 3
    As expressões em colchetes são acréscimos ou deslocamentos produzidos por mim.
  • 4
    Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por Bultler (2008), Saba Mahmood (2005)Mahmood, Saba. Politics of Piety. The Islamic revival and the feminist subject. Princeton, Princeton University, 2005. infere que há uma inclinação dualista na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora por sua subversão. O problema estaria no fato de a agência ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso não delimitar a priori os modos de agência, já que eles revelam-se não apenas como uma capacidade de resistir ou subverter, mas também como algo que se realiza nas múltiplas maneiras de habitar as normas. Partindo desse ponto de vista, a autora demonstrou em seu livro Politics of Piety (2005) como mulheres adeptas a um movimento político religioso no Egito trabalhavam sobre si mesmas de modo a constituírem as suas condutas como virtuosas.
  • 5
    Em dois trens privados de mais de um quilometro e meio de extensão, duas unidades do circo percorrem em direções opostas o território dos Estados Unidos e algumas cidades do México. Residem nesses trens artistas, funcionários e familiares. Animais também são transportados nesses veículos: elefantes, cavalos, cachorros. Tigres e leões são levados de uma cidade a outra em automóveis. Na terceira e menor unidade, os artistas e demais membros da companhia circense viajam de ônibus e residem em hotéis.
  • 6
    In Rio, waiters, cabbies – everybody samba. I’m thrilled by the talent and energy of these young Brazilians”. Todas as traduções efetuadas ao longo deste artigo são de responsabilidade do autor.
  • 7
    A maioria das brasileiras aprovadas nas audições do circo estava acima dos 18 anos e abaixo dos 30. Não são muitas aquelas que imigraram sendo mais velhas e são poucas as que continuaram nos shows como bailarinas após os 30 anos de idade.
  • 8
    It was a great thrill to work with these girls and watch them involve into such a dynamic and passionate group”.
  • 9
    Dentre os 14 catálogos que estimo terem sido publicados entre 2001 e 2014 (um para cada turnê de dois anos das duas maiores unidades do circo), consegui ter acesso a nove deles.
  • 10
    Com esse tipo de visto, essas profissionais de dança estavam atreladas à companhia na qual trabalhavam e não podiam prestar serviços para nenhuma outra empresa em solo norte-americano.
  • 11
    Charism, energy and attitude that we find just here”.
  • 12
    We love sharing the positive energy that makes you want to smile, clap, shake in your seat, or dance with us”.
  • 13
    Watch the bodacious beauties ladies dance with the other fabulous females”.
  • 14
    The dazzling dance troupe, who hail from all over the world, including Brazil, Russia, England and the U.S. They can hip-hop, samba, and tumble – and they can jump rope, too!”.
  • 15
    Nesse material, bailarinos e bailarinas aparecem divididos em duas linhas ou filas (a primeira está agachada; a segunda de pé), vestindo figurinos não associáveis ao Brasil (vestidos brilhantes, capas, calças coloridas e ornamentos, como chapéus que imitam cabeças de cavalo). Todos sorriem.
  • 16
    Aproximadamente 140 bailarinos e 50 bailarinas participaram do processo seletivo.
  • 17
    “To clarify this paradox, we might consider the example of a virtuos pianist who submits herself to the often painful regime of disciplinary practice, as well as to the hierarchical structures of apprenticeship, in order to acquire the ability - the requisite agency - to play the instrument with mastery. Importantly, her agency is predicated upon her ability to be taught, a condition classically referred to as "docility." Although we have come to associate docility with the abandonment of agency, the term literally implies the malleability required of someone in order for her to be instructed in a particular skill or knowledge - a meaning that carries less a sense of passivity than one of struggle, effort, exertion, and achievement” (Mahmood, 2005Mahmood, Saba. Politics of Piety. The Islamic revival and the feminist subject. Princeton, Princeton University, 2005.:29).
  • 18
    They know who they are”.
  • 19
    This is not a class, girls. It’s show time. Do your best!”
  • 20
    Refiro-me a Bailey em sua defesa das emoções como dispositivos de persuasão. Diz o autor: “a exibição de emoções é (entre outras coisas) também modos de suscitar confiança” (Bailey, 1983Lobert, Rosemary. A palavra mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes. São Paulo, Editora Unicamp, 2010.:12).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2016
  • Aceito
    04 Set 2017
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