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Uma trama engenhosa: A montagem do Congresso Internacional de Engenharia, em 1922, e as relações diplomáticas entre o Brasil e o grupo McGraw-Hill

Resumo

Em 1922, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro tornou-se organizador do Congresso Internacional de Engenharia, idealizado por Verne Leroy Havens, editor-chefe da revista Ingeniería Internacional, publicação em espanhol do grupo estadunidense McGraw-Hill. Tomando esta revista como moldura analítica, conseguimos compreender, também, uma trama social que envolveu sua circulação pelo continente, pavimentando uma rota de relações profissionais e de cultura técnica em perspectiva transnacional. Ainda foi possível perscrutar as intenções que levaram à realização deste Congresso, e como o Clube de Engenharia foi demandado pelo governo brasileiro a assumir tal empreitada, de maneira que contribuísse, diplomaticamente, com os Estados Unidos e, consequentemente com os interesses comerciais daquela nação com os demais países do continente, em tempos prévios à Política da Boa Vizinhança.

Palavras-chave
Congresso Internacional de Engenharia; Clube de Engenharia do Rio de Janeiro; história transnacional

Abstract

In 1922, the Engineering Club of Rio de Janeiro hosted the International Engineering Congress. The organizing committee was headed by Verne Leroy Havens, editor-in-chief of the Spanish language Ingeniería International magazine which was published in the US by McGraw-Hill. The magazine's broad circulation was a framework through which a transnational perspective can help us to understand this organization and its social fabric as it stretched across the continent and created an enduring network of industrial relations and technical culture. For its part, the Engineering Club was compelled by court order and the Brazilian government to organize and host the event. Diplomatic and economic relations with the United States were at stake, together with those of the other major South American countries. The motives and maneuvering behind this Congress in these days before the Good Neighbor Policy can still be glimpsed.

Keywords
International Engineering Congress; Engineering Club of Rio de Janeiro; transnational history

O trabalho de promover o bom senso internacional entre nossa nação e os países pan-americanos [sic] terá o apoio agressivo do engenheiro sul-americano. Os resultados do Congresso Internacional de Engenharia são uma base sobre a qual pode ser construído um trabalho efetivo e permanente. Nada menos que um programa dedicado ao bem público formará uma base para trabalhos futuros aceitáveis aos ideais dos engenheiros dos dois continentes.1 1 The Mechanical Engineering, vol. 45, n. 1, p.74, 1922.

Esta epígrafe, retirada do relatório preparado por Calvin W. Rice, e publicado numa das revistas de maior circulação nos Estados Unidos, entre engenheiros, permite-nos focar os assuntos que queremos abordar neste artigo: as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, de maneira a atingir, também, a América Latina, em tempos prévios à explicitação da política da Boa Vizinhança. Para tanto, tomaremos como foco uma revista: a Ingeniería Internacional, criada em 1919 pelo grupo yankee McGraw-Hill, com o objetivo de aproximar-se da América Latina visando divulgar notícias técnicas e avanços tecnológicos do campo da engenharia, mas, também, para cristalizar um caminho que os Estados Unidos tinham conquistado com a I Guerra Mundial, e que incluíam obras e comércio de equipamentos para construção, para o arranjo fabril e para a reformulação do cotidiano, em especial a partir do ambiente doméstico.

Abordaremos, ainda, um dos alvos desta revista: o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, fundado em 1880, e aglutinador de algumas centenas de sócios das áreas da engenharia, arquitetura, geografia e diversos ramos da indústria (Marinho, 2008MARINHO, Pedro Eduardo M. de M. Ampliando o Estado Imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista (1874 - 1888). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008.). Esses profissionais exerceram, já na última década do Império e, depois, nas primeiras da República, papel importante nas negociações a respeito da modernização das cidades e do território do Brasil, e acabaram sendo vistos como viabilizadores da presença europeia, latino-americana e estadunidense nos negócios urbanos do país (Atique, 2016ATIQUE, Fernando. Conrado Jacob de Niemeyer e a organização de uma rede de interesses e de atuações profissionais por meio do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro. Proceedings of the 34 th LASA. New York: LASA, 2016.).

Amalgamando as relações entre o grupo McGraw-Hill e o Clube de Engenharia, iremos analisar a engenhosa trama social que levou à criação do Congresso Internacional de Engenharia, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1922, como parte das comemorações do Centenário da Independência do Brasil. Desta maneira, estamos procurando compreender como esses três objetos de investigação foram interdependentes e como permitiram a eclosão de relações profissionais que afetaram diversas dimensões (políticas, econômicas, profissionais e urbanas) nas Américas. Por esta razão, percebemos que os objetos que estamos analisando, ao mesmo tempo que promovem conhecimento histórico sobre assuntos pouco conhecidos, ainda permitem um exercício de teoria da história interessante, que é o de analisar, como tem defendido o historiador Thomas Bender (2002, p.8)BENDER, Thomas. Introduction: Historians, the Nation, and the Plenitude of Narratives. In: BENDER, Thomas. Rethinking American History in a Global Age. Los Angeles: University of California Press, 2002. "mundos sociais interagindo uns com os outros". Analisemos, então, a primeira das dimensões que queremos abordar neste artigo: a revista Ingeniería Internacional.

Revista à América Latina: as intenções da Ingeniería Internacional

O editorial do primeiro número da revista Ingeniería Internacional, publicado em abril de 1919, dizia que [havia, naquele ano] "nas Filipinas, América Latina e Península Ibérica, mais de 100 milhões de pessoas que [falavam] espanhol como sua língua materna, ou que compreend[iam] o idioma perfeitamente devido à sua ilustração".2 2 Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.1, 1919 Estes dados tendiam a justificar a criação da revista pelo grupo estadunidense McGraw-Hill. Criado em 1909 pela associação de dois empresários do setor editorial, James H. McGraw, que começou sua atividade jornalística em 1888, e John A. Hill, que começou a publicar em 1902,3 3 Wikipedia. McGraw-Hill Education. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/McGraw-Hill _Education. Acesso em 08 out. 2017. a empresa forjou novas revistas e material didático - em especial, técnico -, como, também adquiriu empresas e títulos concorrentes pelos Estados Unidos. A lista de publicações da área de engenharia que o grupo editava e distribuía ao redor do globo, em 1919, nos fornece a exata dimensão do alcance da editora. Naquele ano, constava do catálogo do grupo as revistas Electric World, American Machinist, Power, Engineering and Mining Journal, Electrical Merchandising, Coal Age, Chemical and Metallurgical Engineering, Engineering News-Record, Electric Railway Journal e Journal of Electricity.4 4 Revista do Clube de Engenharia, p.287, 1922.

A intenção do grupo com a nova revista era alcançar leitores de língua espanhola. Torna-se importante perceber que após a I Guerra Mundial, o mercado editorial dos Estados Unidos, embora também ressentido dos impactos do conflito, conseguiu continuar publicando e distribuindo revistas numa velocidade superior às editoras da Europa, em período de reconstrução. Houve, em nossa interpretação, um incremento no número de leitores, de fato, das revistas de procedência yankee. Como explicita o editorial de lançamento da Ingeniería Internacional,

o esforço para a produção desta publicação internacional tem sido grande; mas tem sido realizado graças à fé que o povo dos Estados Unidos tem na habilidade de seus amigos de fala espanhola, tanto os próximos quanto os distantes dentro dos limites naturais dos recursos de seus respectivos países, e no desenvolvimento fenomenal do intercâmbio comercial entre esses povos e os Estados Unidos.5 5 Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.1, abr. 1919.

Com atuação em diversos países das Américas desde meados do século XIX, incrementada durante o conflito da década de 1910, os Estados Unidos perceberam ser necessário vender produtos (por meio de catálogos), e aliançar-se com os vizinhos continentais, retomando princípios que, se já eram presentes na Doutrina Monroe, não tinham rendido frutos na quantidade almejada no campo da engenharia. Este intuito de aproximação estava presente no grupo McGraw-Hill nos anos que se seguiram ao fim da Guerra.

No mesmo número de lançamento da revista foi publicado um artigo assinado por John Barrett. Este senhor, à época, Diretor Geral da União Pan-Americana, e ex-embaixador dos Estados Unidos no Panamá, na Colômbia e na Argentina, definiu o que ele entendia por pan-americanismo: "a cooperação de todos os países e povos das Américas, para seu bem comum e, portanto, para o bem de cada um deles separadamente".6 6 BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.5, abr.1919. Barrett, chamado a referendar as boas intenções da revista, também apontava para o campo aberto que a América, do México à Argentina, oferecia ao engenheiro estadunidense:

Os engenheiros dos Estados Unidos, e os interesses que os apoiam, deveriam estudar o campo latino-americano, e estar prontos para cooperar de qualquer maneira que puderem, com seus amigos da América Latina a fim de obter os melhores resultados que a todos correspondem. Ponderamos o fato de que os vinte países latino-americanos ocupam uma superfície de dois mil e trezentos hectares, ou seja, aproximadamente três vezes toda a área dos Estados Unidos e, sem dúvida, o desenvolvimento da engenharia moderna progressista dificilmente se iguala em todos esses países ao que se tem realizado nos Estados Unidos. Isto não é uma reprimenda à América Latina, somente a expressão da sua potencialidade e oportunidade.7 7 BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.

Uma pergunta que se depreende da leitura do texto de Barrett é: "de que maneira uma revista que estava sendo lançada em espanhol, poderia favorecer o trabalho do engenheiro estadunidense nas demais áreas das Américas, se, de fato, o profissional dos Estados Unidos não a entendia?" O artigo de Barrett desvela que, mais do que favorecer o trânsito de notícias e realizações da América Latina pelas páginas da revista - isto também aconteceria -, a Ingeniería Internacional procurava ser um "mostruário" das práticas e do pensamento dos americanos no campo das engenharias, capazes de serem aplicados - como investimento - nos demais países americanos. A Ingeniería Internacional era um veículo de tradução e de aplicação da engenharia e dos empresários americanos para os países de língua espanhola, em especial, os da América Latina. Dessa maneira, não parece ser nenhum "ato falho" estar presente no artigo a expressão "os interesses que os apoiam", em alusão a instituições e capitais provenientes dos Estados Unidos. Esta percepção torna-se mais clara à medida que lemos que:

Se a América Latina tivesse tido as vantagens de situação, capital e investimentos que tem gozado os Estados Unidos, poderia ter tido a mesma história de progresso. É somente uma questão de tempo para que cada país latino-americano tenha igualada sua situação a cada um dos países da união americana.8 8 BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.

O artigo termina deixando mais explícita a ideia de uma "reciprocidade" dúbia, pois apresenta os Estados Unidos como ponto de emanação de capitais, saberes e interesses, e a América Latina como um território a ser desenvolvido e, por isso, a ser, também, grato pelos saberes que poderiam chegar pelas mãos dos estadunidenses. Barrett explicitou da seguinte maneira este raciocínio:

A América Latina é tão rica de recursos variados, de terras baixas e altas, de climas e, em geral de todas as possibilidades, que certamente é um campo fascinante para os trabalhos de engenharia. Em construção de ferrovias, em desenvolvimento de força hidráulica, em construção de bons caminhos, no aproveitamento de grandes superfícies para a agricultura, em explorações de madeiras e em minas, ninguém pode prever o futuro, exceto que contém atração infinita para o engenheiro e para o capital legitimamente investido em benefício do país onde se aplica e para os interessados dos Estados Unidos que enviem seu dinheiro para a América Latina. Por sua vez, os engenheiros da América Latina e todos aqueles que se ocupam do desenvolvimento da engenharia deverão apreciar a boa vontade com que receberão seus estudos pelos engenheiros, colégios e instituições nos Estados Unidos, e por sua vez, possam utilizar a experiência, interesses, e instituições de engenharia dos Estados Unidos para o verdadeiro progresso das relações e cooperação da engenharia pan-americana. Deverá existir um espírito de reciprocidade e cooperação que seja para benefício de todos.9 9 BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.6.

Torna-se importante, nesta tarefa de reavaliação das estratégias continentais, perceber como esta publicação, apoiada pela União Pan-Americana, enxergava o campo da engenharia. Barrett grafou, no artigo, que a "engenharia" era, "tem sido e sempre será um dos maiores fatores de desenvolvimento latino-americano e de boa vontade mútua".10 10 BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.

Com este referendo da União Pan-Americana, a Ingenieria Internacional começou sua tarefa de aproximação com os latinos. Seu editor, o engenheiro Verne Leroy Havens,11 11 Verne Leroy Havens nasceu em Atlantic, Iowa, em 17 de junho de 1881. Era filho de Rial Washington Havens e de Fanny Elizabeth Havens. Diplomou-se em engenharia - possivelmente civil -, por volta de 1905, na University of Nebraska. Também estudou na Universidade do México e na George Washington University. Foi casado em primeiras núpcias com Emilia Fernandez, falecida em 1924. Teve uma segunda união com Alice Holbert. Não deixou filhos. Segundo o obituário publicado pelo The New York Times (14 ago. 1944, p.15), foi membro da ASCE e ajudou a construir o serviço de transporte público da Cidade do México. possuía experiência como adido comercial na Embaixada Americana em Santiago do Chile, e já havia publicado pelo menos duas obras em espanhol antes de assumir a empreitada. Seu livro mais conhecido12 12 A outra obra de Havens, de 1916, era intitulada Markets for American hardware in Chile and Bolivia, e tinha sido publicada pelo United States Bureau of Foreign and Domestic Commerce, numa série de títulos semelhantes. Seu trabalho era o de número 41 da série. até aquele momento era o Ingenieria de Ferrocarriles, la teoria fundemental de ferrocarriles, desde la concepcion de la idea hasta la terminación del trazo, publicado em 1917, em Nova York. Este livro intentava uma aproximação com o público latino, embora, uma resenha publicada nos Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, em 1918, apontasse que ela não era adequada para "o desenvolvimento de teorias ou discussão de princípios, nem tão pouco [para] detalhes ou soluções técnicas", sendo "um conjunto de observações práticas destinadas ao engenheiro encarregado do estudo de uma nova ferrovia".13 13 Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, ano XVIII, n. 2, p.96, fev. 1918.

Não sabemos como Havens se aproximou do grupo editorial,14 14 Foi possível encontrar uma nota referente a tal feito na revista da universidade de Nebraska, na edição referente aos ex-alunos University Journal [Alumni Edition], vol. 15, n. 3, p.15, jul. 1919. mas ponderamos que sua experiência no serviço diplomático e no desenvolvimento de projetos de grande envergadura em países do continente contribuiu para sua contratação. Na folha de rosto de seu citado livro sobre ferrovias, Havens apresentou-se15 15 American Machinist publicou um breve Curriculum Vitae de Havens: "1905 - Divisão de Engenharia, construção pesada em montanha, Mexican Central Railroad. 1906 - Engenheiro assistente, Mexican Light & Power Co. 1907 - Reconstrução da seção "downtown" da Havana Elextric Railway. 1908-1911 - Engenheiro-Chefe, México Light & Power Co., Mexico Tramways Co., Mexico Steel & Chemical Co., Pachuca Irrigation & Power Co. 1913-1914 - Consultor geral de obras; relatórios para financiamentos ferroviários na América do Sul; investigações de condições econômicas. 1915-1917 - Adido comercial na Embaixada Americana, Santiago, Chile". American Machinist, vol. 57, n. 14, p.2, 5 out. 1922. como

Membro da American Society of Civil Engineers; em distintas épocas, engenheiro de reconhecimento, traçado, construção e conservação de ferrovias nas Américas do Norte, Central e do Sul. Construtor de vias elétricas e obras de irrigação; attaché comercial na Embaixada Americana no Chile, e, às vezes, encarregado de estudos especiais na Argentina, pelo Ministério de Comércio dos Estados Unidos.16 16 HAVENS, Verne Leroy. Ingeniería de Ferrocarriles: la teoria fundemental de ferrocarriles, desde la concepción de la idea hasta la terminación del trazo. New York: John Wiley & Sons, 1917.

Verne era celebrado por, supostamente, dominar o idioma em que a revista era publicada. O jornalista brasileiro, Sebastião Sampaio, escrevendo à revista do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, em 1922, fez questão de frisar que

O Sr. Verne Leroy Havens, Director e redactor-chefe da "Ingenieria Internacional", não é somente um ilustre jornalista americano, mas um technico de reconhecida competência no alto posto que ocupa. S.S. já exerceu cargos diplomáticos em Embaixadas e Legações do seu paiz na Europa e na America do Sul, conhecendo perfeitamente o Rio de Janeiro, fazendo-se entender sufficientemente em portuguez e falando muito bem o hespanhol.17 17 SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. Revista do Clube de Engenharia, p.287, 1922.

A opinião de Sampaio não era compartilhada pelo incerto engenheiro T.S.G., autor da já citada resenha do livro de Havens, publicada nos Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, em 1918. Para aquele resenhista, o livro possuía "vários defeitos de elaboração ou mesmo de uso de palavras impróprias, os quais devem ser desculpados pela ausência de conhecimento completo do idioma pelo autor". Segundo a resenha, isto prejudicava "o julgamento preciso sobre algumas ideias ou conceitos", embora a obra tivesse "espírito e utilidade" inegáveis, devendo ocupar lugar na "biblioteca dos engenheiros responsáveis pelo estudo de novas ferrovias."18 18 Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, ano XVIII, n. 2, p.96, fev.1918.

Em todo caso, o grupo McGraw-Hill considerava Havens o editor "talhado" para o cargo. Em anúncios publicados em revistas do grupo, em inglês, como "O que Sr. Havens pode fazer por você no Brasil e na Argentina?"19 19 Bus Transportation, p.38, ago. 1922. e, ainda: "Comércio de Exportação pode ajudar a América agora",20 20 Printer's Ink, p.30-31, 4 nov. 1920. o editor de Ingeniería Internacional era apresentado como um hábil estrategista a serviço de sua nação. Neste sentido, a citação a seguir, traduzida do anúncio publicado em Bus Transportation, apontava os predicados de Havens e revelava algumas das motivações de Ingeniería Internacional em participar dos eventos que o Brasil teria em setembro de 1922:

A McGraw-Hill está interessada, como você está interessado, no desenvolvimento e expansão do comércio americano. Os problemas do industrial americano são nossos problemas. Por esta razão, Verne Leroy Havens, editor-chefe de Ingeniería Internacional, navegará em 5 de agosto para participar da Exposição Internacional do Centenário do Brasil e do Congresso Internacional de Engenharia no Rio de Janeiro, o qual será aberto em setembro. Você, como um leitor do [grupo] McGraw-Hill e um homem de negócios dos Estados Unidos, está representado pelo sr. Havens por meio de Ingeniería Internacional. E habilmente representado. Sr. Havens é bem conhecido do industrial americano por seu importante número de realizações durante os muitos anos de supervisão e investigação econômica nas Américas do Sul e Central. Ele fez muitas investigações de mercado para o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, em vários países sul-americanos. A viagem que ele está prestes a encetar será a segunda pela Ingeniería Internacional, num período de dois anos. A viagem do Sr. Havens servirá para fortalecer ainda mais os vínculos de boa vizinhança que temos construído por mais de três anos. Esta viagem fará de Ingeniería Internacional, mais do que nunca, o meio de comunicação entre as grandes necessidades do mercado sul-americano e o mercado dos Estados Unidos. Boa vontade internacional e bons negócios internacionais para a indústria dos Estados Unidos resultarão desta jornada do Sr. Havens. Você, como um empresário dos Estados Unidos, colherá os benefícios de nossas contínuas atividades em favor dos negócios americanos na América Latina e na Espanha [grifos meus].21 21 Bus Transportation, vol. 1, n. 4, p.11, 1922.

Estas intenções, aparentemente nacionalistas, não devem ser vistas sem que antes consultemos as páginas da revista Ingeniería Internacional. Como o leitor das diversas publicações do grupo McGraw-Hill era diferente, pudemos perceber que estrategicamente eram produzidos editoriais de maneira a atrair leitores de língua espanhola, e, pari passu, conseguir anunciantes estadunidenses para as revistas, em especial, para a Ingeniería.

O editorial desta revista, de junho de 1922, ou seja, de três meses antes da abertura do Congresso Internacional de Engenharia, no Rio, expunha que a "a necessidade de relações mais estreitas entre todos os engenheiros [era] clara" naquele momento. Isto, porque

mais vale um conselho entre muitas [pessoas] que um modo de pensar rotineiro. E um conselho de muitos somente pode-se obter quando os melhores engenheiros de todos os países possam se reunir e conhecer-se, uma vez que a inteligência e a energia não estão limitadas por fronteiras artificiais.22 22 Ingeniería Internacional, vol. 7, n. 6, s/p., jun. 1922.

A expressão empregada pelo redator da revista, G.B. Puga, de que as fronteiras eram artificiais, demonstra um ideal transnacional avant la lettre. Mas, de fato, sabemos que esta compreensão internacional, sem fronteiras, presente no próprio título da revista, intentava criar um comércio de equipamentos americanos para vários mercados. Em um editorial da revista, publicado em novembro de 1921, pudemos compreender este malabarismo:

Dizemos que a ciência não tem fronteiras, e comumente se crê que o conhecimento técnico de um país é um livro aberto para todo o mundo. Esta é uma teoria charmosa, mas um dos resultados mais surpreendentes das visitas feitas a países distintos do próprio é encontrar a ignorância colossal que cada um de nós tem a respeito da tecnologia que se pratica em outros países. (...) Não há povo que possa inventar tudo, pois isto seria como se toda a inteligência do mundo estivesse em um país.23 23 Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, s/p., 1921.

O trecho acima nos mostra como a revista Ingenieria Internacional insistia na ideia de um dado não-geográfico do conhecimento, e como cria que o conhecimento técnico deveria ser produzido mediante o intercâmbio de conhecimentos:

A verdadeira missão de uma revista internacional é oferecer um meio pelo qual cada povo possa dizer aos demais, que leem em seu próprio idioma, o que eles pensam e fazem na aplicação dos diversos conhecimentos humanos. (...). Não basta que troquemos mercadorias com valor igual com o fim de progredirmos. Se dou a você um peso, e você me dá um peso, teremos, ambos um peso, mas se dou a você uma ideia e você me dá outra, ambos teremos duas ideias, isto é: seremos mais ricos. Esta é, pois, a base de sua revista tecnológica, e se os subscritores desejarem, ela pode ser o meio de destruição das fronteiras imaginárias entre as mentes dos engenheiros e construtores, os quais têm o dever e o desejo de fazer do mundo um lugar mais agradável para se viver.24 24 Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, s/p., 1921.

Este editorial revelava duas situações: que a revista estava aberta a divulgar feitos notáveis verificados na América Latina, e que pregava a reunião de profissionais como forma de conhecimento. Aparentemente, Ingeniería Internacional advogava uma intenção de congraçamento, de auxílio mútuo e de diálogo, os quais foram peça-chave, enquanto discurso, para a organização do Congresso Internacional de Engenharia que propôs ao governo brasileiro e que, efetivamente ajudou a organizar, em 1922.

Ventos do norte na idealização do Congresso Internacional de Engenharia

Já em seus primeiros anos, Ingeniería Internacional conclamava os engenheiros das Américas25 25 Embora também falasse de Espanha e Filipinas como localidades cobertas, a análise dos números publicados mostra um foco de mais de 85% de matérias sobre as Américas nas páginas do periódico. a se encontrarem para pensarem soluções e organizarem negócios, fugindo das "fronteiras artificiais". Não tardou para que esta "ideologia dos encontros" tomasse forma. No editorial de julho de 1921, a revista tornou pública a ideia de um Congresso Internacional de Engenharia:

muitos países novos necessitam de toda classe de indústrias. Será uma esperança ilusória? Será possível que depois da aplicação de formidáveis capitais, se venha a verificar em tais países a impossibilidade de um custo razoável de produção? Estas perguntas deverão ser respondidas pelo engenheiro. (...) Parece que chegou o momento (...) em que os engenheiros devam empregar mais largamente a sua atividade nos assuntos públicos. Ingenieria Internacional está agora em trabalhos preliminares com o fim de que se reúna uma Conferência Internacional de Engenheiros para que eles possam discutir seus problemas mais importantes.26 26 Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 1, p.52, jul. 1921.

O ideal de um evento pan-americano - por vezes repetidamente chamado de internacional -, e colaborativo, que permitisse intercâmbios permeou a revista por meses, até a realização do evento em 1922. Em novembro de 1921, a revista publicou:

Em resposta ao nosso editorial do mês de julho, temos recebido muitas cartas de engenheiros, sociedades técnicas e funcionários, algumas das quais publicamos aqui. Não há dúvida alguma que a reunião de um congresso internacional será de valor inestimável para todos os países que enviarem delegados e para a profissão que não tem tomado sua parte cabível nos problemas de economia e internacionais. Um congresso como o proposto não pode ser o trabalho de um único indivíduo. Seu êxito se deverá ao trabalho, apoio e interesse de cada um dos engenheiros e desejamos receber as opiniões de sociedades técnicas e outros interessados a respeito do lugar, tempo e programa do congresso.27 27 Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, p.294, nov. 1921.

A repercussão foi grande. Mediante diversas reproduções de fac-similes nas páginas da revista, percebeu-se como os profissionais da área técnica da América Latina ansearam por um espaço de interlocução. Sociedades de Engenheiros e de Arquitetos, como a Mexicana, a Peruana, a Chilena e a Cubana enviaram cartas saudando a iniciativa. Entretanto, até princípio de 1922, não havia sido definido o local em que tal Conferência seria realizada. Falava-se em "algum lugar na América do Sul", sem, contudo, especificarem onde. Conforme matéria assinada pelo adido comercial na embaixada brasileira em Washington D.C., Sebastião Sampaio, a revista Ingeniería Internacional havia pensado, primeiramente, "em convocar o Congresso de Engenharia em Lima, no anno passado [1921], aproveitando a commemoração do Centenario do Perú [sic], o que não foi feito por falta de tempo".28 28 SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. Revista do Clube de Engenharia, p.288, 1922.

O texto de Sampaio permitiu-nos perceber que quando da publicação do editorial propondo o Congresso Internacional de Engenharia, em julho de 1921, a revista já havia tentado realizar o evento no Peru. Malogrando a iniciativa, Havens percebeu que outra efeméride seria valer-se da Exposição Internacional do Centenário do Brasil,29 29 Na edição de novembro de 1921, a Ingeniería Internacional publicou uma breve nota informando que o Presidente dos Estados Unidos havia recebido o convite formal para tomar parte na Exposição do Centenário da Independência do Brasil. Ingeniería Internacional, vol. 6 n. 4, p.317, nov. 1921. que já estava em organização, e, também, aproveitar a realização do Congresso Ferroviário Sul-Americano, que ocorreria no Rio de Janeiro, paralelamente à Exposição, a despeito de o comitê central estar sediado na Argentina.30 30 No texto que publicou na Revista do Clube de Engenharia, Sebastião Sampaio frisou que nos Estados Unidos, sabia-se "que o Congresso Sul-Americano de Estradas de Ferro também [fora] convocado para setembro (...), e no Rio de Janeiro. Os engenheiros americanos est[avam] encantados com a idéa de que poderão também assistir a essa importante reunião internacional" (SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. p.287). Sampaio, a este respeito, grafou que "a escolha do Rio de Janeiro é (...) definitiva, como se vê por varias cartas do Sr. Havens, adhesões [sic] de varias sociedades de engenharia e outros documentos enviados ao Club de Engenharia".31 31 SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. p.289.

A maneira como o Clube de Engenharia foi demandada para se envolver com o Congresso merece destaque.

Anfitrião por demanda: o Clube de Engenharia na organização do Congresso Internacional

A Revista do Clube de Engenharia, em edição especial lançada em 1922, listou as movimentações da revista coirmã, Ingeniería Internacional, visando a realização do Congresso Internacional de Engenharia, no Brasil. A publicação brasileira mostrou que a notícia sobre o evento chegou até o Clube mediante oficio do embaixador brasileiro em Washington D.C., Augusto Cochrane de Alencar, datado de 17 de janeiro de 1922. No ofício, o embaixador relatava ter tido uma reunião com Verne Leroy Havens, na embaixada brasileira em D.C., na qual, o editor da revista estadunidense apresentara o projeto de congresso que deveria ocorrer em setembro, junto com a abertura das comemorações oficiais do Centenário da Independência. O embaixador ainda relatou que Havens almejava que o embaixador conseguisse apoio do governo brasileiro, e demandasse o Clube de Engenharia a encampar tal iniciativa. No ofício, o diplomata brasileiro apresentava ao presidente do Clube de Engenharia suas impressões sobre a solicitação de Havens, alegando que

Pela importância da revista de engenharia que planejou tal projecto, pelo numero e qualidade das adhesoes em principio que ja começaram a chegar, penso que se trata de uma idéa viável, cujo alcance não passa despercebido a ninguém. Um Congresso Internacional de Engenharia bem organizado no Rio de Janeiro será sem duvida a base de uma nova phase de prosperidade econômica para o Brasil [sic].32 32 Revista do Clube de Engenharia, p.286, 1922.

Apensado ao ofício de Alencar, seguiu um dossiê preparado por Sampaio. Apresentado como "jornalista", Sampaio ocupava no serviço diplomático do Brasil, nos Estados Unidos, papel importante, pois era destinado a organizar e fomentar relações comerciais. Em 1926, segundo apontamentos sobre a história diplomática brasileira nos Estados Unidos, publicada em site do Itamaraty, Sampaio assumiu a direção do Consulado-Geral em Nova York, e "atuou junto ao mercado e ao público nova-iorquinos durante a crise do café e o crash da Bolsa, em 1929".33 33 Disponível em: http://novayork.itamaraty.gov.br/pt-br/historia.xml. Acesso: em 08 out. 2017. Esta ligação com comércio exterior, certamente permitiu com que Havens, que tinha tido a mesma função que Sampaio no serviço diplomático dos Estados Unidos, interagissem. O texto de Sampaio apresentava a revista Ingeniería Internacional - "publicação mensal de 150 a 200 páginas, grande formato, grande tiragem" -; qualificava o interlocutor - Havens não era "apenas um jornalista americano, mas um technico [sic] de reconhecida competência" -, e expunha que o convite que partia do editor do periódico era motivo suficiente para que o Clube de Engenharia aderisse ao "convite" que recebia, pois,

A circumstancia de ser a "Ingenieria Internacional" a única publicação do mencionado grupo [McGraw-Hill] que se edita numa das linguas da America Latina, e o facto de ser esse jornal uma das melhores revistas, senão a melhor revista internacional de engenharia publicada até hoje - são motivos especiaes que dão um grande relevo ao projecto do Congresso a realizar-se no Rio de Janeiro.34 34 SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia, p.286.

A narrativa de Sampaio mostra que os principais agentes diplomáticos do Brasil nos Estados Unidos foram mobilizados por Havens. Houve reuniões em Nova York entre ele, Sampaio e o cônsul Hélio Lobo; depois em D.C. entre Sampaio, Havens e o embaixador Augusto Cochrane de Alencar, até que, finalmente, em meados de janeiro de 1922, o Clube foi avisado das pretensões da revista e da embaixada brasileira nos Estados Unidos. O anfitrião fora, então, demandado a hospedar. Torna-se interessante a transcrição de uma carta enviada por Verne L. Havens a Sampaio. Ela nos permite compreender a mobilização do Clube de Engenharia:

Parace que o melhor meio de realizar o Congresso será apresentar esta suggestão ao Club de Engenharia, por intermedio da Embaixada Brasileira em Washington, e ao Club caberá agir da maneira que julgar mais conveniente para alcançar a approvação official do Governo brasileiro. O Projecto deste Congresso não envolve naturalmente nenhuma despeza [sic] da parte do Governo brasileiro. No caso de acceitar o encargo, o Club de Engenharia providenciará sobre [sic] o local para o Congresso, sua organização, visitas dos delegados aos mais notaveis trabalhos de engenharia do paiz, etc. A publicação dos mais importantes asssumptos do Congresso será feita com o maior interesse por "Ingenieria Internacional", que dará a essa materia um grande destaque. Cada delegado incumbir-se-há pessoalmente de suas despezas.35 35 Revista do Clube de Engenharia, p.286, 1922.

Torna-se importante perceber que o Clube de Engenharia recebeu essa documentação faltando pouco mais de 8 meses para o início dos festejos do Centenário. Tentamos compreender se houve reações contrárias à demanda oferecida pela revista dos Estados Unidos à tarefa de organizar um evento de tal envergadura, mas não achamos fontes até este momento. É possível que tenha havido resistências, contudo, a maneira como Sampaio encarregou-se de convencer o Clube nos demonstra que uma recusa por parte da instituição poderia acarretar um desconforto diplomático entre as nações envolvidas, algo que o governo de Epitácio Pessoa estava procurando evitar. Esta percepção fica nítida pelas repetidas vezes em que Sampaio fez alusão à importância do grupo editorial, da revista de engenharia e do autor do convite, mas, também, pela maneira como aproveitou para adular o Clube de Engenharia, ao mostrar que a instituição era conhecida internacionalmente, e bem colocada em matéria de membresia e de organização, o que "explicava" a demanda. Textualmente, Sampaio frisou que "conhecia os engenheiros de [seu] paiz," já que teria convivido com "os membros do Club de Engenharia", o que o tornava certo de que a entidade "não só [agiria], mas depressa, enviando pelo telegrapho os convites ás associações congeneres, e mais delegados do extrangeiro [sic]." A brevidade para a organização também era transformada em vantagem, pois, embora "o tempo que disp[unham fosse] escasso, (...) o Club de Engenharia [tinha] á sua frente um homem notavel [Paulo de Frontin] não só pela sua sciencia, mas pelo seu espirito emprehendedor [sic]".36 36 Revista do Clube de Engenharia, p.297, 1922.

Também devemos mostrar que a persuasão de Sampaio perpassou o fato de que "os americanos" já sabiam da iniciativa, uma vez que ele havia recebido carta do presidente da American Society of Mechanical Engineers - ASME - na qual expunha a crença de que "o congresso fornecer[ia] à America do Sul as últimas lições para o desenvolvimento e a conservação dos seus recursos naturaes [sic];" acrescentando "que tal reunião far[ia] o povo da América do Norte pensar na América do Sul e trabalhar por ela".37 37 Revista do Clube de Engenharia, p.297, 1922. Na mesma linha, Sampaio fez questão de frisar que o congresso teria um efeito de desenvolvimento pan-americano, e, para tanto, transcrevia as palavras do então Diretor da União Pan-Americana, L.S. Rowe, que considerava o "Congresso a reunir-se no Rio de Janeiro como um serviço internacional de primeira magnitude".38 38 SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia, p.294.

Com esta seleção de (im)pressões sobre o potencial da reunião, o Clube de Engenharia não teve, conforme interpretamos, como negar a organizar o evento, muito embora já estivesse mobilizado com a organização do Congresso Ferroviário Sul-Americano, que aconteceria em paralelo ao Congresso Internacional de Engenharia. Some-se a isto, o fato de o Clube já ter organizado congressos técnicos anteriormente, como mostram alguns dos seus estudiosos, como Fernanda Rodrigues (2017, p.19)RODRIGUES, Fernanda Barbosa dos Reis. Os engenheiros tomam partido: trajetórias e transformações no Clube de Engenharia (1874-1910). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, 2017., Pedro Marinho (2008)MARINHO, Pedro Eduardo M. de M. Ampliando o Estado Imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista (1874 - 1888). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. e Maria Inês Turazzi (1989, p.103)TURAZZI, Maria Inês. A euforia do progresso e a imposição da ordem: a engenharia, a indústria e a organização do trabalho na virada do século XIX ao XX. Rio de Janeiro: COPPE - UFRJ; São Paulo: Marco Zero, 1989..

Capitalizando a demanda: o Clube de Engenharia e os contatos americanos

Persuadido a organizar o evento, o Clube de Engenharia endereçou um ofício a Havens e à embaixada brasileira, notificando seu "aceite". Sebastião Sampaio continuou ativo na organização do evento, intermediando diversas etapas. O Clube de Engenharia informou que havia composto uma Comissão Executiva com alguns de seus membros: Gabriel Osório de Almeida (presidente), Álvaro de Niemeyer (secretário), Saturnino Gomes e Daniel Henninger. Gabriel Osório de Almeida havia sido presidente do Clube entre 1900 e 1902, e estava envolvido na Companhia Brasileira de Energia Elétrica, e tinha grande proximidade com o grupo econômico Gaffrée-Guinle, concorrente da Light. Álvaro de Niemeyer era filho do fundador do Clube de Engenharia do Rio, comendador Conrado Jacob de Niemeyer, e um influente articulista de novos sócios para o Clube. Daniel Henninger era brasileiro, descendente direto de alemães. Exercia a função de docente de química industrial na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Esta Comissão tratou de reorganizar o temário, promovendo alterações no pré-programa enviado pelos americanos. A proposta original continha um conjunto de temas estruturado em 10 tópicos,39 39 I - O problema do combustível em geral - utilização dos recursos naturais; II - A melhor utilização da Hulha Branca; III - Os últimos progressos nos métodos de irrigação; IV - a eliminação dos desperdícios, dos gastos inúteis com a "standarização" [sic], como o estabelecimento de um critério fixo no uso de materiais para fins agrícolas e materiais; V - o carvão como material de desenvolvimento industrial; VI - os pontos essenciais numa política ferroviária internacional; VII - A cooperação internacional dos engenheiros; VIII - Melhoramentos de portos; IX - As facilidades dos pontos terminais, dos pontos de terminação e das pontas de trilhos das estradas de ferro. Problemas de transporte fluvial, marítimo e terrestre que se relacionam com o transporte ferroviário; X - A indústria do ferro e do aço (Revista do Clube de Engenharia, p.292, 1922). cobrindo questões estratégicas e políticas do campo da engenharia mais do que situações técnicas específicas, com exceção de alguns problemas ferroviários. A comissão brasileira montou 8 eixos temáticos: 1ª seção: Viação Marítima, terrestre, fluvial e aérea. Estrada de Ferro Pan-Americana. Meios práticos para realizá-la; 2ª seção: metalurgia do ferro; 3ª seção: combustíveis; 4ª seção: hulha branca. Seu aproveitamento como força motriz; 5ª seção: Saneamento, açudagem e irrigação; 6ª seção: portos marítimos e fluviais. Seu regime e relações com a navegação internacional; 7ª seção: máquinas agrícolas manufatureiras; 8ª seção: uniformização dos métodos de estatística nos portos e estradas de ferro.40 40 Revista do Clube de Engenharia, p.292, 1922.

Percebe-se que a definição das temáticas pelos brasileiros teve uma conotação mais técnica e menos política. Interpretamos que isso se deveu por temor de uma "prospecção" de oportunidades sem que os integrantes do Clube de Engenharia tivessem exato domínio. Esta interpretação baseia-se nos estudos que temos empreendido sobre as relações sociais dos membros do clube.

Outro ponto a ser frisado dizia respeito ao pareamento da realização deste congresso com o congênere ferroviário, que ocorreria nas mesmas datas e mesmo lugar: na sede do próprio Clube, na Avenida Rio Branco, 124.

Conforme apuramos, a Ingeniería Internacional aceitou as sugestões advindas do Clube e passou a divulgar não apenas a realização do congresso, como a contatar as sociedades de engenheiros dos Estados Unidos para que apoiassem a iniciativa e dela tomassem parte. As quatro mais importantes sociedades de engenheiros - American Society of Civil Engineers (ASCE), American Society of Mechanical Engineers (ASME) -, American Institute of Electrical Engineers (AIEE) e American Institute of Chemical Engineers (AICE), deliberaram por eleger um representante capaz de agregar simbolismo à participação americana no evento. Este representante foi o engenheiro Calvin Winsor Rice.

O evento a contra-pelo

Engenheiro diplomado pelo Massachusetts Institute of Technology - MIT -, em 1890, Calvin W. Rice41 41 Nascido em Winchester, Massachusetts, em 4 de novembro de 1868, Calvin era filho de Edward Hyde e Lucy Staples Rice. Frequentou escolas em sua terra natal, New Haven e Boston antes de ingressar no MIT. Em 6 de agosto de 1904, ele casou-se com Ellen M. Weibezahn, com quem teve um casal de filhos: Edward Winslow Rice e Marjorie Charlotte Rice. Faleceu em Nova York, em 2 de outubro de 1934, ao ser acometido por um acidente vascular cerebral hemorrágico, em seu escritório, em Midtown, em Manhattan (Herald Times, 3 out. 1934; New York Sun, 3 out. 1934). desenvolveu carreira no campo da engenharia elétrica, tendo passado por diversos setores desta especialidade (de minas de cobre e prata, a alta tensão e invenção). O começo de sua carreira deu-se na Thomson-Houston, em Lynn, Massachusetts, e mesmo depois de esta companhia ter sido absorvida pela General Electric, ele continuou a trabalhar para a empresa em diversas subsidiárias, pelos Estados Unidos. Radicado em Nova York, no começo da década de 1900, logo envolveu-se com associações de engenheiros. Como mostrou o então presidente do MIT, em 1931, Karl T. Compton, em 1897 Rice ingressou no AIEE -, e, em 1900, na ASME (Compton, 1932COMPTON, Karl T. His Work in Professional-Society Organization. Mechanical Engineering, p. 5-9, jan. 1932., p.5). Nesta sociedade, Rice exerceu o cargo de secretário, de 1906 até 1932, quando se tornou membro honorário, em cerimônia que o consagrou como um dos mais iminentes políticos ligados aos negócios da engenharia (Compton, 1932COMPTON, Karl T. His Work in Professional-Society Organization. Mechanical Engineering, p. 5-9, jan. 1932., p.5).

Compton (1932, p.5)COMPTON, Karl T. His Work in Professional-Society Organization. Mechanical Engineering, p. 5-9, jan. 1932. mostrou que desde recém-formado, Rice liderou iniciativas que congregaram estas quatro instituições, o que o colocou em papel ativo na obtenção de sede, da expansão das agremiações e no contato com congêneres internacionais.42 42 Por exemplo, neste assunto, Rice travou contato, desde 1897, com os Institute of Civil Engineers, e o Institute of Electrical Engineers, de Londres, bem como com o Verein Deutscher Ingenieure, na Alemanha. Ele também foi feito membro honorário de outras instituições no México, na América do Sul e no Oriente (The Mechanical Engineering, vol. 56, n. 11, p.643, nov. 1934). Especificamente, sabemos que Rice pertenceu à Associação Nacional de Engenharia da Argentina; ao Koninklijk Instituut van Ingenieurs, da Holanda; ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro; à American Society of Safety Engineers; da Masaryk Academy, na então Czechoslovakia, e ao Deutsches Museum, de Munique. Foi, também, membro-correspondente do Instituto de Ingenieros de Chile e do Technisches Institute of Vienna, na Áustria. Em 1915, foi júri na Panama-Pacific Exposition. Em 1922, recebeu medalha de ouro na Exposição do Centenário do Brasil (The Mechanical Engineering, vol. 56, n. 11, p.643, nov. 1934).

Pode-se notar a dimensão política de Rice. Esta sua atuação profissional foi importante para que ele fosse escolhido pela Ingeniería Internacional, como um dos baluartes na realização do Congresso no Brasil, já que era nome pacífico entre as entidades de engenheiros.

A comitiva Americana às comemorações do Centenário da Independência do Brasil foi muito diversa. Mediante a consulta aos Anais do evento, publicados pela Ingeniería Internacional a partir de dezembro de 1922, conseguimos mapear a presença de todos os países participantes. O gráfico 1, a seguir, revela esses dados:

Gráfico 1
Número de Participantes, por país, no Congresso Internacional de Engenharia, em 1922.

Torna-se importante notar que o maior número de participantes, com exceção do Brasil, foi o de estadunidenses. A presença desses americanos, de diversas regiões, deveu-se em grande medida à revista do grupo McGraw-Hill, e, também, pela colaboração da embaixada brasileira em Washington D.C., que não apenas favoreceu, como facilitou o trânsito pelo continente por meio de vistos e cartas de recomendação. Quanto à pífia participação de engenheiros provenientes de outras partes das Américas, algumas considerações merecem ser feitas. A Argentina enviou 4 delegados ao certame, os quais participaram também do Congresso Ferroviário, ocorrido em paralelo, uma vez que a discussão sobre uma ferrovia intercontinental, começando na Argentina, e capitaneada, naqueles anos, por Percival Farquhar, estava em foco (Topik, 1987TOPIK, Steven. A presença do Estado na Economia Política do Brasil, de 1889 a 1930. Rio de Janeiro: Record, 1987., p.118). Bolívia, Chile, México, Peru, Uruguai e até o Canadá enviaram apenas 1 delegado, conforme o gráfico 1. A despeito das dificuldades reais de deslocamento até o Rio de Janeiro, somem-se os altos custos com passagens e a brevidade de tempo para a programação das viagens, haja vista que o evento foi divulgado nos primeiros meses de 1922, e ocorreu em setembro daquele ano. Mesmo assim, convém apontar, ainda, algo que Atique (2014, p.27)ATIQUE, Fernando. Congresso Pan-Americano de Arquitetos: ethos continental e herança europeia na formulação do campo do planejamento (1920-1960). Urbana: revista do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade. vol. 6, n. 1, p.14-32, 2014. já notou ao analisar os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos, entre 1920 e 1945: o número de diplomados (ainda) não era grande, e as entidades de classe costumavam apoiar-se em resoluções de convênio a partir de cartas ou dos relatos dos delegados enviados. Parece ser esta uma das explicações plausíveis, as quais, contudo, contrastam enormemente com a participação dos estadunidenses.

Foram 73 os participantes oriundos dos Estados Unidos. Os delegados mais importantes daquela nação, como Havens e Rice, viajaram a bordo do vapor Pan America, o qual trouxe o então secretário de Estado, Charles Evans Hughes. Conforme os engenheiros grafaram, a possibilidade de desfrutar do mesmo navio com o ministro americano gerou negociações de caráter interno e externo para os negócios que ambos representavam.43 43 RICE, Calvin W. Reports on South American Trip... Mechanical Engineering, vol. 1, n. 45, p.72-74, jan. 1923.

A presença desta autoridade dos Estados Unidos permitiu, em contrapartida, com que o Clube de Engenharia também buscasse construir capital simbólico. Como frisado pela imprensa Americana, o Clube de Engenharia surpreendeu o ministro ao render-lhe uma homenagem no dia 09 de setembro de 1922, no hotel em que se hospedava.44 44 Revista do Clube de Engenharia, p. 225, 1922. Arthur Getúlio das Neves, presidente interino do Clube, saudando as realizações dos americanos no Brasil, em perspectiva histórica, aproveitou para vincular a instituição à memória dos "benfeitores" daquela nação, "financistas e engenheiros" que imprimiram "contribuições ao progresso", revelando ao político que a entidade havia decidido erigir bustos de diversos estadunidenses no saguão da entidade, a serem ladeados pelos bustos dos mais expressivos brasileiros, políticos, engenheiros e industriais. A epifania que Neves expressava procurava selar o Clube de Engenharia como um panteão internacional, com fortes vínculos pan-americanos. Hughes, replicou que mesmo "antes de vir ao Brasil sabia que seria este o paiz do futuro, se os engenheiros continuarem, como até hoje, a colaborar na grande obra de sua construção".45 45 Revista do Clube de Engenharia, p. 228, 1922. O evento, transcorrido a partir do dia 17 de setembro, foi aberto por autoridades brasileiras, destacando-se o então ministro de Comunicações e Obras Públicas, Pires do Rio. Em sua fala, Pires do Rio enfatizou a necessidade do engenheiro para as nações, pois aquele profissional era a "essência do homem moderno", capaz de inventar e gerenciar "o progresso", o que o levava a ponderar que "exercer a engenharia era criar a indústria".46 46 PIRES DO RIO, José. Discurso Inaugural. Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.311, dez. 1922. Revelava Pires do Rio, que a engenharia era necessária para o desenvolvimento, para a criação de riquezas e, no século XX, naquele momento de após Guerra, para colocar as nações numa nova rota. Tornou-se curioso o sutil pedido de desculpas que Pires do Rio endereçou aos participantes estrangeiros, "observadores técnicos de todas as grandes exposições industriais" no país anfitrião, uma vez que ele era consciente que não conseguiriam vê-las, de fato, no Brasil.47 47 PIRES DO RIO, José. Discurso Inaugural, p.311.

Havens, em seu discurso na abertura do evento, explicitou que aquele corpo de congressistas "não estava lá para discutir problemas locais, posto que nenhum progresso na arte da engenharia poderia ser local. Cada novo passo deve[ria], por suposto, ser dado em um lugar determinado, mas, uma vez dado, dever[ia] ser convertido em um ponto de partida de todo progresso futuro mundial".48 48 HAVENS, Verne Leroy. Problemas y deberes del ingeniero. Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.312-313, dez. 1922. E, expondo o raciocínio que já aparecia nos editoriais da revista, frisou que era tarefa dos engenheiros do continente realizarem conexões, entenderem-se mutuamente, de maneira que fosse estabelecida uma relação permanente entre todas as sociedades dos engenheiros das Américas. Deixava, então, explícita, a engenhosa trama que havia organizado até aquele momento, para o evento que se inaugurava.

O evento transcorreu sempre dividindo espaço com o Congresso Ferroviário Sul-Americano, o que acabou de dispersar as discussões. As oito seções temáticas, acima mostradas, receberam presidentes, vice-presidentes e secretários, de maneira que conduzissem os trabalhos. Os comunicadores inscreveram-se até agosto de 1922, e apresentaram-se durante o mês em que os trabalhos ocorreram. Das oito seções, americanos tomaram parte ativa na condução dos trabalhos de quatro, como presidentes: 2ª seção (siderurgia), C.N. Crawford; 4ª seção (hulha branca), Asa W.K. Billings; 6ª seção (portos e navegação) Calvin W. Rice; 8ª seção (estatísticas de ferrovias e portos) Verne L. Havens. Como mostramos, esta presença estadunidense não deve ser vista como apenas simbólica, ela intentava uma questão efetiva de conhecimento do estado da arte das pesquisas, realizações e potencialidades dos países latinos, mesmo que os demais países americanos fossem numericamente pouco representados. Não à toa, Havens e Rice estavam em discussões que interessavam diretamente a investidores dos Estados Unidos, o que permitia a apreensão de um verdadeiro mural de potencialidades latinas. Também sabemos que Sebastião Sampaio tomou parte nas discussões da 4ª seção, já que, como expôs a Revista do Clube de Engenharia, Asa W.K. Billings, não falava e nem compreendia português. Billings residia no Brasil desde fevereiro daquele ano, exercendo a função de engenheiro eletricista-chefe para a Light and Power, em São Paulo. Já conhecido internacionalmente, sua presença no evento pode ser vista em duplo espectro: como referendo ao certame, e, também, como possibilidade de inserção nos negócios hidrelétricos nos países participantes (Santos, 2009SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Os trabalhadores da Light, São Paulo, 1900-1935. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009., p.46).

Paralelamente, houve atividades que procuravam mostrar o ambiente da engenharia nos Estados Unidos. No pavilhão americano, construído na então denominada Avenida das Nações, não muito distante do Clube de Engenharia, foram exibidos filmes mostrando desenvolvimento do sistema de construção dos Estados Unidos e a obtenção de matérias-primas, que parecem ter atraído grande atenção do público.49 49 Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 4, p.242, out. 1922.

Duas conclusões foram as que mais relevo receberam na mídia. Uma, foi a uniformização dos instrumentos e padronização das formas de contabilidade de ferrovias e portos nas Américas, de forma a facilitar o comércio internacional, favorecendo imensamente os Estados Unidos, e abrindo margem para uma gradual diminuição da presença britânica50 50 Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.354, dez. 1922. A outra, foi o estabelecimento de um órgão permanente visando a organização de outras edições. O órgão foi denominado "Congresso Internacional de Engenharia das Américas", e foi celebrado pelo grupo McGraw-Hill como um compromisso de estreitamento de laços entre os países americanos. Curioso foi que na seção de encerramento, Havens recebeu uma moção de agradecimento por ter idealizado o evento e tê-lo feito acontecer.51 51 Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.354, dez. 1922. O congresso foi encerrado, oficialmente, no dia 16 de outubro de 1922. Mas sua repercussão ainda durou algum tempo.

Impressões e avaliações: memórias e relatos pós-evento

O Clube de Engenheiros [sic] do Rio de Janeiro goza de uma posição de influência bastante superior à de qualquer órgão de engenharia nos Estados Unidos.52 52 The Engineering Journal, p.565, nov. 1922.

Esta epígrafe, extraída de um dos relatórios apresentado por Calvin Rice às associações de engenheiros dos Estados Unidos, foi publicada na The Engineering Journal, em novembro de 1922. O impacto daquela reunião ainda pode ser mais bem investigado, mas cremos ter conseguido mostrar as movimentações, simetrias e assimetrias que mobilizaram as Américas numa estratégia continental dos engenheiros. Findo o congresso, Ingeniería Internacional publicou cópia da manifestação de apreço emitida pelos chefes das delegações que dele participaram,53 53 Eram os signatários C.H. Crawford (Estados Unidos), F.Mardones (Chile), E.O. Temple Piers (Canadá), S. Brian (Argentina) e E.D. Garcia de Zuñiga (Uruguai). e que fora entregue pelo grupo Americano ao Clube de Engenharia. Fica claro, ao lermos a manifestação à luz da epígrafe que escolhemos para esta seção, que o Clube de Engenharia foi visto como uma entidade potente, capaz de agir no intuito de pressionar governo, promover negócios e estimular o crescimento da presença americana no Brasil:

Considerando que o CLUB DE ENGENHARIA, gentilmente aceitou de reunir os representantes da profissão em um Congresso Internacional de Engenharia não só para a apresentação de theses, como no intuito de estabelecer os alicerces de uma organização permanente destinada á ser um instrumento de grande utilidade para o progresso da civilização; / Que o Club de Engenharia ofereceu a mais fidalga hospitalidade ao referido congresso em um das mais belas sedes de qualquer associação congênere do mundo; / Que o Club tornou-se algo da gratidão dos representantes das associações de engenharia das diversas nações mimoseando-se com discursos de saudações aos executivos das nações que ora visitam a Exposição do Centenário da Independência do Brasil e bem assim com outros actos importantes e graciosos; / Fica resolvido que o reconhecimento de todos seja expresso ao Club de Engenharia e aos incansáveis diretores do Club e organizadores do Congresso [sic].54 54 Ingeniería Internacional, vol. 9, n. 1, p. 53, jan. 1923.

Em resposta, o Clube de Engenharia endereçou uma carta a Havens, agradecendo o documento recebido, e afirmando que

Nem V. Exa., nem os dignos signatários do importante documento, que transmitirei desvanecido ao Club de Engenharia em sua primeira reunião, têm que agradecer as nossas provas de cordialidade, que, mesmo interpretadas como deferências, ficam muito aquém do valor e dos inestimáveis serviços dos ilustres congressistas das Américas, que vieram ao Brasil trazer o largo subsidio da sua comprovada competência para a realização de seu ideal comum, de progresso e de desenvolvimento das nossas pátrias, baseado no trabalho fecundo e duradouro da engenharia, fator indispensável á paz, á ordem e á prosperidade do continente americano [sic].55 55 Ingeniería Internacional, vol. 9, n. 1, p.53, jan. 1923.

Assinada por Getúlio das Neves, a missiva abria uma perspectiva de cooperação pan-americana. Entretanto, a ênfase que no documento Neves dava à ideia de "pátria" sinalizava que o Clube aderia com reservas ao ideal pan-americano. Ou seja, não estava disposto a abrir mão da primazia em discutir negócios estratégicos do governo, como vinha fazendo desde os anos 1880.

Desta maneira, a perspectiva que mostramos neste artigo coloca certas tensões à própria historiografia que se ancora no transnacional como algo sempre positivo nas relações. Como visto, o Clube de Engenharia foi uma entidade que teve não apenas presença estrangeira em seus quadros, como tratou intimamente com demandas vindas de fora do país (Marinho, 2008MARINHO, Pedro Eduardo M. de M. Ampliando o Estado Imperial: os engenheiros e a organização da cultura no Brasil oitocentista (1874 - 1888). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008.). A instituição também favoreceu alianças entre empresários e engenheiros de diversas procedências, inserindo-os em negócios diversos surgidos no país. Entretanto, oficialmente, fazia sempre questão de frisar que era uma entidade que buscava o desenvolvimento da "pátria", mesmo que esta rubrica significasse o estímulo do laissez-faire. As tramas sociais, engenhosamente criadas nos Estados Unidos, repercutiram no Brasil, mas podemos ver que para além de uma dominação pura e simples, o anfitrião Clube de Engenharia soube impor seus limites em pontos políticos e econômicos, revelando as démarches de um projeto continental.

  • 1
    The Mechanical Engineering, vol. 45, n. 1, p.74, 1922.
  • 2
    Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.1, 1919
  • 3
    Wikipedia. McGraw-Hill Education. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/McGraw-Hill _Education. Acesso em 08 out. 2017.
  • 4
    Revista do Clube de Engenharia, p.287, 1922.
  • 5
    Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.1, abr. 1919.
  • 6
    BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. Ingeniería Internacional, vol. 1, n. 1, p.5, abr.1919.
  • 7
    BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.
  • 8
    BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.
  • 9
    BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.6.
  • 10
    BARRETT, John. La ingeniería bajo el punto de vista pan-americano. p.5.
  • 11
    Verne Leroy Havens nasceu em Atlantic, Iowa, em 17 de junho de 1881. Era filho de Rial Washington Havens e de Fanny Elizabeth Havens. Diplomou-se em engenharia - possivelmente civil -, por volta de 1905, na University of Nebraska. Também estudou na Universidade do México e na George Washington University. Foi casado em primeiras núpcias com Emilia Fernandez, falecida em 1924. Teve uma segunda união com Alice Holbert. Não deixou filhos. Segundo o obituário publicado pelo The New York Times (14 ago. 1944, p.15), foi membro da ASCE e ajudou a construir o serviço de transporte público da Cidade do México.
  • 12
    A outra obra de Havens, de 1916, era intitulada Markets for American hardware in Chile and Bolivia, e tinha sido publicada pelo United States Bureau of Foreign and Domestic Commerce, numa série de títulos semelhantes. Seu trabalho era o de número 41 da série.
  • 13
    Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, ano XVIII, n. 2, p.96, fev. 1918.
  • 14
    Foi possível encontrar uma nota referente a tal feito na revista da universidade de Nebraska, na edição referente aos ex-alunos University Journal [Alumni Edition], vol. 15, n. 3, p.15, jul. 1919.
  • 15
    American Machinist publicou um breve Curriculum Vitae de Havens: "1905 - Divisão de Engenharia, construção pesada em montanha, Mexican Central Railroad. 1906 - Engenheiro assistente, Mexican Light & Power Co. 1907 - Reconstrução da seção "downtown" da Havana Elextric Railway. 1908-1911 - Engenheiro-Chefe, México Light & Power Co., Mexico Tramways Co., Mexico Steel & Chemical Co., Pachuca Irrigation & Power Co. 1913-1914 - Consultor geral de obras; relatórios para financiamentos ferroviários na América do Sul; investigações de condições econômicas. 1915-1917 - Adido comercial na Embaixada Americana, Santiago, Chile". American Machinist, vol. 57, n. 14, p.2, 5 out. 1922.
  • 16
    HAVENS, Verne Leroy. Ingeniería de Ferrocarriles: la teoria fundemental de ferrocarriles, desde la concepción de la idea hasta la terminación del trazo. New York: John Wiley & Sons, 1917.
  • 17
    SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. Revista do Clube de Engenharia, p.287, 1922.
  • 18
    Anales del Instituto de Ingenieros de Chile, ano XVIII, n. 2, p.96, fev.1918.
  • 19
    Bus Transportation, p.38, ago. 1922.
  • 20
    Printer's Ink, p.30-31, 4 nov. 1920.
  • 21
    Bus Transportation, vol. 1, n. 4, p.11, 1922.
  • 22
    Ingeniería Internacional, vol. 7, n. 6, s/p., jun. 1922.
  • 23
    Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, s/p., 1921.
  • 24
    Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, s/p., 1921.
  • 25
    Embora também falasse de Espanha e Filipinas como localidades cobertas, a análise dos números publicados mostra um foco de mais de 85% de matérias sobre as Américas nas páginas do periódico.
  • 26
    Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 1, p.52, jul. 1921.
  • 27
    Ingeniería Internacional, vol. 6, n. 5, p.294, nov. 1921.
  • 28
    SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. Revista do Clube de Engenharia, p.288, 1922.
  • 29
    Na edição de novembro de 1921, a Ingeniería Internacional publicou uma breve nota informando que o Presidente dos Estados Unidos havia recebido o convite formal para tomar parte na Exposição do Centenário da Independência do Brasil. Ingeniería Internacional, vol. 6 n. 4, p.317, nov. 1921.
  • 30
    No texto que publicou na Revista do Clube de Engenharia, Sebastião Sampaio frisou que nos Estados Unidos, sabia-se "que o Congresso Sul-Americano de Estradas de Ferro também [fora] convocado para setembro (...), e no Rio de Janeiro. Os engenheiros americanos est[avam] encantados com a idéa de que poderão também assistir a essa importante reunião internacional" (SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. p.287).
  • 31
    SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia. p.289.
  • 32
    Revista do Clube de Engenharia, p.286, 1922.
  • 33
    Disponível em: http://novayork.itamaraty.gov.br/pt-br/historia.xml. Acesso: em 08 out. 2017.
  • 34
    SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia, p.286.
  • 35
    Revista do Clube de Engenharia, p.286, 1922.
  • 36
    Revista do Clube de Engenharia, p.297, 1922.
  • 37
    Revista do Clube de Engenharia, p.297, 1922.
  • 38
    SAMPAIO, Sebastião. Congresso Internacional de Engenharia, p.294.
  • 39
    I - O problema do combustível em geral - utilização dos recursos naturais; II - A melhor utilização da Hulha Branca; III - Os últimos progressos nos métodos de irrigação; IV - a eliminação dos desperdícios, dos gastos inúteis com a "standarização" [sic], como o estabelecimento de um critério fixo no uso de materiais para fins agrícolas e materiais; V - o carvão como material de desenvolvimento industrial; VI - os pontos essenciais numa política ferroviária internacional; VII - A cooperação internacional dos engenheiros; VIII - Melhoramentos de portos; IX - As facilidades dos pontos terminais, dos pontos de terminação e das pontas de trilhos das estradas de ferro. Problemas de transporte fluvial, marítimo e terrestre que se relacionam com o transporte ferroviário; X - A indústria do ferro e do aço (Revista do Clube de Engenharia, p.292, 1922).
  • 40
    Revista do Clube de Engenharia, p.292, 1922.
  • 41
    Nascido em Winchester, Massachusetts, em 4 de novembro de 1868, Calvin era filho de Edward Hyde e Lucy Staples Rice. Frequentou escolas em sua terra natal, New Haven e Boston antes de ingressar no MIT. Em 6 de agosto de 1904, ele casou-se com Ellen M. Weibezahn, com quem teve um casal de filhos: Edward Winslow Rice e Marjorie Charlotte Rice. Faleceu em Nova York, em 2 de outubro de 1934, ao ser acometido por um acidente vascular cerebral hemorrágico, em seu escritório, em Midtown, em Manhattan (Herald Times, 3 out. 1934; New York Sun, 3 out. 1934).
  • 42
    Por exemplo, neste assunto, Rice travou contato, desde 1897, com os Institute of Civil Engineers, e o Institute of Electrical Engineers, de Londres, bem como com o Verein Deutscher Ingenieure, na Alemanha. Ele também foi feito membro honorário de outras instituições no México, na América do Sul e no Oriente (The Mechanical Engineering, vol. 56, n. 11, p.643, nov. 1934). Especificamente, sabemos que Rice pertenceu à Associação Nacional de Engenharia da Argentina; ao Koninklijk Instituut van Ingenieurs, da Holanda; ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro; à American Society of Safety Engineers; da Masaryk Academy, na então Czechoslovakia, e ao Deutsches Museum, de Munique. Foi, também, membro-correspondente do Instituto de Ingenieros de Chile e do Technisches Institute of Vienna, na Áustria. Em 1915, foi júri na Panama-Pacific Exposition. Em 1922, recebeu medalha de ouro na Exposição do Centenário do Brasil (The Mechanical Engineering, vol. 56, n. 11, p.643, nov. 1934).
  • 43
    RICE, Calvin W. Reports on South American Trip... Mechanical Engineering, vol. 1, n. 45, p.72-74, jan. 1923.
  • 44
    Revista do Clube de Engenharia, p. 225, 1922.
  • 45
    Revista do Clube de Engenharia, p. 228, 1922.
  • 46
    PIRES DO RIO, José. Discurso Inaugural. Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.311, dez. 1922.
  • 47
    PIRES DO RIO, José. Discurso Inaugural, p.311.
  • 48
    HAVENS, Verne Leroy. Problemas y deberes del ingeniero. Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.312-313, dez. 1922.
  • 49
    Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 4, p.242, out. 1922.
  • 50
    Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.354, dez. 1922.
  • 51
    Ingeniería Internacional, vol. 8, n. 6, p.354, dez. 1922.
  • 52
    The Engineering Journal, p.565, nov. 1922.
  • 53
    Eram os signatários C.H. Crawford (Estados Unidos), F.Mardones (Chile), E.O. Temple Piers (Canadá), S. Brian (Argentina) e E.D. Garcia de Zuñiga (Uruguai).
  • 54
    Ingeniería Internacional, vol. 9, n. 1, p. 53, jan. 1923.
  • 55
    Ingeniería Internacional, vol. 9, n. 1, p.53, jan. 1923.

Agradecimentos

O autor agradece à FAPESP (Proc. 2015/03188-6) pela concessão de Bolsa de Pesquisa no Exterior para a realização de Pós-Doutoramento junto ao History Department da New York University. Igualmente, agradece à Barbara Weinstein pela supervisão amigável, precisa e criativa desta pesquisa.

Referências bibliográficas

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  • TURAZZI, Maria Inês. A euforia do progresso e a imposição da ordem: a engenharia, a indústria e a organização do trabalho na virada do século XIX ao XX. Rio de Janeiro: COPPE - UFRJ; São Paulo: Marco Zero, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2017
  • Revisado
    10 Jan 2018
  • Aceito
    19 Jan 2018
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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