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Psicoterapia baseada na mentalização de crianças que sofreram maus-tratos

The mentalization-based treatment of children who were maltreated

Psicoterapia basada el la mentalización de niños que fueron maltratados

Resumos

Este estudo investigou a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização na psicoterapia de crianças que sofreram maus-tratos. Com base na vertente psicanalítica da teoria do apego e nos estudos sobre função reflexiva e capacidade de mentalização, foi realizado um estudo qualitativo, pautado pelo método clínico. O procedimento adotado foi o Estudo de Casos Múltiplos, e os participantes, duas meninas de 10 e 12 anos de idade e seus cuidadores. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: entrevistas semiestruturadas, hora de jogo, Teste das Fábulas e Manchester Child Attachment Story Task - MCAST, além das sessões de psicoterapia. O MCAST foi reaplicado após as 20 primeiras sessões de psicoterapia. Os principais resultados apontaram vínculos afetivos do tipo de apego inseguro, capacidade de mentalização limitada antes da psicoterapia e mudanças na capacidade de mentalização após as 20 primeiras sessões de atendimento das crianças participantes.

Psicoterapia; mentalização; maus-tratos


This study investigated the possibility of developing the mentalization capacity in the psychotherapy of children who suffered abuse. Based on psychoanalytic theory and studies in reflective function and mentalization capacity, we carried out a qualitative study, guided by the clinical method. The procedure adopted was the Multiple Case Study and the participants were two girls aged 10 and 12 years old and their caregivers. The instruments used to collect data were semi-structured interviews, Play Time, Fables Test and Manchester Child Attachment Story Task - MCAST, in addition to psychotherapy sessions. The MCAST was reapplied after the first 20 sessions of psychotherapy. The results showed insecure attachment, limited capacity for mentalization before psychotherapy and changes in mentalization after the first 20 sessions.

Psychotherapy; mentalization; maltreat


Este estudio investigó la posibilidad de desarrollar la capacidad de la mentalización en la psicoterapia de niños que sufrieron abusos. Basado en la teoría psicoanalítica del apego, y los estudios en la función reflexiva y la capacidad de mentalización, se realizó un estudio cualitativo, orientado por el método clínico. El procedimiento adoptado fue el estudio de casos múltiples y los participantes, dos niñas de 10 y 12 años de edad y sus cuidadores. Los instrumentos utilizados para recoger datos fueron entrevistas semi-estructuradas, hora del juego, Prueba de las Fábulas y Manchester Child Attachment Story Task - MCAST, además de sesiones de psicoterapia. El MCAST se volvió a aplicar después de las primeras 20 sesiones de psicoterapia. Los resultados mostraron vínculos emocionales con el tipo de apego inseguro, limitada capacidad de mentalización antes de la psicoterapia y cambios en la mentalización después de las primeras 20 sesiones de las niñas participantes.

Psicoterapia; mentalización; maltrato


ARTIGOS

Psicoterapia baseada na mentalização de crianças que sofreram maus-tratos1 1 . Apoio: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS.

The mentalization-based treatment of children who were maltreated

Psicoterapia basada el la mentalización de niños que fueron maltratados

Vera Regina Röhnelt RamiresI; Lucia Rech GodinhoII

IDoutora em Psicologia Clínica pela PUCSP, Mestre em Psicologia pela PUCRS, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica, Psicóloga graduada pela UFRGS, professora, pesquisadora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unisinos-RS, Brasil

IIMestre em Psicologia Clínica pela UNISINOS, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pela Unisinos, Psicóloga, Professora do UNILASALLE, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Vera Regina Röhnelt Ramires. Avenida Carlos Gomes, 911 Ap. 201, CEP: 90480-004, Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: v.ramires@terra.com.br

RESUMO

Este estudo investigou a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização na psicoterapia de crianças que sofreram maus-tratos. Com base na vertente psicanalítica da teoria do apego e nos estudos sobre função reflexiva e capacidade de mentalização, foi realizado um estudo qualitativo, pautado pelo método clínico. O procedimento adotado foi o Estudo de Casos Múltiplos, e os participantes, duas meninas de 10 e 12 anos de idade e seus cuidadores. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram: entrevistas semiestruturadas, hora de jogo, Teste das Fábulas e Manchester Child Attachment Story Task – MCAST, além das sessões de psicoterapia. O MCAST foi reaplicado após as 20 primeiras sessões de psicoterapia. Os principais resultados apontaram vínculos afetivos do tipo de apego inseguro, capacidade de mentalização limitada antes da psicoterapia e mudanças na capacidade de mentalização após as 20 primeiras sessões de atendimento das crianças participantes.

Palavras-chave: Psicoterapia; mentalização; maus-tratos

ABSTRACT

This study investigated the possibility of developing the mentalization capacity in the psychotherapy of children who suffered abuse. Based on psychoanalytic theory and studies in reflective function and mentalization capacity, we carried out a qualitative study, guided by the clinical method. The procedure adopted was the Multiple Case Study and the participants were two girls aged 10 and 12 years old and their caregivers. The instruments used to collect data were semi-structured interviews, Play Time, Fables Test and Manchester Child Attachment Story Task - MCAST, in addition to psychotherapy sessions. The MCAST was reapplied after the first 20 sessions of psychotherapy. The results showed insecure attachment, limited capacity for mentalization before psychotherapy and changes in mentalization after the first 20 sessions.

Key words: Psychotherapy; mentalization; maltreat

RESUMEN

Este estudio investigó la posibilidad de desarrollar la capacidad de la mentalización en la psicoterapia de niños que sufrieron abusos. Basado en la teoría psicoanalítica del apego, y los estudios en la función reflexiva y la capacidad de mentalización, se realizó un estudio cualitativo, orientado por el método clínico. El procedimiento adoptado fue el estudio de casos múltiples y los participantes, dos niñas de 10 y 12 años de edad y sus cuidadores. Los instrumentos utilizados para recoger datos fueron entrevistas semi-estructuradas, hora del juego, Prueba de las Fábulas y Manchester Child Attachment Story Task – MCAST, además de sesiones de psicoterapia. El MCAST se volvió a aplicar después de las primeras 20 sesiones de psicoterapia. Los resultados mostraron vínculos emocionales con el tipo de apego inseguro, limitada capacidad de mentalización antes de la psicoterapia y cambios en la mentalización después de las primeras 20 sesiones de las niñas participantes.

Palabras-clave: Psicoterapia; mentalización; maltrato

O foco deste estudo foi a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização na psicoterapia de crianças que sofreram maus-tratos. A capacidade de mentalização é um conceito que vem sendo trabalhado especialmente em relação à psicoterapia de pacientes adultos com transtorno de personalidade borderline (Allen, 2006; Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006; Fonagy & Bateman, 2006; 2007). Pesquisas com esse foco com crianças não têm sido realizadas, e Fonagy (2003) assinalou sua importância e necessidade.

Bateman e Fonagy (2006) acreditam que vítimas de traumas frequentemente experimentam falhas parciais na mentalização. Pacientes com psicopatologia borderline, descritos por Fonagy e Bateman (2007), apresentam alta incidência de maus-tratos em suas histórias de vida, o que pode enfraquecer ou inibir sua capacidade reflexiva ou de mentalização. A função reflexiva e a capacidade de mentalização parecem ser a chave determinante para a organização do self (personalidade) e a regulação do afeto. Tais capacidades são adquiridas no contexto dos relacionamentos sociais primitivos da criança (Fonagy, Gergely, Jurist, & Target, 2002; Fonagy, 2006).

Função reflexiva é uma aquisição do desenvolvimento que permite à criança não apenas responder ao comportamento de outra pessoa, mas também conceituações infantis sobre crenças, sentimentos, atitudes, desejos, esperanças, conhecimento, intenções e planos do que se passa pela mente das outras pessoas (Fonagy et al., 2002). Ao fazer isso, as crianças dão significado ao comportamento do outro. Essa função está relacionada à representação do self.

A função reflexiva dos pais é importante para dar suporte ao estado mental da criança (Slade, 2005). Bateman & Fonagy (2003), Verheugt-Pleiter (2008), Zevalkink (2008) salientaram que uma função reflexiva efetiva do cuidador permite representações do self coerentes e integradas, e que estas serão internalizadas. Para isso duas condições são necessárias: a contingência e a discriminação. A contingência significa que a resposta acurada do cuidador deve combinar com o estado interno do bebê. A discriminação implica a capacidade do cuidador de expressar, em suas respostas, os sentimentos do bebê, e não os seus próprios.

Se a função reflexiva do cuidador não for contingente, se ela não estiver em sintonia com a experiência primária do bebê, haverá a tendência de estabelecer uma estrutura narcisista e de falso self, em que as representações dos estados internos não correspondem a nada real (Verheugt-Pleiter, 2008; Zevalkink, 2008). Por outro lado, se a criança percebe as respostas do cuidador como expressão dos seus próprios sentimentos, é estabelecida uma predisposição para experimentar externamente estados do self. Neste caso, o outro internalizado permanecerá alienado e desconectado das estruturas do self constitucional (Bateman & Fonagy 2003; Winnicott, 1979/1982). O self alienado internalizado é ameaçador e motiva uma forte tendência de externalizar a parte alienada, projetando-a nos outros.

Assim, o termo função reflexiva refere-se à “operacionalização dos processos psicológicos subjacentes à capacidade de mentalizar” (Fonagy et al., 2002, p. 24-25). Mentalização é, fundamentalmente, “a capacidade para compreender e interpretar o comportamento humano levando em conta os seus estados mentais subjacentes” (Bateman & Fonagy, 2003, p. 191). Ela se desenvolve quando um indivíduo experimentou a si mesmo na mente de um outro durante a infância, num contexto de apego seguro, contexto que, para os autores, seria condição para seu amadurecimento (Verheugt-Pleiter, 2008; Zevalkink, 2008).

Holmes (2006), analisando o conceito de mentalização de uma perspectiva psicanalítica, sintetizou suas origens conceituais em quatro raízes distintas. Uma delas é a teoria da mente, que implica a noção de que os outros têm mentes similares, mas não idênticas à nossa, noção que se desenvolve nos cinco primeiros anos de vida.

A segunda raiz do conceito, descrita por Holmes (2006), pode ser encontrada nas contribuições de Bion (1962/1997; 1967/1994), que diferenciou o pensamento do aparelho que pensa os pensamentos. Chamou a capacidade de pensar os pensamentos de função alfa. A função alfa transforma os “elementos beta” (pensamentos sem um pensador, primitivos, muitas vezes terroríficos) em “elementos alfa”, os quais estão disponíveis então para serem pensados, isto é, mentalizados. Bion acreditava que uma mãe continente seria necessária para esse desenvolvimento. Na sua ausência, ou havendo pouca habilidade para tolerar frustração por fatores genéticos, o resultado seria identificação projetiva excessiva, a qual dissemina as sementes da psicopatologia na vida posterior, incluindo um déficit na capacidade de mentalização.

A Psicanálise francesa, especialmente no que diz respeito às contribuições acerca das desordens psicossomáticas, também estaria na raiz do conceito (Holmes, 2006). Segundo Holmes, Marty concebeu as desordens psicossomáticas em termos de pensamento operatório (que seria o equivalente francês da noção anglo-saxônica de alexitimia), isto é, a incapacidade de colocar sentimentos em palavras. Nessa perspectiva, a mentalização seria a antítese do pensamento operatório ou do acting out. A mentalização envolve a capacidade de transformar impulsos em sentimentos e representar, simbolizar, sublimar, abstrair, refletir e extrair significado deles.

A quarta raiz do conceito de mentalização descrita por Holmes (2006) está relacionada à Psicopatologia do Desenvolvimento e é representada por Fonagy e seus colaboradores. Um senso robusto de self e a capacidade de operar efetivamente no mundo interpessoal resultam de processos intensamente interativos entre o cuidador e a criança nos primeiros anos de vida (Fonagy et al., 2002; Fonagy, 2006). A criança aprende quem ela é e o que são seus sentimentos por meio da capacidade do cuidador de refletir seus gestos, suas manifestações. Começa a construir um quadro acerca de onde começam e onde terminam a realidade interna e a externa. Isso tudo a habilita a dimensionar a contribuição dos seus próprios sentimentos na sua apreciação do mundo – em outras palavras, na sua capacidade de mentalização.

Uma noção-chave subjacente ao conceito de mentalização é o achado empírico de que, quando o status de apego dos pais foi avaliado antes do nascimento de um bebê, uma função reflexiva alta predizia apego seguro nas crianças, mesmo quando essas mães relatavam deprivação ou abuso na sua infância (Fonagy & Target, 1997). Isto sugere que a capacidade de mentalização protege contra o impacto da deprivação ou maus-tratos na infância e nos conduziu a considerar a possibilidade de uma estratégia psicoterapêutica com esse foco para crianças vítimas de maus-tratos.

Sharp (2006) discutiu os problemas de mentalização identificados no autismo e nas desordens de conduta, salientando que existem elementos distintos da mentalização que implicam diferentes prejuízos para vários grupos e subtipos de psicopatologia infantil. Enfatizou que não se trata de um conceito unitário, não sendo possível estabelecer uma relação linear entre mentalização e ausência de psicopatologia. “Futuras pesquisas deveriam reconhecer não somente a heterogeneidade das desordens da infância, mas também a heterogeneidade do constructo da mentalização”, afirmou Sharp (2006, p. 114), sublinhando a importância da aplicação do conceito no tratamento das desordens da infância e da adolescência como uma área de pesquisa potencial.

Esse foi um dos pressupostos deste estudo, assim como a afirmação de Fonagy (2000) de que a psicoterapia, qualquer que seja sua forma, trata da reativação da mentalização. Isso acontece porque ela busca estabelecer uma relação de apego seguro com o paciente, procura utilizar essa relação para criar um contexto interpessoal em que a compreensão dos estados mentais se converta em um foco e tenta possibilitar a reorganização do self.

A estratégia psicoterápica que toma como alvo a mentalização, adotada neste estudo, busca estabilizar a estrutura do self através do desenvolvimento de representações internas estáveis, auxiliar na formação de um senso coerente de self, capacitar o paciente a estabelecer relacionamentos que sejam mais seguros e nos quais as motivações do self e do outro sejam melhor compreendidas, e ajudar o paciente a identificar e expressar apropriadamente o afeto (a estrutura do self é desestabilizada no contexto da desordem e da agitação emocional (Allen, 2006; Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006; Verheugt-Pleiter, 2008).

Para que isso seja possível, são necessárias clareza da proposta e dos objetivos terapêuticos, a proximidade mental (produzida por intervenções contingentes e discriminatórias) e a aceitação de aspectos do self alienado do paciente (Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006; Verheugt-Pleiter, 2008). As intervenções devem ser simples e curtas, com foco na mente do paciente, e não em seu comportamento. Devem também focalizar os afetos (amor, desejos, dores, excitações, etc.), estar relacionadas a eventos ou atividades atuais (realidade mental) e priorizar os conteúdos consciente e pré-consciente na fase inicial do processo. Interpretações de conteúdo inconsciente só serão possíveis e recomendadas mais adiante, após a exploração dos processos psicológicos, na medida em que o paciente comece a identificar mais acuradamente seus afetos e estados mentais.

Há uma lacuna entre as experiências afetivas primárias do paciente e suas representações simbólicas, e esta lacuna precisa ser preenchida na psicoterapia (Bateman & Fonagy, 2003; Verheugt-Pleiter). O terapeuta necessita ajudar o paciente a não apenas compreender e identificar os estados mentais, mas também a situá-los no contexto presente, com uma narrativa articulada ao passado recente e ao remoto. Para isso, o terapeuta precisa manter uma postura mentalizadora, o que significa a habilidade de continuamente questionar que estados mentais, tanto do paciente como dele mesmo, podem explicar o que está acontecendo aqui e agora (Bateman & Fonagy, 2004; 2006).

Em síntese, como vimos, as distorções do self não são irreversíveis (Bateman & Fonagy, 2003). A aquisição da capacidade de criar uma narrativa dos próprios pensamentos e sentimentos (capacidade de mentalizar) pode superar falhas na organização do self que resultaram da desorganização do apego precoce e das experiências de maus-tratos. Neste sentido, os objetivos do presente estudo foram analisar os vínculos afetivos constituídos entre crianças e seus cuidadores primários no contexto dos maus-tratos infantis e avaliar a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização no processo terapêutico dessas crianças.

MÉTODO

Baseado na abordagem qualitativa de pesquisa, esse estudo foi pautado pelo método clínico. O método clínico pressupõe duas dimensões paradigmáticas e próprias da clínica psicanalítica: a singularidade do sujeito e a contemporaneidade entre pesquisa e intervenção (Aguiar, 2001; Herrmann, 2004). O procedimento adotado foi o Estudo de Casos Múltiplos (Allonnes, 2004; Yin, 2005), que permite a investigação sistemática e tão exaustiva quanto possível de casos individuais.

Participantes e procedimentos de coleta e análise dos dados

Os participantes foram duas meninas de classe média baixa, de 10 e 12 anos de idade, e seus cuidadores. Cada criança e seus cuidadores foram considerados um caso. Elas foram atendidas na clínica-escola de uma universidade da Região Sul do Brasil e apresentavam história de vivência de maus-tratos de alguma natureza.

Os responsáveis pelas crianças solicitaram atendimento psicológico para elas na clínica-escola. Foram informados acerca da pesquisa no momento do acolhimento, concordando em participar. Assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade que abriga a clínica-escola.

Para coleta de dados utilizaram-se: a) entrevistas semi-estruturadas com os pais ou responsáveis, para levantamento de anamnese (história de vida das crianças e história clínica); b) hora de jogo com as meninas; c) Teste das Fábulas (Cunha & Nunes, 1993); e d) uma adaptação do Manchester Child Attachment Story Task – MCAST (Green, Stanley, Smith & Goldwyn, 2000) para avaliar indicadores das representações internas dos relacionamentos de apego de crianças e sua capacidade de mentalização. O instrumento utiliza uma casinha de bonecas e é composto por cinco vinhetas que a criança é solicitada a completar (para construir suas narrativas, escolhe um boneco que a represente e outro que represente o cuidador). Esse procedimento foi realizado em dois momentos: na avaliação, antes do início da psicoterapia, e após a realização de 20 sessões, com o objetivo de avaliar se houve alteração na capacidade de mentalização. Esses instrumentos foram aplicados pela mesma psicoterapeuta que atendeu as crianças.

Após as sessões de avaliação, confirmando-se a demanda e o desejo de realizar a psicoterapia, as crianças foram atendidas semanalmente (sessões de 50 minutos) por um período de sete meses (caso 1) e cinco meses (caso 2). O atendimento seguiu o modelo da psicoterapia baseada na mentalização, descrito acima, e foi realizado pela mesma psicoterapeuta nos dois casos. A psicoterapeuta teve formação em psicoterapia psicanalítica e contava 19 anos de experiência clínica na época desses atendimentos. Foi supervisionada semanalmente por uma colega com formação em psicoterapia psicanalítica e 29 anos de experiência clínica. Os cuidadores foram acompanhados durante esse mesmo período de tempo pela mesma psicoterapeuta das crianças, em entrevistas quinzenais. Todas as sessões de avaliação e de psicoterapia com as crianças e seus cuidadores foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Foram também feitos relatos complementares, descrevendo a linguagem não verbal durante as sessões e as impressões da terapeuta ao final de cada sessão.

A análise dos dados percorreu as seguintes etapas: 1) transcrição de todas as entrevistas; 2) interpretação e análise dos dados coletados por meio dos instrumentos; 3) descrição abrangente de cada passo, organizada de forma cronológica (seguindo os eventos importantes da história de vida e da história clínica do caso) e temática (identificando os aspectos relevantes das situações de violência sofridas pela criança; uma síntese do processo psicoterapêutico, identificando especialmente as seguintes categorias: “percepção do próprio funcionamento mental”, “percepção e identificação dos sentimentos e pensamentos das outras pessoas” e “representação do self”; e identificando a capacidade de mentalização no início da psicoterapia e após as 20 sessões); 4) aplicação da técnica de Construção da Explanação (Yin, 2005), com o objetivo de analisar exaustivamente os dados de cada estudo de caso e construir uma explanação sobre o mesmo; todos os dados e resultados foram integrados na compreensão geral das hipóteses acerca da capacidade de mentalização e sua evolução ao longo da psicoterapia; 5) utilização da técnica de Síntese de Casos Cruzados (Yin, 2005), confrontando os resultados obtidos na análise de cada caso, identificando convergências e divergências e buscando, desta forma, evidências que auxiliassem a identificar ou não a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização no processo psicoterapêutico.

RESULTADOS

Caso 1 – Cristine: O temor à repetição transgeracional

Cristine2 2 . Os nomes dos participantes foram modificados, com o objetivo de preservar suas identidades. é uma menina de 12 anos que vivia com os avós paternos. Foi afastada do convívio com os pais por decisão judicial. A mãe vivia com um ex-presidiário e o pai era usuário de drogas. Sua gravidez não foi desejada nem planejada, pois seus pais eram muito jovens e haviam se conhecido recentemente. O casal teve muita dificuldade para se manter e cuidar da filha, sempre recorrendo à avó paterna para solicitar ajuda.

A relação do casal era instável, permeada por violência doméstica, uso de drogas e traições. Tiveram três filhos e posteriormente, separaram-se. A mãe teve diversos companheiros depois da separação. As crianças foram submetidas a muitas situações de violência (agressões físicas, psicológicas, negligência) tanto por parte da mãe como de seus novos companheiros. A paciente foi “dada” à sua avó quando era bebê, porém retornou à casa da mãe por alguns períodos e depois para a casa da avó novamente, não permanecendo com um único cuidador ao longo dos seus primeiros anos. Nos últimos tempos, o pai morava na rua ou ficava em albergues, usava crack e foi internado em uma fazenda para tratamento de dependência química. Cristine mantinha contatos esporádicos com os pais.

O pai de Cristine foi descrito como o “filho que mais deu trabalho”; não gostava de estudar e foi usuário de drogas desde os 15 anos. Tanto o pai quanto a mãe de Cristine vivenciaram negligência e abandono na infância. A mãe de Cristine fora entregue para uma família adotante e submetida a diversos tipos de violência nessa família. Cristine é constantemente comparada à mãe, principalmente durante as brigas que ocorrem entre a avó e a neta.

O Teste das Fábulas permitiu identificar características ambivalentes, passivas e inseguras. Os personagens que predominantemente apareceram foram as figuras materna e paterna, com sentimentos de medo em relação a essas figuras. Suas fantasias foram de abandono, privações, castigos, punições e agressões. Os estados emocionais foram de apagamento, tristeza, ansiedade, ambivalência e rebeldia. Quanto às defesas, apareceram bloqueios, introjeção, projeção, formação reativa, deslocamento e apenas uma tentativa de reparação. Identificou-se certa desconformidade social, sugestiva de problemas na internalização de normas ou regras ou oposição a elas. Havia indícios de conflitos relacionados às figuras parentais, que não eram sentidas como referências significativas ou alguém com quem ela pudesse contar. Em síntese, nos resultados deste Teste, assim como o conteúdo obtido na Hora de Jogo diagnóstica, predominavam vivências de perda e privação, fantasias de abandono que geravam comportamentos de rebeldia e oposição. A agressão parecia deslocada para o ambiente, havendo fantasias de culpa e punição.

O resultado da primeira aplicação do Manchester Child Attachment Story Task (MCAST) apontou indicadores de apego inseguro ambivalente em todas as vinhetas. As situações de angústia mobilizadas pelas estórias foram resolvidas mediante estratégias que não evidenciavam a possibilidade de contar com o cuidador de maneira efetiva para sua superação. A capacidade de mentalização era falha ou inexistente, não se identificando uma representação coerente dos pensamentos e sentimentos dos personagens. Apresentava narrativas confusas e com elementos de desorganização.

No processo psicoterápico, Cristine revelou-se ansiosa e gradativamente cooperativa e motivada para o atendimento. Tinha poucos amigos, apresentava dificuldades de relacionamento na escola, tanto com colegas quanto com professores, e parecia difícil ela confiar nas pessoas e na terapeuta. Trazia muitas queixas dos professores. Relatava as brigas em casa, principalmente com a avó, que costumava chamá-la de “monstro” e compará-la com sua mãe, salientando seus defeitos. “Eu não gosto disso”, afirmava Cristine, revelando que já pensara em suicídio.

No estágio inicial da psicoterapia Cristine apresentava limitações para perceber o próprio funcionamento mental. Não conseguia vincular a ansiedade que sentia e as dificuldades de relacionamento na escola com as situações vividas no meio familiar, conturbado e permeado por brigas. Evidenciava clara dificuldade de mentalização, não conseguindo identificar os estados emocionais subjacentes ao seu comportamento. Da mesma forma, em relação à percepção dos sentimentos e pensamentos de outras pessoas, Cristine apresentava limitações, restringindo-se ao sentimento de raiva e de tristeza gerado pelas brigas e situações de abandono e maus-tratos vividas.

Ao longo da psicoterapia, a paciente gradativamente desenvolveu alguma noção de si mesma e de sua história, com sentido de continuidade da situação. Começou a reconhecer que estava inserida em um contexto familiar ora cuidador, ora conflitivo, e parecia determinada a diferenciar-se desses modelos. Ao final da intervenção terapêutica, parece ter desenvolvido um senso mais coerente de self, sendo capaz de reconhecer alguns de seus sentimentos e reorganizá-los. Reconhecia quando estava confusa, com raiva ou triste; porém apresentava limitações dessa percepção. A estratégia psicoterapêutica foi baseada na contínua clarificação e nomeação de sentimentos e pensamentos trazidos para o aqui-e-agora de sua vida e da sessão. A tentativa era que ocorresse um reconhecimento de seus estados mentais, compreendendo os sentimentos no contexto dos relacionamentos prévios e presentes.

Na segunda aplicação do MCAST foram identificados pelo menos dois indicadores de apego seguro (vinhetas 1 e 2), e em três vinhetas (1, 2 e 3) observou-se algum incremento na capacidade de compreender pensamentos e sentimentos dos personagens, ou seja, na capacidade de mentalização. Evidentemente, o período de duração da psicoterapia foi curto e se fazia necessária sua continuidade, o que foi recomendado e assegurado para a paciente na mesma instituição.

Caso 2 – Anne: A aversão à figura paterna

Anne era uma menina de 10 anos que residia com sua mãe, irmão e padrasto. A procura pelo atendimento foi feita pela mãe, preocupada com o fato de a menina se recusar a ir para a casa do pai nos dias de visita. “Anne não quer mais ir à casa do pai, tem medo dele porque ele bebe e é agressivo”, informou a mãe.

Nos seus primeiros anos, Anne vivia com os pais e perto dos avós paternos. Os pais trabalhavam muitas horas por dia e a menina era cuidada pela avó. Segundo relato da mãe, a menina era mal cuidada, mal alimentada e suas fraldas não eram trocadas por horas e horas do dia.

Os pais estavam separados havia três anos. A vivência familiar sempre foi permeada pela violência. O pai costumava espancar a mãe, mantendo as crianças trancadas no quarto durante os episódios de violência. As crianças também sofriam ameaças do pai e eventualmente também apanhavam, ou seja, enfrentaram situações de violência física e psicológica. A mãe fizera denúncias contra o ex-marido e relatou ter medo de que ele pudesse fazer algo contra as crianças, porque “ele vivia me ameaçando de morte e me disse que, se ele não criasse os filhos, eu também não criaria”. Relatou que pensava em afastar as crianças do pai por entender que corriam risco.

O Teste das Fábulas permitiu identificar situações conflitivas importantes, como a questão edípica permeada por impulsos agressivos que resultavam de castigos e reprovações. Ao mesmo tempo, tais conflitos pareciam estar mesclados por impulsos pré-edípicos, podendo ser identificados conteúdos de frustração e raiva por rejeição, privação e falta de cuidados (também identificados na Hora de Jogo Diagnóstica). Havia indícios de que o processo de separação-individuação não foi completamente superado, identificando-se a presença de fantasias de impotência, rejeição e privação. A relação com a figura paterna mostrava-se bastante ambivalente e colorida por impulsos agressivos (conforme Teste das Fábulas e Hora de Jogo). O pai era quem morria na Fábula 4. Anne parecia fazer um uso importante da projeção para se defender dos seus conflitos relacionados às figuras primárias e dos seus impulsos agressivos.

A primeira aplicação do MCAST apontou para indicadores de apego inseguro evitativo na maioria das vinhetas (1, 3, 5). Anne utilizava predominantemente estratégias não interpessoais para solucionar as situações de angústia e de apuros. Nas vinhetas em que surgiram indicadores de apego seguro (2, 4), este foi acompanhado de elementos de restrição e de evitação. Não houve uma identificação dos estados mentais dos personagens coerente com as estórias, o que naquele momento indicava capacidade de mentalização limitada.

Na psicoterapia, Anne se mostrou retraída, introvertida e, inicialmente, muito silenciosa. Suas primeiras manifestações se deram por meio de desenhos. Mostrava dificuldade para falar do pai, apenas narrava fatos, sendo difícil falar sobre seus sentimentos e pensamentos em relação à figura paterna. Mencionava que não gostaria de conviver com ele. Sobre o motivo, dizia que “ele bebe e cheira mal, cheira a cachaça”. Ao relembrar os momentos de violência presenciados quando ainda vivia com o pai, Anne disse: “O pai batia na mãe, trancava a gente no quarto, eu ouvia os berros da minha mãe, a gente perguntava se ele batia na mãe e ele fingia que não acontecia nada”. A relação com a mãe e o irmão parecia mais preservada. Suas sessões iniciavam-se de forma ritualística. Entrava na sala, pedia para “jogar um joguinho”, deslocando-se até o armário e escolhendo alguns jogos.

Anne parecia reconhecer em parte o seu conflito, porquanto dizia que sabia por que viera para psicoterapia: “é porque eu não gosto do meu pai”. Conseguia descrever o que ocorria na sua casa, referindo-se às situações de violência. Apesar de ser capaz de falar desses conteúdos com clareza, a paciente tentava evitá-los, principalmente quando eram explorados seus sentimentos e pensamentos sobre tais vivências. Ao longo da psicoterapia, mostrou gradativamente uma maior percepção sobre seu funcionamento mental. Em alguns momentos reconheceu que ficava triste e angustiada, chorando no quarto junto com seu irmão nos momentos de violência. O sentimento que trouxe com maior frequência foi o de tristeza. Em raros momentos admitiu sentir raiva.

Anne não mostrava muito interesse em refletir sobre os sentimentos e pensamentos das outras pessoas no início da psicoterapia. Passado algum tempo, ao relatar um “curso” na escola sobre dependência química, pareceu sensibilizada com a situação do pai e demonstrou interesse em ajudar de alguma forma. Começou a evidenciar alguma capacidade de mentalização, com certa compreensão de que o pai pudesse estar “doente”. Sobre as ameaças do pai contra a mãe, Anne acreditava que a mãe ficava “braba” e sentindo “raiva”. Quanto ao irmão, acreditava que ele sentia “medo”. Anne custou a reconhecer seu próprio medo, demorando meses para reconhecer que também sentia “um pouco” de medo.

Quanto à “Representação do self”, a paciente possuía uma noção da sua história e recordava fatos de suas vivências, num processo contínuo, não experimentando a mente como vazia ou sem conteúdo; mas não ficava clara a sua compreensão acerca dos sentimentos dos outros nem ela evidenciava sentimento de ser compreendida pelos outros. O que parecia evidente é que, por muitas vezes, Anne mostrava dificuldades em nomear estados afetivos de maneira apropriada. Durante o processo de intervenção, muito lentamente saiu dessa condição, conseguindo, algumas vezes, no aqui-e-agora do setting terapêutico, nomear sentimentos como raiva, medo, etc.

Na segunda aplicação do MCAST, após a intervenção psicoterápica, identificaram-se indicadores de apego seguro em quatro vinhetas. Houve uma identificação mais adequada e consciência evidente do estado mental dos personagens nas estórias, o que indicava um incremento na sua capacidade de mentalização. Ficou claro que se processou alguma mudança no decorrer do processo psicoterapêutico. Anne se tornou capaz de reconhecer de forma mais clara os pensamentos e sentimentos que estavam na sua mente e na mente do outro.

DISCUSSÃO

Analisando-se os dados obtidos através dos estudos de caso é possível levantar a hipótese de que tanto Cristine como Anne experimentaram falhas no desenvolvimento da função reflexiva e capacidade de mentalização (Allen, 2006; Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006; Fonagy & Bateman, 2006; 2007; Slade, 2005). Cristine foi cuidada em seus primeiros anos por pais que apresentavam uma série de dificuldades e que possivelmente não respondiam de maneira contingente e discriminatória às suas necessidades (Bateman & Fonagy, 2003; Verheugt-Pleiter, 2008; Zevalkink, 2008). Além disso, em tal contexto, como estabelecer uma representação de apego seguro? Fonagy (2000) assinala que nas situações de maus-tratos a criança “fecha” sua mente para a compreensão dos estados emocionais, como uma forma de se defender da ansiedade, do medo e do intenso sofrimento gerado por tais experiências.

O ambiente instável e caótico em que Cristine viveu seus primeiros anos, a fragilidade das figuras materna e paterna e a descontinuidade nos cuidados recebidos possivelmente dificultaram o estabelecimento de vínculos predominantemente seguros, pré-condição importante para aquisição da capacidade de mentalização (Allen, 2006; Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006; Fonagy & Bateman, 2006; 2007). A experiência com a avó era marcada pela ambivalência e pelo temor de que repetisse a experiência dos pais. O peso de tais identificações era muito grande e o foco no desenvolvimento da capacidade de mentalização no processo psicoterapêutico se constituiu como uma possibilidade promissora (Bateman & Fonagy, 2003; 2004; 2006). Mudar sua história de maus-tratos e traumas não era possível, mas intervir nas representações dessa história e na compreensão dos estados emocionais subjacentes ao comportamento dos seus cuidadores e do seu próprio comportamento mostrou-se como uma estratégia capaz de ajudar essa paciente.

Anne também viveu seus primeiros anos num contexto de violência doméstica. Neste caso, também foi possível levantar a hipótese acerca da dificuldade de estabelecer um padrão de apego predominantemente seguro e da aquisição da capacidade de mentalização. Era o caso de uma mãe constantemente espancada pelo marido, um pai que fazia uso abusivo do álcool e se expressava principalmente pela via da agressão e duas crianças assustadas e eventualmente também sofrendo agressões físicas. Embora neste caso se possa constatar uma relação mais preservada entre mãe e filha, uma limitação da capacidade de mentalização também foi observada, provavelmente como uma estratégia defensiva possível no contexto de maus-tratos, como assinalam os autores (Bateman & Fonagy, 2003; Fonagy, 2000;).

No caso de Anne, havia o temor da mãe de que o pai pudesse fazer algum mal aos filhos. A menina não aceitava conviver com o pai e acompanhá-lo nos dias de visita, o que se constituiu como o principal motivo para a busca de psicoterapia. Neste caso, constatou-se claramente a falta de discriminação entre os sentimentos da mãe e da filha (Bateman & Fonagy, 2003; Fonagy et al., 2002), o que está na raiz das limitações da capacidade de mentalização.

Em ambos os casos, foi possível constatar histórias de maus-tratos, negligência, falta de cuidados básicos e proteção adequados nos primeiros anos de vida das crianças. Os vínculos das duas pacientes caracterizavam-se por padrões predominantemente inseguros, de acordo com os indicadores observados. Tanto Cristine como Anne experimentaram rupturas de vínculos significativos - no caso de Cristine, com a mãe e com o pai, e no caso de Anne, com o pai. Ambas as histórias familiares apresentavam repetições de padrões vinculares construídos a partir de interações agressivas.

Fonagy e Target (1997) constataram que histórias abusivas vividas na infância com os cuidadores primários e experiências de deprivação não são suficientes para predizer apegos inseguros e psicopatologia na vida adulta. Se essas pessoas tiverem a oportunidade de desenvolver a função reflexiva e sua capacidade de mentalização, estarão protegidas contra muitos dos riscos que tais experiências implicam. Para isso, uma condição favorável seria a possibilidade de construir uma narrativa coerente acerca dessa história e das experiências traumáticas.

Esse foi o princípio que guiou o atendimento dessas crianças. A partir do relato acerca do uso da psicoterapia baseada na mentalização com adultos que apresentam transtorno de personalidade borderline, buscou-se analisar este processo com crianças que de alguma maneira foram maltratadas, experiência associada na literatura à psicopatologia borderline (Bateman & Fonagy, 2006). Além disso, Sharp (2006) enfatizou a importância de se explorar de que forma o constructo da mentalização pode ser compreendido em diferentes transtornos na infância.

Nos casos das participantes deste estudo identificou-se uma limitação da capacidade de mentalização, em diferentes graus. Não é possível afirmar, como constatou Sharp (2006), que tal capacidade estava ausente, como nos casos de autismo, ou bastante comprometida em relação aos próprios estados mentais, como no caso das desordens de conduta na infância; entretanto, em Cristine foi possível observar um comprometimento importante da capacidade de mentalização, considerando-se a hipótese de relações de apego bastante precárias e uma falha importante na função reflexiva por parte das figuras cuidadoras, limitando o desenvolvimento dessa função na paciente.

Em relação a Anne, a limitação na capacidade de mentalização, menos extensa, parecia ter um caráter defensivo, no sentido de não se deparar com determinadas características e significados associados a comportamentos do pai. Em contrapartida, parece ter experimentado uma base mais segura com a mãe, o que pode ter preservado, em algum grau, a função reflexiva da paciente.

Em ambos os casos, o procedimento terapêutico, que focalizou os processos mentais mais do que os conteúdos mentais (Bateman & Fonagy, 2003; 2006), parece ter trazido benefício para as pacientes. Uma estratégia terapêutica dirigida à identificação dos estados emocionais próprios e os do outro mostrou-se valiosa no sentido de ampliar essa capacidade nas pacientes, no contexto de um setting seguro e propício a intervenções contingentes e discriminatórias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Experiências traumáticas relacionadas a maus-tratos na infância constituem-se como importantes fatores de risco para a organização do self e para o desenvolvimento futuro. A história vivida por uma criança não pode ser alterada, mas a possibilidade de ressignificação dessa história no contexto do processo terapêutico, com base no foco na função reflexiva e no incremento ou desenvolvimento da capacidade de mentalização, mostrou-se potencialmente fértil e promissora no atendimento dessas crianças.

O procedimento de Estudos de Casos Múltiplos, utilizado nesta investigação, possibilitou uma compreensão aprofundada dos casos e constitui uma estratégia importante para a pesquisa clínica. Pesquisas em psicoterapia, ou sobre a psicoterapia, devem lançar mão desse dispositivo, por sua riqueza e suas possibilidades.

Evidentemente, a discussão aqui descrita não esgotou a complexidade dos casos estudados. Estabeleceu-se um recorte, alicerçado no interesse dessa investigação, que era a possibilidade de desenvolvimento da capacidade de mentalização na psicoterapia de crianças que sofreram maus-tratos. Inúmeros outros aspectos dos casos poderiam ser abordados, compreendidos e discutidos. Outra limitação do estudo que deve ser assinalada é o pouco tempo de psicoterapia de que se dispôs para fazer a análise das mudanças na capacidade de mentalização. A gravidade dos casos atendidos certamente demanda mais tempo de atendimento, fato que foi observado em relação a essas crianças. Novas avaliações da capacidade de mentalização após mais tempo de psicoterapia certamente trariam novos e importantes elementos para sua compreensão.

Devem-se destacar a limitação causada pela disponibilidade de instrumentos para avaliar o apego e a capacidade de mentalização em crianças e a consequente necessidade de adaptação de instrumentos desenvolvidos em outros contextos. Trata-se de um tema que deveria receber a atenção dos pesquisadores em futuros estudos.

Considera-se a necessidade e a importância de desenvolver mais estudos com foco na capacidade de mentalização nas desordens da infância, além daquelas geradas pelas experiências de maus-tratos. A exploração desse constructo com populações infantis não clínicas também poderia contribuir para lançar luz sobre ele.

É importante assinalar que o curso e as consequências da vivência de maus-tratos não são apenas a psicopatologia. Neste sentido, o trabalho psicoterápico se apresenta como uma esperança, no sentido de possibilitar uma ressignificação da experiência, permitindo construir um vínculo com o terapeuta que esteja mais próximo de um apego seguro, permeado por confiança e continência. A psicoterapia com foco no desenvolvimento da capacidade de mentalização pode ajudar efetivamente pacientes com tais características.

Recebido em 04/04/2010

Aceito em 12/01/2011

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  • Endereço para correspondência

    Vera Regina Röhnelt Ramires.
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    . Apoio: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      04 Abr 2010
    • Aceito
      12 Jan 2011
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