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Desvendando a síndrome antifosfolípide catastrófica (síndrome de Asherson)

Catastrophic antiphospholipid syndrome (Asherson's Syndrome) revealed

Resumos

O quadro clínico de trombose generalizada de múltiplos órgãos acompanhada de insuficiência ou falência dos mesmos, em associação com anticorpos antifosfolípides, é chamado de "síndrome antifosfolípide catastrófica" (síndrome de Asherson). Esta é uma variante da síndrome antifosfolípide, que pode ocorrer em pacientes sem este diagnóstico ou mesmo durante o curso da síndrome primária e/ou secundária, mesmo com terapêutica anticoagulante. Os pacientes apresentam, principalmente, oclusões de pequenos vasos e as manifestações clínicas dependem dos órgãos acometidos. Fatores desencadeantes podem ser observados em metade dos casos e, apesar dos tratamentos, a sua mortalidade ainda é alta. Esta revisão apresentará a evolução de nossos conhecimentos sobre esta condição e como nós a compreendemos na atualidade.

revisão; síndrome antifosfolípide catastrófica; trombose


The clinical picture of widespread multi-organ thrombosis and consequent organ failure in association with antiphospholipid antibodies is referred to as the "catastrophic antiphospholipid syndrome" (Asherson's Syndrome). This is an unusual variant of the antiphospholipid syndrome which may occurs in patients without a previous diagnosis or during the course of primary or secondary antiphospholipid syndrome, even in those with anticoagulant therapy. Patients present with small vessel occlusions and clinical manifestations depend on which organs are affected. Triggering factors have been identified in half of the cases and despite therapy its mortality remains high. This review will present the state of our knowledge on this condition, as we understand it at the present time.

review; antiphospholipid syndrome catastrophic; thrombosis


ARTIGO DE REVISÃO REVIEW ARTICLE

Desvendando a síndrome antifosfolípide catastrófica (síndrome de Asherson)

Catastrophic antiphospholipid syndrome (Asherson's Syndrome) revealed

Eduardo F. BorbaI; Eloísa BonfáII; Ronald A. AshersonIII

IProfessor Assistente da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)

IIProfessora Titular da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)

IIIProfessor, Consultant Rheumatologist, Rheumatic Diseases Unit, Department of Medicine, University of Cape Town Health Sciences Center, Cape Town, and the Rosebank Clinic, Johannesburg, South Africa

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Eduardo F. Borba Av. Dr. Arnaldo, 455, 3º andar, sala 3133 São Paulo, CEP 01246-903, SP, Brasil fax: (11) 3066-7490 e-mail: reumato@edu.usp.br

RESUMO

O quadro clínico de trombose generalizada de múltiplos órgãos acompanhada de insuficiência ou falência dos mesmos, em associação com anticorpos antifosfolípides, é chamado de "síndrome antifosfolípide catastrófica" (síndrome de Asherson). Esta é uma variante da síndrome antifosfolípide, que pode ocorrer em pacientes sem este diagnóstico ou mesmo durante o curso da síndrome primária e/ou secundária, mesmo com terapêutica anticoagulante. Os pacientes apresentam, principalmente, oclusões de pequenos vasos e as manifestações clínicas dependem dos órgãos acometidos. Fatores desencadeantes podem ser observados em metade dos casos e, apesar dos tratamentos, a sua mortalidade ainda é alta. Esta revisão apresentará a evolução de nossos conhecimentos sobre esta condição e como nós a compreendemos na atualidade.

Palavras-chave: revisão, síndrome antifosfolípide catastrófica, trombose.

ABSTRACT

The clinical picture of widespread multi-organ thrombosis and consequent organ failure in association with antiphospholipid antibodies is referred to as the "catastrophic antiphospholipid syndrome" (Asherson's Syndrome). This is an unusual variant of the antiphospholipid syndrome which may occurs in patients without a previous diagnosis or during the course of primary or secondary antiphospholipid syndrome, even in those with anticoagulant therapy. Patients present with small vessel occlusions and clinical manifestations depend on which organs are affected. Triggering factors have been identified in half of the cases and despite therapy its mortality remains high. This review will present the state of our knowledge on this condition, as we understand it at the present time.

Keywords: review, antiphospholipid syndrome catastrophic, thrombosis.

INTRODUÇÃO

Nas décadas de 80 e 90, surgiram na literatura mundial relatos de casos documentando pacientes que apresentavam complicações trombóticas, quase sempre fatais, associadas à presença de anticorpos antifosfolípides (aPL). O quadro clínico, invariavelmente, compreendia trombose de múltiplos órgãos, resultando em falência de suas funções, tendo sido, na época, referido pelos autores como vasculopatia não-inflamatória devastadora(1), vasculopatia oclusiva(2) ou vásculo-coagulopatia aguda disseminada(3). Somente em 1992, pela primeira vez, foram reunidos dez pacientes com esta condição incomum. As principais características destes foram devidamente revisadas na tentativa de definir a gravidade e rapidez de instalação e, a seguir, o adjetivo catastrófico foi adicionado para representar esta variante da síndrome antifosfolípide (SAF)(4). A partir de então, o termo síndrome antifosfolípide catastrófica (síndrome de Asherson)(5) foi aceito e tem sido amplamente utilizado. Mais de 40 publicações internacionais revisaram e expandiram os conceitos originais desta síndrome.

Embora menos de 1% dos pacientes com SAF desenvolva esta complicação(6) apesar de todas as terapias recomendadas, o seu desfecho potencialmente fatal enfatiza a sua importância na medicina clínica atual. Ressalta-se que, apesar das inúmeras publicações alertando sobre a sua existência, parece evidente que muitos casos não tenham sido devidamente diagnosticados e, por conseqüência, inadequadamente tratados nos hospitais pelo mundo. A maioria destes pacientes acaba nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) com falência múltiplas de órgãos, resultando em fracasso terapêutico e perda do paciente, a menos que esta condição seja considerada por profissionais atentos ao diagnóstico diferencial.

Dessa forma, fica evidente a necessidade de uma abordagem mais ampla e sistemática sobre o tema. Neste sentido, foi criado um site de registro na Internet, o CAPS Registry (www.med.ub.es/MIMMUN/FORUM/CAPS.HTM), que poderá fornecer dados mais fidedignos sobre as características clínicas, eventos desencadeantes e respostas terapêuticas, visto que aproximadamente 50% dos pacientes com síndrome de Asherson sobrevivem. Atualmente, mais de 200 pacientes com esta condição foram descritos e foram objeto de revisões sistemáticas(7,8) e apresentações em congressos(9,10). Esta revisão busca relatar as principais características desta síndrome bem como os principais conhecimentos adquiridos até o momento.

FATORES DESENCADEANTES

Os dados obtidos do CAPS Registry(9) demonstram que pelo menos 55% dos pacientes parecem ter apresentado a síndrome de Asherson após um fator desencadeante identificável (Tabela 1 e Figura 1), sendo que infecções são o gatilho mais freqüente.


INFECÇÃO

Estas incluem infecções virais inespecíficas, pneumonias, úlceras infectadas de membros inferiores, além de infecções respiratórias superiores, urinárias, gastrintestinais e cutâneas, bem como febre tifóide, malária e dengue. Os mecanismos pelos quais as infecções podem levar à trombose têm sido objeto de interesse nos últimos anos, e algumas revisões têm se dedicado a este tópico(11,12). Neste aspecto, em 2000, um editorial abordou o papel potencial do mimetismo molecular na patogênese da síndrome de Asherson(11). Outro estudo desenvolvido pela equipe do Prof. Shoenfeld trouxe importante contribuição na compreensão dos diversos mecanismos deste processo, envolvendo a participação da estrutura e função da b2-glicoproteína-I (b2GPI), que é o principal antígeno alvo dos aPL, bem como a participação das infecções nos eventos trombóticos.

Merece ainda destaque o trabalho de Gharavi et al(13,14) que identificaram sete proteínas com seqüência homóloga às proteínas GDKU e GDKU2, que são os principais sítios de ligação dos fosfolípides na b2GPI, e são formadas nos humanos a partir de infecções virais. Interessante notar que a imunização de algumas linhagens de ratos com estes peptídeos, juntamente com o adjuvante de Freund, induzem a produção de altos títulos de aPL e anticorpos anti-b2GPI. Corroborando com essa hipótese da participação de determinados gatilhos para a síndrome de Asherson, foi descrito recentemente um caso dessa enfermidade após imunização com vacina contra encefalomielite B japonesa(9).

TRAUMA/PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS

São relatados como gatilhos da síndrome de Asherson procedimentos cirúrgicos abdominais e pélvicos de grande porte, como: histerectomia, colecistectomia, cesarianas, etc., e também de pequeno porte, como biópsias renais ou pulmonares, extrações dentárias, dilatações, curetagens e punções por agulhas. Os mecanismos pelos quais traumas/procedimentos cirúrgicos podem precipitar a síndrome de Asherson ainda são desconhecidos, mas podem envolver uma excessiva produção de citocinas, afetando a função da célula endotelial bem como a expressão e regulação de moléculas pró-coagulantes e produção de fatores tissulares.

MALIGNIDADES

Em vários pacientes, o diagnóstico de uma neoplasia pode estar associado ao desenvolvimento da síndrome de Asherson, particularmente o carcinoma de pulmão, estômago, cólon e útero, além de colangiocarcinoma e linfoma de células B, dentre outros.

ATIVIDADE LÚPICA

A baixa prevalência de síndrome de Asherson associada à atividade lúpica identificada em apenas seis pacientes é, na verdade, surpreendente, mas reforça a possibilidade de outros mecanismos alternativos envolvidos na patogênese desta condição, além da maior produção de auto-anticorpos.

SUSPENSÃO DE ANTICOAGULAÇÃO/INR BAIXO

A retirada de varfarina antes de procedimentos cirúrgicos maiores ou menores, ou frente a complicações hemorrágicas da própria terapia anticoagulante, pode ser seguida de recidiva de trombose ou por síndrome de Asherson num curto período de tempo, principalmente na presença dos outros gatilhos, como carcinoma subjacente ou infecção. Esta é a hipótese do segundo evento que se aplica a quaisquer pacientes com insuficiência múltipla de órgãos. Uma atenção especial deve ser dada pelo clínico/cirurgião no sentido de assegurar que o paciente esteja sob anticoagulação parenteral adequada durante procedimentos.

A HIPÓTESE DE KITCHENS

A hipótese formulada por Kitchens(15) é de que grandes coágulos por si só podem ser responsáveis pela persistência da coagulação e foi denominada por esse autor de "tempestade trombótica" ou "thrombotic storm", que é encontrada nos pacientes com síndrome de Asherson. Desta forma, os coágulos continuariam a gerar trombina. A fibrinólise estaria diminuída pelo aumento dos inibidores do ativador do plasminogênio (parada fibrinolítica) associada a um aumento simultâneo dos produtos de ativação de coagulação, que compreendem produtos F1 e F2 da ativação da protrombina, complexos trombina-antitrombina (TAT) e ativação da proteína C. Existiria, portanto, o consumo das proteínas anticoagulantes naturais como a proteína C, proteína S e da antitrombina III. A demonstração de que a remoção do coágulo pode realmente estar associada à remissão da síndrome de Asherson foi documentada em dois relatos, nos quais a amputação de membro com gangrena promoveu a completa recuperação do quadro(16).

A Figura 2 ilustra as hipóteses que potencialmente podem acarretar hipercoagulabilidade.


CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS

A média das idades e a distribuição por sexo dos pacientes do CAPS Registry, bem como a presença de doenças de base estão ilustradas na Tabela 2. Verifica-se que a maioria dos pacientes apresentava SAF primária ou secundária ao lúpus eritematoso sistêmico (LES).

Os pacientes podem desenvolver a síndrome de Asherson de forma inicial, sem qualquer história prévia de trombose associada à SAF primária ou LES. Entretanto, manifestações prévias associadas ao aPL são freqüentemente encontradas nestes pacientes, como trombose venosa profunda, perda fetal ou trombocitopenia (Tabela 3).

As manifestações clínicas da síndrome de Asherson dependem principalmente de dois fatores: a) órgãos afetados pelo evento trombótico e a extensão da trombose, e b) manifestações da síndrome da resposta inflamatória sistêmica, que decorrem da intensa liberação de citocinas do tecido necrótico afetado. Existem, portanto, dois cenários distintos de manifestações, cada qual exigindo uma terapia efetiva.

MANIFESTAÇÕES TROMBÓTICAS

Complicações trombóticas intra-abdominais afetando vasos renais, adrenais, esplênicos, intestinais, mesentéricos e pancreáticos são comumente encontrados e os pacientes apresentam, com freqüência, desconforto ou dor abdominal. A doença renal chega a ser diagnosticada em até 70% dos casos.

Em freqüência, estas são seguidas pelas complicações pulmonares, principalmente a síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA) e embolia pulmonar, mas também hemorragia, microtrombos e edema pulmonar, sendo que a dispnéia é o sintoma mais encontrado. Complicações cutâneas como livedo reticular, púrpura e necrose são descritas em 66% dos casos.

Manifestações cerebrais como infartos, encefalopatia, convulsões e oclusões venosas cerebrais são freqüentes e detectadas em aproximadamente 60% dos casos. A doença cerebrovascular oclusiva de pequenos vasos é provavelmente a mais comum e pode ser a etiologia da encefalopatia da síndrome.

Em aproximadamente 53% dos relatos, detecta-se alguma alteração cardíaca, principalmente defeitos valvulares (mitral e aórtico), mas também infarto agudo do miocárdio, encontrado em um quarto dos pacientes.

Outros órgãos também podem ser acometidos pelo processo, levando à ruptura de esôfago, ulceração gástrica ou de cólon, colecistite acalculosa, infarto testicular ou ovariano, necrose de próstata, infarto medular, trombose pancreática, infarto adrenal, dentre outros (Tabela 4).

MANIFESTAÇÕES DA SÍNDROME DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA SISTÊMICA

A síndrome da resposta inflamatória sistêmica foi recentemente revisada por Belmont et al(17). Embora medidas mais precisas dos níveis de citocinas dos pacientes com síndrome de Asherson ainda não tenham sido realizadas, acredita-se que esta condição está invariavelmente presente na sua fase aguda e certamente promove algumas das manifestações não-trombóticas, como a SARA. As principais citocinas envolvidas são o TNF (fator de necrose tumoral), IL-1, IL-6 e fator inibidor de migração de macrófagos que são responsáveis não só pela SARA, mas também pelo edema cerebral que leva à confusão mental e diminuição de consciência, nas fases iniciais, e pela disfunção miocárdica. A IL-18 também está implicada na inflamação pulmonar aguda por aumentar a migração de neutrófilos e a permeabilidade vascular, estando relacionada à SARA.

Este processo pode estar sobreposto ao quadro infeccioso de base que por si só pode ser o desencadeante da síndrome de Asherson e, assim, o tratamento com antibióticos deve ser considerado. A SARA associada ao choque séptico e trauma é freqüentemente complicada por coagulação intravascular disseminada (CIVD), que também pode ser identificada nos pacientes com síndrome de Asherson.

PATOGÊNESE

Ainda não está totalmente esclarecido porque alguns pacientes terão tromboses recorrentes, principalmente acometendo grandes vasos, enquanto outros terão quadros de oclusões vasculares reincidentes de rápida instalação, predominantemente de pequenos vasos. Na verdade, fatores predisponentes ou precipitantes podem ser detectados tanto na SAF primária como na síndrome de Asherson.

De fato, fatores que geralmente estão relacionados a tromboses como repouso prolongado ao leito, situações sedentárias (em viagens), dislipidemias, diabetes mellitus, síndrome nefrótica e obesidade não parecem ser importantes na patogênese da síndrome de Asherson. Pacientes com coagulopatias hereditárias (deficiência de proteína C, S, antitrombina III ou mutações no gene do fator V ou da protrombina) também não são mais propensos para esta complicação. Portanto, parece se tratar de um estado auto-imune primário associado a altos níveis de aPL, que por vezes podem ser acompanhados de outros desequilíbrios como trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática, complicando o quadro clínico e mesmo o seu diagnóstico e tratamento.

CARACTERÍSTICAS LABORATORIAIS

A trombocitopenia é uma condição extremamente freqüente, tendo sido observada em mais de 60% dos casos do CAPS Registry. Por outro lado, quase um terço apresenta alguma evidência de hemólise e 20% alguma característica de CIVD. Os esquizócitos, quando presentes, são escassos, ao contrário dos altos níveis evidenciados na púrpura trombocitopênica trombótica (PTT).

Usualmente, anticorpos anticardiolipina da classe IgG são identificados e numa freqüência menor os da classe IgM. Pacientes com LES apresentam maior freqüência de FAN positivo com presença de anticorpos anti-dsDNA e anti-ENA(2,3).

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO

No 10º Congresso Internacional de aPL em Taormina, Sicília, Itália (2002), foram propostos e aceitos os critérios preliminares de classificação da síndrome de Asherson(18), como ilustrado na Tabela 5. Este consenso estabelece uma normatização para o diagnóstico definitivo de síndrome de Asherson e promove ainda a sua distinção de estados de doença menos grave ou de diagnósticos discutíveis - a síndrome de Asherson provável. Estes critérios irão proporcionar um diagnóstico mais uniforme, permitindo a realização de estudos multicêntricos futuros. Uma análise de 147 pacientes incluídos no CAPS Registry revelou que 72 casos (49%) poderiam ser classificados como síndrome de Asherson definitiva e 41% como síndrome de Asherson provável. A sensibilidade destes critérios foi de 89% e a especificidade de 100%(10).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Um cuidadoso diagnóstico diferencial é mandatório na presença de tromboses e insuficiência de múltiplos órgãos e deve incluir a síndrome de Asherson, assim como outras síndromes microangiopáticas com características de microangiopatia trombótica, anemia hemolítica, trombocitopenia e envolvimento de SNC (sistema nervoso central) ou renal(19). Estas condições incluem a PTT, a síndrome hemolítica-urêmica, trombocitopenia induzida por heparina e a síndrome HELLP (hemólise, elevação de enzimas hepáticas, plaquetopenia).

Aproximadamente um terço dos pacientes com síndrome de Asherson apresenta evidência sorológica ou hematológica de CIVD durante o seu curso. As características sorológicas de CIVD encontradas nestes pacientes podem ser explicadas pelo extenso dano endotelial de pequenos vasos, que também podem acompanhar a SARA e a síndrome da resposta inflamatória sistêmica.

O diagnóstico diferencial deve também incluir a endocardite complicada por múltiplos eventos embólicos, a crioglobulinemia, vasculites, embolia múltipla de colesterol e a síndrome trombótica-trombocitopênica induzida por heparina. Nesta última condição, os pacientes desenvolvem trombose em qualquer sítio, especialmente cutâneo, num período de 10 a 14 dias após o início de heparina, sendo que o primeiro sinal é uma diminuição dos níveis de plaquetas conseqüente à presença de anticorpos que se ligam ao fator 4 da plaqueta e da heparina.

TRATAMENTO

O tratamento da síndrome de Asherson é um grande desafio para os clínicos. O diagnóstico precoce e a terapêutica agressiva são essenciais no sentido de resgatar estes pacientes desta condição potencialmente fatal. Apesar de todas as propostas terapêuticas, o índice de mortalidade ainda é extremamente alto, próximo de 50% dos casos.

Um algoritmo de tratamento para a síndrome de Asherson também foi proposto no encontro na Sicília (Figura 3)(18). O tratamento pode ser dividido em três grandes categorias: a - profilático; b - específico (primário); c - não-específico (secundário).


PROFILÁTICO

Ainda não existem dados para diferenciar quais pacientes com SAF que irão apresentar a manifestação catastrófica. Dessa forma, a princípio, todo paciente com SAF merece atenção especial frente a algumas circunstâncias:

1. Infecção, que deve ser adequadamente tratada, ainda que branda;

2. Procedimentos cirúrgicos a serem realizados, mesmo que de pequeno porte, devem requerer anticoagulação parenteral (profilática);

3. Puerpério deve ser adequadamente coberto com pelo menos seis semanas de anticoagulação parenteral (heparina subcutânea);

4. Ainda é extremamente controversa a indicação de anticoagulação parenteral na atividade lúpica em pacientes com SAF, pois, embora exista um risco, é baixa a freqüência de síndrome de Asherson nesta população.

ESPECÍFICO

Tratamento agressivo de todo e qualquer possível fator precipitante ou desencadeante. A suspeita de infecção implica na administração imediata de antibioticoterapia. Além disso, na presença de tecido necrótico, o debridamento ou mesmo a amputação devem ser realizados sem demora, pois estão relacionados com a rápida melhora da condição(12).

A terapêutica medicamentosa pode ser categorizada em três linhas:

TERAPIA DE PRIMEIRA LINHA

Heparina endovenosa: usualmente administrada por 7-10 dias, seguida de anticoagulação oral, mantendo-se o INR maior que 3.

Corticosteróides: devem ser administrados por um mínimo de três dias, mas devem ser continuados por mais tempo de acordo com a resposta do paciente. O uso dos esteróides não está indicado para o tratamento da trombose ou para a redução dos altos títulos de aPL, mas sim para tratar as manifestações da excessiva liberação de citocinas, devido à ampla necrose tecidual, em que a SARA é uma destas condições. Uma dose diária de 1000mg de metilprednisolona endovenosa, por três dias, é recomendada.

TERAPIA DE SEGUNDA LINHA

Gamaglobulina Intravenosa: a dose diária recomendada é de 0,4 g/Kg/dia por 4-5 dias. Pode ser de extrema valia naqueles pacientes com trombocitopenia grave, pois possivelmente também reduz a síntese de anticorpos e aumenta o catabolismo de imunoglobulinas circulantes. Entretanto, não existe evidência que por si só esta terapia melhore a sobrevida, mas a sua combinação com plasmaferese pode ser de extrema valia.

Plasmaferese: anticorpos anticardiolipina (aCL) da classe IgG e b2GPI, assim como citocinas como a IL-1, IL-6, TNF-a e complemento podem ser removidos neste procedimento. Uma melhora do prognóstico de pacientes com síndrome de Asherson tem sido relatada com a plasmaferese e, com certeza, esta é a terapia de escolha para pacientes com PTT em que existe uma doença oclusiva de pequenos vasos. Existe a recomendação de que se use plasma fresco congelado neste procedimento.

TERAPIA DE TERCEIRA LINHA

Nesta categoria, estão incluídas terapias utilizadas com menor freqüência e cujo número de casos ainda é pequeno, mas que foram relatadas como de auxílio na recuperação dos pacientes.

Ciclofosfamida: este potente imunossupressor não se mostrou efetivo na análise de 130 pacientes com a síndrome de Asherson(2,3). Porém, teoricamente, pode ser útil na prevenção do rebote de aPL, após a plasmaferese.

Prostaciclina: como potente inibidor da agregação plaquetária e vasodilatador pode ser, teoricamente, de grande benefício no momento de formação e progressão do processo trombótico. A dose é de 5 ng/kg/min endovenoso por sete dias. Foi relatado em somente um caso e ocorreu recidiva após a sua suspensão(13).

Ancróide: potente fibrinolítico, que também corrige deficiências do ativador do plasminogênio, foi utilizado em apenas um caso até hoje.

Outros fibrinolíticos: a estreptoquinase, uroquinase e ativadores do plasminogênio tecidual também, teoricamente, podem desempenhar um papel importante no manuseio de pacientes refratários, mas podem estar associados a complicações hemorrágicas. O uso deve ser criterioso em situações de risco de vida frente à progressão do quadro trombótico.

NÃO-ESPECÍFICO

A maioria dos pacientes termina numa unidade de terapia intensiva devido ao aparecimento da falência de múltiplos órgãos. Na presença de insuficiência renal, a hemodiálise deve ser iniciada, assim como ventilação mecânica nos casos de falência respiratória, particularmente na SARA. Drogas inotrópicas podem ser necessárias no colapso circulatório. Hipertensão grave pode ocorrer devido à doença oclusiva vascular renal e necessitar de tratamento anti-hipertensivo agressivo. Por outro lado, pode ocorrer hipotensão devido à depressão miocárdica, microangiopatia de pequenos vasos cardíacos e até mesmo no infarto de adrenal, que requeiram o uso de corticosteróides e drogas inotrópicas.

PROGNÓSTICO

A taxa de mortalidade desta condição ainda é extremamente alta, apesar das terapias atuais, próxima de 50%. No caso de recuperação, normalmente os pacientes apresentam um quadro estável com a continuidade da anticoagulação. Uma revisão recente(20) documentou que 66% dos pacientes com a síndrome de Asherson que sobrevivem ao episódio inicial permaneceram sem sintomas por um período médio de seguimento de 62,7 meses. Entretanto, 26% dos sobreviventes irão desenvolver algum evento relacionado a SAF, mas sem recorrência de evento catastrófico. Existem apenas três casos de recorrência da síndrome de Asherson e nestes foi evidente a presença de um fator precipitante. Este é, no entanto, um evento raro.

REGISTRO INTERNACIONAL

Um registro internacional de pacientes com síndrome de Asherson foi criado em 2000 pelo Forum Europeu de Anticorpos Antifosfolípides (CAPS Registry). Nele, é documentado o dado clínico, laboratorial e terapêutico de todos os casos publicados com a síndrome de Asherson, assim como de muitos outros pacientes que tenham sido devidamente cadastrados. Este registro pode ser consultado livremente no site (www.med.ub.es/MIMMUN/FORUM/CAPS.HTM) e espera-se que a análise periódica destes dados nos permita expandir os conhecimentos sobre esta temível condição.

Recebido em 14/03/2005. Aprovado, após revisão, em 15/08/2005.

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  • Endereço para correspondência:

    Eduardo F. Borba
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      15 Ago 2005
    • Recebido
      14 Mar 2005
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